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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061versão On-line ISSN 2179-5800

Psicol. Ensino & Form. vol.8 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.21826/2179-58002017814552 

Ensaio

Estágios em Psicologia e Educação: Itinerários Singulares de Formação

Internships in Psychology and Education: Unique Education Routes

Pasantías en Psicología y Educación: Itinerarios Singulares de Formación

 

 

Paula Fontana FonsecaI

I Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

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Resumo

O intuito do presente trabalho é abordar os movimentos políticos e discursivos em Psicologia e Educação do ponto de vista da formação dos alunos de Psicologia. A entrada dos estagiários no terreno escolar foi historicamente marcada por uma postura avaliadora em que o saber do especialista se prestava a localizar, avaliar e propor soluções para o que era tomado como obstáculo à escolarização almejada. Nosso trabalho se sustenta em uma crítica a essa visão ideológica sobre a função do estagiário e mais amplamente do próprio psicólogo na Educação. Para tanto, discorreremos sobre a função do estagiário nas instituições educativas, e sobre uma proposta de supervisão que tem como sustentação ético-política a abertura para os itinerários singulares de formação. Entendemos que os itinerários singulares operam como pontos de inflexão nos processos formativos e permitem o questionamento do que podemos chamar de empuxo à totalização, presente nas diversas instituições.

Palavras-chave: formação, psicologia, educação, estágio.


Abstract

This paper aims at debating the political and discursive movements in Psychology and Education from the perspective of Psychology students’ education. The entrance of the trainees in the schooling environment was historically marked by an evaluating attitude in which the knowledge of the expert was used to track, assess and propose solutions for what was considered an obstacle for the intended training. A criticism is presented on such ideological view of the role of the trainee, and more broadly on the psychologist itself in Education. Therefore, this paper debates the role of the trainee in education institutions and presents a proposal of supervision that has as its ethical and political ground the openness for unique education routes. The unique routes work as turning points in the education processes and allow to question what we could call thrust to totalization, present in several institutions.

Keywords: training, psychology, education, internship.


Resumen

El objetivo de este trabajo es abordar los movimientos políticos y discursivos en Psicología y Educación de la perspectiva de la formación de los estudiantes de Psicología. La entrada del estudiante en prácticas en el terreno escolar fue históricamente marcada por una postura evaluadora en la cual el saber del especialista se prestaba a rastrear, evaluar y proponer soluciones para lo que era tomado como obstáculo para la educación pretendida. Nuestro trabajo se basa en una crítica a esa visión ideológica de la función del estudiante en prácticas y más ampliamente del propio psicólogo en la Educación. Para eso, abordaremos la función del estudiante en pasantía en las instituciones educativas y una propuesta de supervisión que tiene como sostén ético-político la apertura para los itinerarios singulares de formación. Entendemos que los itinerarios singulares operan como puntos de inflexión en los procesos formativos y permiten cuestionar lo que podemos llamar de empuje hacia la totalización, presente en las diversas instituciones.

Palabras-clave: formación, psicología, educación, pasantía.


Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco.

Lygia Fagundes Telles

Quando era estudante de quarto ano da graduação de Psicologia, tive minha primeira experiência de atendimento clínico em uma disciplina obrigatória na qual nossa tarefa era a de realizar um psicodiagnóstico. Nosso grupo de supervisão, formado por oito alunos, recebeu uma ficha com a breve descrição dos casos a serem atendidos. Todos eram crianças e na ficha constava: nome, idade e um resumo da queixa que fez os pais procurarem o auxílio psicológico para o filho. Com base nisso, já logo de início a docente que nos supervisionava propôs algumas condutas: atendimento lúdico, montar uma caixa com brinquedos e aplicar alguns testes. Minha turma era bastante resistente à aplicação de testes. Já tínhamos tido contato com os trabalhos da professora Maria Helena Souza Patto (2017), e acompanhávamos sua crítica ferrenha à avaliação feita com instrumentos de cunho ideológico, que tinham por premissa localizar o problema na criança para então podermos tratá-la visando à sua readaptação. A polêmica estava instalada em nosso grupo de supervisão: recusávamo-nos a aplicar testes de inteligência! O debate foi bom, intenso, duro. No final, conseguimos realizar um psicodiagnóstico que fosse condizente com nossas posições em Psicologia. E, nesse sentido, alguma negociação foi possível: de um lado o saber do professor, que não pode ser julgado antes de alguma aproximação, e de outro uma gana dos alunos em exercer uma Psicologia alicerçada em princípios éticos, há tão pouco tempo conhecido por nós. Esse tema se estendeu por nossa graduação, tendo sido objeto de uma mesa em uma semana de Psicologia – e dessa vez contamos com a presença da Maria Helena Patto na discussão –, e também – junto a uma série de outras experiências – acabou merecendo uma menção no convite de formatura que era assim: “Para aqueles de alguma maneira atrapalharam nossa formação: eles passarão, eu passinho” (Quintana, 2005, p. 257). Menção polêmica, que dividiu a turma: afinal, onde já se viu homenagear quem atrapalhou? Não seria melhor não falar mais nisso, deixar para lá?! Não seria eternizar uma pendenga ao inscrevê-la no convite de modo a levar para outras esferas esses encontros que obstaculizaram nossos caminhos?

Essa breve introdução nos serve para recortar o tema do presente artigo, que leva como subtítulo “Itinerários singulares de formação”, posto que pretende abordar a linha tênue que separa o que forma e o que deforma ao longo da graduação em Psicologia.

O termo itinerários de formação título a um escrito de Jean Oury (1991), psiquiatra e psicanalista francês, que dedicou sua vida ao tratamento de pessoas psicóticas. Com esse termo, Jean Oury propõe que “se trata de levar em conta o itinerário de cada um, seus engajamentos pessoais, (...) valorizar o que contou para ele na abertura ao ‘mundo’” (p.7-8). Além disso, ressalta um aspecto interminável da formação, interminável da formação, ainda que etapas possam ser conquistadas. Uma espécie de formação terminável e interminável – parafraseando Freud (1980). A formação operaria uma modificação “no sentido de uma sensibilização para alguma coisa específica” (Oury, 1991, p. 3). Tornar possível que o novo se inscreva, podendo ser definida como uma espécie de rearranjo subjetivo, cujo objetivo é criar “espaço onde possa acontecer alguma coisa” (p.6). Jean Oury e Tosquelles foram bastante críticos à (de)formação que percebiam acontecer no percurso dos psiquiatras e profissionais da saúde mental, pois acabavam ficando blindados por um saber que se interpunha à experiência de estar com o outro.

No Serviço de Psicologia Escolar do IPUSP, nossa equipe está presente na formação dos alunos. Todos os semestres oferecemos estágios e nos responsabilizamos tanto pelo espaço de supervisão – portanto acompanhamos de perto o compartilhamento dessas experiências – como pelo contato e trabalho junto às instituições que recebem nossos alunos. Essa necessidade foi sendo construída ao longo da história do Serviço, conforme conta Maria Helena Patto (1997, p.9), professora que esteve presente no momento de sua criação que em 2017 completou quarenta anos:

(...) percebemos que só poderíamos desenvolver um trabalho mais consequente, duradouro e ético se déssemos início ao atendimento efetivo de algumas unidades escolares, nas quais os alunos do curso de graduação em Psicologia realizassem a cada ano seu estágio, sem que sua passagem necessariamente transitória pela escola implicasse em descontinuidade ou término dos trabalhos, o que vinha tornando, com razão, o pessoal docente e administrativo das escolas cada vez mais refratário à presença de estagiários.

Portanto, advertidos de que os estagiários eram transitórios, mas que o trabalho da instituição tinha um caráter perene, conquistamos a possibilidade de atuar na construção de um estágio que pudesse dialogar com essa característica híbrida, usando como estratégia um pensamento propositalmente tautológico: na extensão universitária, o trabalho é mais importante porque, ao fazê-lo, priorizamos a formação dos alunos, ou seja,  priorizamos a formação dos alunos ao colocarmos a extensão como mais importante. É um chiste, claro, que justamente sublinha o caráter indissociável da extensão na formação do aluno de Psicologia.

Foi dessa forma que historicamente aconteceram as contratações de psicólogos no Serviço, e o trabalho foi sendo articulado em torno deste princípio ético: problematizarmos e efetivarmos uma atuação junto às instituições parceiras visando romper com a tendência universitária de ir a campo colher elementos que seriam apropriados pelo pensamento e pela pesquisa científicos.

O estágio é entendido como sendo o momento, por excelência, na formação dos nossos alunos em que eles se abrem para o mundo. Voltamos, assim, às contribuições de Jean Oury (1991), quando discorre acerca da aprendizagem da escuta dos barulhos do coração: “se não estamos preparados, não adianta escutá-los com o estetoscópio, pois não ouvimos senão ruídos confusos. Basta que nos digam que é preciso ouvir um certo ‘tum-tᒠpara que rapidamente, ao redor desse ‘esquema’, possamos distinguir os ruídos, os sopros, o ritmo...” (p.5). Mas, seguindo um pouco mais com o exemplo, se é no estágio que recolhemos os efeitos de um certo instrumental e como ele opera mudando nosso entendimento – por exemplo, na escuta dos barulhos do coração –, é também nesse momento em que podemos nos perguntar o que mais, além de uma arritmia talvez, que esse coração nos conta. Ou seja, o que aprendemos nos habilita para estarmos no campo e usufruir de um arcabouço teórico na interpretação do mundo pode ser profissionalmente gratificante. Mas, lembrarmos que um referencial é historicamente construído, e que em outros tempos e contextos as interpretações foram outras. Enfim, fazer lembrar que o saber não é um todo coeso, mas feito de experiências múltiplas; é parte constituinte desse espaço supervisivo, tal qual o entendemos. É nesse sentido que posso afirmar que a atuação se dá na linha tênue entre o que forma e o que deforma, e essa linha ganha o nome, nesse trabalho, de experiência.

Para Larrosa (2002), “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (p.21). Essa é a força que pretendi dar no título desse trabalho: itinerários singulares de formação. Nesse sentido, foi fundamental explicitar a singularidade do itinerário. Pois um itinerário poderia ser pensado como um caminho a ser percorrido. Opto aqui por uma definição que evidencia o itinerário que cada um percorre.

Trago uma situação que vivemos no grupo de supervisão de alunos que estagiavam em um Centro de Atenção Psicossocial  Infantojuvenil (CAPSI) do município de São Paulo, um dos campos de estágio que o Serviços de Psicologia Escolar (SePE) oferece semestralmente aos graduandos de Psicologia. O aluno frequentava o espaço da Convivência e relatava nas supervisões várias dúvidas sobre a funcionalidade e, sobretudo, o propósito daquele espaço da instituição: Por quê? Para quê? O que devo fazer ali? O que esperam de mim? E assim por diante.

Larrosa (2002) nos fala que o excesso de informação não deixa lugar para a experiência, e que a ênfase toda do mundo contemporâneo está posta em sermos pessoas cada vez mais informadas e com opinião formada sobre tudo. A universidade é, por excelência, esse lugar pois estamos às voltas não apenas com o excesso de informações, mas com as últimas e mais recentes evidências científicas acerca do mundo. Ou seja, há um empuxo universitário que alça a antiexperiência – termo utilizado por Larrosa – como lugar da neutralidade científica.

Nessa ocasião, compartilhei com os alunos o texto do Arthur Hippólito de Moura, e destacamos em nossa discussão este trecho: “Tosquelles costumava dizer, ‘mesmo se não há ninguém no ônibus, é preciso que ele passe assim mesmo, é preciso que a linha continue’. É preciso uma certa regularidade, mas uma regularidade cuidadosa” (Moura, 2003, p.175). Discutimos esse pequeno fragmento, pensamos como essa persistência atuaria do lado dos profissionais ao manterem certa constância no convite, manterem viva a necessidade de que o ônibus passasse, mesmo que ninguém fizesse sinal para entrar nele nas diversas paradas.

Trago um fragmento do trabalho final desse aluno:

No início do estágio, poderia dizer que meus esboços de percepções sobre as dinâmicas do grupo me despertavam incômodo, no sentido de algo que desperta o ser mas que, talvez, estivesse errado.

(...)

A princípio, a convivência ia me parecendo um momento incerto, que me deixou com as maiores perturbações e dúvidas. Impressões se criaram em mim, e reconheço os meus limites em dar-lhes importância e desenvolvê-las, por carecer de experiência, conhecimentos e mesmo tempo de observação. Fui me incomodando gradualmente com aquele espaço cujos sentidos não me estavam disponíveis e que me parecia às vezes local de recreação mal-preparada e de uma pedagogia mascarada. (grifo meu)

Interessante que ele mesmo nomeie este tempo inicial como “carecendo de experiência”. Tempo que depois ganhou o contorno de ser aquele em que a pergunta vinha antes do estar com os outros. Perguntas insistentes, incômodas, que produziram a chamada carência de experiência. Não necessariamente perguntas erradas, inférteis; na verdade, eram totalmente pertinentes! Mas vinham antes, careciam de tempo, experiência para germinar.

Vamos seguir mais um pouco com a escrita dele:

À medida que as semanas passaram, escolhi me relacionar de outra forma com as questões que me perturbavampor que tudo isso?”). Como que deixando uma postura “observadora” e crítica, preferi me re-situar naquele espaço em que entrava e me conduzir sem dar tanta importância aos incômodos que sobrevinham, buscando identificá-los e classificá-los imediatamente. Preferi assumir meu “não-saber”, deixar de criticar e querer me destacar do grupo para conhecer suas dinâmicas, e assumir a tarefa de participar daquelas interações, inserido como estava, vivê-las mesmo no que fosse estranho, mesmo se eu continuasse ignorando o intuito em estarmos ali, se deveria ou não acompanhar as brincadeiras, responder aos chamados, aos convites para brincar.

Em nosso encontro final, ele nomeia essa mudança como sendo da ordem de uma pergunta perturbadora. Essa pergunta que o acompanhava desde o início, que primeiro aparecia como uma necessidade de saber mais acerca daquele contexto institucional e que passou por uma mudança ao ser enunciada como uma pergunta feita depois de poder aceitar os convites, mesmo que não se soubesse ou se entendesse todos os propósitos de antemão. Ela não deixa de ser perturbadora, na verdade até se desdobra em várias. Porém, como veremos no trecho que segue, ganha uma narrativa carregada de hipóteses e termos extraídos da própria experiência:

O que seria a convivência? Uma proposta flexível de espaço que acolha os acontecimentos “fugidios à realidade normatizada”? Espaço que promova o desenvolvimento da comunicação e da alteridade entre os adolescentes, ao mesmo tempo em que dá suporte a construções autônomas e à tomada de responsabilidades? Espaço que estimule a criatividade? Quais são os “acontecimentos” que se deseja favorecer?

A pergunta pelo “por que” se liga a uma causa explicativa, ou seja, um encadeamento de acontecimentos e concepções que, se supõe, são suficientes para contextualizar determinada prática. Isso perturba a experiência de estágio, e pode comparecer na supervisão como um apelo ao esclarecimento, como se o supervisor tivesse os elementos que tornariam determinado acontecimento apreensível, e como se isso fosse suficiente para entender o fenômeno. Esse tempo inicial dá lugar a uma narrativa sobre a experiência; não a um relato acerca do que se passa, mas um compartilhamento sobre o que tocou cada um.

Outra situação de estágio, dessa vez em uma escola pública de ensino fundamental do município de São Paulo, trouxe o desafio de produzir uma escrita que tivesse como destinatário a instituição educativa que recebeu o grupo de estagiários por um semestre. Essa produção, nomeada por Adriana Marcondes Machado (2014) de “carta relatório”, foi tecida a partir da escrita de cada um, de modo a compor um todo coeso, no qual também compareciam fragmentos retirados dos diários de campo. O produto final pretendia condensar a experiência de estágio do grupo ao garantir que cenas pontuais fossem compartilhadas como disparadoras de reflexões que haviam sido escolhidas como emblemáticas sobre temas presentes ao longo do semestre.

Com o relatório em mãos, fomos ter uma reunião com a gestão da escola, e fizemos um exercício de leitura compartilhada. A primeira cena descrita captou a atenção dos envolvidos, e foi dado destaque para esta frase:

(...) penso que acessar os percursos que culminam em alunos que gastam mais tempo no celular do que nos estudos, na estagiária que frequentemente se sentia completamente impotente, nos professores que em alguns momentos parecem ofuscar as potências da Escola pelo que ainda precisa ser melhorado, é maneira de agir nessas produções.

Para nós, acessar esses feixes, que atravessavam e se entranhavam no trabalho escolar, era destacado como uma forma de agir nisso que se produzia no cotidiano institucional. É interessante a gestão destacar o termo “ofuscar”, que qualificava uma ação dos professores: esses professores que ofuscam as potências da escola ao enfatizarem tudo que deveria ser melhor ou mais cuidado pela gestão. Essa foi a forma como o relatório foi lido, e esse entendimento desdobrou-se em uma série de considerações acerca da função do professor no projeto educativo daquela escola. Uma contraposição se fazia presente, uma vez que de um lado apareciam professores que questionavam e denunciavam uma falha na gestão e de outro a gestão que questionava e denunciava a falta de implicação dos professores.

Esse assunto perdurou por um longo tempo na reunião. Era inevitável pensar que a palavra “ofuscar” tinha ao mesmo tempo produzido e deflagrado aquele entendimento. Outra formulação foi sendo construída, de modo a não tomar as coisas como se fossem apenas dicotômicas: onde os professores sentem que têm guarida para suas ações pedagógicas? Pensar sobre os espaços institucionais e as formas que eles estavam sendo acionados no terreno escolar produziu uma inflexão nessa polarização.

Outro ponto destacado foi justamente a escrita pessoal dos trechos, o que foi valorizado como sendo da ordem do compartilhamento de uma visão singular que era potente na medida em que os outros podiam ter acesso a uma experiência (e não A experiência). A proposta de não totalizar a escola como instituição una se fez presente em um relatório que garantia a palavra pessoal alinhavada a reflexões transversais.

A busca por uma definição da ação do estagiário de psicologia que não apenas apresentasse nossa concepção, mas também fosse condizente com os princípios éticos que regem essa proposta, foi um desafio constante junto a este grupo. Ela ganhou a seguinte formulação neste escrito final: “A nossa presença e atuação na instituição X é definida constantemente em cada ida à escola, em cada situação vivida, em cada conversa com as professoras/estagiários e, também, em cada supervisão na faculdade”. Desse modo, o estágio tentou operar uma torção ao propor que “a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escrita” (Larrosa & Kohan, 2017, s/p).

Uma definição que visava transmitir a aposta em margens mais flexíveis para a presença de um estudante de Psicologia em uma instituição educativa e que trazia em si o inusitado de cada dia, das contingências que são parte integrante da experiência. Não se colocava ao lado daquele que contém um saber sobre a prática educativa e que prescreve uma ação a ser realizada pela escola, nem tampouco se furtava de ser aquele que oferece uma leitura implicada que produz efeitos de sentido.

Segundo a definição de Larrosa (2002), a experiência não se confunde com o experimento pois ela é irrepetível, é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem pré-dizer’. “A lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade” (p.28). O que cada um leva de um mesmo acontecimento – de uma oferta de estágio, por exemplo – é de cada um. Nossa aposta é que a formação se constitua como um itinerário singular, e que o sujeito possa testemunhar o que para ele funcionou como ponto de inflexão.

Podemos definir a supervisão como tendo a função de “dar-se tempo e espaço” (Larrosa, 2002, p. 24). O supervisor é aquele a quem o relato se dirige, que supostamente detém as respostas aos porquês iniciais. Ao aceitar isso como um campo de ilusão necessário para o desenrolar de uma experiência, o supervisor também se lança ao imprevisível.

Uma aluna trouxe, em seu trabalho final, o conto de Lygia Fagundes Telles, “A estrutura da bolha de sabão”, que inclusive serviu de epígrafe para a presente reflexão.

Se me afobava, o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe o canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. (Telles, 1995, p. 157).

Conforme a aluna destaca, essa alegoria ajudou-a a simbolizar um pouco da incerteza que sentia com relação à atuação do psicólogo. Ela escreve:

Penso que o trabalho do psicólogo requer um cuidado que também não funciona com a afobação, que requer calma e delicadeza com determinadas estruturas. E, no caso, a situação de não conseguir formar a bolha, mas se propor a não desistir me faz pensar em meu papel de estudante e estagiária, buscando entender como me colocar em situações como as que esse estágio me demandou. 

O termo afobação me faz pensar em um problema recorrente na práxis do psicólogo e, portanto, do estagiário de Psicologia. Como não ceder apressadamente ao entendimento de que, se uma intervenção teve efeitos interessantes, ela “resolveu um problema”? Por exemplo: imagine uma criança que está com dificuldade de acompanhar a turma na escola e que no dia-a-dia escolar está sem cadernos, lápis, agenda. Imagine que o estagiário elabore a hipótese de que essa desorganização pode ser a razão da não aprendizagem, e propõe-se a acompanhar o aluno ajudando-o com o cuidado de seu material e ensinando-o a fazer uma agenda eficiente. E esse aluno passasse a efetivamente se situar melhor, e eventualmente até a ter resultados escolares animadores. Tendo por base esse acontecimento, poderíamos concluir que faltava ao aluno alguém que o ajudasse a se organizar? A resposta para essa pergunta é ao mesmo tempo sim e não. Há algo que toca essa experiência que se alinha com o fortalecimento da organização do aluno, mas há também o imponderável de uma relação singular que pode ter se estabelecido entre estagiário e aluno.

Novamente, articula-se o cálculo necessário que baliza uma intervenção com o não proporcional de seu efeito, e aqui o termo aposta ganha a cena. O espaço de supervisão é o terreno em que essa experiência pode ser vivida: ao narrar um acontecimento, o aluno tem a oportunidade de implicar-se nele, de tomar-se também como efeito do laço que se estabeleceu em uma situação específica. Rompe-se, assim, com a ideia de que a realidade existe dissociada das relações humanas, e de que seria possível acessá-la em sua inteireza. Por isso, o trabalho se sustenta em brechas – sejam elas discursivas, sejam institucionais – pois é no vão que se evidencia o não acoplamento entre teoria e prática. O sujeito na sua singularidade emerge de modo a subverter a aparente linearidade estabelecida em uma relação do tipo causa-efeito: essa é a desordem que nos interessa.

Mas existem as famigeradas pedras no meio do caminho! Como àquela que fiz referência na abertura dessa comunicação. Afinal, por que homenagear no convite de formatura quem atrapalhou nossa formação? Bem, uma pedra no meio do caminho não precisa ser o fim do caminho. Nesse ponto, a ideia de experiência ganha uma temporalidade própria, pois as marcas que cada um carrega e o que faz delas também contam nessa história.

Às vezes, a inflexão se dá no momento da escrita do trabalho final. Já recolhi vários testemunhos nesse sentido. Lembro-me de uma dupla que chegou a explicitar que descobriram que o trabalho versava, no fundo, sobre a mudança que se operou neles mesmos. Às vezes, é na vivência de uma situação angustiante, limite, ou até mesmo uns anos depois, ao ser ressignificada por uma outra experiência.

Que o estranho tenha tempo e espaço para acontecer. Que ele seja tratado pelas teorias, ganhe contornos nas experiências dos outros colegas de supervisão, dê relevo à contribuição de autores que se debruçaram sobre suas experiências em um exercício de transmissão dos seus próprios itinerários singulares.

Como diz Benjamin, “ficamos pobres. Abandonamos, uma a uma, todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (1985, p. 119). Acredito que isso serve de advertência à universidade, que tem sido projetada para os anos porvir. Essa universidade que vem sendo trocada pela moeda miúda das avaliações, da produtividade de artigos que fatiam pesquisas em fascículos, da comparação com outras universidades internacionais sem o devido destaque ao contexto complexo e desigual brasileiro.

O itinerário singular de formação é o espaço em que escolhemos – eu e minha equipe de trabalho – apostar nossas fichas para que esse projeto tecnicista carregue consigo o inquietante e bárbaro desafio de formar pessoas.

Referências

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Submissão: 9/01/2018

Aceite: 20/01/2018


E-mail: I paulaffonseca@uol.com.br.

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