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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.1 no.1 Rio de Janeiro jan. 2010

 

ARTIGOS

 

Problematizando a gravidez na adolescência

 

 

Silvia Alexim Nunes

Psicanalista, Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, pesquisadora do grupo Epos, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, Para Tina, por sua aposta nos jovens

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma reflexão sobre a construção da gravidez na adolescência enquanto uma questão biopolítica e social. No momento em que a maternidade tornou-se um projeto racional, a adolescente grávida emerge como um problema por estar na contramão das expectativas sociais em relação às jovens contemporâneas.

Palavras-chave: Adolescência, Gravidez, Maternidade, Biopolítica, Formas de subjetivação.


ABSTRACT

This paper intend to discuss the construction of pregnancy in adolescence as a biopolitical and social issue. Since motherhood became a rational project, the pregnant adolescent appears as a problem because she doesn’t come up to socials expectations about contemporary young ladies.

Keywords: Adolescence, Pregnancy, Motherhood, Biopolitics, Forms of subjection.


 

 

Introdução

Este artigo é o ponto de partida da pesquisa Adolescência, maternidade e feminilidade que venho realizando no Instituto de Medicina Social da UERJ. Dois aspectos me pareceram desde o início fundamentais: o primeiro é que os estudos sobre a gravidez na adolescência tratam a questão a partir de uma perspectiva universalizante, homogeneizando as diferenças em relação às faixas etárias e às inserções sociais. O segundo é que a gravidez na adolescência se torna um problema na medida em que está na contramão de um projeto biopolítico  de gestão da produção e reprodução do corpo social que pressupõe a maternidade como um projeto racional.

Neste trabalho quero abordar a constituição da gravidez na adolescência como uma questão que emerge a partir de uma estratégia biopolítica, o que no Brasil parece se dar de forma mais clara na década de 1980, quando os estudos sobre o tema tomaram impulso. A gravidez na adolescência foi considerada um problema de saúde pública já que, segundo os discursos médicos e psicológicos, acarretaria riscos físicos e psíquicos tanto para a mãe quanto para a prole.

Paralelamente, algumas análises sociológicas associaram a gravidez na adolescência à pobreza, à marginalidade social e à desestruturação familiar. Em geral, são apontadas como consequências danosas o incremento do número de famílias monoparentais – na maioria das vezes chefiadas por mulheres –, a constituição de uma prole numerosa, o abandono da escola, a precária inserção no mercado de trabalho. Como fatores predisponentes enfatiza-se a desinformação juvenil e a dificuldade de acesso aos contraceptivos. Estudos recentes questionam ou relativizam essas premissas (Helborn, 2006).

No Brasil, o debate sobre gravidez na adolescência teve início no âmbito da saúde pública, a partir de uma preocupação com o aumento do número de partos realizados nos hospitais públicos em adolescentes com menos de 20 anos de idade, intensificando-se ao longo das duas últimas décadas.

É interessante observar que a maternidade antes dos 20 anos há décadas atrás não era considerada um assunto alarmante. Em meados do século XX ela era até bem vinda, quando dentro de um projeto matrimonial, pois as moças com mais de 20 anos, sem perspectivas de casamento, eram vistas como encalhadas, sendo aos 25 consideradas solteironas (Bassanezi, 1997, p. 619). As alterações nos padrões de fecundidade da população feminina brasileira, na qual se observa um adiamento do projeto de maternidade ou mesmo a queda de fecundidade nos demais grupos etários; as redefinições na posição social da mulher gerando novas expectativas para as jovens no tocante à escolaridade e à profissionalização; e o fato de a maioria desses nascimentos ocorrerem fora de uma relação conjugal estabelecida a priori, despertaram a atenção para o fenômeno que se tornou problema. É, portanto, no contexto das profundas modificações dos papéis sociais femininos e das novas expectativas depositadas sobre os jovens que a gravidez na adolescência ganha o adjetivo de "precoce" e "indesejável".

Maternidade e subjetivação

Em trabalho anterior, procurei mostrar como na modernidade, a partir da constituição do biopoder (Foucault, 1977), a maternidade se tornou o centro da vida feminina, sendo considerada um ideal, identificada com a essência feminina, e tratada como destino politicamente desejável para as mulheres, num contexto em que outras possibilidades subjetivas eram classificadas de "desviantes" e "antinaturais" (Nunes, 2000). A partir de uma preocupação política com a produção da vida e da qualidade da população, no momento em que a população passa a ser pensada como fonte de riqueza das nações, a mulher e a maternidade vão se tornar objetos privilegiados de intervenção e controle. O que estava em pauta era a constituição de uma biopolítica, concebida como a condição de possibilidade do manejo das fontes da vida para a produção da riqueza material e para a regulação dos laços sociais (Birman, 2006, p. 257). Nesse contexto a sexualidade transformou-se em alvo primordial da biopolítica, pois seria pela regulação da reprodução individual e coletiva que a produção de um corpo social saudável e disciplinado estaria garantida.

É no bojo desse processo que se constitui a família nuclear burguesa que se transformou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, num espaço privilegiado para a construção do biopoder, já que nela estaria a matriz da produção dos indivíduos. Antes relegada a uma espécie de limbo, a mulher ganhou então não só um novo valor dentro da ordem familiar como também o poder de governabilidade do espaço doméstico, tornando-se a responsável pela produção de uma prole saudável. Pensada como peça-chave da estratégia de produção e reprodução da saúde das crianças, a mãe tornou-se um dos pilares do biopoder, constituindo-se no agente familiar de um projeto mais global de higiene social.

Transformar a mulher em mãe foi, no entanto, uma tarefa que exigiu um processo maciço de medicalização do corpo feminino, que se tornou objeto privilegiado dos discursos médicos, que o descreveram como um corpo saturado de sexualidade, portador de um excesso ameaçador que deveria ser regulado minuciosamente. Em nome de minimizar os riscos colocados por essa sexualidade ameaçadora, instituiu-se um sem número de regras de higiene, inaugurando uma estratégia de controle minucioso da vida e da sexualidade feminina. Parto, aleitamento, ciclos hormonais, condutas sexuais, cuidados com os filhos, vestimentas, hábitos alimentares, atividades sociais, tudo deveria ser pensado e medido de acordo com prescrições médicas que visavam conter os excessos e ardores femininos, adestrando as mulheres para a maternidade (Nunes, 1991).

A partir das últimas décadas do século XX, as perspectivas de vida feminina se modificaram. A ampliação dos horizontes para além do papel de esposa e mãe, a liberdade sexual conquistada, e a entrada no mercado de trabalho abriram novas possibilidades subjetivas para as mulheres. No entanto, isso não significou um arrefecimento desse processo de medicalização, e muito menos uma transformação no projeto biopolítico de gestão populacional. O que se observa é, ao contrário, uma intensificação e ampliação desse processo, a partir do desenvolvimento de novas formas de controle da fecundidade e da concepção, das pesquisas genéticas com fins preditivos e intervencionistas, e das técnicas de reprodução assistida. Isso evidencia a possibilidade de um controle real sobre os processos reprodutivos.

Nesse contexto, o planejamento dos filhos, quando e quantos, tornou a reprodução biológica um fenômeno altamente investido racional, tecnológica e socialmente. A maternidade, que na modernidade foi identificada como uma condição natural feminina, como um ideal a ser alcançado, e como forma privilegiada de subjetivação, já não se sustenta enquanto tal. A opção por não ter filhos tornou-se uma realidade. Além disso, a norma da maternidade mudou de contornos assumindo traços específicos: o "normal" numa mulher hoje é um estado de não concepção medicalizado até o momento considerado adequado de procriar, o que resultou, entre outras coisas, num aumento da idade de procriar. Ter filhos deve ser agora uma decisão deliberada, na qual pesem fatores como a colocação no mercado de trabalho, a estabilidade do casal, o desejo de concluir os estudos, a preocupação com os meios disponíveis para proporcionar uma boa educação (Corrêa, 2001, p. 41). Portanto, o que podemos observar é a intensificação de uma biopolítica de gestão da reprodução do corpo social que precisa se tornar cada vez mais seletiva.

 

A adolescente grávida: um novo problema

Ora, a gravidez na adolescência situa-se no campo oposto ao que se considera na atualidade um projeto racional de maternidade. Na contramão desse projeto as adolescentes engravidam "fora de hora". A gravidez na adolescência torna-se então um problema de saúde pública e ganha lugar de destaque nas políticas voltadas para o controle da reprodução individual e coletiva, ou seja, no projeto biopolítico de gestão populacional.

Nesse processo, observa-se a constituição de uma medicina da adolescência que, no Brasil, vai dar os primeiros passos na década de 1970, momento de criação dos primeiros serviços de Atenção à Saúde Integral do Adolescente (Coates, 1999, p. 260). É interessante notar que a noção de assistência integral que marca o projeto de cuidado com a saúde na adolescência pressupõe uma abordagem biopsicossocial do jovem, em outras palavras, uma abordagem que não se esgota na doença, privilegiando suas condições de produção. Chama a atenção o fato de alguns médicos desses serviços apontarem que não existem doenças específicas da adolescência que demandem atenção especializada. Aliás, consideram essa fase da vida como a mais saudável, isto é, uma fase na qual se adoece pouco (Costa, 2007, p. 77).

Isso demonstra que o fator determinante de um crescente processo de medicalização do adolescente, com o aparecimento de uma nova especialidade médica, é na verdade a associação da adolescência com a ideia de risco social presente em nossa cultura. De um lado, a adolescência é merecedora de cuidados e atenção por serem os jovens considerados mais vulneráveis aos fatores de risco presentes no meio social; de outro, o adolescente é percebido como um risco para a sociedade por assumir comportamentos "desviantes". No bojo da constituição de um projeto de atenção voltado para a juventude, a medicina visa minimizar riscos como: gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, uso e tráfico de drogas e violência urbana. Nesse contexto, o que aparece em primeiro plano é a necessidade de instituir mecanismos de controle sobre a sexualidade do adolescente, vista como impulsiva e difícil de governar e disciplinar.

Os programas de prevenção à gravidez na adolescência têm tanto uma face pedagógica, através de aulas de educação sexual, quanto sanitarista, por meio do incentivo ao uso de camisinhas e anticoncepcionais. Procura-se uma estratégia que possibilite um "exercício responsável da sexualidade", que pelo visto não obtém muito sucesso. É freqüente a constatação de que as jovens engravidam apesar de estarem bem informadas e terem acesso aos métodos contraceptivos, o que aponta para um desejo de engravidar (Dadoorian, 2000). Desejo que aparentemente muitas jovens não querem adiar. Recentemente chamou a atenção o caso de 17 adolescentes de uma escola pública americana que fizeram um pacto para engravidar e criarem juntas os seus filhos, fato inusitado e que causou espanto.

Um aspecto importante a ressaltar é que uma postura preventiva frente à gravidez tem se revelado mais evidente entre as jovens de estratos econômicos mais favorecidos, ou seja, aquelas com maiores possibilidades de articular projetos de vida futuros que seriam prejudicados por uma maternidade precoce.

Inversamente, as jovens de camadas econômicas menos favorecidas não consideram uma eventual gravidez como perturbação maior, o que não as leva a tentar evitá-la. Diante da ausência de políticas sociais efetivas e de projetos educacionais e profissionais pouco atraentes, essas adolescentes são confrontadas com uma falta de perspectivas para o futuro que aponta para um descaso por suas vidas que não aparecem como valor a ser preservado. Nesse quadro sombrio, a maternidade se constitui como um ideal, uma forma de subjetivação possível e privilegiada através da qual procuram obter reconhecimento e valorização social. Ser mãe se torna, então, uma das poucas possibilidades abertas a essas jovens para afirmar a vida e projetar um futuro.

A gravidez na adolescência é considerada um problema mundial tanto pelos discursos oficiais quanto pela mídia. Mas basta um olhar sobre dados demográficos para constatar que o grande contingente de jovens mães está nos países subdesenvolvidos e nas camadas populares (Sobrinho e col. 2002, p. 266). E embora os programas e discursos voltados para a gravidez na adolescência tratem a questão de forma homogeneizante, uma abordagem mais cuidadosa mostra que as preocupações recenseadas são dirigidas principalmente às adolescentes das camadas populares. São elas os alvos preferenciais das políticas de saúde com vistas à prevenção da gravidez. O que evidencia um projeto de controle da natalidade nas populações menos favorecidas, cuja fertilidade é vista como fonte de risco, devendo ser limitada para prevenir superpopulação (Bauman, 2005, p.59), pobreza, marginalidade e criminalidade.

Se a sexualidade da mulher adulta foi devidamente medicalizada, tornando a maternidade um projeto racional, o mesmo não se deu com a sexualidade das jovens, percebida como dotada de um caráter disruptivo e não disciplinado. A gravidez antes dos 20 anos é agora tratada como um "desvio" que recoloca na ordem do dia a preocupação com a produção da vida, com a qualidade da população e com a regulação dos laços sociais.

É nesse contexto que a adolescente grávida se torna um novo personagem social que emerge das estratégias de poder voltadas para o controle e normalização da sexualidade e da vida dos adolescentes. Nessa perspectiva, é possível destacar uma dimensão de resistência, de contrapoder, presente no fenômeno da gravidez na adolescência na atualidade.

A hipótese de trabalho que norteia minha pesquisa é que a gravidez na adolescência não é apenas um mero "acidente de percurso" na vida de adolescentes irresponsáveis, como muitas vezes os discursos médicos, pedagógicos e midiáticos deixam transparecer. Torna-se necessário problematizar esses pressupostos fazendo um deslocamento do tema gravidez na adolescência para uma reflexão sobre o lugar da maternidade no processo de subjetivação dessas jovens, tentando uma abordagem menos homogênea da questão e procurando observar como a maternidade se insere nos projetos de vida das jovens mães, a partir de suas diferenças.

 

Referência bibliográficas

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