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Perspectivas em análise do comportamento

versão On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.1 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Possibilidades da análise dos sonhos na terapia comportamental

 

Possibilities of dream analysis in behavior therapy

 

 

Artur Vandré Pitanga; Luc Vandenberghe

Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute o uso da análise dos sonhos na terapia comportamental como possibilidade para a aquisição de autoconhecimento por parte dos clientes, assim como a viabilidade deste tipo de análise de fornecer aos terapeutas mais informações sobre a vida dos clientes para o trabalho terapêutico. Exemplos são dados a partir de três casos clínicos, para mostrar como a análise dos sonhos ajudou a identificar comportamentos dos clientes relacionados às suas queixas e situações com as quais têm dificuldades de lidar. Os exemplos também ilustram como a análise pode ajudar o cliente a entender a relação da sua história com suas dificuldades, levando-o a uma maior abertura para o processo terapêutico e permitindo-o emitir respostas emocionais relevantes durante a sessão que asseguram seu compromisso com a mudança. Desta forma, a análise dos sonhos é apresentada como um recurso de ampla aplicação terapêutica.

Palavras-chave: terapia comportamental, sonhos, interpretação, análise de contingências.


ABSTRACT

This article discusses the analysis of dreams in behavior therapy and its use for the expansion of the client's self-knowledge acquisition, as well as the feasibility for this kind of analysis to give the therapist more information about clients' life conditions for therapeutic purposes. Examples from three cases are given, showing how dream analysis helped identify client behavior related to their complaints and situations they have difficulty coping with. The examples also illustrate how the analysis can help clients understand how their history relates to their problems, how it can lead them to open up for the treatment process, how it can facilitate intense emotional responding in the sessions, and promote commitment to change. Based on these possibilities, the analysis of dreams is argued to be a resource with potentially broad application in treatment.

Keywords: behavior therapy, dreams, interpretation, analysis of contingencies.


 

 

Um dos objetivos da psicoterapia é proporcionar ao cliente capacidade de identificar as contingências que determinam seus comportamentos e dispor condições para que ele compreenda como tais contingências influenciam sua vida. O terapeuta que trabalha em função de levar seu cliente a compreender-se está, de acordo com Skinner (1974/1993b), presumivelmente ajudando-o a discriminar relações causais, das quais este ainda não havia tomado consciência. A psicoterapia é então um espaço para promover a auto-observação, para "trazer à consciência" uma parcela maior do que se é feito e das razões pelas quais as coisas são feitas.

O autoconhecimento consiste em estar consciente do que se vê, sente, ouve, pensa e faz e relacionar esses eventos às contingências das quais são função. É "uma questão de estar em contato consigo próprio" (Skinner, 1974/1993b, p. 161). Skinner aponta, ainda, que o autoconhecimento tem uma importância especial para o indivíduo, pois uma pessoa que se tornou "consciente de si mesma" tem melhores condições de prever e modificar seu próprio comportamento.

O objetivo deste artigo é explorar a noção da aquisição de autoconhecimento a partir de alguns exemplos de análise de sonhos. Iniciamos com uma breve revisão teórica sobre eventos privados e autoconsciência.

 

Relatar eventos privados

Skinner (1989/2003) conceitua eventos privados como estímulos e respostas que ocorrem sob a pele do indivíduo, sendo acessíveis de forma direta apenas a ele mesmo. Os comportamentos privados (e.g., sonhar, pensar, imaginar) não são qualitativamente diferentes dos públicos (eventos que ocorrem abertamente como andar, escrever, lecionar, etc.) Ambos estão sujeitos às mesmas leis. Porém, somente os públicos podem ser observados por mais de uma pessoa (Skinner, 1953/1993a, 1974/1993b).

Tanto eventos púbicos quanto eventos privados podem funcionar como estímulos discriminativos, numa relação verbal denominada de tato. Tato é um operante verbal, no qual uma resposta verbal é evocada por um objeto, um acontecimento ou uma propriedade de objeto ou acontecimento (Skinner, 1957/1978). Ensinar uma criança a tatear estímulos públicos é relativamente fácil, porque pais ou professores podem verificar se o objeto que funciona como estímulo discriminativo (por exemplo, uma bola) corresponde à resposta (a palavra bola). No entanto, dificuldades surgem quando a comunidade verbal tenta ensinar uma pessoa a tatear eventos privados.

Skinner (1957/1978) identificou várias estratégias sobre as quais a comunidade verbal pode se apoiar na intenção de ensinar o indivíduo a tatear o que sente ou pensa. Confiar em estímulos públicos que acompanham respostas privadas é uma estratégia. Por exemplo: uma mãe que presencia seu filho caindo tende a validar o relato feito pela criança: "está doendo". A relação entre as sensações (inacessíveis à mãe) e a resposta verbal da criança será reforçada pela reação de cuidados da mãe. Outra estratégia consiste no uso de respostas públicas colaterais. Por exemplo: quando a criança franzir a testa e ficar pálida tem-se condições para reforçar a fala "estou com dor". Além disso, o vocabulário para relatar eventos privados pode ser ensinado através da extensão de tatos baseados em eventos públicos aos quais a comunidade verbal tem acesso.

Comportamentos encobertos são pistas das condições que afetaram e afetam a pessoa, assim como para as condições relacionadas a comportamentos futuros (Skinner, 1957/1978). Este ponto é particularmente importante para a prática da terapia comportamental, porque transforma relatos de eventos privados por parte dos clientes em fontes de informação para o terapeuta. Os relatos são usados no intuito de identificar e explorar pistas que ajudam na análise funcional.

Durante discussões acerca de sonhos, terapeutas comportamentais fazem perguntas na intenção de obter informações adicionais sobre as condições de vida e a história do cliente. Além de oportunidades de coleta de dados, estas discussões também permitem fazer intervenções que colocam o cliente em contato com as emoções evocadas pelos sonhos. O processo de análise dos sonhos pode contornar comportamentos de esquiva por parte do cliente que não se dispõe a falar diretamente de certos assuntos do seu dia-a-dia, mas o faz indiretamente na discussão dos sonhos. Outra vantagem é que os problemas vividos pelo cliente podem ocorrer durante estas discussões, permitindo suas abordagens no relacionamento com o terapeuta (Delitti, 1993). A evocação de emoções fortes pelo relato de sonhos é bastante freqüente e, por esta via, uma variedade de problemas emocionais pode ocorrer ao vivo, na presença do terapeuta. Estes momentos constituem oportunidades especiais para que o cliente aprenda a lidar melhor com suas dificuldades (Callaghan, 1996).

Finalmente, ao discutir os sonhos e suas relações com o cotidiano e os problemas do cliente, o terapeuta o ajuda a discriminar e descrever melhor os eventos privados e relacioná-los com as contingências de sua vida. Entretanto, é importante ressaltar que é o cliente (e não o terapeuta) quem constrói a interpretação dos sonhos. Perguntas do tipo "como você relaciona esse sonho a sua vida?" ou "por que você resolveu relatá-lo nesta sessão?" (Delitti, 1999) são feitas para criar oportunidades de auto-observação. Nestes momentos, o terapeuta atua como um membro da comunidade verbal que providencia as contingências para o desenvolvimento de maior autoconsciência. É interessante observar que as interpretações dadas pelo cliente aos sonhos servem como indicativo do grau de autoconhecimento que ele possui. Quanto maior a habilidade de relacionar seus sonhos com as contingências de sua vida, melhor será a discriminação de como as contingências o afetam (Guilhardi, 1994).

 

O sonhar

Freud (1900/1996) popularizou o uso da análise de sonhos para fins psicoterapêuticos. Apresentou os sonhos como uma maneira de satisfazer desejos inconscientes. Para o autor, os sonhos são entendidos como atividades mentais oriundas de instâncias psíquicas governadas por leis próprias. Em contraste, para Skinner (1974/1993b), os sonhos são comportamentos privados e podem ser compreendidos como comportamentos de ver, mais especificamente de ver na ausência da coisa vista. O ver na ausência da coisa vista é resultado de contingências que não estão presentes no momento do sonhar, mas que afetaram os repertórios de ver do cliente de maneira importante.

Ao considerarmos que o indivíduo constrói seu universo da mesma forma quando acordado ou sonhando, devemos considerar também que seu comportamento de ver deveria estar evidente tanto no dia a dia quanto nos seus sonhos. Porém, o mundo físico em torno da pessoa acordada determina em grande parte o que pode ser visto, em outras palavras, é importante fonte de controle do comportamento. Ao se eliminar esta fonte de controle durante o sono, maior liberdade é permitida. A história da pessoa, as emoções e as privações têm oportunidade de controlar de forma mais plena o comportamento de ver. Enquanto acordado, pressões sociais ou impossibilidade material podem evitar que sejam emitidos comportamentos que estão presentes com força no repertório do cliente. No sonho, ocorrem comportamentos que não seriam tolerados na vida real e outros que infringem as leis da física. Dessa forma, criam-se condições únicas para a observação de comportamentos que não ocorrem na vida real, mas mesmo assim trazem dicas sobre contingências que afetam o cliente (Vandenberghe, 2004).

O presente artigo pretende ilustrar algumas possibilidades da análise dos sonhos por meio de trechos de atendimentos.

 

Trechos de sessões e Discussão

Cliente A.

Srta A., 22 anos, estudante universitária, chegou à terapia com queixa de dificuldade em relacionamentos interpessoais e extrema exigência de si mesma em relação aos estudos, pois não admitia erro, nem seu nem de outras pessoas. Relatou que, ao fazer suas atividades acadêmicas, ficava trêmula, ansiosa e muitas vezes não conseguia terminar. O atendimento foi feito por um terapeuta e um coterapeuta. A partir dos seus relatos, hipotetizamos que ela se comportava freqüentemente de forma que dificultava aproximações interpessoais. Porém, durante as sessões, falava pouco de si mesma e culpava as outras pessoas por seus problemas. Por não contribuir suficientemente com informação sobre sua vida, solicitamos que trouxesse anotações de sonhos. Na terceira sessão, atendendo ao pedido, a cliente trouxe os seguintes registros:

Sonho 1: "Recebi mensagens no celular, mas não consegui ler. Quando consegui ler, era uma mensagem da B. Ela reclamava que nós não conversávamos. Queria que nossa amizade voltasse como antes. Fiquei contente com as mensagens. No outro dia, nos encontramos no corredor da faculdade e não tocamos nesse assunto e conversamos friamente. Tive vergonha de comentar as mensagens com ela."

Sonho 2: "Estava em algum lugar com meu irmão e não pude sair com o E. [namorado]. Ele me passou uma mensagem dizendo que eu iria me arrepender disso, dando a entender que ele iria descontar. Aí, fiquei impaciente. Fui embora de ônibus, mas queria que meu tio me levasse. Quando cheguei em casa, liguei para o E. Discutimos no telefone porque ele tinha ido para outro lugar."

Os sonhos seriam analisados e discutidos na semana seguinte, porém A. não continuou a terapia, alegando falta de horário disponível devido ao seu estágio e calendário de provas. Mesmo assim, algumas possibilidades da análise de sonhos podem ser ilustradas a partir deste material. Ao trazer seus sonhos transcritos para a sessão, A. agiu como se estivesse sendo avaliada, ao dizer: "Não sei se fiz da forma correta". Também comentou: "Não sei se perdi alguns detalhes ou se eu confundi alguma coisa. Tentei lembrar ao máximo". Essa atitude foi uma ocorrência ao vivo de sua dificuldade em suportar erros. Se a terapia tivesse continuado, esta dificuldade poderia ter sido trabalhada por meio de outras tarefas envolvendo relatos de sonhos.

No sonho 1, A. recebe mensagens pelo celular de uma pessoa que tenta reatar a amizade entre as duas. A. acredita que o sentimento de vergonha lhe impediu de comentar as mensagens. No sonho 2, A. recebe ameaças do namorado e imediatamente vai embora, quer que o tio a leve. Seu esforço para atender a exigência do namorado é em vão e ela briga com ele.

Os sonhos de A. indicam semelhanças com comportamentos relevantes emitidos durante as sessões e possibilitam um olhar mais preciso sobre como a cliente reagia a determinadas situações cotidianas. A cliente sentia vergonha dos sentimentos positivos que tinha por outrem? Ela tratava as pessoas friamente para se esquivar destes sentimentos? Deixava passar oportunidades de aprofundar relacionamentos ao tentar se esquivar de emoções? Podemos levantar a hipótese de que ela buscou ajuda do terapeuta para fugir das dificuldades, da mesma forma como quando quis que o tio a levasse mais rapidamente embora no sonho 2. É possível que a cliente tenha se sentido decepcionada com o terapeuta que, ao invés de ajudá-la a fugir, quis ajudá-la a enfrentar os problemas. Pode haver uma relação entre o fato de A. não obter a ajuda desejada do tio no sonho 2 e a percepção de que o terapeuta também não a ajudaria. Caso o real motivo para o abandono da terapia tenha sido este, a cliente mais uma vez fugiu sem resolver seu problema relacionado à dificuldade que tem de conseguir que suas necessidades sejam atendidas pela outra pessoa (no caso o terapeuta). Seria o mesmo comportamento de esquiva que provavelmente dificulta o aprofundamento de relacionamentos interpessoais em outros contextos.

Outro problema que poderia ser abordado pela análise dos sonhos era sua dificuldade de discriminar o que era relevante em diferentes relacionamentos interpessoais. Parece que a cliente fazia no seu cotidiano, como no sonho, tentativas tensas para atender a supostos desejos dos outros sem considerar que esses desejos poderiam nem ser tão importantes, ou até mesmo produto da sua imaginação. Na terapia, atendia ao pedido do terapeuta de trazer anotações de sonhos como se fosse uma situação de avaliação, ansiosa por saber se ela o fazia exatamente da forma que ele desejava. Concentrava-se mais em agradar ao outro do que no beneficio que ela poderia obter da atividade. Se a cliente continuasse a terapia, a discussão desses sonhos seria utilizada para evocar comportamentos relativos aos seus problemas. A cliente poderia aprender acerca das suas dificuldades e desenvolver comportamentos interpessoais mais propícios. O abandono da terapia logo quando os sonhos seriam discutidos pode ter sido uma manobra de fuga, por sentir que havia se exposto demais. É possível que ela percebeu que, depois de entregar os relatos, não poderia mais evitar falar sobre si mesma, como até antes na terapia.

Cliente B.

Sra. B., 30 anos, estava prestes a se separar. Relatou estar confusa perante tal situação. Sentiu-se abandonada pela família. Durante as sessões iniciais, apresentou dificuldade em fazer pedidos e de relatar detalhes do relacionamento com o marido. Tentou evitar o julgamento do terapeuta, e relatou sentir medo da opinião alheia no que se referia ao seu relacionamento com o marido. Seus relatos evidenciaram dificuldades de assumir o que desejava para si. O atendimento também foi realizado no modelo de coterapia.

Na oitava sessão a cliente trouxe anotações de um sonho, solicitado anteriormente, dizendo que o mesmo havia trazido a resposta à pergunta por que ela não conseguia pedir o divórcio: "Eu via uma família, pai, mãe e dois filhos andando em um carrinho de trilho de trem de ferro.... A família saiu no carrinho trilhando seu caminho. Me dava muita pena do pai, pois eu sabia que a estrada iria se acabar. Ele iria ficar apurado para salvar aquela família, mas eu não sei se iria ter jeito." Em um primeiro comentário, a cliente disse que tinha entendido, a partir do sonho, que o divórcio não era o que ela desejava. Ao pedir o divórcio, ela tentaria apenas fugir da tristeza que sentia a respeito do casamento que estava num camino que não daria em nada. Um dos terapeutas perguntou: "Como você relaciona esse sonho a sua vida atual?"

B.: "A dor do abandono é profunda, quando eu converso sobre isso dá vontade de chorar, parece que vem lá da infância. Mas eu preciso passar por essa dor." Com este comentário, ela deu uma abertura para discutir como o abandono na sua infância tinha a tornado sensível para problemas de relacionamento, e sem recursos para enfrentá-los.

Na nona sessão, a cliente trouxe anotado o segundo sonho: "Eu estava em uma piscina de lama com as crianças, tinha algumas pessoas também, que eu não me lembro quem eram. Sob a superfície da lama tinha uma espuma muito branca que eu não sabia da onde vinha. Eu vi uma pessoa bem de longe, parecia um terapeuta que eu tive, que me falava para eu passar a espuma branca no corpo que eu iria ficar limpa."

O outro terapeuta perguntou: "Em relação a esse sonho, como você vê a terapia?"

B.: "É como uma luz para mim. Me dá clareza das coisas."

Terapeuta: "E como você nos vê enquanto terapeutas?"

B.: "Vocês cresceram muito no meu conceito. Inicialmente eu não queria vir, mas vocês me surpreenderam. Eu fui me sentindo acolhida porque vocês viram o que estava acontecendo.

Na 12ª sessão, a cliente trouxe o terceiro sonho transcrito: "Um homem estava segurando uma mulher, com o corpo, os braços em cima dela. Parecia que era o P. Estava meio que sufocando ela enquanto que parecia arrastá-la, e ela estava muito agoniada com aquilo tudo."

Terapeuta: "Você consegue relacionar esse sonho com alguma situação atual em sua vida?"

B.: "Acho que é pressão que o P. faz. Eu não posso falar das minhas insatisfações que o P. vai embora. Isso é muito cruel e eu fico confusa. É assim que ele faz com a família dele. Ele sempre faz imposições e todo mundo aceita sem reagir. É assim que ele sempre fez comigo [choro]. A gente está falando dessas atitudes do P. e eu estou sentindo um aperto aqui no peito."

O primeiro sonho traz uma metáfora pelo que B. vivencia em seu cotidiano. Neste relato, B. relacionou seus sentimentos, "dor profunda do abandono", ao seu passado, e identificou que tinha tanta dificuldade em propor o divórcio ao seu marido, pois não era essa a solução que ela queria. Ao invés de continuar fugindo do sentimento de abandono, ela aceitou esse sentimento como legítimo, pois se referia a um problema a ser resolvido, e passou a trabalhar para melhorar seu casamento.

No segundo sonho, a cliente recebe uma dica de um terapeuta que lhe diz como se limpar. Ela relacionou essa imagem com sua experiência positiva da terapia. A discussão desse sonho serviu como uma oportunidade para a aproximação entre terapeutas e cliente. Também criou condições para que B. acolhesse a ajuda que lhe era oferecida. Nesta fase do processo terapêutico, a cliente passou a aceitar muito mais o que lhe era apontado pelos terapeutas.

No último sonho, um homem que parece seu marido exerce pressão sobre ela. A Sra. B. relacionou o "aperto no peito" com esta pressão. A discussão desse sonho foi útil ao possibilitar à cliente relatar de forma mais precisa seus sentimentos e auxiliá-la a identificar com maior precisão o comportamento do marido que estava relacionado com a produção destes sentimentos. A partir desta informação foi possível dar uma nova direção à terapia, enfrentando diretamente os aspectos da interação com o marido que prejudicaram a qualidade do casamento.

Cliente C.

A Srta. C., 24 anos, universitária, veio para a terapia por não conseguir dar um fim ao relacionamento com o namorado. Inicialmente não quis relatar suas experiências com relacionamentos anteriores, entendia ser desnecessário, pois precisava de uma solução no presente. Queria um "direcionamento". O terapeuta tentou explicar que ao discutir o passado poder-se-ia esclarecer a sua dificuldade atual, mas não conseguiu levá-la a colaborar neste ponto. Sentindo que o trabalho não progredia por falta de informação relevante sobre as condições que influenciavam o comportamento da cliente, ele solicitou que a cliente trouxesse anotações de sonhos.

Na décima sessão, C. trouxe um relato por escrito: "Eu estava em uma casa. Lá estava o N. [um ex-namorado] com uma garota. Ela conversava comigo, mas ficava o tempo todo do lado dele. Eu recebi um telefonema do L. [outro ex-namorado] me perguntando se eu queria vê-lo, se poderíamos sair juntos."

Terapeuta: "O que esse sonho tem a ver com sua vida?"

C.: "Acho que sou um pouco indecisa. Ah, não sei. O que poderia ser?"

Terapeuta: "O que você acha? Como o que você vivencia agora pode estar relacionado a esse sonho?"

C.: "No sonho, eu estou perante o meu ex-namorado e o outro ex [-namorado] me liga. Parece que não sei o que fazer. Fico indecisa."

Terapeuta: "O que você sente em relação a isso?"

C.: "Sinto que preciso olhar mais para dentro de mim, saber o que eu quero de verdade [fica com os olhos marejados]."

Terapeuta: "Tente descrever seus sentimentos: o que você está sentindo?"

C.: "Sinto um pouco de revolta. É isso, revolta. Por que as coisas tinham que ser desse jeito? Fiquei quase que abandonada por meus pais. [A cliente continua relatando aspectos relevantes de sua vida familiar que até então não haviam sido apresentados: alcoolismo de seu pai, história psiquiátrica da mãe, negligência e abandono na infância]."

Terapeuta: "E o que isso tudo tem a ver com sua vida agora?"

C.: "Não gostaria de ficar sozinha de novo. Isso é muito doloroso para mim."

Terapeuta: "Então você entende que o sonho que você teve pode estar relacionado à sua dificuldade atual de terminar o relacionamento?"

C.: "Sim. Olhando dessa forma, sim. Não só essa dificuldade, mas também a carência e também, olha só, a angústia de não ter nada definido em minha vida, somente coisas passageiras. Acho que é por isso mesmo. [Cliente chora]."

Durante a discussão sobre o sonho, a Srta. C. atribui sua dificuldade atual ao que vivia desde a infância. Somente a partir deste momento, ao ser questionada sobre o que sentia, a Srta C. se dispos a considerar sua história e suas dificuldades emocionais decorrentes como assuntos legítimos para a sessão. Sugerimos que a discussão desse sonho possibilitou a Srta. C. ampliar seu autoconhecimento, e ao se dispor a enfrentar esses assuntos, rompe com o comportamento de esquiva que até este momento dificultava o trabalho terapêutico.

 

Considerações finais

Os trechos de sessões discutidos ilustram que diversas maneiras de analisar o conteúdo de sonhos podem promover autoconhecimento. Mostramos como a análise de sonhos torna possível ajudar clientes a entender a relação entre seus comportamentos privados e as contingências interpessoais do seu cotidiano. Evidenciamos tanto o entendimento do papel de vivências anteriores nas dificuldades atuais quanto a identificação de condições de vida atuais que contribuem para o sofrimento no cotidiano.

A consideração dos sonhos permite ao terapeuta abordar as atitudes do cliente frente aos seus problemas. A análise dos sonhos pode evidenciar o intuito de usar a terapia para fugir de emoções negativas ao invés de enfrentar dificuldades. Pode abrir também o caminho para que clientes entendam melhor quais são os motivos dos seus comportamentos, esclarecendo, ao mesmo tempo, suas escolhas. Assim, este trabalho pode ser o início de um novo direcionamento da vida do cliente, com novos alvos e compromissos.

Mostramos que o uso da análise de sonhos para promover a autoconsciência vai muito além da compreensão intelectual. A vivência emocional durante a análise permite ver aspectos do cotidiano de novas formas. O contato intenso com os conteúdos dos sonhos possibilita o encontro do sentido subjetivo da vivência, e assim, uma qualidade mais profunda de autoconhecimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Artur Vandré Pitanga
E-mail: arturvandre@hotmail.com

Av. Universitária, 1410.
CEP: 74000-000.
Goiânia, GO

 

Data de submissão em: 15/06/2009
Primeira decisão editorial em: 22/01/2010
S
egunda decisão editorial em: 29/06/2010
Aceito para publicação em: 22/07/2010

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