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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.2 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

ARTIGOS

 

A exceção como regra sobre a violência na contemporaneidade

 

 

Joel Birman

Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ,  Diretor de Estudos em Letras e  Ciências Humanas, Universidade Paris VII, Pesquisador associado do Laboratório de Psicanálise e Medicina e Sociedade, da Universidade Paris VII

 

 


RESUMO

A intenção deste ensaio é a de delinear criticamente a problemática da violência, no mundo contemporâneo, nos registros ético e político, pela nova articulação existente entre as questões da exceção e da regra.

Palavras-chave: exceção, regra, norma.


ABSTRACT

The aiming of this article is of outlining a critical approach of the violence in the contemporary world, in the ethical and political registers, by the new articulation that was created between the exception and the rule.

Keywords: exception, rule, norm.


 

 

I. Na selva das cidades

Reagir ou não reagir à violência do outro ― um tapa no rosto de um estranho, ou até mesmo um empurrão inesperado ― seria um ato de grandeza ética e um posicionamento político efetivo, para que o sujeito não entre definitivamente numa escalada crescente de violências e de retaliações sem fim? Ou, então, faria alguma diferença fundamental, quanto aos critérios ético e político, se a dita resposta fosse imediata ou mediata face ao agressor? Ou, ainda, quem sabe, a dita não reação evidenciaria simplesmente uma postura de covardia diante do agressor? Se, ao lado disso, a figura do agressor se referir à condição de estrangeiro da figura do agredido e lhe disser que deveria voltar para o seu país, de maneira a conferir uma dimensão xenéfoba e étnica ao confronto, isso teria o poder de transformar a gramática da oposição agonística em pauta, ou não faria qualquer diferença? De qualquer forma, o agressor introduziria assim um ingrediente novo, no embate de forças em questão, que passaria a ser também de ordem étnica e nacional, com franco sabor de xenofobia em face da figura do estrangeiro.

Tudo isso se passa na Dinamarca, onde o agressor é um mecânico de automóveis e o agredido é um médico. Este se dedica a trabalhos humanitários, tipo "Médicos sem fronteiras", num longínquo país da África, atravessado por confrontos tribais e étnicos. Não obstante a evidente diferença dos dois personagens, no que concerne à condição de classe, a iniciativa da postura agressiva foi assumida pelo mecânico e não pelo médico. Isso evidencia um novo cenário, no espaço social das democracias ocidentais, onde a igualdade de direitos dos cidadãos como imperativo não mais se silencia ante  certas diferenças como  a condição de classe entre os indivíduos, como ocorria outrora.

Porém, a diferença quanto à nacionalidade se inscreve na cena, marcando de maneira ostensiva a posição dos oponentes. Com efeito, se o mecânico é dinamarquês, o médico é sueco, mas que habita na Dinamarca em decorrência de seu casamento com uma médica dinamarquesa, com quem teve dois filhos. O casamento está em crise, vivendo os cônjuges em casas separadas. No entanto, a relação entre ambos é amigável. Contudo, podemos nos interrogar se a crise matrimonial não fragiliza subjetiva e socialmente a condição do médico, no que tange a sua posição de estrangeiro.

Pode-se dizer sem vacilar que o confronto entre os dois homens foi produzido por nada, por mais paradoxal e incongruente que possa soar esta afirmação. No entanto, para formular  as coisas na sua literalidade, poder-se-ia dizer que o embate em pauta foi disparado por uma bobagem, isto é, por algo que não teria razão suficiente para se desdobrar efetivamente numa cena de violência. O que se passou então?

Duas crianças pequenas, filhos dos dois homens, disputam pela ocupação de um brinquedo num parque público. O médico quis apartar a disputa, separando então as duas crianças engalfinhadas. Porém, foi mal interpretado pelo mecânico, acusando-o de estar agredindo e maltratando o seu filho. Não obstante a negativa daquele, o mecânico agride o médico com um tapa no rosto e lhe empurra com força. Além disso, o mecânico reitera o gesto brutal, ofendendo verbalmente o médico sem que este retruque, aos tapas e os empurrões.

A cena foi assistida pelo filho mais velho do médico e por um amigo deste, pois todos tinham saído juntos para passear pela cidade. O retorno temporário do médico da África foi o ensejo para o passeio. Contudo, os meninos mais velhos não entenderam a postura do médico na cena, que não reagiu às agressões. Sustentaram então com veemência que ele deveria ter reagido. Ou, então, ido à polícia para apresentar queixa pela agressão gratuita. Porém, de forma inesperada o médico não fez nem uma coisa nem outra, afirmando que pela sua postura de não agressão evidenciava a sua grandeza moral diante do agressor e, ao mesmo tempo, a baixeza moral deste. Pretendia com isso cortar em ato a possível escalada em espiral da violência.

Os meninos ficaram literalmente perplexos com tudo isso. Não podiam compreender nem a ausência e a não reação do médico em face da agressão, nem tampouco o seu discurso. Vale dizer, não fazia qualquer sentido para os garotos o que o médico dizia e fazia, sendo então literalmente algo da ordem do non sense.

Ao chegarem em casa o filho decidiu retomar o que ocorreu, comunicando para o pai o mal-estar que a sua atitude lhe provocara. A presença do amigo como testemunha teve certamente a função de galvanizar o mal-estar do filho, que se sentia envergonhado com a postura do pai. Por isso mesmo, num certo momento da conversa fez alusão à atitude "frouxa" do pai diante do agressor, aludindo à tensão existente entre os pais com a crise matrimonial, no qual dizia que a mãe reclamava pelo pai não ser suficientemente "firme". No entanto, o pai reafirmara a sua postura ética, diante do filho incrédulo e certamente decepcionado.

Entretanto, em decorrência do que ocorreu o filho do médico e seu amigo tentam descobrir o endereço do agressor, para incitar o médico a procurá-lo e pedir satisfação da agressão que sofrera. Foi o amigo do filho que tomou a iniciativa disso e acabou por saber o dito endereço. Apesar de recalcitrante, o médico acaba por ir à oficina do agressor, para satisfazer ao desejo do filho, acompanhado de seus dois filhos e do amigo do filho mais velho. Porém, o agressor evidenciou novamente a sua violência, repetindo literalmente a cena que ocorrera na praça pública. A repetição se realizou também pela não reação do médico, para a perplexidade dos meninos, que reafirmou que não alimentaria o ciclo da violência em cascata  como ocorria frequentemente na atualidade e que sua postura era moralmente superior à do seu agressor.

A que se pode atribuir a enigmática postura do médico na cena da agressão, afinal das contas? A que se deve a sua convicção e a sua crença na sua postura ética, que se reitera na repetição da cena, em completa ruptura com a gramática da violência na contemporaneidade?

De qualquer maneira, estamos lançados abruptamente aqui na violência que se dissemina no espaço das cidades contemporâneas, sejam estas grandes ou pequenas, pouco importa as suas dimensões. Em decorrência disso, a civilidade entra num processo de apagamento e suspensão nas cidades, transformando-se essas numa selva efetivamente, onde é sempre o mais forte quem define as regras do jogo sobre os mais fracos. Vale dizer, parodiando Brecht, que estamos lançados "Na selva das cidades".1

 

II. Nos jardins das maldades

Esta cena crucial, no entanto, se conjuga com outra, que é a sua contrapartida e a sua continuação, num outro registro e num outro contexto. Pode-se depreender assim a continuidade e a descontinuidade existente entre as duas cenas, marcadas que seriam essas pelas similaridades e pelas diferenças nas suas linhas de forças. Vale dizer, a especularidade evidente entre as  linhas de forças constitutivas das cenas em pauta se desdobra na produção de uma imagem invertida e não de uma imagem direta, afastando efetivamente a possibilidade da existência de uma cópia entre as duas cenas.2

Contudo, o cenário agora se desloca para outro espaço social. Trata-se da escola do filho mais velho do médico e do seu amigo preferencial. A agressão entre as crianças se transforma então num lugar comum, que povoa a experiência  institucional. Assim, um menino de estatura mais forte e de tamanho também maior provoca e machuca os garotos menores e mais frágeis, para afirmar de maneira ostensiva quem manda no território e quem deve  efetivamente obedecer.

Somos então lançados subitamente nas práticas de molestação existente entre crianças e jovens, que estabelecem entre essas relações evidentes de força, reguladas que são pela gramática da dominação e pela produção de hierarquias entre os corpos. É o famoso bullying, tal como foi denominada tal prática de violência nos países inscritos na tradição anglo-saxônica e  que se dissemina como rastilho de pólvora na contemporaneidade. Isso porque as autoridades escolares e familiares não sabem como lidar com estas práticas de violência, de maneira que seja definitiva e conclusiva ao mesmo tempo.

Neste contexto, o amigo do filho do médico foi agredido covardemente por um colega mais forte, ficando levemente machucado. O agressor ameaça o filho do médico de agredi-lo também, caso resolvesse contar o que ocorreu para os pais e para as  autoridades escolares. O filho do médico se assusta com a ameaça, submetendo-se então ao agressor e não faz qualquer objeção a isso. O medo e o terror estão estampados na cara do filho do médico, tal  como se fosse uma máscara cristalizada no seu rosto, indicando efetivamente a sua impossibilidade para lidar com o confronto.  No que concerne a isso, no entanto, o que se faz patente aqui é como a sombra da figura do seu pai recai como um figurino mortífero sobre o menino, que fica impotente diante do agressor e se cala, aterrorizado pela violência do outro.

Porém, o seu amigo decidiu reagir de maneira inesperada, mudando as regras do jogo de forças definidas pelo tamanho e pela musculatura do valentão, apropriando-se então de uma prótese, para expandir a sua força, como um instrumento de luta.  Vale dizer, o instrumento de que se valeu o menino agredido foi transformado numa arma, que poderia machucar e até mesmo matar o valentão  caso quisesse. É claro que, para fazer isso, a coragem foi o operador ético fundamental, relançando então diferentemente o jovem as cartas do jogo definido pela gramática da força.

Assim, municiado de um instrumento metálico o menino resolveu se vingar, pegando o valentão de surpresa no banheiro do colégio. Machucou-o então com violência, no rosto e na cabeça, sem qualquer piedade, delineando agora outra versão de quem seria o mais forte na sintaxe reguladora deste jogo macabro. Ao lado disso, tendo já ferido bastante o outro e lhe submetido na marra, afaga ainda o seu pescoço com uma faca, ameaçando-o com a morte, caso repita futuramente a sua violência.

O filho do médico a tudo isso assistiu, como testemunho, evidenciando então a sua surpresa e o seu fascínio pela coragem de seu amigo, que não se submeteu ao valentão como ele o fizera. Estabeleceu-se então um pacto de silêncio entre o filho do médico e o seu amigo, pelo qual aquele esconderia num lugar seguro a arma do crime, isto é, a faca, que poderia incriminá-lo efetivamente.

A história se transformou em seguida numa cena policial, promovida pelas autoridades escolares. Isso porque não apenas o valentão ficou gravemente ferido no rosto e nos olhos, mas também porque denunciou para aquelas que o menino agressor portava uma faca e  que ameaçou matá-lo. Contudo, conforme o combinado, o filho do médico e o seu amigo negaram decididamente a existência da faca e a ameaça de morte. Enfim, sem a prova da confissão as autoridades nada puderam fazer no que tange a qualquer punição, sendo mantida a rotina escolar.

Assim, a escola que deveria ser um jardim para que as crianças e os jovens pudessem florescer e desenvolver as suas potencialidades se transformou num campo penetrado caoticamente por ervas daninhas, isto é, num jardim de maldades. Seria então a luta entre as crianças e os jovens, pela busca das posições do mais forte e do mais fraco, o que se disseminou no espaço institucional das escolas na atualidade.

Este pacto acabou por aproximar ainda mais os dois jovens, no entanto, que passaram a se frequentar mais ainda desde então. O amigo presenteou então o filho do médico com a dita faca, pelo seu gesto fraternal, que a guardava desde então escondida em casa, para não ser descoberta pelos pais, como um objeto mágico. Com efeito, a faca lhe redimira de sua covardia e de seu medo, transformando-a na marca eloquente de sua virilidade, na sua imaginação evidentemente. Na posse da arma poderia se sentir corajoso e decidido como o amigo, incorporando a intrepidez deste e se afastando da condição "frouxa" de seu pai, que não apenas lhe envergonhara mas também lhe fragilizava.

O olhar assustado era a marca maior que se destacara no rosto imberbe do filho do médico, que seria justo o oposto da face de seu amigo, em que se evidenciava de maneira patente uma certa dureza, na sua intrepidez e coragem. Com efeito, o seu olhar  era frio e seus músculos faciais não eram modulados por reações diferenciadas em contextos diversos, delineando então outra modalidade de máscara.

Ao ser interpelado pelo pai pelo que lhe ocorrera na escola, na crítica que seu pai lhe fizera pela sua reação violenta e excessiva na escola com o colega valentão, o menino lhe dissera sem vacilar que se não reagisse como fez ficaria fragilizado diante dos colegas e do agressor, candidato que seria então a saco de pancadas de outros meninos. Portanto, teria agido como fizera para se transformar em objeto de respeito no espaço institucional da escola, para que não fosse eleito como alvo do abuso e do arbítrio dos demais. Enfim, não queria ser o novo valentão do território escolar, mas apenas não ser abusado por ninguém e ser então respeitado.

Por isso mesmo, não conseguia entender efetivamente a não reação do pai do amigo diante do agressor, isto é, a passividade daquele ao ser violentamente empurrado e esbofeteado pelo mecânico. O pai do amigo tivera uma reação oposta à sua ante o agressor, pensara com seus botões, ao não revidar a violência do agressor e ainda pensar que a sua postura seria eticamente superior à do mecânico. Na ética do menino, com efeito, esta atitude não tinha qualquer sentido e no limite seria até mesmo absurda.

 

III. Matar ou morrer

Como disse acima o médico trabalhava numa frente humanitária, na África, num contexto social marcado pela violência sangrenta e pela ausência patente de qualquer institucionalidade. Nesta terra de ninguém, nos confins de um território marcado pela tribalidade, os laços sociais entre os indivíduos seriam regulados pelo combate e pela força, de maneira a promover permanentemente a dor e a morte. Enfim, o que estava em pauta neste contexto era a gramática da guerra e a retórica agonística, alçadas à condição de absoluto e radicalizadas na sua ausência de qualquer limite.

Neste contexto, todos os males desembocavam nas tendas onde os cuidados médicos eram realizados pela agência de trabalhos humanitários. Da malária aos corpos dilacerados pela violência, todas as figurações do horror se materializavam de maneira ostensiva e a céu aberto, numa situação marcada pela precariedade. Nos confins entre a vida e a morte, nos quais essas fronteiras seriam permanentemente remanejadas nos seus territórios de pertinência e de pertencimento, a medicina se inscrevia como prática social fundamental, pois estabeleceria uma luta permanente contra a morte, pois a vida transcorreria sempre em condições trágicas, pela ausência evidente de institucionalidade.

Portanto, a medicina como prática se realizava sempre como urgência e como emergência, diante da vida sempre ameaçada. Neste contexto, a figura do médico é obrigado a ser clínico e cirurgião ao mesmo tempo, não existindo aqui qualquer possibilidade de escolha e de especialização. A concepção da medicina como missão se colocava então como imperativo, de forma que a figura do médico desempenhava a sua função com heroísmo. Com efeito, era assim mesmo como herói que a figura do médico era representada pela população a quem cuidava.

Neste contexto, a figura de um bandido "machão" apavorava a população em pauta, que além de estuprar e violar as mulheres jovens, com o seu bando, esfaqueava as mulheres grávidas, cortando impiedosamente os seus ventres. O horror se disseminava na população, já que se encontrava numa posição de impotência diante da gangue  armada e cruel, capaz de fazer o que era impensável e inesperado.  Para não serem mortos pelos bandidos armados, pela disparidade de forças que se delineara concretamente, os demais homens se calavam e se submetiam inquietos à violência.

Porém, o destino acabou por promover o inesperado e os dados do jogo macabro foram relançados então numa outra roleta. Assim, o bandido "machão" apareceu muito doente, com a perna infectada e na iminência de perdê-la definitivamente. A gangrena se apresenta então como iminente e a amputação  poderia se impor tragicamente. O "machão" demanda o auxílio do médico, que resolve atendê-lo, mas impõe como condição que apenas poucos capangas lhe acompanhem no acampamento médico.

A comunidade não entendeu a decisão e a postura do médico, que decidiu salvar a vida  e a perna do bandido, considerando absurdo que alguém que fizera tantas maldades e arbitrariedades pudesse ainda ser bem cuidado pelo médico e não ser lançado às feras, isto é, à sua própria sorte e à morte inevitável. Os seus auxiliares paramédicos, membros que eram desta comunidade, interpelaram-no, mas o médico dizia que era o  dever o que lhe impelia a cuidar medicamente do bandido, não podendo fazer nada que fosse diferente disso.

Os homens que com ele trabalhavam lhe disseram então que era um homem estranho, nos seus julgamentos e ações, não podendo compreendê-lo efetivamente. Enunciaram assim que não podiam entender a sua ética, que lhes provocara estranheza. Para eles, com efeito, o que se deveria impor nesta situação seria  a Lei do Talião, isto é, olho por olho e dente por dente, no que concerne ao bandido malvado, e não o humanitarismo seguido pelo médico nesta situação. Enfim, a comunidade africana onde se inseria como médico não podia definitivamente entender a sua postura ética, diante do mal, da mesma forma que o seu filho e o amigo desse não podiam compreender a sua não reação diante do agressor no espaço da cidade.

O tratamento do bandido se realizou devidamente, podendo manter a perna e não imputá-la. A sorte esteve assim do seu lado, mas o "machão" decidiu abusar dessa sorte de maneira arbitrária, desafiando o destino e por acreditar decididamente na sua impunidade, como se estivesse acima do Bem e do Mal, pelo poder de sua força armada. Foi desta maneira que ocorreu uma cena inesperada, na sua convalescença, que acabou por virar de ponta-cabeça os fundamentos da ética do médico e da população, no que se refere à figura do bandido-machão.

Assim, uma jovem acabara de falecer, apesar de todo o esforço do médico para salvar a sua vida. Com o incidente, o médico sofrera bastante, afinal das contas, não era justo que a morte ceifasse impiedosamente corpos tão jovens, que estavam apenas no começo da vida, iniciando o seu florescimento! Porém, ante o inevitável, o corpo da morta foi separado para que fosse encaminhada para os rituais funerários, quando o bandido invade de maneira inesperada o espaço onde a morta foi alojada, com dois de seus capangas. Fala então da juventude de seu corpo e do prazer que ainda poderia despertar com a sua vagina "apertada". Sugere então que um de seus capangas pudesse disso usufruir, numa fala cínica, imprópria e sarcástica diante da figura do corpo da morta, que acabou por balançar a figura austera do médico.

Este lhe expulsa então do acampamento, esbravejando  que se estivesse bem o suficiente para falar e pensar em fazer coisas sexuais, estaria já com a saúde recuperada para ir embora e voltar para a sua casa. Ao ser empurrado o bandido cai no chão com o gesto do médico, sendo cercado pela população enraivecida que o mata de maneira brutal, pelo linchamento. O médico ficou inteiramente subvertido pelo que vê, mas ao mesmo tempo não fez nada para impedir o massacre, que se realizou bem próximo de si.

Contudo, é evidente que a atitude da população em atacar o bandido que provocara tantas atrocidades, ao vê-lo fragilizado e lançado indefeso no chão, se fez em continuidade com a postura do médico que o expulsara do acampamento, pelo discurso infame que pronunciou face a face com a figura da morta. Se as relações de força foram infletidas agora para o lado da população, de acordo com a cruel gramática agonística da violência, não resta qualquer dúvida de que a população interpretou a atitude do médico como uma autorização para realizar a vingança, tão ansiosamente esperada desde sempre.

Evidentemente, algo de fundamental no que concerne à experiência do Bem e do Mal se fez então ali presente, de forma fulminante e sagrada, que balançou decididamente a figura do médico. Este ficou então bastante afetado pelo que ocorreu e  de que foi protagonista, de maneira que um olhar sobre o Mal se fez ali definitivamente presente, pelo véu que caíra e que vedara os seus olhos até então. Certa ou erradamente, de forma justa ou injusta, não poderia mais viver sem evocar aquilo que experimentara, ao escutar a fala do bandido diante da jovem morta, o seu gesto inesperado de expulsão do bandido "machão" e o linchamento pela população.

 

IV. Retaliação

Inconformados pela postura passiva do médico diante do mecânico agressor e com a injusta impunidade deste, os dois jovens decidiram finalmente retaliar o agressor. A iniciativa foi tomada pelo amigo do filho do médico, mas com a franca resistência inicial deste. Porém, com medo da rejeição e de perder a amizade do amigo, o filho do médico resolver participar da vingança.

A ideia era a de produzir uma bomba caseira, com a dinamite existente na oficina da casa do pai, que fora deixada pelo avô. A bomba deveria explodir o carro do mecânico, para fazê-lo pagar, pelos danos materiais, pela agressão que fizera. Se a justiça não poderia se fazer diretamente como deveria, então ela seria instituída pelos canais indiretos, pela destruição de bens. Enfim, planejaram um ataque ao carro, mas não podia existir efetivamente qualquer vítima, mesmo da pessoa do mecânico.

Por isso mesmo, o cenário ideal seria a da praça da cidade, onde ficava estacionado o carro do mecânico, na manhã de domingo, bem cedo, pois nesta hora não existiam transeuntes e não haveria então vítimas. O planejamento foi assim  feito nos seus menores detalhes, para não existir qualquer erro que pudesse ser fatal.

No entanto, ocorreu algo de inesperado no momento do atentado. Quando o rastilho da bomba foi aceso e estava já prestes a explodir, apareceram uma mulher e uma criança no horizonte. Andavam cedo pela cidade, fazendo exercício, quando se aproximaram perigosamente do carro e morreriam certamente pela explosão. Porém, o filho do médico saiu do seu esconderijo onde estava com o amigo e correu para elas gritando, para se afastarem do carro. Contudo, se a vida da mulher e da filha foram salvas pelo gesto heroico do menino, este foi muito ferido pela explosão do carro.

 

V. Dor e morte

O risco da morte foi efetivamente considerado para o menino, não obstante a rapidez com que foi socorrido pelo hospital. O amigo confessou tudo para a polícia, assumindo inteiramente a responsabilidade pela tragédia que acontecera com o amigo. Culpado pelo que ocorrera e promovera, decidiu visitar o amigo no hospital. Este estava ainda inconsciente, estando acompanhado pela mãe, que recebeu então o visitante.

Porém, se o menino já se sentia culpado, a sua culpa foi bastante incrementada e levada ao infinito, pela forma que foi recebido pela mãe do colega. Esta lhe agrediu violentamente de forma verbal, dizendo-lhe coisas de forma implacável, acusando-o pelo que ocorrera com o filho. Disse-lhe então que o menino iria morrer, pela gravidade dos ferimentos. O que não ocorreu de fato, mas foi o que ficou para o menino com o esporro e a esculhambação que recebeu da mãe do amigo.

Assim, mortalmente culpado pelo que ocorreu e pelo que fez, o menino fugiu de casa e decidiu se suicidar, para pagar pelo que fizera com o amigo. Retomando o imperativo implacável da Lei do Talião, não mereceria viver se tinha conduzido o amigo para a morte: olho por olho e dente por dente. A morte deveria ser o desdobramento inexorável pelo que fizera, não existindo qualquer alternativa diante disso. Enfim, a culpa e a falta deveriam ser pagos pela morte, por suicídio.

O cenário do suicídio seria o lugar mais alto da cidade, o último andar de um prédio com vistas para o porto, de onde se jogaria de maneira implacável e sem qualquer possibilidade de erro quanto à morte. Foi para lá que se dirigiu o menino de maneira decidida.

Este estranho lugar era regularmente frequentado pelo menino, que gostava da vertigem das alturas e do desafio que fazia à morte ao ir para lá. Olhava então a cidade de cima e todas as pessoas pequenas lá embaixo, numa outra versão das relações de força e das hierarquias existentes entre as pessoas. Estaria aqui a vertigem maior que poderia ser experimentada nas alturas, ao desafiar a vida com a morte, de forma soberana.

Passou a frequentar o lugar após a morte recente da mãe, acometida de câncer, morte esta que lhe deixara desamparado. Acusara o pai pela morte da mãe e de até mesmo a ter desejado, quando as dores da mãe ficaram atrozes pela evolução da doença. Não se conformara pela orfandade, pois precisava da mãe para viver.

Foi este lugar que o menino apresentou ao amigo, quando se aproximaram pelo pacto da faca. O filho do médico tinha medo do lugar, mas acompanhava o amigo para não ser chamado de covarde. Falara com o pai disso, que proibira tal passeio perigoso. Porém, assim mesmo o menino ia para o lugar perigoso, escondendo isso do pai.

Quando o filho desaparecera, o seu pai foi preocupado à casa do filho do médico, achando que poderia estar lá. Ficou em pânico ao não encontrá-lo, sem saber mais onde procurá-lo. No entanto, o médico intuiu a intenção suicida do menino e o lugar aonde poderia ter ido para a realização do ato fatal, pelo que soube da conversa do menino com a sua mulher e da culpa que ele ficara com o acidente de seu filho.

Ao chegar ao topo do prédio, percebeu o movimento ambivalente do menino, entre se jogar e recuar. Procura então demovê-lo  verbalmente, até que o agarra e lhe afasta decididamente da zona de perigo. Diante da culpa do garoto, afirma que o seu filho está vivo e bem, não tendo morrido, como pensara após a conversa com a sua mulher.

Contudo, a sombra da morte envolvia perigosamente a existência deste garoto, que de maneira raivosa e ressentida criara uma carapaça para se proteger da percepção de qualquer fragilidade em si, forma que construiu para se contrapor à morte da mãe e à impossibilidade do seu pai em salvá-la como esperava. A violência e o ódio do mundo se inscreveram então no seu ser, não acreditando mais desde então que pudesse existir um mundo melhor do que este que lhe foi apresentado de maneira trágica.

Portanto, seria a vertigem provocada pelo olhar perscrutante da morte e pela dor disso resultante que está sempre presente, o que nos impede de olhar para a vida da mesma maneira, após este encontro fatal com a morte. Porém, o que existe de trágico na vida é que teremos sempre um encontro marcado com a morte, não apenas pelo momento fatal em que encontraremos a morte na sua inexorável naturalidade, mas também nos momentos fugidios em que a morte se impõe ao nosso olhar sem disfarces, pela dor inevitável que a vida sempre nos provoca. Diante deste encontro marcado, podemos violentamente afrontar agonisticamente o outro com a soberba de nos acreditarmos imortais e olhar os outros do alto, como se fôssemos superiores. Ou, então, quem sabe, conjugarmos as nossas forças frágeis e construirmos uma comunidade de destino, para declinar no plural a nossa força.

 

VI. Costurar na mostração

Esta sequência de cenas compõe a narrativa do filme intitulado Em um mundo melhor. Trata-se de uma produção dinamarquesa, que foi dirigido por Susanne  Bier, em 2010. O filme ganhou o Oscar de melhor Filme estrangeiro de 2011.

Trata-se de um filme bastante conciso e bem econômico nos recursos de que se vale para construir a sua narrativa. O trabalho denso dos atores condensa o que existe de mais intenso na história que se desenrola. É o gesto apurado dos atores o que aqui se destaca nesta narrativa pujante, sem que qualquer gordura venha barrar a concisão das sequências propostas pelo roteiro. Não existe então qualquer apelo para os já corriqueiros efeitos especiais, tão em voga na cinematografia norte-americana contemporânea.

Não resta qualquer dúvida de que esta escolha estilística, no que concerne à construção efetiva da narrativa do filme, assim como a sua decisão de se voltar para o trabalho dos atores, faz parte da proposta ética e política que  Susanne Bier pretendeu que o  filme pudesse promover no público que fosse assisti-lo. Se é a problematização sobre um mundo melhor o que está em causa na proposta do filme, esta tese não poderia ser formulada e realizada fora da alçada dos humanos, isto é, do trabalho dos atores. Fazer apelo aos efeitos especiais não poderia então se inscrever efetivamente no campo desta dramaturgia, que visaria, pela espetacularização da miséria humana, à repetição dos mesmos males que nos afetam na atualidade. Vale dizer: fazer um questionamento que seja decisivo sobre um mundo melhor implicaria que possamos nos deslocar decididamente dos efeitos vertiginosos da espectacularização imagística, que nos afastaria de olhar efetivamente para a morte e para a dor que se disseminam na contemporaneidade, como um rastilho explosivo de pólvora.

Desta maneira, o filme em questão na sua construção estilística é similar ao filme Incêndios, do canadense D. Villeneuve, que também concorreu ao Oscar de melhor Filme estrangeiro, de 2010. Não ganhou mas poderia ser também o filme vencedor, sem qualquer favor, pela qualidade da sua realização. Na produção canadense foi a recusa dos efeitos especiais e a ênfase no trabalho dos atores o que igualmente se colocou no primeiro plano da narrativa, na sua eloquente pujança cinematográfica.

Porém, a problemática que o filme Em um mundo melhor delineia é de uma enorme atualidade, estando na ordem do dia como uma de nossas urgências. Evidentemente, o que está em pauta é a questão da violência nos seus menores detalhes, que é narrada tendo como focos privilegiados certos contextos cruciais colocados na contemporaneidade. Estaria aqui o que existe de mais elaborado e convincente na narrativa cinematográfica.

Seria justamente isso o que faz um contraponto rigoroso com os filmes que exploram os ditos efeitos especiais para seduzir vulgarmente o grande público, mas sem propor outras possibilidades de leitura no que tange à violência. Vale dizer: não há aqui a exibição de sangue dos filmes de violência, onde os efeitos espetaculares nos paralisam perante o que existe de impossível na experiência limite da violência. Ao contrário, o que Em um mundo melhor  nos propõe é a articulação concisa entre tais contextos, onde a violência atual pode ser delineada.

Pode-se dizer que o outro grande mérito desta narrativa magistral foi a de fazer a mostração, de forma sutil ― como se deve fazer numa obra de arte que não pretende realizar uma demonstração, mas de esboçar sempre as questões nas bordas do sensível ―, da articulação existente entre os diferentes contextos e registros, onde a violência se evidencia na contemporaneidade. Pelas bordas do sensível, a mostração da violência se inscreve numa cartografia, onde as mesmas linhas de forças se declinam em registros aparentemente diferentes do real. A costura, que foi então meticulosamente tecida pela artesania cinematográfica e que conjugou os diferentes contextos, relança outra dimensão estilística da narrativa fílmica, tornando-a assim mais densa e consistente.

 

VII. A exceção e a predação

Assim, o primeiro contexto colocado em destaque é a disseminação da violência entre os jovens e as crianças, principalmente  no espaço escolar, mas também em outros espaços sociais. Esta modalidade de violência já se impôs no Ocidente há muitas décadas, estando já inscrita no espaço social como algo naturalizado, isto é, como um signo que já não causa muito espanto. No que concerne a essa questão, mesmo que a escola, a família, a justiça e a polícia possam tomar algumas providências, procurando articular as famílias e as crianças implicadas, a repetição monótona desta modalidade de violência está já implantada na nossa existência social na contemporaneidade.

O bullying foi colocado em cena em toda a sua rudeza e implacabilidade. As figuras da autoridade, sejam estas oriundas das instituições escolar e familiar, patinam em face dos acontecimentos, que escapolem literalmente de suas mãos como um sabonete deslizante. Por isso mesmo, a escola faz apelo à polícia diante da impotência de exercer a sua autoridade, em conjunção com as famílias implicadas. A metáfora enunciada é clara e precisa. Com efeito, se a autoridade não dispõe de potência simbólica perante os jovens, só lhe resta fazer apelo à força  da polícia, diante de sua impossibilidade de realizar a mediação dos conflitos.

O segundo contexto colocado em cena foi a gratuidade da violência urbana, que ocorre a  céu aberto, disse ainda que é  no espaço público na atualidade. O seu disparador são coisas insignificantes, isto é, algo que não justifica a violência empregada, sob a forma de palavras e de atos. Palavras duras seriam então ditas, ofensas proferidas, em conjunção com tapas no rosto. No caso do filme, foi uma inocente briga de crianças, em que um dos pais procurou apartar o confronto, mas que foi interpretado pelo pai da outra criança como uma agressão a seu filho.

O terceiro contexto é a violência tribal num país africano, onde bandos disputam as condições de sobrevivência numa situação marcada pela precariedade. Se esta pôde ser considerada aqui como a condição de possibilidade da violência, na luta pela sobrevivência da população concernida, o que se evidencia é a organização de formas de dominação e de poder entre os indivíduos, que conduzem inequivocamente à violência brutal e sangrenta.

Porém, algo da ordem do mal se colocou também aqui em cena, já que a figura do agressor perfura gratuitamente o ventre das mulheres grávidas, procurando assim dilacerar o corpo das mães e matar os bebês que se encontram no ventre materno. Portanto, o registro da escatologia aqui se inscreve de maneira inesperada, pela mise-en-scène de um ato de ódio em relação à figura da mulher grávida e do seu bebê.

É possível dizer que o disparador do ato perverso em questão seja a contingência de que todas as mulheres grávidas sejam jovens. Teriam perdido então a condição virginal com outro homem, que não seria  a figura mortífera do agressor. Uma cena posterior do filme colocou isso em destaque, quando o agressor fala sobre a jovem morta como tendo uma "xoxota" apertada, e que despertou pela primeira vez a ira do médico. Por isso mesmo, para os homens da aldeia a figura do agressor foi denominada de "machão".

De qualquer maneira, pode-se afirmar sem vacilar que o que precipitaria aqui o ato criminoso seria  a condição de desvirginamento das mulheres jovens, que se faz patente pela protuberância gravídica de seus ventres. Isso porque tendo perdido a virgindade com outros homens, o sujeito em questão não poderia desvirginá-las como gostaria.

Porém, esta suposta primazia do acesso às virgens que pretende ter a figura do macho agressor inscreve-se incisivamente no campo do poder, que regula as linhas de força de seus atos. Com efeito, seria o poder de submissão absoluto do outro e a sua suposta condição de exceção o que afetaria o "machão"  e o que provocaria o seu ódio, conduzindo-lhe então ao sacrifício das jovens com a força implacável de sua arma perfurante.

Porém, se articularmos as duas pontas desta última cena de violência ― a posição inquestionável de dominação bélica do sujeito sobre o território em questão e a exigência de poder para desvirginar as mulheres ―, pode-se pôr em destaque a condição de exceção que pretende ter a figura do "machão". Seria em decorrência disso que se poderia pôr em evidência a figura  da predação, neste contexto social radicalmente agonístico. Vale dizer: na suposta posição de domínio bélico sobre o território, em decorrência de seu poder de vida e de morte sobre a totalidade da população concernida, a figura do "machão" supõe também que pode e deve ter acesso ao gozo absoluto, devendo ser aquele que poderia usufruir plenamente do corpo das jovens, com a exclusão dos demais homens.

 

VIII. Complementarismo, especularidade e repetição

Pode-se assim dizer, sem pestanejar, que os diferentes contextos e registros que compõem a narrativa do filme, evidenciando diversas situações corriqueiras de violência na contemporaneidade, são efetivamente complementares. Desta maneira, cada uma das situações se concatena com as demais sem ruídos. Estaria aqui a razão pela qual a narrativa fílmica teria a marca da fluência, de forma que pudemos nos deslocar facilmente de uma dada situação para as demais, sem que exista qualquer forçação de barra no roteiro do filme.

Porém, se as situações são complementares isso supõe a relação especular que existe entre os diferentes contextos colocados em evidência. No entanto, se a especularidade se impõe, isso se deveria à presença das mesmas linhas de força que se inscrevem nas diversas situações em pauta. Vale dizer: os mesmos ingredientes estariam em causa na composição  que foi empreendida das diferentes situações. Por isso mesmo, elas seriam literalmente especularizáveis, de forma que cada uma delas poderia refletir  perfeitamente o que estaria em pauta  nas demais.

Além disso, pode-se dizer ainda que o complementarismo e a especularidade existente entre os diversos contextos seriam atravessados pela rigorosa lógica da repetição. Seria esta que realizaria a conjunção das diferentes linhas de força existentes nas diversas situações e repetição o que possibilitaria a especularização entre os diferentes registros que compõem a narrativa fílmica.

O que presidiria aqui a lógica da repetição, afinal das contas? Pode-se enunciar que é a impossibilidade dos indivíduos em aceitarem a sua condição de igualdade com os demais, o que estaria no cerne da experiência da violência. Por não aceitarem a posição de igualdade com os demais, alguns indivíduos pretendem ocupar uma posição de exceção no espaço social, de forma que em decorrência disso para eles tudo seria possível. Seria por este viés que a utilização da violência poderia ser exercida, mesmo que o preço disso seja a dor, a ofensa e a morte do outro, seja esta real ou simbólica. Neste último caso, o que o agressor pretende é promover a humilhação e a vergonha ao seu opositor, marcando-o de maneira  negativa no espaço social, desqualificando-o efetivamente no espaço social de pertencimento comum.

Portanto, seria isso então o que se repete e o que se especulariza entre os diversos contextos da narrativa fílmica, evidenciado que é a mesma questão que se delineia nas diferentes situações do filme, de maneira rigorosa. Estaríamos lançados rigorosamente aqui no campo da repetição do mesmo, para retomarmos o conceito que foi enunciado diferentemente por Deleuze3 e Lacan,4na leitura que fizeram da problemática da repetição em Freud, no "Além do princípio do prazer".5

No entanto, a repetição da diferença6,7se impõe aqui  na articulação que foi também proposta na narrativa do filme em pauta, à medida que diferenciais mínimos se inscrevem de forma ostensiva, entre as diversas situações apresentadas, indicando rupturas eloquentes no campo da repetição do mesmo. Assim, a figura do médico que não responde à violência com a violência introduz uma diferencialidade no campo da repetição do mesmo. Da mesma forma, levado a uma situação limite pelas circunstâncias com que se defronta, a figura do médico se diferencia dele próprio, encampando e disparando a violência mortal da população contra a figura do "machão". Porém, é a presença iminente da morte e da dor provocada pela morte o que se enuncia preferencialmente como a fonte fundamental para deslanchar a produção da diferença no campo do mesmo, como se apresenta na parte final do filme pela angústia do jovem diante da morte da mãe e da  possível morte do amigo, pela ação de retaliação que realizou  contra a figura do mecânico agressor.

Contudo, é preciso que nos indaguemos ainda, antes de concluir este ensaio, sobre as condições concretas de possibilidade da disseminação da violência na contemporaneidade, que é a problemática do filme em pauta. Vale dizer: onde se inscreveria a dita condição de exceção na atualidade?

 

IX. Versões da exceção

Para circunscrever devidamente a problemática aqui em pauta seria interessante e estratégico que se pudesse estabelecer a diferença existente entre a modernidade e a contemporaneidade, no que tange à condição de exceção, nos registros ético e político. Evidentemente, estes registros são complementares, constituindo a face e o verso da mesma problemática.

Sabe-se que Freud começou a delinear uma leitura desta problemática em Totem e Tabu,8 livro que foi publicado em 1913. Procurou construir então um mito das origens da  civilização a partir da narrativa da horda primitiva, descrita por Darwin, para realizar a crítica da condição de exceção.

Assim, existiria nas origens da humanidade a figura de um pai onipotente, que pretendia ter o domínio absoluto  sobre o seu território, que se traduziria pelo usufruto do  gozo absoluto. Este gozo se materializaria pela posse da totalidade das riquezas existentes e pelo usufruto do prazer sexual com a totalidade das mulheres existentes no seu território. No que concerne a essa questão, qualquer um dos filhos mais jovens que pretendesse ter relações sexuais com as mulheres seria morto imediatamente pelo pai poderoso, uma vez que este seria fisicamente mais forte do que todos os outros homens. Desta maneira, os filhos se submeteriam ao poder onipotente do pai pelo temor da morte, pois individualmente cada um deles se sentia mais fraco que o pai.9

Porém, um dia descobriram que se unissem as suas forças, individualmente mais frágeis do que a do pai, poderiam indubitavelmente ser mais fortes do que ele. Assim, conjugaram-se entre si numa aliança e mataram efetivamente o pai onipotente. Pela destruição e pela morte da figura de exceção construíram, em contrapartida, uma associação fraternal de indivíduos, isto é, uma sociedade propriamente dita, baseada na igualdade de todos, no que tange à distribuição das riquezas, à relação sexual com as mulheres e à ocupação do poder. Estaria plasmada assim a ruptura com o registro da natureza e a construção correlata dos registros social e político. Para isso, no entanto, constituíram um interdito fundamental, segundo o qual se por ventura algum dos irmãos pretendesse ocupar a mesma posição onipotente do pai teria o mesmo destino que este, qual seja, a morte violenta.10

Evidentemente, o que o discurso freudiano esboçou aqui numa narrativa mítica foi a constituição da modernidade ocidental, que pela morte da figura do Rei ofereceu a condição concreta de possibilidade para a constituição da sociedade moderna. Se anteriormente a soberania do Rei seria absoluta, o que se constituiu, em contrapartida, foi a sociedade igualitária e a soberania do povo. Enfim, pela Revolução francesa a figura do Rei foi morta pela decapitação e se constituiu a sociedade, caracterizada pela igualdade, pela fraternidade e pela liberdade dos cidadãos.

A condição de exceção teria sido assim conjurada pela emergência da sociedade moderna, ao lado da condição de tirania, que se inscreveria necessariamente  na condição de exceção do poder soberano. Porém, qualquer signo de retorno ao poder soberano, assim como da condição de exceção e de tirania como seus correlatos, implicaria a insurreição popular e a morte de quem a isso ousasse.

Porém, com a explosão da Primeira Grande Guerra, a violência bélica atingiu limiares anteriormente inimagináveis, no contexto entre as grandes potências europeias, representantes maiores que eram da civilidade. A Alemanha, por um lado, a França e a Inglaterra, pelo outro, exibiram as mais cruéis atrocidades nos campos de batalha, não obstante o  alto nível de desenvolvimento civilizatório que atingiram, nos registros científico, tecnológico e estético. Para que serviria então este alto nível de civilidade alcançado, se a crueldade poderia ser exercida de maneira disseminada, indagava-se Freud em "Considerações atuais sobre a guerra e a morte",11 ensaio publicado em 1915.

Desta maneira, a conjuração da força e da condição de exceção, cantadas em prosa e verso em Totem e Tabu, foi relativizada e posta efetivamente em questão por Freud. Com efeito, se a interdição de matar era sustentada pelo Estado  moderno em condições de paz e no interior das fronteiras de um Estado-nação, era o mesmo Estado que autorizava os seus cidadãos a matar em condições de guerra e no confronto entre diferentes Estados-nação.12

Porém, com esta duplicidade de imperativos o Estado ficaria numa posição paradoxal, pois perderia também a sua posição de mediação na sociedade e no interior de suas fronteiras, não podendo mais arbitrar o confronto de forças entre os diferentes grupos, segmentos e classes sociais. Com isso, o espaço social seria atravessado pela violência e pela demanda de exceção, das individualidades e dos agrupamentos sociais em diferentes escalas de complexidade. Seria, assim, o narcisismo das pequenas diferenças o que marcaria a ferro e fogo as relações entre os indivíduos e os diferentes agrupamentos sociais, de maneira que Freud teria que enunciar que o homem não teria superado a condição de horda como acreditara  em Totem e Tabu. Com efeito, o homem seria um animal de horda e não um animal de massa, de forma a ser colocada em cena efetivamente a tensão entre os registros da diferença e da exceção, já que o primeiro poderia ser transformado no segundo conforme as circunstâncias sociais e políticas.13

Qual seria a consequência ética e política disso? Como animal de horda o homem não seria completamente educável para a civilidade, pois um resto de força pulsional resistiria sempre à educação. Em decorrência disso, a governabilidade seria uma prática social impossível, na medida em que as relações de força entre os homens reproduziriam sempre as possibilidades de diferença e de exceção, nos disse Freud em  "Análise com fim e análise sem fim",14 ensaio publicado em 1938.

Pode-se depreender facilmente disso como Freud pensou  inicialmente às condições de possibilidade para a constituição  da modernidade social e política do Ocidente, para indicar logo em seguida os impasses  presentes na construção política moderna que permitiram delinear as condições concretas da modernidade avançada, com o retorno da condição de exceção. Porém, esta se dissemina agora na totalidade do tecido social, de forma que a governabilidade se tornaria neste momento uma prática social impossível.

Para Dumont, a emergência da modernidade no Ocidente implicou a constituição da sociedade propriamente dita, como uma associação de indivíduos.15 Com isso teria se forjado a noção de indivíduo-valor, que teria dado outra conotação para a individualidade empírica que existia na anterior ordem holística. Seria apenas na modernidade que certas modalidades de violência se constituíram, como o racismo, que não existiria na antiga ordem holística.16

Na leitura de Foucault, a figura moderna do indivíduo teria sido forjada pela constituição da sociedade disciplinar, em oposição à sociedade soberana anterior.17 Seria assim pela prática da normalização que a individualidade seria produzida, visando a controlar os gestos e as forças dos corpos e agrupamentos sociais, pela inscrição ativa dessas  em regularidades especiais e temporais que passaram a cadenciar as práticas sociais.

No entanto, na conjunção entre as práticas disciplinares e a construção da biopolítica,18 o processo de normalização relançou o campo da exceção e o confronto de raças no registro agora biológico,19de maneira que o campo dos anormais deveria ser ativamente normalizado pelas práticas da eugenia e da higiene social.20

Pode-se dizer assim que se a emergência da modernidade implicou a tentativa de suspensão da soberania para o estabelecimento da sociedade propriamente dita e da disciplina, de forma que a figura do um como exceção fosse decididamente substituída pela figura do múltiplo, a tentativa de restauração da figura da exceção continuou de forma incansável a marcar o imaginário ocidental. Neste contexto, as práticas disciplinares e a biopolítica forjaram o campo da anormalidade e da exceção, não obstante a pretensão homogeneizante das práticas de normalização.

Assim, para Lefort, a figura do um caiu por terra com o advento da democracia moderna, sendo substituído pela figura da multiplicidade.21Porém, a restauração das formas do um e da exceção foram insistentemente buscadas, de forma que os totalitarismos que marcaram a primeira metade do século XX, nas suas diferentes modalidades sociais ― o fascismo, o nazismo e o stalinismo ―, visavam à restauração do um e da exceção contra a figura da multiplicidade.22

Entretanto, se o Estado moderno pretendia ser ainda a mediação entre as diversas individualidades e os diferentes grupos sociais, não obstante a sua fragilização evidente e os seus paradoxos para a realização daquela, a radicalização da sua fragilidade desde o final dos anos 1970 tornou ainda mais impossível a mediação do Estado no campo de força estabelecido pelas multiplicidades. A construção do neoliberalismo, como correlato da nova etapa da globalização econômica, procurou constituir a figura do Estado mínimo e dar plena autonomia às forças presentes no mercado. A violência contemporânea foi a resultante maior desta já frágil mediação existente, que passou a se disseminar a céu aberto, à medida que cada indivíduo passou a buscar o domínio dos demais pela posse dos bens materiais e do usufruto do gozo, nas suas diversas modalidades de existência.

Neste contexto, todos passaram a buscar a condição de exceção em face dos demais. Em decorrência disso, a predação, como modelo moral e político, se estabeleceu e se disseminou como um imperativo na relação entre as individualidades, nas linhas de força delineadas pela ordem neoliberal. Isso porque o neoliberalismo não é a simples repetição do liberalismo do século XIX, uma vez que a competição ferrenha que era restrita ao campo estrito da economia foi então disseminada para todas as esferas da vida.23,24 Por isso mesmo, a violência entre as individualidades se multiplicou e mudou ostensivamente de escala de intensidade, ultrapassando novos limiares de existência.

Assim, não é um acaso que o assédio moral e o bullying como práticas regulares tenham sido forjados, neste contexto histórico, como modalidades contemporâneas de violência. Com efeito, tanto o assédio moral quanto o bullying  indicam a ausência de qualquer mediação entre as individualidades, de maneira que as relações de forças entre estas se transmutam em dor, ofensas e morte, reais e simbólicas. Pelo bullying, as crianças e os jovens se preparam desde muito cedo para as regras mortíferas da ordem neoliberal, na qual os valentões procuram já eliminar os mais frágeis, movimento que continua na existência adulta pelo assédio moral.25 Enfim, é a busca pela condição de exceção o que galvaniza agora a existência dos indivíduos na ordem neoliberal, isso porque a dita condição de exceção se dissemina desde então na totalidade do tecido social e da população, não se restringindo mais às figuras do  um e  do múltiplo como ocorria anteriormente.

Portanto, num novo mundo onde a busca da exceção se dissemina e se generaliza como um imperativo para os indivíduos, não existiria mais a oposição entre os registros da exceção e da regra, como ainda concebia Brecht outrora numa famosa peça didática de sua dramaturgia,26 pois a exceção se transformou decididamente agora em regra. Estaria justamente aqui o impasse e o imbróglio colocados pela contemporaneidade, nos registros ético e político, delineando efetivamente o nosso maior desafio para que possamos viver efetivamente Em um mundo melhor. Enfim, estamos lançados num mundo turbulento onde certamente a exceção é a regra.

 

Referências bibliográficas

1. BRECHT, B. Na Selva das cidades. In:  _____. Teatro de Bertolt Brecht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, v. 3        [ Links ]

2. DELEUZE, G. Différence et  répétition. Paris: PUF, 1968.         [ Links ]

3. Idem.

4. LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Le Séminaire de Jacques Lacan. Paris: Seuil, 1973, v. XI.         [ Links ]

5. FREUD, S. (1920). Au-delà du principe du plaisir. In: _____. Essais de psychanalyse.  Paris: Payot, 1981.         [ Links ]

6. DELEUZE, G. Différence et repetition, op. cit.

7. LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, op. cit.

8. FREUD, S. Totem et Tabou (1913). Paris: Payot, 1975.         [ Links ]

9. Ibidem.

10. Ibidem.

11. FREUD, S. (1915). Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort (1915). In: _____. Essais de psychanalyse, op. cit.

12. Ibidem.

13. FREUD, S. Psychologie des foules et analyse du moi (1921), idem.

14. _____. Analyse avec fin et analyse sans fin (1938). In: FREUD, S. Résultats, idées, problèmes. Paris: PUF, 1985, v. II.         [ Links ]

15. DUMONT, L. Essais sur l´individualisme. Une perspective anthropologique sur l´ideologie moderne. Paris: Seuil, 1983.         [ Links ]

16. Ibidem.

17. FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1974.         [ Links ]

18. _____. La volonté de savoir.  Paris: Gallimard, 1976.         [ Links ]

19. _____. Il faut défendre la société (1976). Paris: Gallimard/Seuil, 1997.         [ Links ]

20. Ibidem.

21. LEFORT, C. Essais sur le politiqueXIXe – XXe  siècles. Paris: Seuil, 1986.

22. Ibidem.

23. BROWN, W. Les habits neufs de la politique mondiale. Paris: Les Premières Ordinaires, 2007.         [ Links ]

24. REVAULT D´ALLONNES, M.  Pourquoi nous n'aimons pas la démocratie. Paris: Seuil, 2010.         [ Links ]

25. Ibidem.

26. BRECHT, B. A exceção e a regra. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: editora ELO, 1983.         [ Links ]

 

 

Recebido em 25/03/2011
Aceito para publicação em 10/04/2011

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