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Perspectivas em análise do comportamento

versão On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.3 no.1 São Paulo  2012

 

ARTIGOS

 

A psicologia pode ser uma ciência do cérebro?*

 

Can psychology be a brain science?

 

¿La psicología puede ser una ciencia del cerebro?

 

 

Luiz Henrique Santana; Aline Maués F. de F. Seixas

Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Refletir sobre uma psicologia do cérebro não faria sentido sem levar em conta um conjunto de práticas mais ou menos recentes e que cercam o campo vasto das neurociências. É consenso na literatura que a revolução tecnológica das neuroimagens contribuiu à exploração do sistema nervoso central e ao tratamento de questões ligadas à prática clínica em neuropsicologia, por exemplo. Contudo, a observação do debate teórico-conceitual em torno das neurociências não tem demonstrado um desenvolvimento equivalente ao que se tem obtido em ramos mais aplicados da pesquisa neurocientífica. O desenvolvimento de um espectro de teorias distribuídas nos polos da clássica dicotomia entre globalismo e localizacionismo tem dificultado a conciliação entre a análise experimental do comportamento e as neurociências. Todavia, a constituição de uma análise funcional do comportamento pode ter sua eficácia enormemente suplementada pela consideração das variáveis biológicas que lhe são subjacentes. Esta suplementaridade entre o conhecimento do analista do comportamento e as neurociências parece conduzir para um necessário comprometimento da psicologia comportamental com a pesquisa biológica.

Palavras-chave: explicação comportamental, neurociência, reducionismo, variáveis biológicas.


ABSTRACT

Reflecting on a brain psychology doesn't make sense without taking into account a set of practices more or less recent that surrounds the wide field of neurosciences. It's consonant in literature that the technological revolution on neuroimaging has been contributed to central nervous system exploration and in the treatment of issues related to clinical practice in neuro-psychology, for example. However, observation of theoretical-conceptual debates around the neurosciences hasn't demonstrated an equivalent development to what has been obtained in more applied branches of neuroscience research. The development of a polarized spectrum from theories distributed in both sides of classical dichotomy between globalism and localizationism has hindered the reconciliation of Experimental Analysis of Behavior and Neurosciences. However, the constitution of a functional behavior analysis may have its effectiveness greatly supplemented by the consideration of biological variables underlying it. This supplementarity between the behavior analyst's knowledge and neurosciences seems to lead to a necessary commitment of behavioral psychology with the biological research.

Keywords: behavioral explanation, neuroscience, reductionism, biological variables.


RESUMEN

Reflexionar sobre la psicología del cerebro no tendría sentido sin tener en cuenta un conjunto de prácticas más o menos reciente y que rodea el vasto campo de las neurociencias. Es consonante en la literatura que la revolución tecnológica de la neuroimagen ha contribuido en la exploración del Sistema Nervioso Central y el tratamiento de los temas relacionados con la práctica clínica en neuropsicología, por ejemplo. Sin embargo, la observación del debate teórico y conceptual en torno a las neurociencias ha demostrado un desarrollo de la misma proporción en que se ha logrado en la mayoría de las ramas aplicadas de la investigación neurocientífica. El desarrollo de un espectro de teorías distribuidas en los polos de la dicotomía clásica entre globalismo y localizacionismo ha impedido la reconciliación del Análisis Experimental de la Conducta y Neurociencias. No obstante, la formación de un análisis funcional de la conducta puede tener su eficacia en gran medida suplementada por la consideración de variables biológicas subyacentes. Esta suplementariedad entre el conocimiento del analista del comportamiento y del neurocientista parece conducir a un compromiso necesario de la psicología conductual con la investigación biológica.

Palabras clave: explicación conductual, neurociencia, reduccionismo, variables biológicas.


 

 

Refletir sobre uma psicologia do cérebro não faria sentido sem levar em conta um conjunto de práticas mais ou menos recentes e que cercam o campo vasto das neurociências. Perguntar-se sobre o porquê de se desenvolver uma psicologia voltada a um órgão (o cérebro) antevê a assunção de uma perspectiva materialista na abordagem dos fenômenos psicológicos (Araújo, 2011).

Contudo, assumir uma postura materialista não implica necessariamente na aceitação da legitimidade do cérebro como objeto final de uma empreitada científica para a psicologia. Fazer isso configuraria, ao contrário, uma postura avessa aos debates acerca da legitimidade de projetos à psicologia - os quais discutem a possibilidade de se tomar objetos tão diversos como a consciência, a inconsciência, a percepção, o comportamento, a cognição e a subjetividade.

Apesar dessa multiplicidade de enfoques, parece relevante destacar a significância do embate entre duas propostas relacionadas à abordagem da psicologia segundo o paradigma de uma ciência natural.

A primeira delas refere-se aos princípios de uma psicologia comportamental orientada pelo paradigma Pavloviano. O vislumbre de uma tecnologia do comportamento baseada nos moldes de um método experimental, derivado da fisiologia e capaz de reproduzir fenômenos diretamente imbricados na forma de o homem explicar suas ações sobre o mundo, afetou significativamente a maneira de pensar da psicologia.

A quase centenária obra inaugural do movimento behaviorista - Psychology as the Behaviorist Views It, de John B. Watson (1913)- marcou a história da psicologia no século 20, mas certamente não ressoou de forma consonante entre a já plural comunidade psicológica. Trabalhos como os de E. L. Thorndike, L. S. Vigotsky, A. R. Luria - entre outros - tornariam evidentes diversas limitações do paradigma Pavloviano, o qual alguns autores associavam exclusivamente à proposta de Watson.

Para aprofundar a crise desse paradigma, a revolução do estudo do cérebro também foi marcada pelo acelerado desenvolvimento de novas técnicas e instrumentos de neuroimagem (Eysenck & Keane, 2005/2007) e da neurobiologia celular e molecularo que provavelmente favoreceu a disseminação de programas de pesquisa hoje voltados à psicologia cognitiva e às recentes disciplinas neurocientíficas (Eysenck & Keane, 2005/2007; Kristensen, Almeida & Gomes, 2001). (Estas correspondem àquele segundo paradigma naturalista para a psicologia.)

Tal explosão atingiria seu auge na então chamada década do cérebro (1990-1999), período de um discurso futurista que prometeu a inauguração de uma nova perspectiva científica que suplantaria um nível psicológico de explicação do homem em favor de um novo corpo de conhecimentos (neuro) fisiológicos e (neuro)computacionais.

Para todos os efeitos, a década do cérebro acabou há mais de dez anos sem explicar satisfatoriamente sequer um conceito psicológico (Araújo, 2011). A espera ineficaz por mais uma década deve fazer-nos debruçar sobre um importante questionamento: o que realmente os dados neurocientíficos têm a dizer sobre a natureza dos fenômenos psicológicos?

 

A Análise de uma Ciência do Cérebro

O papel das neurociências na explicação do comportamento e/ou da cognição não pode ser tomado sem o entendimento da função do enorme arcabouço de recursos de neuroimagem e de dados neurofisiológicos em uma explicação científica daqueles fenômenos psicológicos (Eysenck & Keane, 2005/2007).

Kristensen et al. (2001) justificam a importância das técnicas de neuroimagem e de funções mentais para a neuropsicologia:

Correlações clínico-anátomo-funcionais que eram anteriormente inferidas a partir de investigações post-mortem ou cirurgias neurológicas - métodos insatisfatórios frente à complexidade funcional do sistema nervoso - passaram a ser estudadas sob uma perspectiva radicalmente diferente . . . . Dentro do escopo das neurociências, as técnicas de neuroimagem despertam enorme interesse, pois, para além dos dados estruturais, vislumbram a possibilidade de obter informações fundamentais do funcionamento cerebral de atividades complexas. (p. 269)

Parece consenso na literatura (Eysenck & Keane, 2005/2007; Kristensen et al., 2001) o reconhecimento da contribuição das novas tecnologias de exploração do sistema nervoso central no tratamento de questões ligadas à prática clínica em neuropsicologia. Contudo, a observação do debate teórico-conceitual em torno das neurociências não tem demonstrado um desenvolvimento equivalente ao que se tem obtido em ramos mais aplicados da pesquisa neurocientífica.

Kristensen et al. (2001) indicam a coexistência de um espectro variado de proposições teórico- -metodológicas advindas do embate clássico entre globalismo e localizacionismo. Esse espectro de proposições justifica-se em grande parte pela especialização e refinamento de métodos dos quais subjaz um sectarismo de objeto. Esta segregação progressiva observada pelos autores possivelmente também é um dos obstáculos à construção de teorias e paradigmas de tendência unificadora à variedade de objetos da psicologia e das neurociências.

Também é recorrente em Kristensen et al. (2001) e Eysenck e Keane (2005/2007) a importância atribuída a um futuro próximo para o esclarecimento de aspectos nebulosos à pesquisa atual nas neurociências. Alguns trechos, como "prevemos que o progresso no entendimento da cognição humana durante os próximos anos vai depender, em parte, da sofisticação sempre crescente das técnicas de imagem cerebrais" (Eysenck & Keane, 2005/2007, p. 525) e "se a neurociência cognitiva é uma sustentável síntese do conhecimento sobre as relações entre o cérebro e o comportamento, ainda é cedo para uma avaliação que somente algum distanciamento temporal poderá permitir ser isenta" (Kristensen et al., 2001, p. 272), retomam um otimismo futurista que retira da ciência do cérebro a responsabilidade de julgar a efetividade de suas elaborações teórico-metodológicas por conta de sua postulada precocidade.

Em suma, as ciências do cérebro parecem negligenciar o escrutínio crítico por acreditarem "estar rumando em direção a uma explicação razoável das relações entre corpo, cognição, comportamento e ambiente" (Kristensen et al., 2001, p. 272).

Então, o papel assumido pelas tecnologias do cérebro na explicação de fenômenos tradicionais da psicologia - como sentimentos e cognições - parece possuir similaridades no mínimo estranhas com versões passadas de materialismos. Cabe aqui destacar um trecho de Gazzaniga (2005) que retrata as expectativas dirigidas ao cérebro como uma chave a um entendimento definitivo para os fenômenos psicológicos - neste caso, a explicação do papel do cérebro na produção de crenças:

"Deixe-me ser tão claro quanto eu puder sobre o que eu penso sobre "agarrar-se a crenças" ou ter sistemas de crenças. Muitos caminhos levam à manutenção de crenças.... Para o cientista, regras e leis científicas tornam-se parte das suas crenças e é preciso defender a adesão à classificação da ciência em particular. Sobretudo, e esta é minha opinião sobre a natureza das crenças, nossa espécie instintivamente reage a eventos e, em um sistema especializado do cérebro humano, esta reação é interpretada"¹. (p.146; tradução própria).

Araújo (2011) traça paralelos entre esta expectativa futurista sobre uma promessa reveladora das neurociências e relatos "curiosos" datados do século 18 que tinham nas pesquisas do cérebro a fronteira última da compreensão humana sobre si mesma que se esperava ter dali - daquele século - em pouco tempo: "Tal qual a corda de um violin vibra e produz um som, assim também as cordas do cérebro, atingidas por ondas de som, são estimuladas a emitir ou repetir as palavras que as atingiram". (La Mettrie, 1748/1996, p. 10).

O trecho acima da obra Man-Machine, de Julien Offray La Mettrie, é ilustrativo do otimismo no estudo das funções cerebrais. Segundo Araújo (2011), para La Mettrie (1748/1996), assim como para outros autores do século18, estudar o cérebro representava acessar a fonte para o entendimento dos fenômenos mentais. A metáfora da corda do violino (o substrato) e seu som subjacente (os fenômenos mentais) indica uma concepção epifenomênica para a mente (psyché) em referência à sua base material - o órgão cérebro. Esse epifenomenalismo é marcante na história das neurociências, inclusive por tomar contornos atualizados como os definidos por Searle (2007):

Não há dois conjuntos de causas, a consciência e os neurônios, mas somente um único conjunto, descrito em diferentes níveis. Repetindo, a consciência não é nada mais que o estado no qual se encontra o sistema dos neurônios, assim como a solidez é o estado no qual se encontra o sistema das moléculas. (pp. 53-54)

Aqui parece ser interessante adaptar uma distinção feita por Mayr (2005) sobre ideias fisicalistas não aplicáveis à biologia à crítica de um modelo exclusivamente neurocientífico para explicação dos fenômenos psicológicos:

  • Essencialismo: trata-se de uma concepção de natureza composta por um número limitado de eides ou tipos basais e imutáveis. Na psicologia, esta noção é recorrente em modelos que buscam descrever categorias naturais, por exemplo, de valores morais (Gouveia, 2003). O supracitado trecho de Gazzaniga (2005, p. 146) é também representativo desta concepção instintiva de julgamentos éticos. Uma abordagem estritamente neurocientífica pode obscurecer um contexto selecionador de comportamentos individuais ou mesmo de práticas culturais. Tourinho (2009) discorre profundamente sobre a evolução das práticas culturais que permitiram a emergência de algumas dicotomias psicológicas clássicas -internalismo-externalismo ou objetivismo-subjetivismo, por exemplo. Essa historicização é significativa para a superação do essencialismo/internalismo ontoaxiológico que é caro à psicologia e às neurociências.
  • Determinismo: ao tratar da refutação de um determinismo restrito, tradicional da física Newtoniana, Mayr (2005) justifica a abertura epistêmica da biologia a partir da identificação dos mecanismos de variabilidade e da relevância de fenômenos casuais no entendimento dos fenômenos da vida. Assim, uma psicologia fundada sobre um paradigma de ciência natural não poderia abrir mão de incluir em sua estrutura interpretativa categorias conceituais que deem conta da variabilidade e da casualidade imbricadas na raiz dos fenômenos psicológicos.
  • Reducionismo: destaca a esterilidade que a redução trouxe ao desenvolvimento da biologia como ciência da vida por negligenciar pontos fundamentais da noção evolutiva. Pode-se adaptar o destaque de duas características da redução explicativa (Mayr, 2005) à compreensão dos fenômenos da psicologia: (a) nenhum fenômeno psicológico de nível superior pode ser entendido até que tenha sido analisado em seus componentes no nível inferior e (b) como consequência dessa linha de raciocínio, o conhecimento dos componentes nos níveis mais baixos (nível neural) permite a reconstrução de todos os níveis superiores (e.g., nível psicológico) e fornece de maneira exaustiva um entendimento desses níveis superiores. O próprio Mayr (2005) contrapõe-se às premissas reducionistas ao considerar a pouca contribuição que o domínio do conhecimento subatômico pode trazer ao entendimento das "atividades mentais". Apesar de não negar que ocasionalmente a pesquisa em um nível de complexidade pode contribuir a outro (ver Mayr [2005], sobre a descoberta da molécula de DNA), é possível transpor as ideias deste autor para o seguinte enunciado: a organização de um nível psicológico de análise é capaz de delinear suas próprias unidades explicativas, sem necessária e suficientemente reduzir-se aos seus componentes anátomo-fisiológicos; ao contrário, apenas neste nível psicológico é possível conceber a emergência de novas classes de eventos que, embora possuindo a mesma natureza física de seus substratos, não detêm correlato anterior.
  • Ausência de leis naturais universais em psicologia: este ponto, talvez aquele de maior identidade entre a biologia (aqui, incluindo as neurociências) e a psicologia, é crucial para a abordagem eficaz da classe de fenômenos que são tratados como psicológicos. A unicidade de grande parte dos fenômenos da psicologia, assim como o caráter histórico desses eventos, éatributo que, ao mesmo tempo em que afasta a ciência psicológica do projeto de uma ciência física, aproxima-a do modo de produzir conhecimento científico da biologia, principalmente quando se inclui o ambiente e o acaso como agentes selecionadores de eventos. Assim, a psicologia estaria muito menos comprometida a formular "leis científicas que nos ajudem a entender melhor o mundo" (Todorov & Moreira, 2009, p. 409), e sim, ao contrário, a formular teorias fundadas sobre conceitos que levem em conta a historicidade dos fenômenos psicológicos (Tourinho, 2009), a complexidade dos seres vivos e a singularidade de fenômenos como a aprendizagem, a memória, a linguagem e o pensamento.

Encaminhada esta reflexão para vias que nos permitam mais evidentemente justificar a validade explicativa de um dado neurocientífico, é preciso levantar uma questão sumária acerca do que foi discutido até aqui e tal qual fora posto também por Skinner (1990): como é possível abordar os fenômenos psicológicos sem buscar no cérebro a causa última ou o agente inicializador do comportamento dos organismos?

 

O Papel das Variáveis Biológicas

"O papel desempenhado pela mente/cérebro parece sempre ter sido um problema em comparações interespecíficas" (Skinner, 1990, p. 1207, tradução própria). Para compreender o comportamento dos organismos em sua complexidade natural, uma ciência com este objetivo deve estabelecer um volume contundente de linhas de pesquisa específicas acerca do papel do sexo, dos marcos do desenvolvimento (e.g., infância, gravidez e velhice) e da atividade neural, tomadas como exemplo, em uma análise funcional do comportamento humano (Baer, 1996; Donahoe, 1996; Reese, 1996).

Para usar a proposta de Donahoe (1996), o alcance dessa interdependência perpassaria pelo menos duas dimensões fundamentais:

  • Experimental: o autor ressalta as possibilidades teórico-metodológicas de produzir conhecimento em análise do comportamento a partir da consideração das fronteiras tênues existentes entre essa ciência e as biológicas, principalmente no que tange à consideração de variáveis em nível biológico e à influência dessas variáveis em outros níveis de análise comportamental. O estudo das relações estímulo-estímulo exemplifica a possibilidade de suplementação explicativa para o fenômeno comportamental quando se conclui que a observação experimental direta daquelas relações se dá apenas em nível neural, pois em nível comportamental se observam as consequências desse emparelhamento de estímulos. Desse modo, a consideração das variáveis biológicas, como proposto pelo próprio Skinner em seu modelo de seleção pelas consequências, é suplementar a uma análise do comportamento.
  • Teórico-Interpretativa: quanto à aceitação da seleção por reforçamento, Donahoe (1996) compara o processo com o da teoria da evolução, a qual se irmanou com duas outras ciências biológicas: a genética e a genética populacional. A primeira proveu a teoria da evolução dos mecanismos de retenção das variações decorrentes da seleção natural ao longo das gerações, enquanto a segunda a proveu de técnicas quantitativas que permitiram aferir o efeito cumulativo da seleção natural. Donahoe aponta que, de modo semelhante, os mecanismos de retenção (plasticidade sináptica) e acumulação do comportamento (redes neurais) podem ser melhor investigados por meio da suplementação conceitual de outras ciências biológicas. Atualmente, o mecanismo de acumulação comportamental, por exemplo, é eminentemente investigado por meio da interpretação de relatos verbais. Logo, a aceitação de uma ciência do comportamento (inter)depende de mecanismos fornecidos pelas ciências biológicas, mas apenas de maneira a suplementar a explicação comportamental.

 

Por que Assumir uma Visão Behaviorista Radical?

Por se tratar de um ensaio que visa a discutir algumas relações entre disciplinas eminentemente biológicas e a análise do comportamento, parece-nos relevante introduzir este tópico tratando da visão Darwiniana de homem trazida pelo behaviorismo de B. F. Skinner (Carvalho Neto, 1996).

O entendimento do comportamento humano como a relação entre organismo e ambiente, descrita a partir de três níveis de seleção, propõe um modelo teórico-metodológico para o estudo das relações comportamentais que estenderia uma análise científica deste objeto relacional às origens do estudo da própria vida (Skinner, 1981). É principal mente sobre esse ponto que Carvalho Neto (1996) parece sustentar a base evolucionista de Skinner para uma abordagem científica do comportamento.

Todavia, este mesmo autor aponta que não é apenas por não desprezar ou desconhecer o papel das variáveis biológicas que Skinner - de fato - inclui as variáveis desta natureza em sua análise experimental do comportamento (Carvalho Neto, 1996). Galvão (1999) também afirma que um entendimento legítimo dos fenômenos comportamentais (psicológicos) deve conter uma explicação dos mecanismos de variação, seleção e retenção de uma relação funcional.

Identificada a interface entre o modelo selecionista de Skinner (1981) e os fundamentos evolucionistas de Darwin, posteriormente atualizados por Mayr (2005), atenta-se para outro aspecto que advém do modelo de seleção por consequências.

Ao assumir uma noção de causalidade selecionista, tanto a análise do comportamento quanto outras disciplinas da biologia moderna - como a ecologia (Mayr, 2005), a etologia e a sociobiologia (Skinner, 1990) - adotam uma postura antiteleológica para explicação de seus fenômenos de interesse e constituindo, igualmente, uma análise das consequências produzidas quando há a emergência de um evento (Ringen, 1993).

Adentrar em uma discussão mais profunda acerca da noção de emergência não foi objetivo deste trabalho. Até porque provavelmente isto não poderia ser contemplado em um texto breve. De outro modo, pretendeu-se chamar atenção para a concepção funcional que a seleção por consequências permite. É esta ideia que abre mão de uma noção linear de causalidade, tão cara às neurociências, e que ainda atualmente retoma discussões filosóficas que contrapõem um epifenomenalismo ingênuo a um indeterminismo pouco crível (Searle, 2007).

Ao definir um sistema explicativo de base Darwiniana, Skinner (1981) descreve um modelo multinivelado que pretende incorporar os diferentes níveis de determinação do comportamento, aqui tomado como um fenômeno relacional e disposto num continuum de complexidade que abarcaria aspectos filogenéticos, ontogenéticos e culturais.

Desse modo, Skinner (1981, 1984) não parece desprezar os aspectos eminentemente biológicos e mesmo neurocientíficos na explicação dos fenômenos psicológicos. Contudo, pode não ser tão evidente o papel atribuído por uma análise científica do comportamento aos determinantes (neuro)biológicos do comportamento humano.

 

Considerações Finais

O distanciamento metodológico entre as neurociências e a análise do comportamento, marcado pela revolução das tecnologias de neuroimagem e de neurobiologia molecular, configura um quadro de mútuo desconhecimento que dificulta o desenvolvimento de uma compreensão mais abrangente dos fenômenos psicológicos. O enorme volume de dados acumulados pelas ciências do cérebro está tão claramente subaproveitado pela análise do comportamento quanto à eficácia do tratamento teórico-conceitual desta ciência Skinneriana está subconsiderada pelos neurocientistas.

Pelo menos parte deste subaproveitamento parece ser decorrente de uma perspectiva reducionista que guarda nas ciências do cérebro um otimismo futurista que parece estabelecer lacunas temporais que recorrentemente buscam preservar as inconsistências conceituais das neurociências em nome de uma novidade temática que se repete no mínimo desde o século 18 (Araújo, 2011).

Para fugir desse ciclo recorrente de incompreensão e/ou desconhecimento, parece-nos útil retomar a posição de Baer (1996). Este autor reconhece a utilidade das atuais pesquisas neurobiológicas, ao mesmo tempo em que sinaliza a invulnerabilidade dos dados experimentais observados e explicados pela análise do comportamento, isto é, ratifica a autonomia da dimensão comportamental, indicando sua extensividade a um domínio biológico.

Esta extensividade, ou suplementaridade (Donahoe, 1996), entre o conhecimento do analista do comportamento e as neurociências parece conduzir para um necessário comprometimento da psicologia comportamental com a pesquisa biológica (Donahoe, 1996; Reese, 1996; Ringen, 1993).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Luiz Henrique Santana
Email: luizhenrique.lab@live.com

Tv. Dom Romualdo Coelho, 829, Apto. 802.
CEP: 66055-190.
Belém, PA

 

Submetido em: 09/12/2012
Primeira decisão editorial: 28/01/2013
Aceito em: 06/02/2013

 

 

* Este texto foi adaptado de uma comunicação feita pelo primeiro autor durante o I Congresso Latino-Americano de Análise do Comportamento, realizado em Salvador(BA), no Brasil, em 2011.

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