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Perspectivas em análise do comportamento

versão On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.2 no.2 São Paulo  2011

 

ARTIGOS

 

Algumas considerações sobre a terapia de aceitação e compromisso(ACT) e o problema dos valores

 

Some remarks on acceptance and commitment therapy (ACT) and the problem of values

 

Algunas consideraciones sobre la terapia de aceitación y compromiso (ACT) y el problema de los valores

 

 

Diego Zilio

Universidade de São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente ensaio é discorrer sobre a concepção de valores proposta pela terapia de aceitação e compromisso (ACT), à luz de sua filosofia contextualista funcional. Argumenta-se que o critério pragmático de verdade do contextualismo funcional, quando utilizado na ACT para lidar com a questão valores, pode ocasionar problemas devido ao seu caráter relativista e fundacional.

Palavras-chave: terapia de aceitação e compromisso (ACT), contextualismo funcional, relativismo moral, valores.


ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss the conception of values proposed by acceptance and commitment therapy (ACT) in the light of its functional contextualistic philosophy. It is argued that the pragmatic truth criterion of functional contextualism, when used in ACT to deal with the definition of values, can be problematic because of its relativism and foundational character.

Keywords: acceptance and commitment therapy (ACT), functional contextualism, moral relativism, values.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es discutir la concepción de valores propuesta por la terapia de aceptación y compromiso (ACT) a la perspectiva de su filosofía contextualista funcional. Se argumenta que el criterio pragmático de verdad del contextualismo funcional, cuando utilizado por la ACT en la discusión de valores, puede generar problemas debido a su carácter relativista y fundacional.

Palabras clave: terapia de aceptación y compromiso (ACT); contextualismo funcional; relativismo moral; valores.


 

 

Uma das questões essenciais colocadas aos adeptos da terapia de aceitação e compromisso (ACT) é se esta seria apenas mais uma técnica, entre outras possíveis, ou se haveria uma fundamentação empírica, teórica e filosófica que a sustentaria como uma alternativa autônoma e distinta de outras formas de prática terapêutica. Hayes, Strosahl e Wilson (1999) defendem a segunda alternativa: "A ACT não deve ser vista meramente como uma tecnologia, pois ela integra ideias diversas dentro de um arcabouço teórico e filosófico coerente e inovador" (p. 16).

Sendo assim, a ACT deve ser analisada não apenas pelo seu conjunto de técnicas, mas pelas suas características teórico-filosóficas. Afinal, como Hayes et al. (1999) afirmam, "muitas ou até mesmo a maioria das técnicas da ACT foram emprestadas de outros lugares" (p. 15). Isso significa que analisar as técnicas em si mesmas não consiste necessariamente numa análise da ACT, já que as técnicas utilizadas pelos seus praticantes não são propriamente suas.

Dito isso, o objetivo do presente ensaio é discorrer sobre os desdobramentos teórico-filosóficos da concepção de valores proposta pela ACT e sobre suas possíveis consequências para a prática clínica. Especificamente, o ensaio busca analisar a noção de valores presente na ACT à luz de sua filosofia, o contextualismo funcional (Hayes 2004a, 2004b; Hayes, Luoma, Bond, Masuda, & Lillis, 2006; Hayes, Strosahl, & Wilson, 1999; Wilson, Sandroz, & Kitchens, 2010). Argumentar-se-á que dessa noção de valores pode emergir o problema do relativismo moral – problema esse que pode, por sua vez, dificultar o próprio procedimento terapêutico.

 

Valores e ACT: definição e importância

Luoma, Hayes e Walser (2007) apresentam a seguinte definição de valores no âmbito da ACT: "Os valores têm sido definidos na ACT como direções de vida escolhidas, globais, desejadas e verbalmente construídas" (p. 131). Embora apresente uma definição de valores, essa passagem não é de maneira alguma explicativa, pois incita mais questões do que fornece respostas. O que significa dizer, por exemplo, que valores são "direções de vida escolhidas, globais e desejadas"? E quais as implicações de se sustentar que os valores são "verbalmente construídos"? Na busca de uma definição explicativa de valores, uma boa estratégia consiste na decomposição da definição supracitada.

Comecemos, então, pela ideia segundo a qual valores seriam "escolhas". Nas palavras de Hayes et al. (1999), "selecionar valores é mais parecido com postular, assumir ou operar baseando-se em axiomas, ao invés de fazê-lo baseando-se em cálculos, planejamentos, decisões ou raciocínios. Os valores são escolhas e não julgamentos" (p. 204). As escolhas, por sua vez, são definidas como uma "seleção entre alternativas que pode ser feita com razões (se houver razões), mas não por razões. Escolhas não são explicadas, justificadas, ligadas a ou guiadas por avaliações e julgamentos verbais" (p. 212).

Ou seja, os valores são escolhas no sentido de serem axiomas a partir dos quais o sujeito pode ou não planejar a sua vida. Na Lógica, axiomas são proposições não passíveis de prova ou demonstração, aceitos a priori como verdades a partir das quais se constrói todo o raciocínio conseguinte (cf. Salmon, 1984/1993). Transpondo para a ideia de valores apresentada pela ACT: os valores dos sujeitos são irrefutáveis e não passíveis de análise, seja ela crítica ou não, e constituem o ponto de partida para toda a construção de sua direção de vida, isto é, de seus objetivos (cf. Hayes, 2004a; Hayes et al., 2006; Hayes et al., 1999; Wilson & Murrell, 2004; Wilson & Sandroz, 2008; Wilson et al., 2010). Sendo axiomas, o terapeuta adepto da ACT não deve analisar as contingências que controlam o comportamento verbal valorativo do sujeito. Esse comportamento não está sob análise. Trata-se do ponto de partida da intervenção. Além disso, o cliente não precisa explicar ou justificar os seus valores ao terapeuta. Este pode apenas ajudá-lo a descrever de maneira clara quais seriam esses valores, mas a sua tarefa termina aí (Hayes et al., 1999). Isto é, os exercícios terapêuticos da ACT associados aos valores - como as tarefas de clarificação de valores ou, por exemplo, o recente questionário de Wilson, Sandroz e Kitchens (2010) - visam, sobretudo, ao esclarecimento e à delimitação dos valores dos pacientes, e não à discussão crítica dos valores em si mesmos (cf. Hayes, 2004a; Hayes et al., 2006; Wilson & Murrell, 2004; Wilson et al., 2010). Conforme veremos adiante, essa falta pode estar diretamente relacionada ao posicionamento filosófico da ACT1.

Em tempo, o que significa dizer que valores são "direções de vida"? Ainda com Hayes et al. (1999): "Um valor é uma direção - uma qualidade da ação. Por definição, os valores não podem ser alcançados e mantidos em estado estático; eles precisam ser vividos" (p. 231). O ponto-chave está em definir os valores como qualidades da ação. Pela perspectiva da ACT, qualificamos o comportamento do sujeito como valorativo ou não valorativo de acordo com os valores estabelecidos por ele. Uma ação é valorativa quando está em consonância com os valores do sujeito e não a é quando transgride esses valores de alguma forma. É justamente por esse motivo que, para a ACT, os valores não são objetivos (Hayes, 2004a; Hayes et al., 2006; Hayes et al., 1999; Wilson & Murrell, 2004; Wilson & Sandroz, 2008; Wilson et al., 2010). De acordo com Luoma et al. (2007):

Os valores são como direções, e valorizar é similar a andar nessas direções. Os valores estão presentes no primeiro momento de escolha de direção e eles não têm um fim, enquanto objetivos podem ser completados, consumados, ou acabados. Na ACT, os objetivos são selecionados para adaptar-se às direções [de vida] valorizadas, e não o contrário. (p. 133)

Em poucas palavras, valores não são objetivos de vida. São axiomas ou, melhor dizendo, são "construtos verbais" criados pelo sujeito para estabelecer o ponto a partir do qual autorregras serão criadas e objetivos serão estabelecidos. Tomemos como exemplo um sujeito cujo valor primordial é "ser um bom pai". Ser um bom pai não é um objetivo passível de ser alcançado – não é uma coisa. Não é o mesmo que ir, por exemplo, ao recital do filho. Por outro lado, ir ao recital é um objetivo que pode ser contemplado e que, se o for, pode ser considerado como uma atividade valorativa, já que está em consonância com o valor primordial ser um bom pai. Faltar ao recital do filho, por sua vez, pode ser analisado como um comportamento que não está em consonância com o valor primordial. Dessa forma, a partir de valores pré-estabelecidos, são delineadas regras da conduta (e.g., nunca faltar aos recitais do filho) e são criados objetivos (e.g., ir ao próximo recital do filho no dia x) que contribuem para a vida significativa, isto é, para a vida em que as ações estão em consonância com os valores.

Em síntese, para a ACT, os valores são escolhas, qualidades da ação e direções de vida, e não propriamente objetivos. A questão que se coloca agora, então, é a seguinte: qual seria a função dos valores na ACT? Hayes et al. (1999) apresentam uma resposta:

Seu objetivo último [da ACT] é ajudar o cliente a desenvolver e manter uma trajetória comportamental na vida que seja vital e valorizada. Todas as técnicas da ACT são eventualmente subordinadas a ajudar o cliente a viver de acordo com os seus valores escolhidos. (p. 205)

Isto é, são os valores do cliente que estabelecem o plano de trabalho do terapeuta da ACT (Hayes, 2004a, 2004b; Hayes et al., 2006; Hayes et al., 1999; Wilson & Murrell, 2004; Wilson & Sandroz, 2008; Wilson et al., 2010). Sem os valores, não há proposta terapêutica. Em adendo, todas as técnicas da ACT só fazem sentido à luz dos valores do cliente. Continuando com Hayes et al. (1999):

Praticar aceitação e desfusão significa caminhar por pântanos de ansiedade, perda, tristeza e confusão. Os valores fornecem o contexto que explica por que essas experiências difíceis estão sendo contatadas. Pela perspectiva da ACT, são os valores que fazem a vontade e a aceitação mais do que a simples tentativa de reduzir as experiências desagradáveis através da exposição. (p. 132)

Não é exagero supor que os valores estão no âmago da ACT, dando sentido ao próprio processo terapêutico que a caracteriza. Dessa forma, qualquer problema que possa existir com a concepção de valores apresentada pela ACT será um problema para a ACT como um todo.

 

Os problemas dos valores na ACT

O objetivo desta seção é discorrer sobre possíveis problemas da concepção de valores proposta pela ACT. O primeiro suposto problema tem sua origem na ideia de que os valores podem ser vistos como axiomas que não precisam de explicação e/ou de justificativa. Esse posicionamento pode incitar a ideia errônea de que valores surgem do nada, de que o enunciado valorativo do cliente não seria fruto de sua história de vida, mas seria um produto indeterminado, independente de eventos antecedentes. Entretanto, esse não é necessariamente o posicionamento da ACT. A ideia do valor como axioma é apenas uma manobra para explicitar o caráter não prescritivo da ACT: "A abordagem da ACT dos valores não consiste em ensinar aos clientes qualquer conjunto particular de regras morais ou os valores e virtudes corretos" (Luoma, Hayes & Walser, 2007, p. 131).

Isto é, terapeutas adeptos da ACT não pretendem e não devem doutrinar seus clientes, fornecendo- lhes valores pré-estabelecidos. Não devem, até mesmo, conforme vimos acima, analisar os valores do cliente. Ao que parece, para a ACT, o cliente deve ser capaz de agir pelo seu próprio entendimento na escolha de seus valores. A ACT não deve ter nenhum papel nessa construção a não ser o de ajudar o cliente a identificar e descrever de maneira mais clara quais seriam esses valores (cf. Hayes, 2004a; Hayes et al., 2006; Wilson & Murrell, 2004; Wilson et al., 2010).

Todavia, a tese dos valores como axiomas que não precisam de explicação e/ou de justificativa traz consigo um problema mais sério. Este, sim, é real: o problema do relativismo moral. Os valores dos clientes são irrefutáveis e não passíveis de análise. Portanto, o que fazer quando os valores dos sujeitos não estão em concordância com os do terapeuta ou, pior ainda, com os da cultura da qual tanto o terapeuta quanto o cliente fazem parte?

A ACT originou-se do contextualismo – esta é a sua raiz filosófica (Hayes & Hayes, 1992). O contextualismo funcional foi proposto por Hayes e colaboradores como uma alternativa às leituras mecanicistas da análise do comportamento (e.g., Hayes, 1988; Hayes & Hayes, 1992; Hayes, Hayes & Reese, 1988). As características dessa abordagem filosófica já haviam sido delineadas na década de 1980, a partir dos primeiros textos sobre o assunto. Assim, embora ainda existam discussões sobre o tema, as suas características centrais permanecem inalteradas (S. Hayes, comunicação pessoal, 20 de outubro de 2011) e, por conta de sua associação com a ACT, passam também a fazer parte dessa proposta terapêutica (Hayes 2004a, 2004b; Hayes et al., 2006; Hayes et al., 1999; Wilson et al., 2010).

O problema fulcral, que engloba a questão específica dos valores, está no critério de verdade do contextualismo funcional. Nas palavras de Hayes et al. (1999):

O critério de verdade do contextualismo é funcionar [successful working]. Análises são verdadeiras apenas no sentido de completar objetivos particulares. . . . A sua verdade pode não ser a minha, porque possuímos objetivos diferentes. . . . Consistente com essa filosofia, na ACT o que é verdadeiro é o que funciona. (pp. 19-20)

Mas o que significa funcionar? Continuando com Hayes et al. (1999): "Na perspectiva contextualista, verdadeiro é o que funcionar para alcançar nossos objetivos escolhidos. Isso é vago, contudo, a não ser que definamos o que significa 'funcionar'. Os valores fazem exatamente isso e, sem valores, a ACT é impossível" (p. 133).

Em linhas gerais, os valores estabelecem os parâmetros a partir dos quais classificamos o que funciona e o que não funciona. O que funciona é o que nos ajuda a viver uma vida em que nossas ações estão em consonância com nossos valores. E, se certas ações estão em consonância com nossos valores, elas são verdadeiras. Mas não podemos afirmar se determinados valores (e.g., x e y) são verdadeiros ou falsos por dois motivos: (a) eles são os próprios critérios de verdade e (b) eles são axiomas irrefutáveis que não precisam de explicação.

A associação do critério de verdade do contextualismo funcional com a noção de valores da ACT e a ideia de que estes seriam axiomas fica clara na seguinte passagem de Hayes (2004a):

O que é considerado "verdade" é o que funciona. No entanto, para saber o que funciona, é preciso saber qual a finalidade do trabalho: é preciso existir uma clara exposição a priori de um objetivo analítico. . . . No contextualismo, os objetivos elementares possibilitam a análise (isto é, eles possibilitam a aplicação do critério pragmático de verdade) – eles não são em si mesmos resultantes da análise. Isso significa que, ao passo em que são fundacionais [foundational] no contextualismo, os objetivos elementares podem apenas ser especificados, mas não justificados . . . . a natureza fundacional dos objetivos no contextualismo é refletida na ênfase da ACT nos valores escolhidos [pelos clientes] como componentes necessários da vida significativa. (pp. 646-647)

Talvez o ponto mais significante dessa passagem esteja no fato de que Hayes (2004a) classifica os objetivos elementares e, por extensão, os valores, como sendo fundacionais. Na filosofia, o fundacionismo consiste, em linhas gerais, na teoria epistemológica de acordo com a qual existiriam crenças justificadas em si mesmas, ou seja, que não seriam derivadas e/ ou justificadas a partir de outras crenças (Fumerton, 2010). É por isso que Hayes (2004a) assume que os objetivos elementares só podem ser especificados, mas não justificados. É por isso, também, que na ACT os valores são vistos como axiomas não passíveis de justificação – ao longo do processo terapêutico, só seria possível delimitá-los e esclarecê-los, mas não discuti-los criticamente ou justificá-los.

Herdado pela ACT de sua filosofia contextualista funcional, esse posicionamento é um fator que provavelmente contribui para que o foco de suas atividades terapêuticas associadas aos valores esteja fundamentalmente em sua delimitação e em seu esclarecimento (cf. Hayes, 2004a; Hayes et al., 2006; Wilson & Murrell, 2004; Wilson et al., 2010).

Conforme vimos anteriormente, os valores fornecem o ponto de partida de todo o procedimento terapêutico em ACT. Trata-se, porém, de uma estratégia perigosa fundamentar o processo terapêutico nos valores dos clientes; valores que, enquanto axiomas, são inatingíveis pelo terapeuta. Retomando a nossa questão: o que acontecerá quando os valores do cliente forem distintos dos valores do terapeuta ou dos valores da cultura? Ora, a ACT parece só funcionar com pessoas "boas", isto é, com pessoas cujos valores estão em concordância com os valores do terapeuta e/ou da cultura2. Caso contrário, o terapeuta da ACT se deparará com um problema com o qual não poderá lidar, sob pena de transgredir, se o fizer, a sua própria filosofia.

O problema moral não é exclusivo da ACT, mas está presente em toda forma de processo terapêutico (aliás, em toda forma de relação humana). A questão é que ele talvez se torne mais agravante na ACT, pois o relativismo moral está em seu cerne. Sua filosofia contextualista funcional, que atribui critérios de verdade de acordo com parâmetros pragmáticos, pode contribuir para o bloqueio de qualquer tipo de tomada de decisão moral prescritiva. Não há uma moral "correta" ou "verdadeira". As ações "corretas", "verdadeiras" ou até mesmo "boas" são aquelas que estão em consonância com valores dos sujeitos, sejam eles compatíveis ou não com os valores da cultura.

Definir o que é bom ou ruim é prescrever uma teoria moral. Skinner, por exemplo, desenvolveu uma teoria moral para além (e, em certa medida, independente) de sua filosofia da ciência behaviorista radical (Zilio & Carrara, 2009). O núcleo de sua teoria moral é composto pelas seguintes prescrições: o que é bom para a espécie é o que possibilita a sua sobrevivência; o que é bom para o indivíduo é o que lhe promove bem-estar; e o que é bom para a cultura é o que permite resolver seus problemas (Skinner, 1974, 1981; cf. Abib, 2001; Chiesa, 2003; Dittrich & Abib, 2004; Zilio & Carrara, 2009). Entretanto, não é possível embasar empiricamente essas asserções por meio da análise do comportamento sem cair na falácia naturalista (Garret, 1987; Staddon, 2004). O ponto é que não há como desenvolver uma teoria moral puramente justificada pela ciência. Em algum momento é necessário tecer prescrições ou, como a ACT sustenta, axiomas valorativos.

No entanto, o problema da ACT está em relativizar essas prescrições. Por exemplo: "sempre ajudar seres humanos" e "sempre maltratar seres humanos" são valores que possuem o mesmo grau de "verdade" e as ações valorativas "ajudar um idoso a atravessar a rua" e "torturar uma criança" são ambas "boas" no contexto de seus respectivos valores. Mantendo a comparação com o posicionamento moral Skinneriano, no caso deste há três parâmetros prescritivos que podem servir de norte para a prática terapêutica. Qualquer valor do cliente que, por ventura, possa estar em dissonância em relação aos valores prescritos por Skinner – isto é, que não esteja de acordo com o valor de sobrevivência da espécie e da cultura, bem como com o bem-estar dos indivíduos – pode se tornar foco de análise no próprio processo terapêutico. A questão a ser ressaltada aqui não é, evidentemente, que as prescrições de Skinner consistam em valores "corretos" que devemos seguir por conta de algum critério de "verdade". A questão é que há, ao menos nesse caso, parâmetros morais que podem servir de base para a atuação terapêutica - situação contrária à da ACT, em que o relativismo moral está arraigado em sua filosofia.

Em face desse problema, Hayes et al. (1999) apresentam a seguinte "solução": "Há ocasiões em que o cliente chega à terapia com valores que são tão divergentes dos do terapeuta a ponto de não ser possível estabelecer um trabalho colaborativo. Nesses casos, o terapeuta deve encaminhar o cliente para outra pessoa" (p. 231). Todavia, encaminhar o cliente está longe de ser uma solução do problema, consistindo apenas na possível transferência do mesmo para outro terapeuta.

Contudo, seria a ACT partidária da teoria do bom selvagem de Rousseau? Creem os seus defensores que todos os seres humanos são, em última instância, "bons" ou que todos compartilham os mesmos valores? Afinal, só assim seu posicionamento acerca dos valores tem chance de se livrar do problema do relativismo moral. Caso contrário, a ACT poderá ter sérios obstáculos no processo terapêutico com sujeitos cujos valores não são os mesmos do terapeuta e da cultura em que ambos estão inseridos. Por outro lado, se a resposta a essas questões for positiva – e esperamos, evidentemente, que não seja esse o caso – então o problema da ACT está, realmente, em sua manifesta ingenuidade.

 

Referências

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Nota

O autor é bolsista de doutorado FAPESP (Processo No. 2009/18324-1).

 

 

Endereço para correspondência

Diego Zilio
Email: dzilio@usp.br

Avenida Professor Mello Moraes, 1721.
CEP: 05508-900.
São Paulo, SP.

 

Recebido em: 16/09/2011
Primeira decisão editorial em: 19/10/2011
Aceito para publicação em: 17/11/2011

 

 

1 Vale ressaltar que o presente ensaio não tem por finalidade discorrer sobre as técnicas e os exercícios terapêuticos da ACT para o tratamento dos valores, mas sim focar a definição de valores propriamente dita.
2 Assumindo-se que os valores do terapeuta e da cultura sejam "bons", hipótese plenamente refutável.

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