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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.1 no.1 Rio de Janeiro jan. 2010

 

ARTIGOS

 

A culpa é da mãe

 

 

Helena Bocayuva

Helena Bocayuva é Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ e autora de Erotismo à brasileira: o excesso sexual na obra de Gilberto Freyre (Rio de Janeiro: Garamond, 2001) e Sexualidade e gênero no imaginário brasileiro: Metáforas do biopoder (Rio de Janeiro: REVAN, 2007)

 

 


RESUMO

As tramas da biopolítica enredam numerosos casos que envolvem meninas e figuras paternas, sejam padrastos, padrinhos ou pais biológicos. A pesquisa da autora mergulha em dois textos clássicos da literatura brasileira: A normalista, de Adolfo Caminha, e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Palavras-chave: Biopolítica, Gênero, Sexualidade, Literatura Brasileira.


ABSTRACT

Biopolitics plots net a number of cases involving girls and fatherly figures, either step fathers, godfathers or fathers. The author’s search delves into two classical texts of the Brazilian literature: A normalista [The normal school pupil] (1893), by Adolfo Caminha; and Gabriela, Cravo e Canela [Gabriela, Carnation and Cinnamon] (1958), by Jorge Amado.

Keywords: Biopolitics, Gender, Sexuality, Brazilian Literature.


 

 

1. Introdução

Há algumas semanas vê-se nos jornais numerosos casos de crianças que sofreram abusos sexuais. O interesse da mídia no assunto colocou em foco uma menina de nove anos, grávida do companheiro de sua mãe, a legislação brasileira que permite o abortamento em casos de estupro e, afinal de contas, a separação entre o Estado e a Igreja Católica.

Outros casos pipocaram. As folhas dos jornais divulgam tragédias domésticas ocorridas em todos os cantos. Os casos veiculados recentemente aconteceram nos EUA, na Áustria, na Polônia e no Brasil, de norte a sul do país, envolvendo meninas e figuras paternas, sejam padrastos, padrinhos ou pais biológicos. Entre eles, destaca-se um acontecido já alguns anos, no estado do Rio de Janeiro. A menina fluminense não teve acesso ao abortamento legal e deu luz a uma criança, fruto da violência, e há pouco tempo foi mãe outra vez. Tem menos de dezoito anos, e dois filhos nos braços.

A tragédia austríaca sugeriu o titulo do artigo. "A culpa é da mãe", dizem os jornais, de o acusado ter mais de cinco filhos com a própria filha, violentada por ele desde a idade de onze anos, e ainda de mantê-la presa no porão da casa.

Sua defesa se assentou em argumentos ancorados nos saberes psicológicos. O acusado estaria reagindo aos maus tratos que lhe foram impingidos por sua mãe. Esta teria 42 anos no momento de seu nascimento, fruto de gravidez involuntária.

Foucault, num debate sobre a "Lei do Pudor", no quadro da revisão do Código Penal francês no final da década de 1970 e publicada nos Dits et Écrits (Foucault, 1997, p. 763-776), comenta que o interesse da justiça penal sobre as relações sexuais seria relativamente recente na história. Pode-se articular este interesse com a emergência da biopolítica, que coloca a sexualidade como dobradiça entre a população e a família e atribui  às mães o cuidado com a castidade das crianças.

Proponho no presente artigo observar o assunto em duas obras clássicas da literatura brasileira, sendo uma do início do século XX, A normalista (1893), de Adolfo Caminha (1867-1897), e outra mais recente e bem mais conhecida, posto que serviu de argumento para a TV e o cinema, Gabriela, Cravo e Canela (2008), de Jorge Amado (1912-2001).

 

2. Sob a proteção do padrinho

A seca de 1877 provocou o êxodo da família Mendonça do interior do Ceará rumo à capital. No caminho, morreu a mulher debilitada pela travessia da caatinga. O menino seguiu com o pai em busca de fortuna, no extremo norte do pais: o surto da borracha havia espalhado o sonho da riqueza.

A menina Maria do Carmo ficou aos cuidados do padrinho João da Mata e de sua "amásia" Terezinha, e iria ser criada por eles em Fortaleza. Já de início pode-se prever dissabores para Maria do Carmo, vivendo em casa não abençoada pelo matrimônio celebrado na Santa Madre Igreja. Afinal, como diz o padrinho Sr. João da Mata, "mulher amigada é como se fosse uma fêmea qualquer" (Caminha, 1893, p. 80).

A vida foi correndo, a menina se tornando moça, ganha mais e mais a atenção do padrinho. Aprende que os favores de seu corpo servem de moeda de troca para a liberdade de escolha do futuro noivo. Seguindo o fio da narrativa, a menina foi deixada com o padrinho quando tinha seis anos e perde a virgindade aos quatorze. Para os padrões da época, seria mulher feita, em idade de casar. Para os padrões atuais, uma adolescente, não uma menina, como a que esperava gêmeos em Pernambuco.

A sedução vai sendo contada, sem muita resistência ou queixas: um beijo na boca hoje, um tocar nos seios amanhã, e as primeiras reações da menina, se sentindo usada "por um homem que não cuidava dos dentes, que não se banhava, um bêbado (...)" (Caminha, 1983, p. 71). Entretanto, era "submissa" (Caminha, p. 125) ou "passiva" (Caminha, p. 79) como uma "escrava".

Chega a noite e o padrinho ocupa a rede da menina, e lá se vai a virgindade. É interessante notar que a menina tem prazer, não se trata de anjo sem sexo. O poderoso "instinto sexual" ordena sua vida e os seus desejos, como querem os ecos do tempo. Como segue:

Estava justamente em vésperas de ter incomodo. Toda ela vibrava como lâmina de aço ao contacto daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluído misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário, como o da cobra sobre o rato. (Caminha, 1893:167)

Desta forma, graças ao instinto e ajudado pela proximidade do período menstrual, além da promessa de deixá-la namorar e casar com o eleito do seu coração, o padrinho possui a moça. Ao contrário do que diz hoje a medicina, ou seja, o período próximo à menstruação não seria fértil, Maria do Carmo engravida. A gravidez se passa na roça, num sitio de um modesto conhecido de João da Mata, que decerto lhe devia favores.

Afinal, chega o dia do parto, demorado e doloroso. A criança morre ao nascer. Após seus restabelecimento, Maria do Carmo volta a frequentar a escola e pouco tempo depois torna-se noiva de um rapaz da polícia... Como havia dito o padrinho, depois de invocar a alma da falecida mãe da afilhada, "(...) são segredos que não aparecem" (Caminha, 1893, p. 167). O final feliz da história parece indicar que afinal as relações sexuais entre meninas e figuras paternas são corriqueiras em nossa cultura, remetendo às relações de gênero moldadas pelo patriarcalismo e a escravidão (Bocayuva, 2001, p. 71).

 

3. O passado de Gabriela

O grande tema do livro Gabriela, Cravo e Canela (Amado, 2008) é a modernização da sociedade agroexportadora: a cidade de Ilhéus nos anos 1920 é palco das transformações sociais que resultam da riqueza gerada pela exportação do cacau.

O assassinato da mulher de um coronel do cacau e o do dentista, seu amante, pelo marido traído iniciam o livro. Toda a cidade está certa de que o marido será absolvido sob o argumento da defesa da honra, que justificava o homicídio de mulheres sob suspeita ou flagrante de adultério. A honra masculina era lavada a sangue.

No mesmo dia, Gabriela chega a Ilhéus fugindo da seca e é contratada como cozinheira por Nacib, comerciante e dono do bar Vesúvio. Suja de poeira da longa caminhada do sertão até as terras verdes do sul da Bahia, nem assim tem menos encantos. Havia aprendido a cozinhar em casa de gente rica, e buscava trabalho na cidade.

Sem pai, nem mãe, ainda menina é entregue para ser criada pelo tio materno e sua mulher. O tio logo se mete em sua cama (Amado, 2008, p. 204). Observa-se que o comportamento do tio não foi ignorado pela mulher: conta o romance que a tia se descabelava e protestava, sem sucesso. O tio é doente e morre de tísica (Amado, 2008, p. 133). A tuberculose na época estava associada à sexualidade: seria causa e efeito. Não só aumentaria o desejo sexual, como também seria consequência de excessos sexuais .

A vida dura de retirante não acabou com a alegria da moça, que é destacada em todo o romance. Tal como um pássaro gosta de viver, desde que não seja entre grades de gaiola. Também pode-se supor que o estupro cometido pelo tio em nada atrapalhou a vida da menina Gabriela, que gostava de preparar comida cheirosa, cantar, dançar  e namorar:

(...) era tão bom dormir com homem, mas não homem velho por casa, comida, roupa e  sapato. Com homem moço, homem forte e bonito como seu Nacib (Amado, 2008, p. 204).

Assim segue a vida de Gabriela, trabalhando na limpeza da casa, lavando e passando e abastecendo o bar Vesúvio de salgados e doces, de preparo longo e refinado. Afinal, acarajé e abará são feitos de feijão catado e moído a mão... Quando chega ao bar, levando os tabuleiros de guloseimas ou a marmita do patrão e amante parece dançar com os pés miúdos que mal tocam o chão, sorriso nos lábios e olhos baixos, sinal de submissão feminina. A personagem parece corresponder ao mítico desejo masculino, de dia quase mãe, alimentando os próximos, à noite, sempre disposta aos prazeres do amor.

Casa-se de papel passado com Nacib, mas diverte-se na cama com outros. Quando a traição foi delatada acharam por bem anular o casamento. Nacib, livre dos ciúmes, volta a desfrutar dos quitutes e da cama de Gabriela. Ilhéus assim chega à modernidade: Nacib não é corno e o coronel que matou a mulher e o amante foi condenado.

 

4. Considerações finais

Gilberto Freyre (1900-1987) em Casa-grande & senzala (1992) comenta que os viajantes estrangeiros não precisavam de casos evidentes de incesto para se chocarem. Ficavam escandalizados com os numerosos casos de matrimônios entre tios e sobrinhas, que visavam preservar as propriedades.

Casamentos entre mocinhas e senhores idosos, talvez hoje considerados "pedófilos", eram corriqueiros a ponto de terem ocupado romancistas (Alencar, 1951, p. 332) e médicos. Seriam uniões "muito nocivas à saúde e prosperidade públicas", além de "repelidas pela natureza" (Moncorvo, 1848, p. 4).

Quanto às relações sexuais entre adultos e meninas ainda impúberes, postulava-se seu caráter terapêutico: um homem afetado de blenorragia ou sífilis acharia desta forma a cura (Freyre, 1992, p. 396). O médico Pereira das Neves, escrevendo em meado do século XIX, narra um exame de corpo de delito que praticou: a vítima era uma menina branca de apenas cinco anos e a relação visava a cura da sífilis que acometia o varão (Freyre, 1992, p. 396) .

Permanências? Quase sempre o que está perto vem de longe...

 

Referências bibliográficas

AMADO, Jorge (1958). Gabriela, Cravo e Canela. Crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.         [ Links ]

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CAMINHA, Adolfo. A normalista. São Paulo. Editora Jornal dos Livros, s/d., 1983.         [ Links ]

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