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Perspectivas em análise do comportamento

versão On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.8 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.18761/PAC.2016.047 

ARTIGOS

DOI: 10.18761/PAC.2016.047

 

Feminismo e análise do comportamento: caminhos para o diálogo

 

Feminism and behavior analysis: pathways to dialogue

 

Feminismo y análisis de la conducta: caminos para el diálogo

 

 

Aline Guimarães Couto; Alexandre Dittrich

Universidade Federal do Paraná, UFPR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O feminismo, como teoria política e movimento social, tem mantido diálogos produtivos com as ciências, influenciando revisões críticas e novas formas de analisar o comportamento humano inclusive na psicologia. Tal influência, contudo, não se observa de forma consistente na produção analítico-comportamental, que conta apenas com publicações esparsas a respeito da superação de desigualdades de gênero. Este trabalho se dedica a revisar brevemente produções sobre feminismo em periódicos analítico-comportamentais, bem como tecer considerações a respeito das aproximações teórico-práticas já apontadas por essas produções, buscando contribuir com o avanço da análise do comportamento nos estudos das mulheres.

Palavras-chave: feminismo; estudos das mulheres; estudos feministas; questões de gênero; movimentos sociais.


ABSTRACT

Feminism, as a political theory and social movement, has been maintaining productive dialogues with science, influencing critical revisions and new ways of analyzing human behavior, even in psychology. Such influence is not consistently observed in behavior analysis' scientific publications, which relies only on sparse publications about overcoming gender inequalities. This paper briefly reviews articles about feminism in behavior analytic journals, also making some notes about the theoretical-practical approaches pointed out by these productions, intending to contribute to progresses for behavior analysis in women's studies.

Keywords: feminism; Women's studies; feminist studies; gender issues; social movements.


RESUMEN

El feminismo, como teoría política y movimiento social, ha dialogado produtivamente con las ciencias, e influye en las revisiones críticas y nuevas formas de analizar el comportamiento humano incluso en la psicología. Tal influencia no se observó consistentemente en la producción de la análisis de la conducta, que tiene pocas publicaciones sobre la superación de las desigualdades de género. Este artículo está dedicado a revisar brevemente producciones sobre el feminismo en revistas de análisis de la conducta, así como hacer algunas consideraciones sobre los enfoques teóricos y prácticos ya esbozados por estas producciones, con el fin de contribuir al avance del análisis del comportamiento en los estudios de la mujer.

Palabras clave: feminismo; Estudios de la Mujer; Estudios Feministas; problemas de género; movimientos sociales.


 

 

Existem diversas definições possíveis da palavra feminismo, as quais variam em complexidade, na tentativa de abarcar as várias dimensões do movimento. Para Garcia (2011), o feminismo pode ser definido como

a tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas, que as move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transformações da sociedade que sejam necessárias para este fim. Partindo desse princípio, o feminismo se articula como filosofia política e, ao mesmo tempo, como movimento social (p. 13)

Mais sucintamente, a ensaísta americana bell hooks1 define o feminismo como "movimento destinado a acabar com o sexismo, a exploração sexista e a opressão" (hooks, 2000, p. 1). Embora a palavra seja polissêmica, algo que se deve também à variedade de vertentes contemporâneas do feminismo dedicadas a refletir sobre a condição feminina na sociedade, chamam a atenção dois aspectos principais nas definições apresentadas: o feminismo se caracteriza tanto como (1) uma forma de analisar as relações humanas pela ótica do gênero2, quanto como (2) um movimento para buscar a transformação dessas relações.

A gênese do movimento remonta historicamente às sufragistas estadunidenses, embora haja registro de mulheres que se dedicaram a discutir a temática da opressão da mulher anteriormente, como Christine de Pisan na Idade Média, Olympe de Gouges na Revolução Francesa e Mary Wollstonecraft na Inglaterra do séc. XVIII (Auad, 2003; Garcia, 2011). Muitas das perspectivas teóricas sobre o feminismo se desenvolveram nos anos 1960 e 1970, em meio à contracultura americana e na esteira de publicações como O Segundo Sexo (Beauvoir, 1949/2009) e A Mística Feminina (Friedan, 1963/1971). Desde então, as conquistas de direitos das mulheres – que anteriormente eram negados e que se converteram em bandeiras históricas do movimento, como o direito ao aborto livre e seguro, à contracepção voluntária, a trabalhar fora do lar e nas mesmas funções que os homens, e mesmo ao voto igualitário, dentre outros – vêm acontecendo em diversos países, com avanços e retrocessos diversos a depender do momento político. No entanto, o movimento feminista persiste na denúncia do tratamento desigual reservado a homens e mulheres na sociedade3.

Um retrato da desigualdade de gênero persistente nos dias de hoje pode ser visto no Gender Inequality Index (GII), índice criado pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2015). O GII é uma ferramenta para analisar as desigualdades existentes entre os gêneros em cada país, ao lado do Gender Development Index (GDI), estabelecendo uma comparação com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - índice mais conhecido da mesma organização e que reflete o quanto o desenvolvimento de um país se traduz na qualidade das políticas voltadas às pessoas. Assim como o IDH, o GII leva em conta alguns indicadores sociais compreendidos em três dimensões principais: saúde reprodutiva, empoderamento e participação no mercado de trabalho. O valor final varia entre 0 e 1, do menor para o maior índice de desigualdade de gênero, respectivamente. O GII publicado em 2015 coloca o Brasil na 97ª posição entre 155 países, com 0,457 pontos, atrás de nações como o Peru (82ª posição, com 0,406) e o Azerbaijão (59ª posição, com 0,303). O melhor índice é o da Eslovênia, com 0,016 pontos, e o pior, o do Iêmen, com 0,744 pontos. É interessante notar que altos valores do IDH em um país não necessariamente acompanham bons escores no GII, como é o caso dos Estados Unidos, na 8ª posição do IDH em 2015, mas apenas na 55ª posição no GII. Tais valores parecem apontar para algo que é denunciado pelos movimentos feministas de vários países: o desenvolvimento das nações não necessariamente se reflete em ampliação da igualdade de condições de homens e mulheres.

Por meio de uma variedade de práticas culturais, que promovem estereótipos de gênero por meio do reforçamento diferencial de comportamentos com base no gênero da pessoa que se comporta (Ruiz, 2003), a desigualdade de gênero tem se apresentado consistente ao longo das décadas. A psicologia, segundo a denúncia de parte do movimento feminista (Ruiz, 1995; Eagly, Rose, Riger & McHugh, 2012), participou do estabelecimento de uma série de normas que corroboraram tais estereótipos. Isto passou a chamar a atenção de psicólogas que tentaram revisar os grandes sistemas psicológicos em busca de asserções sexistas para elaborar, então, possibilidades de reconstruir a psicologia de acordo com uma visão mais livre de regras ditadas pelo senso comum patriarcal, que não correspondiam às reais formas com as quais as mulheres se comportavam e viviam (e. g. Gilligan,1982). Diferentes perspectivas da psicologia passaram a ter projeção entre as teóricas feministas, a exemplo da psicanálise (Nye, 1995), e os estudos de gênero na área passaram a ser mais frequentes, embora ainda majoritariamente concentrados em subáreas como psicologia do desenvolvimento e da personalidade e menos em subáreas como psicologia experimental e psicometria (Eagly et al., 2012).

Este trabalho apresentará brevemente quais discussões sobre feminismo já foram realizadas em periódicos da análise do comportamento, e tecerá considerações a respeito das questões apresentadas em tais publicações, permitindo questionar os motivos por trás da pouca aproximação entre as duas áreas, bem como apontar possibilidades de investigação que contribuam para avançar nos estudos feministas dentro da análise do comportamento.

 

Método

O presente trabalho se baseia em uma revisão a partir da busca pela palavra-chave feminismo e sua correspondente em inglês (feminism) em um conjunto de periódicos da análise do comportamento publicados em português e inglês. A seleção foi realizada diretamente no sistema de busca de cada periódico, sem restrição de datas de publicação, para abarcar a maior quantidade possível de trabalhos e permitir uma visão global da produção da análise do comportamento no tocante ao feminismo. A metodologia da pesquisa se assemelhou à realizada por Couto e Rezende (2014), porém, ao invés de bases de dados, utilizou diretamente os sistemas de busca internos de cada periódico, com o intuito de incluir periódicos da análise do comportamento não indexados em bases de dados.

A Tabela 1 traz os periódicos de análise do comportamento incluídos nesta revisão, acompanhadas do período em que tais periódicos foram publicados, e do total de artigos encontrados segundo os critérios expostos acima.

 

 

Por sua relevância, foi incluído um artigo (Fideles & Vandenberghe, 2014), de conhecimento da primeira autora do presente trabalho, que, embora discuta feminismo e análise do comportamento, não foi publicado em um dos periódicos listados acima. A pesquisa se restringiu apenas a artigos em periódicos científicos, excluindo capítulos de livros, livros e materiais de outras fontes. Após a leitura dos resumos foram realizadas exclusões de trabalhos que, apesar de atender aos critérios anteriores, não se dedicaram a discutir temáticas relacionadas ao feminismo e à análise do comportamento de forma concomitante.

Os textos incluídos nesta revisão estão apresentados na Tabela 2, por ordem de citação no presente trabalho.

 


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Os artigos incluídos nesta revisão são discutidos a seguir, de acordo com a perspectiva deste trabalho, articulando as problemáticas apresentadas pelos mesmos com as propostas teóricas feministas e da análise do comportamento.

Breve histórico das relações entre análise do comportamento e feminismo

A análise do comportamento se manteve por longo tempo apartada das discussões feministas. Mesmo com a efervescência intelectual coincidente entre behaviorismo radical e feminismo, no que concerne à construção de uma sociedade mais justa nas décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos (o que pode ser atestado pela publicação de Beyond Freedom and Dignity em 1971 e da republicação do livro Walden Two por Skinner em 1978), a interlocução entre tais movimentos não se mostrou frutífera. A exceção se encontra em algumas discussões feministas registradas em alguns números do periódico Behaviorists for Social Action (BFSA), que em seu primeiro número incluía, entre os problemas sociais a serem combatidos pelo coletivo de analistas do comportamento, o sexismo (BFSA, 1978). Curiosamente, no prefácio da republicação de Walden Two, Skinner chega a mencionar sua percepção sobre a situação de sua mulher, Yvonne, presa ao papel tradicional de dona-de-casa reservado às mulheres de sua classe:

Tenho visto minha mulher e suas amigas lutando para se salvar da vida doméstica, estremecendo quando imprimem 'dona-de-casa' naqueles espaços em branco que perguntam sua ocupação. Nossa filha mais velha acabou de terminar a primeira série, e não há nada como o primeiro ano de uma criança na escola para voltar os pensamentos de alguém para a educação. (Skinner, 1948/1976, p. v)

Segundo Wolpert (2005), Skinner nesse momento acaba por fazer referência à problemática principal do livro A Mística Feminina, publicado em 1963 pela ativista Betty Friedan. O livro é considerado um dos marcos históricos da segunda onda feminista nos EUA, tratando justamente das limitações do comportamento feminino estabelecidas por uma sociedade que valoriza a mulher esposa, do lar, concentrada nos afazeres domésticos e nos cuidados com os filhos, e de como tal limitação cobrava seu preço causando sofrimento às mulheres.

Realização como mulher só tinha uma definição para a americana, após 1949: esposa-mãe. Rápido como num sonho, a imagem da mulher como indivíduo, transformando-se e ampliando-se num mundo em evolução, foi destruída. Seu voo solitário em busca de uma identidade ficou esquecido na corrida para a segurança de uma situação a dois. Seu mundo ilimitado encolheu, confinando-se às confortáveis paredes do lar. (Friedan, 1963/1971, p. 41)

Dittrich (2004) retoma passagens de Walden Two em que Frazier, o alter ego de Skinner na comunidade utópica apresentada no livro, expressa a preocupação de planejar práticas que promovam a igualdade entre os sexos, especialmente no que concerne às questões relacionadas ao trabalho e à criação dos filhos – o que pode permitir inclusive considerar Walden Two como uma obra visionária do ponto de vista feminista, dada a época de sua publicação original (1948). No entanto, tais passagens são escassas e restritas a tais temas, e não chegam a avançar sobre outras problemáticas tratadas pelas feministas, a exemplo da expressão da sexualidade, da representatividade racial e da vivência das mulheres enquanto vozes ativas na construção daquela comunidade, conforme apontado por Wolpert (2005), que chama a atenção para a falta de personagens femininas importantes no livro.

As feministas da época de Friedan (1963/1971), a despeito dessa coincidência, parecem não ter se interessado pelo behaviorismo radical. Rhoda Unger, psicóloga social americana que se dedicou a estudar as mulheres, recorda seus anos de passagem pelo laboratório de Skinner em Harvard dizendo que "até os ratos eram machos", e é taxativa ao dizer que o estudo da psicologia das mulheres e o behaviorismo pareciam-lhe uma contradição em termos (Unger, 1989 apud Ruiz, 1998). Tal desinteresse parece ainda vigente, a julgar pela baixa frequência de publicações que se dedicam a estudar as possíveis relações entre feminismo e esta abordagem da psicologia.

Sete dos artigos incluídos neste trabalho são de autoria ou co-autoria de uma mesma pesquisadora, Maria R. Ruiz, sendo a maioria destes publicada no periódico The Behavior Analyst. Já em seu primeiro artigo sobre a temática, Ruiz (1995) analisa os aspectos filosóficos comuns entre behaviorismo radical e feminismo, bem como as possíveis fontes de mal-entendidos sobre a abordagem pelas teóricas feministas. A autora se dedicou também a análises de vieses de gênero frequentemente ocultos nos estudos analítico-comportamentais e à discussão de valores e ética dentro do behaviorismo radical, de um ponto de vista feminista (Ruiz, 2003, 2009; Ruiz e Roche, 2007). O único artigo em inglês compreendido nesta revisão e não redigido por Maria R. Ruiz é o já citado artigo de Wolpert (2005), que se dedica a uma análise feminista multicultural do livro Walden Two, de 1948, tecendo críticas a partir desse ponto de vista à sociedade idealizada por B. F. Skinner no livro - que não parecia incluir discussões aprofundadas sobre questões de gênero, raça e sexualidade.

Em português, dois artigos recentes retomam o diálogo entre feminismo e análise do comportamento. Um deles, de autoria de Fideles e Vandenberghe (2014), discute as interlocuções entre a terapia feminista4, de origem predominantemente humanista, e a psicoterapia analítica funcional (FAP), corrente da psicoterapia de raiz behaviorista radical criada por Kohlenberg e Tsai (1991/2001). O segundo, de Silva e Laurenti (2016), tece aproximações teóricas entre as visões de ser humano de B. F. Skinner e da filósofa feminista Simone de Beauvoir, tendo como ponto central a noção de seleção de consequências como possibilidade de refletir sobre a condição feminina evitando essencialismos.

Embora a produção em português seja ainda mais escassa do que a produção em inglês, o interesse em temáticas feministas tem surgido recentemente nos encontros acadêmicos do país. Nos congressos de 2015 e 2016 da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), foi promovido um grupo de interesse específico (GIEs) em feminismo e estudos das mulheres, com participação crescente de estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais buscando explorar as possibilidades de uma atuação feminista dentro da abordagem. Os espaços, promovidos pelo Coletivo Feminista Marias e Amélias de Mulheres Analistas do Comportamento5, são uma iniciativa voltada a fomentar o encontro e o debate entre mulheres interessadas em pesquisa e aplicação, bem como a fortalecer os laços entre essas mulheres e permitir a criação e manutenção de uma comunidade verbal feminista. Tais espaços seguem ainda uma tendência de retomar a discussão também nos Estados Unidos, a exemplo da conferência Women in Behavior Analysis6, conferência realizada em março de 2017 em Nashville, Tennessee.

Convergências entre o feminismo e a análise do comportamento: possibilidades e questões relevantes

A escassez de publicações relacionando feminismo e análise do comportamento não implica a falta de possibilidades de aproximação. O interesse de mulheres analistas do comportamento na aproximação entre as comunidades behaviorista radical e feminista se fundamenta em compatibilidades percebidas e discutidas em publicações e na prática em psicologia. Algumas dessas compatibilidades foram apontadas por Ruiz (1995, 1998). A autora considera a visão de mundo behaviorista radical como compatível com o feminismo, já que ambos consideram as ações humanas como fruto de um contexto, o que contribui para negar a existência de essências masculinas ou femininas e, portanto, permite confiar nas possibilidades transformadoras da sociedade, por meio da alteração das práticas culturais vigentes.

Algumas das críticas feministas à sociedade também encontram eco no behaviorismo radical, como a crítica a internalismos e biologicismos na descrição do comportamento humano. Nesse contexto, Ruiz (2009) toma como exemplo a recorrência a "síndromes" ou a "instintos" para explicar o comportamento das mulheres7. A crítica feita pelas feministas também se estende à noção de livre-arbítrio: o excessivo foco no indivíduo como iniciador das ações, comum em muitas das correntes da psicologia, poderia contribuir para ocultar os determinantes sociais das ações humanas, o que enfraqueceria a discussão do papel destes determinantes numa cultura menos sexista e poderia obscurecer as possibilidades de análise e de intervenção para feministas e behavioristas radicais. Ruiz (1998) também destaca a importância dada por feministas ao conhecimento das variáveis que afetam o comportamento humano como ferramenta de mudança, passando pela crítica à pretensa neutralidade da ciência - que, sendo constituída pelo comportamento do cientista, também é influenciada pelas variáveis ontogenéticas e culturais atuantes sobre o comportamento daqueles que a constroem.

Ruiz (1995, 1998) considera ainda que as divergências entre feminismo e análise do comportamento foram influenciadas por diversos mal- -entendidos, como a compreensão por parte das feministas do behaviorismo radical como uma teoria ambientalista, estímulo-resposta, críticas comumente endereçadas ao behaviorismo watsoniano. A autora considerou, já no contexto do fim dos anos 90, que a aproximação entre as duas áreas do conhecimento era não só possível, mas urgente:

O momento é propício para behavioristas radicais participarem da discussão sobre questões feministas, que estão entrando em sua quinta década de desenvolvimento. O impacto crescente dos conhecimentos, do ativismo e da política feminista vai continuar sem a nossa entrada, mas, para behavioristas, permanecer em silêncio significaria uma perda para todas. Nossos pontos em comum incluem raízes históricas, visões das possibilidades transformadoras do comportamento humano e o compromisso para criar ambientes ideais para desenvolvimento comportamental. A fusão é, de fato, de interesse para ambas as comunidades. (Ruiz, 1998, p. 190)

Mas por que, mesmo com as denúncias da autora e o crescimento concomitante das preocupações sociais dos analistas do comportamento e do movimento feminista, não se exploraram tais alternativas de investigação em nossa abordagem? Pistas podem ser encontradas em Schiebinger (2001), que discute algumas das dificuldades encontradas pelas mulheres para falar de si próprias no contexto da ciência. Ela destaca o caráter patriarcal do discurso científico ao longo da história, que teria sistematicamente ocultado a participação das mulheres que sempre ali estiveram. Teria isto limitado também as discussões de mulheres analistas do comportamento sobre questões que lhes concerniam? Tal pergunta se torna difícil de responder sem uma análise histórica aprofundada da participação feminina na análise do comportamento, mas é possível tecer considerações a respeito a partir de alguns retratos da área já publicados.

A participação das mulheres dentro da análise do comportamento, embora massiva e, em especial no Brasil, pioneira, já que elas foram em grande parte responsáveis pela difusão da abordagem nos cursos de psicologia do país (e. g. Keller, 1988), requer uma análise mais cuidadosa, para além dos números absolutos. A participação feminina na análise do comportamento é influenciada por questões de gênero, já que existem várias diferenças entre homens e mulheres na quantidade e tipo de publicações, nas áreas a que se dedicam e nos cargos que ocupam. Mulheres costumam ocupar posições consideradas de menor prestígio nas associações, recebendo menos convites para participações de maior destaque nos eventos da área do que homens (Myers, 1993; McSweeney & Parks, 2002); além de estarem em maior número na área aplicada, área esta também de menor projeção entre seus pares (McSweeney, Donahoe & Swindell, 2000). As mulheres também são minoria na área experimental, tendo poucos artigos como primeiras autoras (McSweeney & Swindell, 1998), e também participando menos dos corpos editoriais de revistas de análise do comportamento em geral, mas especialmente nesta área (Poling et al., 1983; Myers, 1993). A participação feminina na análise do comportamento, segundo tais dados, ainda está à sombra da participação masculina. Para entender a diferença entre os gêneros dentro da abordagem, seria pertinente atentar às variáveis que afetam diferencialmente o comportamento de homens e mulheres em análise do comportamento.

Ruiz (1998) acredita que não é necessário deixar para trás os avanços conquistados pela ciência do comportamento até aqui para se beneficiar de uma visão feminista na construção de um conhecimento que contribua mais igualitariamente para a vida de homens e mulheres. A epistemologia feminista, como campo que busca prescindir de postulados8 influenciados pelo patriarcado, também é um campo que frequentemente se depara com as dificuldades de construir o conhecimento baseado nas experiências das mulheres, dada a variedade destas, dentro e fora dos meios científicos e acadêmicos (Harding, 1986; Miguel, 2014). Ruiz (1998) ressalta a importância da participação em uma comunidade verbal feminista na observação e descrição das variáveis que afetam o comportamento das mulheres, capaz de atentar para contextos que afetam diferencialmente o comportamento feminino - o que pode ser feito se utilizando dos princípios comportamentais já descritos pela filosofia e ciência propostas por B. F. Skinner.

Por que investir no diálogo?

Conforme apontado, a análise do comportamento apresenta, desde B. F. Skinner, uma clara preocupação com questões sociais. Tal preocupação se estendeu mesmo à participação em movimentos sociais, conforme registrado em trabalhos de alguns autores (e. g. Sá, 1985; Holland, 1974/2016, 1978/1983). O feminismo – apesar de ser um movimento no qual, segundo os registros apresentados aqui, houve participação reduzida de analistas do comportamento – ainda traz questionamentos relevantes sobre os valores9 que a nossa ciência carrega e sobre os objetivos sociais com os quais estamos comprometidos. Tais valores são discutidos por Ruiz e Roche (2007): a ciência comportamental formula determinadas questões e as responde com base em certos conjuntos de variáveis, e tanto o processo de obtenção de dados, quanto o processo de tomar decisões a partir do conhecimento obtido requerem atenção aos valores de quem produz tal ciência.

As decisões tomadas a partir do conhecimento obtido pela análise do comportamento precisariam, portanto, estar sob controle de algumas questões importantes: quem são as pessoas beneficiadas pelo conhecimento que produzimos, e como tais benefícios contribuem para a transformação da sociedade, pela redução e/ou eliminação dos problemas com os quais nos deparamos? As vias e objetivos para tal transformação vêm sendo extensamente discutidos (e.g. Skinner, 1978; Pessotti, 2016; Holland, 1974/2016), mas a reprodução feita pela análise do comportamento dos métodos que perpetuam tais problemas (e.g., foco em intervenções sobre ambientes controlados e em pequena escala, ao invés de em contextos mais amplos e diversos), precisa ser objeto de exame para então ser modificada (Fawcett, 1991; Biglan, 1988).

O movimento feminista, por sua vez, também pode se beneficiar dos métodos e do arcabouço teórico da análise do comportamento, dada, além da tradição de reflexão sobre questões sociais, a possibilidade de utilizá-los para desvelar os controles sob os quais o comportamento das pessoas em sociedade permanece. Isto pode auxiliar na criação de táticas de contracontrole e permitir a análise das consequências deste contracontrole, bem como contar com o envolvimento ativo de cientistas do comportamento num projeto de mudança social. É importante, no entanto, atentar para um possível messianismo analítico-comportamental ao adentrar o campo feminista: a análise do comportamento não deve estar concentrada em "resolver melhor os problemas" que porventura as feministas já discutem há décadas, de forma a apagar as contribuições já dadas ao introduzir sua filosofia e metodologia de intervenção – e sim em estar verdadeiramente aberta aos conhecimentos já produzidos por esta área, trazendo suas possíveis contribuições de forma assertiva, clara e humilde (Neuringer, 1991), sob o risco de fracassar nesta aproximação.

Considerações finais

A análise do comportamento, enquanto abordagem que se dedica não apenas a estudar as variáveis que determinam o comportamento humano, mas que também se propõe a ser uma ferramenta de transformação da sociedade, pode se beneficiar de uma visão feminista. Não só pela urgência em agregar o conhecimento construído pelas mulheres que se dedicam a estudar e transformar as condições desfavoráveis que a cultura reservou ao seu gênero, mas também pela possibilidade de questionar os valores por trás de suas próprias práticas de produção de conhecimento, em busca de uma ciência que rompa com os modos de servir ao status quo e nos permita disseminar os métodos de análise dos controles aos quais estamos, enquanto seres humanos, submetidos no seio de sociedades desiguais (Holland, 1974/2016).

Campos de pesquisa já tradicionais na análise do comportamento, como a terapia analítico-comportamental e suas diversas denominações e ramificações; os estudos em equivalência de estímulos; os estudos de cultura e metacontingências; dentre outros provavelmente se beneficiariam tanto em incluir as contribuições feministas já estabelecidas na literatura em ciências humanas, como em desenvolver reflexões críticas a respeito do corpo teórico que analistas do comportamento já desenvolveram até aqui.

A aproximação entre as comunidades feminista e behaviorista radical, já declarada urgente há quase duas décadas (Ruiz, 1998), encontra atualmente mais um momento propício para acontecer, contando com o interesse e o empenho de analistas do comportamento de hoje, que podem mudar o quadro presente e deixar reflexões importantes a todas as que nos seguirão.

 

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Endereço para correspondência
Aline Guimarães Couto

Praça Santos Andrade – 2º andar – sala 217-B
Centro, Curitiba, PR
CEP 80020-300
Email: alineg.couto@hotmail.com

Submetido em: 02/12/2016
Aceito em: 24/04/2017
Editor Associado: Diego Zilio

 

 

1 Pseudônimo da autora Gloria Jean Watkins (1952-presente). O mesmo é grafado com minúsculas por opção da autora, que diz preferir que sua mensagem tenha destaque em detrimento do seu nome (Enciclopedia Britannica, 2015).
2 A distinção entre sexo e gênero é corrente na literatura feminista, embora seja alvo de discussão. Sexo se referiria à diferenciação biológica, enquanto gênero se referiria à diferenciação cultural entre masculino e feminino. Em termos comportamentais, gênero se referiria então às classes de comportamentos reforçadas diferencialmente em homens e mulheres (Ruiz, 2003), enquanto sexo seria um aspecto filogenético de um indivíduo. No entanto, tal uso das palavras não é unânime entre as correntes feministas. O uso de sexo de forma equivalente à gênero é corrente especialmente na literatura francesa sobre feminismo, enquanto o feminismo americano prefere o uso de gênero (Collin, 2009); e mesmo na literatura em inglês se discute o caráter despolitizador do uso de "estudos de gênero" em substituição aos "estudos feministas" ou "estudos das mulheres", como se a palavra carregasse maior neutralidade e fosse mais aceita em meios acadêmicos, ao invés de uma reivindicação explícita do reconhecimento da mulher como sujeito de estudos (Scott, 1988). Aqui, optamos por utilizar gênero e sexo de forma intercambiável, priorizando a manutenção do uso conforme a literatura consultada e citada.
3 Tal forma de contar a história do movimento feminista, partindo do movimento norte-americano e enfocando as conquistas deste, é comumente vista na literatura especializada, embora seja também motivadora de críticas – ao não levar em conta, por exemplo, a história dos movimentos de mulheres negras (que, entre outras questões, colocam que nunca lutaram pelo direito de trabalhar fora, já que sempre estiveram ao lado dos homens no mundo do trabalho desde a escravidão no Ocidente); a das mulheres latinoamericanas (que encamparam lutas ao lado de outros movimentos sociais desde tal época, mas não costumam ser consideradas como parte do corpo do movimento feminista); dentre outras minorias específicas pertencentes à classe das mulheres. Para mais sobre história das mulheres, ver Perrot (2007) e Priore (2004).
4 A terapia feminista não se configura exatamente como uma abordagem terapêutica psicológica, mas como uma série de valores e/ou atitudes aplicadas à psicoterapia, nascida das críticas de grupos feministas de tomada de consciência ("awareness raising", tipo de grupo comum em coletivos feministas da década de 70) às terapias psicológicas tradicionais. Um dos norteadores da terapia feminista é o questionamento da relação terapêutica como reprodutora de uma configuração desigual de poder, na qual as vivências da pessoa em terapia podem ser desconsideradas à luz dos valores promovidos, sem que isso seja percebido pelo terapeuta. Graças ao enfoque na relação terapeuta-cliente, uma comparação mais frequentemente feita pelos analistas do comportamento é a com a psicoterapia analítica funcional (Terry, Bolling, Ruiz, & Brown, 2010).
5 Contato: https://www.facebook.com/MariasAmelias/
6 https://thebaca.com/event/women-in-behavior-analysis-wiba-conference/
7 A autora trata sobretudo da battered woman syndrome ("síndrome da mulher agredida", em tradução aproximada), que foi proposta por profissionais do direito e da psicologia forense na discussão em relação a sentenças conferidas a mulheres acusadas de assassinar os maridos agressores. A síndrome corresponderia a uma internalização dos abusos sofridos por anos em relacionamentos abusivos, que se converteria em agressão. Para Ruiz (2009), é um bom exemplo de como situações comuns para as mulheres são tratadas recorrendo a uma psicologização inadequada, que perde de vista variáveis contextuais que influenciam o comportamento de muitas mulheres - algo que também pode ser verificado em outras conceitos do tipo, como "instinto maternal".
8 Com as críticas às concepções tradicionais de ciência engendradas pelas feministas, a epistemologia feminista se tornou um campo de questionamento sobre quais seriam as especificidades de um conhecimento produzido por mulheres. Questiona-se, por exemplo, se as abordagens tradicionais de produção de conhecimento precisariam ser refundadas, já que foram construídas quase que exclusivamente a partir do olhar dos homens. Também se questiona se seria suficiente apenas incluir as contribuições de mulheres no conhecimento já estabelecido, assumindo que, necessariamente, estas incluiriam preocupações da classe de mulheres entre as perguntas realizadas pela ciência; uma afirmação arriscada, já que mesmo o comportamento das cientistas do sexo feminino é influenciado pelas práticas culturais mais correntes dentro das suas áreas, que seriam classificadas como masculinas sem efetivamente representarem o comportamento apenas dos homens. Tais debates têm sido constantes na epistemologia feminista, que inclui desde posições consideradas mais radicais – elevando, por exemplo, métodos pouco tradicionais ao status de ciência, como narrativas populares – até as consideradas mais reformistas, que consideram que críticas feministas que direcionem a atenção às características de práticas culturais patriarcais reproduzidas pelas ciências são suficientes para produzir avanços relevantes (Miguel, 2014; Harding, 1993).
9 Os valores são entendidos aqui em uma acepção analítico-comportamental: são o que uma pessoa considera "bom" (tecnicamente, eventos reforçadores), e estão na base do que norteia a construção de uma cultura, já que o que é importante para as pessoas deverá prevalecer, e a tensão entre reforçadores individuais e reforçadores para a coletividade fundamenta práticas culturais que estabelecem relações entre eles. Ruiz e Roche (2007) discutem o quão difícil é definir acuradamente o que é bom ou ruim numa cultura, considerando a sobrevivência desta como um valor último, conforme a proposta ética de Skinner; e consideram que a sobrevivência das culturas não seria adequada como guia ético do comportamento do cientista, caso prescinda de questionamentos sobre, por exemplo, conflitos de interesses entre os valores dos cientistas e da sociedade - motivo pelo qual os autores ressaltam a importância de ter clareza sobre quais valores norteiam o comportamento do cientista ao fazer pesquisa.

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