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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.3 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

"Liderança muito perigosa": relatos de líderes comunitários vítimas da violência urbana no Rio de Janeiro

 

 

Katerine Sonoda

Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

Atualmente, no Rio de Janeiro, a sensação de insegurança faz parte do cotidiano de todo cidadão, configurando-se como um traço marcante na vida contemporânea. O objetivo deste trabalho é estudar o processo de intimidação e cooptação de líderes em favelas do Rio de Janeiro por traficantes/milícias/policiais, observando se e de que modo esse fenômeno tem afetado o desenvolvimento sócio-espacial e a saúde dos próprios líderes. O estudo foi desenvolvido com trinta líderes comunitários residentes na cidade. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, analisadas através da análise de conteúdo. Encontraram-se relações importantes entre violência e sofrimento. Líderes que relataram ter sofrido algum tipo de violência, em regra, foram os mesmos que relataram maiores problemas de saúde. Houve predomínio de sintomas psicossomáticos. O sofrimento psíquico foi associado a algum tipo de violência relacionada com sua atuação político-social. No plano coletivo, é possível afirmar que a violência urbana dificulta e até impede o desenvolvimento sócio-espacial nos territórios segregados.

Palavras-chave: violência urbana; sofrimento psíquico; líderes comunitários; saúde.


ABSTRACT

Currently, in Rio de Janeiro city, the feeling of insecurity is part of everyday life for all citizen, configuring itself as a key feature in contemporary life. The objective of this work was to study the process of intimidation and cooptation of community leaders in slums of Rio de Janeiro by traffickers, militias and police, observing whether and how this phenomenon has affected the socio-spatial development and health of these own leaders. The study was conducted with thirty community leaders who live in the city. We conducted semi-structured interviews, analyzed through the content analysis. It was found important links between violence and suffering, whereas leaders who reported having experienced some type of violence, as a rule, were the same that reported major health problems. There was a prevalence of psychosomatic symptoms. The psychological suffering was associated with some type of violence related to their political and social action.  On the collective level, we can say that urban violence hinders and even prevents the socio-spatial development in the segregated territories.

Keywords: urban violence; psychological distress; community leaders; health.


 

 

Introdução

Atualmente, no Rio de Janeiro, a sensação de insegurança faz parte do cotidiano de todo cidadão, configurando-se como um traço cada vez mais marcante na vida contemporânea, podendo ser tratada como um medo generalizado, que, pela gravidade, pode ter consequências negativas tanto para a coletividade – em termos de desenvolvimento sócio-espacial (SOUZA, 2004, 2006b, 2008) – quanto individuais (como manifestações de mal-estar psíquico e doenças).

Para Souza (2004, 2006b, 2008), desenvolvimento sócio-espacial é um processo de mudança para melhor, uma constante busca por mais justiça social e melhor qualidade de vida (ancorado na autonomia individual e coletiva). Está-se diante de um verdadeiro desenvolvimento sócio-espacial quando se constata uma "melhoria da qualidade de vida e um aumento da justiça social" sem prejuízo do melhor, com ganhos de autonomia (individual e coletiva) dos cidadãos (SOUZA, 2005, p. 61). Essa mudança deve contemplar não somente as relações sociais, mas também a espacialidade (espaço entendido como palco, fonte de recursos, recurso em si, arena, referencial simbólico, identitário e condicionador; substrato material, lugar e território). 

Diversos autores têm apontado que não apenas a ‘sensação de insegurança’ está aumentando nos últimos anos, mas também a própria taxa de criminalidade violenta cresceu nas maiores metrópoles nacionais.

A sensação de insegurança e o medo podem ser sentidos por qualquer habitante da cidade, principalmente das grandes metrópoles. Contudo, os espaços mais pobres – representados, sobretudo, pelas favelas e periferias – constituem, por si só, um fator de determinação de risco de homicídio, embora a localização geográfica seja apenas um dos fatores da realidade. Fernandes (2009) aponta que a maior incidência de homicídios e ‘autos de resistência’ – mortes provocadas por policiais em serviço –, acontecem entre jovens favelados, negros e pobres, e que estaticamente os dados revelam que um morador dos subúrbios do Rio de Janeiro tem 25 vezes mais chances de ser assassinado do que um morador da Barra da Tijuca.  Assim, embora a sensação de insegurança esteja espraiada em todo espaço urbano, nas favelas o número de homicídios é muito maior do que na cidade ‘formal’.

Sendo ‘violência’ um termo muito vasto e complexo, no que se refere à expressão violência urbana é preciso apontar para sua especificidade. Utilizaremos no presente trabalho a definição de Souza (2005, p. 52), que propõe o uso do termo para caracterizar as diversas

manifestações da violência interpessoal explícita que, além de terem lugar no ambiente urbano, apresentam uma conexão bastante forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se concretizarem no meio citadino, ainda que não sejam exclusivamente "urbanos" e sejam alimentados por fatores que emergem  e operam em diversas escalas, da local à internacional.

Logo, a violência urbana não se refere tão somente à violência que tem como palco a cidade, mas sim aquela (violência) cujas diversas manifestações estão fortemente vinculadas à espacialidade urbana, que remetem a problemas como estresse e a deteriorização geral da ‘urbanidade’ ou ‘civilidade’ no ambiente de uma grande cidade contemporânea. Para o referido autor, podem ser tomados como

típicos exemplares da violência propriamente urbana a violência no trânsito, os quebra-quebras, os assassinatos debitáveis na conta de grupos de extermínio e os atos violentos perpetrados por quadrilhas de traficantes de drogas ou gangues de rua – em particular nas condições da segregação residencial nas grandes cidades (ibidem).

Estariam fora do conceito de violência urbana os atos terroristas e mesmo as guerrilhas urbanas com motivação ideológica, bem como os crimes violentos inespecíficos, como os crimes passionais.

A violência urbana pode ser pensada em diferentes dimensões de tempo e de espaço, e ainda em diferentes escalas. Ela se apresenta em muitas manifestações (por exemplo, o medo, a violência no trânsito, a violência associada ao tráfico de drogas) e possui diferentes causas (política, econômica, cultural, espacial, entre outras). No Rio de Janeiro, pela especificidade do espaço urbano – grande número de favelas e atuação marcante do tráfico de drogas de varejo e grupos armados paramilitares (milícias) –, a violência urbana tem proporções alarmantes, influindo diretamente no cotidiano, nas relações com o espaço e na saúde dos indivíduos.

Alguns autores apontam que a violência urbana afeta as relações, as rotinas de trabalho e as formas de circulação na cidade (SOUZA, 2008; FERNANDES, 2009). Outros consideram que os homicídios (que são um dos indicadores desse tipo de violência) são uma epidemia (SOARES, 2003). A violência, como afirma Minayo (1994b, 2006), entrou na agenda da saúde.

Em nossa avaliação, a violência urbana deve ser pensada em dois níveis que se articulam: um relacionado aos impactos sobre os indivíduos e outro ao desenvolvimento sócio-espacial (SOUZA, 2004, 2006b, 2008). Para considerarmos os efeitos da violência sobre a subjetividade e o processo saúde-doença, tomamos por base a ideia de que a violência (e a sensação de insegurança) nas cidades pode desencadear vários tipos de sofrimento, somatizações, mal-estar psíquico e, dependendo da gravidade, psicopatologias. Consideramos aqui, portanto, a violência como um fator social para o adoecimento.

No segundo nível, embora não desarticulado do primeiro, levamos em conta, especialmente, a produção de Souza (2004, 2005, 2006a, 2006b, 2008), que pensa o desenvolvimento sócio-espacial estreitamente relacionado com a mudança para uma sociedade melhor:

rumo a mais autonomia individual (capacidade individual de decidir com conhecimento de causa e lucidamente, de perseguir a própria felicidade livre de opressão) e coletiva (existência de instituições garantidoras de um acesso realmente igualitário aos processos de tomada de decisão sobre os assuntos de interesse coletivo e autoinstituição lúcida da sociedade (p. 105-106).

Leva-se em conta, portanto, que a superação de eventuais problemas está subordinada à conquista de patamares cada vez maiores de autonomia (do grego: auto = próprio / nomos = regras, normas). Assim, a violência urbana e as implicações dela decorrentes parecem dificultar a proposta de desenvolvimento sócio-espacial, na medida em que restringem e até mesmo impossibilitam o exercício da autonomia – individual e coletiva.

A violência urbana, o medo e a sensação de insegurança crescentes nas fobópoles (SOUZA, 2008), a territorialização das favelas e o autoenclausuramento das elites urbanas – fenômenos que restringem a liberdade de locomoção dos moradores nesses espaços da cidade – são fatores que dificultam / interrompem o desenvolvimento sócio-espacial, na medida em que "criam dificuldades para a adoção de mecanismos de participação popular autêntica na gestão e no planejamento das cidades e, mesmo, para a atuação de ativismos e movimentos sociais" (p. 47).

O objetivo geral deste trabalho é estudar o processo de intimidação e/ou cooptação de líderes comunitários do Rio de Janeiro por traficantes/milícias/policiais, observando se e de que modo esse fenômeno tem afetado o desenvolvimento sócio-espacial (plano coletivo) e a saúde dos próprios líderes (plano individual). São objetivos específicos identificar os impactos desse tipo de violência sobre os líderes comunitários e refletir sobre possíveis efeitos desse processo de intimidação e/ou cooptação no desenvolvimento sócio-espacial.

 

Procedimentos

A revisão bibliográfica levou em conta os seguintes descritores: violência urbana, psicopatologia e líderes comunitários, de forma associada ou isoladamente. Poucos trabalhos foram encontrados articulando o trinômio, o que pode indicar que são poucos os estudos sobre o tema.

Na fase de campo foram visitadas 28 favelas da cidade do Rio de Janeiro e entrevistados 30 líderes comunitários que exerciam alguma função na estrutura de poder na associação de moradores ou com aqueles que já haviam ocupado essa função no passado. O trabalho de campo foi realizado entre agosto de 2007 e julho de 2008.

A amostra foi composta por 17 homens e 13 mulheres. A idade média dos entrevistados foi de 45,1 anos (variaram entre 24 e 65 anos), e o tempo médio de permanência no cargo foi de 55,9 meses (ou 7,9 anos), calculado pela média estatística, sendo o menor tempo no cargo de líder de quatro meses e o maior, de 216 meses. Por se tratar de um trabalho voluntário, sem remuneração pecuniária, os líderes dividem seu tempo entre o "trabalho na associação" e o "trabalho formal", de onde tiram seu sustento. Quatro líderes já são aposentados e afirmam dedicar-se exclusivamente às demandas da associação de moradores. Não foi investigada a média de anos escolares dos participantes.

Para alcançar nossos objetivos, trabalhamos com dois núcleos analíticos: o primeiro se volta para o desenvolvimento sócio-espacial, levando em conta a cidade do Rio do Janeiro e tomando como (sócio)espaço amostral os moradores das  favelas que exercem (ou já exerceram) a atividade de líderes comunitários, sobretudo presidentes de associações de moradores. E o segundo, onde os líderes e suas experiências subjetivas e de saúde ganham destaque.

Através do roteiro de entrevista, tentamos identificar na fala dos presidentes das associações de moradores de que forma se expressa a violência urbana, vinculada à questão do narcotráfico presente nas favelas onde atuam, abordando temas como: o que os traficantes, paramilitares (milícias), policiais desejam, exigem e/ou obtêm com as ameaças infligidas aos líderes comunitários, qual a natureza das ameaças, se há alguma possibilidade de diálogo/argumentação/negociação. Buscamos ainda perceber os impactos dessas experiências violentas na saúde dos líderes comunitários e no processo de desenvolvimento sócio-espacial.

As entrevistas foram realizadas com contato prévio com as associações de moradores. Com duração média de uma hora e meia, foram gravadas e transcritas. Os dados e informações foram analisados através da análise de conteúdo temática. Todos os cuidados éticos foram seguidos para preservar a identidade dos entrevistados. Os nomes que aparecem nos resultados desta pesquisa são fictícios.

 É importante destacar que a descrição da metodologia de uma pesquisa em favelas não revela, muitas vezes, as dificuldades que se impõem para a sua realização. Durante a etapa de pesquisa de campo não foram poucas as dificuldades encontradas. Ainda que parte das entrevistas tenha sido realizada sem grandes imprevistos, alguns líderes não aceitaram marcar o encontro para a entrevista, outros aceitaram com muita desconfiança. Três líderes inicialmente aceitaram participar, mas no dia agendado não compareceram no local combinado. Acredita-se que os motivos para tamanha dificuldade foram o medo e a desconfiança dos líderes, atitude muito coerente com a realidade que eles vivem. Outras dificuldades foram decorrentes dos conflitos em algumas favelas do Rio na época das entrevistas; problemas relativos à dinâmica socioespacial de algumas favelas da cidade (tiroteios, troca de facções criminosas, incursões da polícia, entre outros).

 

Resultados1

Durante a etapa de campo, 20 líderes ocupavam o cargo de presidente de Associação de moradores, um atuava como vice-presidente, um como tesoureiro, quatro exerceram a função de presidente da associação no passado e quatro eram lideranças nas favelas onde moravam, mas não trabalhavam na associação de moradores, embora relataram ter relações estreitas com a instituição.  Desses quatro últimos, dois eram presidentes de ONG atuantes nas favelas, um era presidente de associação de moradores de uma ocupação de sem-teto (MTST) localizada dentro de uma das favelas visitadas e um era presidente da Câmara Comunitária.

Dos 30 líderes comunitários entrevistados, dois não moravam na favela onde eram presidentes. Ambos exerciam a função, um não explicitou o motivo da mudança de local de moradia e o outro se mudou por conta de problemas com traficantes de drogas locais.

 

Do "Eles não mexem com a gente" até o "Eu to no front": as relações com traficantes, policiais e milicianos

Dos 30 líderes entrevistados, 17 afirmaram não ter tido problemas com policiais, nem com traficantes de drogas de varejo nem com milicianos/paramilitares. Treze relataram ter tido problemas com policiais, oito, com traficantes e com policiais ao mesmo tempo, ao passo que nenhum relatou ter tido problema apenas com traficantes de drogas e, da mesma forma, nenhum afirmou ter tido problema com milicianos.

 

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Em relação ao número nulo de líderes que relataram ter tido problemas com milicianos, é importante destacar que na Zona Oeste da cidade, onde estão espacialmente concentradas as favelas territorializadas por grupos paramilitares (milícias), apenas duas favelas foram visitadas e os líderes entrevistados afirmaram que em suas comunidades não existia atuação de milicianos. Isso pode explicar porque não aparecem relatos de problemas /ameaças por parte de paramilitares. Logo, a ausência de relatos sobre paramilitares não significa que esses grupos criminosos armados com domínio de território não estejam atuando na cidade.

  Dos que responderam ter tido problemas com policiais, quatro afirmaram ter sofrido algum tipo de ameaça e/ou agressão direta. Para outros que também relataram ter tido problemas com essa categoria, os problemas não foram de ordem ‘pessoal’, mas sim relativos às incursões policiais na comunidade, chacina de inocentes, desrespeito com moradores em geral. Todos os relatos colhidos revelam revolta e insatisfação para com as ações da polícia.

 Polícia tira nosso sossego, não sou contra a ação da polícia, mas que seja coisa inteligente, eles não podem chegar atirando pra tudo quanto é lado (...) Fui agredido, levei 2 socos de um policial, me machuquei mesmo. Isso foi um trauma... mas eu respondi a isso de forma diferente; violência não se combate com violência. Levei duas porradas na cara, mas não me abati (Geraldo, 42 anos, morador de favela da Zona Norte).

A interseção de problemas com policiais e problemas com traficantes faz sentido porque, supostamente, a ação violenta da polícia é diretamente proporcional à ação violenta do tráfico de drogas. Nas favelas onde o tráfico é violento a polícia também é. Portanto, não surpreende que os líderes que manifestaram problemas com traficantes também denunciaram abusos por parte de policiais.

Depoimento de um líder que afirma ter tido problemas com o tráfico e com a polícia:

A gente tem problema todo dia, todo dia. Eu tô no front. É comum, porque a gente é convivente, né? Convivente com o tráfico e convivente com a polícia. Todo dia e toda hora temos problemas (...). É o tipo de assunto que eu internalizo, vou embutizando, vou ruminando e durmo pra digerir e acordo [inaudível] Se a polícia subir agora, suspende aula, o comércio fecha... isso aí é um fator negativo, isso atrapalha direto. Qualquer coisa, tanto com a polícia quanto bandido. Polícia subiu no morro é prenúncio de violência (Marcos, 45 anos, morador de favela da Zona Sul).

O número de líderes que afirmou não ter problemas com polícia/traficantes (17) deve ser problematizado. Embora esse grupo de líderes tenha afirmado não ter tido problemas, de alguma forma seus discursos entraram em contradição, seja por titubeios, incongruências etc., seja pelo depoimento contrário de outros colegas. Isso mostra que, em alguns casos, existem ‘estratégias de afastamento’ do tema principal, usadas pelo líder para evitar falar do tema proposto (por desconfiança, por medo de sofrer represálias etc.).

Além de problematizados, esses dados contraditórios das entrevistas devem ser analisados com cuidado. A autora supõe que as contradições dos depoimentos acontecem por dois motivos principais, quais são: 1) a desconfiança dos entrevistados em relação à pesquisadora, que faz com que os participantes não se sintam à vontade para falar sobre seu dia a dia e os problemas decorrentes de sua função político-administrativa e 2) uma possível ‘naturalização’ da violência por parte das lideranças comunitárias que, por serem também moradores da favela, são atravessados pelo cotidiano desta, sendo submetidos a doses homeopáticas de violência (mortes, entrada da polícia, problemas com moradores, ameaças de traficantes de varejo, falta de recursos de todo tipo etc.).

Além disso, a relação aparentemente pacífica com os poderes instituídos (polícia, tráfico, paramilitares) está condicionada à política do ‘cada um na sua’: os conflitos não existem desde que o líder não ‘atrapalhe’ o ‘movimento’ [do tráfico de drogas de varejo] nem o ‘trabalho’ da polícia. Pode-se perceber, portanto, que o discurso da ausência de problemas não é sinônimo de autonomia da liderança comunitária. Ainda que não haja aparentemente conflitos/intromissões/desavenças o líder deve estar atento para não contrariar os interesses dos ‘donos do morro’:

Faço meu trabalho. Eu acho também que se existe trabalho fora da comunidade é um trabalho que não tem referência a mim, certo? Então eu não interfiro no trabalho de ninguém, como não dou base para que ninguém venha interferir no meu. Então são partes diferenciadas. Aonde eu vou eles não podem ir e aonde eles podem ir eu não vou. É muito diferente o trabalho. Agora depende muito da gente. Eu penso assim, não interfiro em nada. Em nada, em nada, nada, entendeu? (Rita, 66 anos, moradora de favela da Zona Norte).

Corroborando o estudo de Silva & Rocha (2008), nos relatos colhidos nesta pesquisa percebeu-se uma tentativa de minimizar o comprometimento das associações de moradores com o tráfico de drogas, relativizando a presença dos traficantes, reduzindo sua interferência na associação, chegando a negar que a convivência e a proximidade com o tráfico representem obstáculo para a instituição. Tal posicionamento dos líderes pode ser entendido como uma estratégia consciente de ‘fugir da discussão’, por conta das dificuldades enfrentadas (ameaças, imposições, medo de morrer, entre outros)

Tem sido comum uma espécie de convivência pacífica entre traficantes e moradores, o que sugere, para muitos, que essa convivência é harmônica e, por isso, conivente. A instauração dessa aparente harmonia, como corrobora Fernandes (2009), se dá pelo uso de recursos de intimidação que podem ser mais ou menos implícitos, mais ou menos violentos, o que dependerá de duas circunstâncias ‘primordiais’: a relação dos criminosos com a comunidade e o nível de tensão advindo das ameaças externas.

 

Sobre as interferências de policiais e traficantes nas associações de moradores

No que se refere à interferência da violência urbana sobre a associação de moradores, a diversidade das respostas é o que prevalece: alguns líderes respondem que, apesar da violência e outros problemas, as atividades na associação não foram prejudicadas, enquanto outros se mostram afetados. 

Temas relativos à proteção e segurança e ao convívio com marginais e policiais foram recorrentemente mencionados como fatores que atrapalham as atividades desenvolvidas nas associações.

Com a análise conjunta dos dados, é possível inferir que os policiais parecem não interferir diretamente na associação de moradores, embora a ação policial nas favelas seja bastante criticada (muitas vezes, repugnada), incluindo aí o despotismo, o caveirão (veículo blindado usado pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia militar do Estado do Rio de Janeiro –BOPE – para realizar incursões nas favelas) e os erros cometidos pela polícia durante as incursões na favela. Desta forma, a polícia ameaça o líder, altera o cotidiano na favela, mas não interfere diretamente na associação de moradores.

Já os traficantes de drogas aparecem como instância que interfere diretamente no trabalho da associação, indicando o presidente da associação (leia-se impondo), usando a associação como depósito de armas e drogas ou para se esconder da polícia, desviando recursos de projetos, entre outros. É importante destacar que nas favelas onde os líderes não aceitam a interferência direta do tráfico na associação, não resta muito a fazer senão sair do cargo, visto que permanecer e descumprir as ordens é uma sentença de morte, conforme relatado não só nas entrevistas, mas publicado também em diversas reportagens de jornal. Para ilustrar, o depoimento de Oswaldo:

Traficante é o seguinte, o negócio do traficante é o seguinte, eles colocam a liderança comunitária para agir de comum acordo com eles, mas nunca conseguiram me cooptar, nunca. Eu tinha minha própria opinião. Já a polícia eu não tive ideia, a polícia é eles pra lá e eu pra cá, eu tratava eles como autoridade e eles também me tratavam como autoridade. Não tinha acordo, não tinha nada (Oswaldo, 58 anos, morador de favela do Centro da cidade).

Nessas situações, fica claro o limite de atuação do líder comunitário favelado visto que a ameaça imposta equivale a um risco real. No que se refere às ameaças diretas ou veladas de uso da força, foram poucos os líderes que quiseram falar delas. Dos que se propuseram a falar, relataram que sofreram agressões físicas. Um chegou a ser sequestrado pelos traficantes, e só conseguiu escapar por causa de uma incursão da polícia na favela. Outros relataram que, embora tenham tido problemas com policiais e/ou traficantes, não chegaram a ser ameaçados.

 

Estratégias de enfrentamento da violência urbana

Diante das situações relatadas foi possível perceber a construção de ‘estratégias de enfrentamento’ da violência por parte dos líderes. Estas foram subdivididas e os relatos classificados em denúncia, naturalização e doença/sintoma. Os líderes falaram do mal-estar/sofrimento que vivenciaram e de como contornaram/enfrentaram situações-limite na favela: uma condição socioespacial (violência urbana, medo, precariedade, pobreza) que pode ter como consequência alterações na saúde.

No subitem ‘denúncia’ foram destacados relatos em que os líderes comunitários afirmaram ter efetuado denúncias contra atitudes policias que julgaram incorretas, criminosas ou inadequadas. Mesmo correndo risco de sofrer represálias, alguns líderes sentiram-se encorajados para denunciar comportamentos criminosos de policiais, e estes relatos foram contados com orgulho pelos líderes.

Vale ressaltar que esta estratégia foi relatada por apenas quatro entrevistados. A maioria sentia-se intimidada e ameaçada para tomar a decisão de denunciar os policiais. Eis uma exceção:

A gente tava lá acompanhando a operação policial e aí o policial falou: – ‘Ah!, esse cara aí só vive atrás da gente, tá bom pra morrer!’ Aí, né? Eu no meu papel falei: – ‘Cê tá me ameaçando?’. Eu fui na delegacia, registrei, fiz o reconhecimento dos policiais, entendeu? (Vitor, 36 anos, morador de favela da Zona Sul).

Outro tipo de resposta encontrada foi o que chamamos de ‘naturalização da violência’, o processo em que o indivíduo é submetido a doses constantes de violência durante bastante tempo (escala de meses a anos) e pode desenvolver uma estratégia de enfrentamento, naturalizando a violência cotidiana. Em outras palavras, ele ‘se acostuma’, o que pode ser encarado como uma forma de preservação de sua saúde, na medida em que, naturalizando, o sujeito dá um sentido para os fatos que vivencia, racionaliza e consegue seguir em frente, sobrevivendo em seu meio.

Essa violência pode ser também pensada em diferentes escalas, desde microvivências (por exemplo, ver armas de fogo) até situações potencialmente traumáticas (ter uma arma apontada para sua cabeça).

A exposição cotidiana de armas e corpos ajuda a compor um cotidiano atravessado por insegurança (insegurança de não ter emprego, de apanhar, de ser confundido com bandido etc.), mas, ao mesmo tempo, naturalizado (banalizado) como um dado da realidade cotidiana sobre o qual pouco se pode fazer.

Saber lidar com essas situações... Cinco anos com esses problemas. É o tipo de assunto que eu internalizo, vou embutizando, vou ruminando e durmo pra digerir e acordo... Esquecendo o que aconteceu me valendo da experiência (Marcos, 45 anos, morador de favela da Zona Sul).

Uma terceira forma de responder/enfrentar a violência que também aparece nos relatos é a produção de sintomas.  Nem sempre claramente relacionados à violência, os relatos, no entanto, trouxeram muitos deles.  Chamamos doença/sintoma às situações nas quais o indivíduo desenvolve um sintoma em que a violência é um fator que o provoca ou desencadeia.

Para a psicossomática os sintomas são respostas ao estresse psicossocial:

O sintoma psicossomático pode ser visto como um processo em que uma questão subjetiva segue um caminho adverso: ao invés de conseguir aceder à mente como representação mental, esta situação se traduz corporalmente. Proponho que se tome o sintoma psicossomático como um capítulo da história do sujeito que não pôde ser escrito psiquicamente e que tomou a forma de um hieróglifo inscrito no corpo. O processo somático ocupa o lugar do processo psíquico: no sintoma psicossomático uma questão subjetiva se apresenta, ao invés de se representar (ÁVILA, 2002, p. 57).

Na presente pesquisa constatou-se uma forte presença de sintomas psicossomáticos nos líderes entrevistados, e consideramos tal produção sintomática como uma resposta ao estresse cotidiano vivido pelos líderes. Segue, para ilustrar, o depoimento de Carlota:

Alterou muito, né? Meu sistema neurológico, você está vendo. Eu perdi cabelo, tenho ficado muito tensa, cheia de dores no corpo, entendeu? E... efeito psicológico, neurológico. Tem dia que eu tô bem, tem dia que não estou. Você acaba tendo depressão porque você não conseguiu fazer, não conseguiu realizar, porque ninguém te deu atenção. E parte mais pra esse lado da depressão. (...) Isso tudo dá muita ansiedade, traumas cardíacos, problemas neurológicos. Tá na hora de eu sair (Carlota, 48 anos, moradora de favela da Zona Norte).

 

Detalhando o sofrimento

Em relação a relatos de mal-estar, psicopatologias e somatizações (segundo os próprios líderes), 17 dos 30 entrevistados afirmaram não ter tido nenhum problema de saúde ao longo de sua atuação como líder comunitário.

Dos líderes que afirmaram ter tido a saúde prejudicada durante o mandato/trabalho na associação de moradores, as doenças/psicopatologias/mal-estares/somatizações que apareceram nos relatos das lideranças foram estresse, hipertensão, depressão, dores no corpo, ansiedade, tristeza, angústia, dor de cabeça, moleza e tosse alérgica.

Treze entrevistados afirmaram ter seu estado de saúde prejudicado devido aos problemas relacionados às suas atividades como líder comunitário. O mal-estar psíquico está associado, segundo eles mesmos, a algum tipo de violência relacionada com sua atuação político-social (ameaças, problemas com moradores, imposições, estresse do cotidiano, entre outros).

 

Discussão

A saúde como questão do humano é compartilhada por todos os segmentos sociais. No entanto, as condições de vida e de trabalho qualificam diferentemente a maneira pelas quais as pessoas pensarão a saúde e a doença. Assim, para todos os grupos, os conceitos e significados de saúde e doença envolvem uma complexa interação de fatores psicológicos, físicos e socioespaciais:

Saúde e doença são fenômenos clínicos e sociológicos vividos culturalmente porque as formas como a sociedade os experimenta cristalizam e simbolizam as maneiras pelas quais ela enfrenta seu medo da morte e exorciza seus fantasmas. Neste sentido, saúde/doença importam tanto por seus efeitos no corpo como pelas suas repercussões no imaginário: ambas são reais em suas consequências (MINAYO, 1994a, p. 78).

Entender o que está encoberto nos comportamentos, nos relatos de tristeza e nas queixas psicossomáticas é fundamental para corroborar a hipótese de que a violência urbana é um fator que provoca doença.

Diversos estudos (DUARTE, 1986, BOLTANSKI, 1979, SILVEIRA, 2000) apontam que as camadas populares possuem uma representação particular da doença, identificada como doença dos nervos, nervoso, dor de cabeça, quentura, tensão, moleza, entre outros, que configuram, em sua maioria, queixas psicossomáticas. A expressão da doença muitas vezes está no corpo, conduzindo as pessoas a ver na medicação (que atuaria sobre o somático), a (maior) estratégia válida para um eventual processo de ‘cura’. A percepção de doença é, pois, muitas vezes materializada no corpo. O elitismo da psicologia (tratamento caro) e a precariedade do serviço público explicam a procura maciçamente medicamentosa no tratamento da amostra pesquisada.

Dos treze que afirmaram ter problemas de saúde, apenas um faz referência a tratamento psicológico, cinco não tem (ou não procuraram) qualquer assistência nos serviços de saúde, e oito afirmaram fazer ou ter feito acompanhamento médico (terapia medicamentosa). Todos relataram buscar ajuda espiritual (fé – igreja – Deus – religião), inclusive aqueles que afirmaram não ter problemas com policiais/traficantes/milicianos nem problemas de saúde.

Percebemos, assim, uma forte presença da religiosidade nos relatos, tanto dos líderes que relataram ter tido problemas com traficantes/policiais e de saúde, quanto dos que afirmaram o contrário. Os líderes falavam sobre essas questões (fé, Deus, religião, igreja etc.) espontaneamente. Todos os entrevistados, sem exceção, relataram em diferentes graus algum tipo de apoio espiritual em suas vidas. O campo religioso faz parte do imaginário popular e Deus aparece como fonte de harmonia: a análise desses relatos revela que a espiritualidade é uma forma de suportar as adversidades do cotidiano.

Assim, Deus, os cultos religiosos, a fé e as religiões assumem uma função terapêutica, servindo como continente (suporte) para as classes populares urbanas, que encontram na experiência religiosa um consolo (quando não uma solução) para problemas de doença e aflição, bem como a esperança de um futuro melhor: ‘Se Deus quiser’.

 

Considerações finais

A partir da leitura e análise do conjunto de dados e informações obtidos com as entrevistas foi possível traçar um panorama geral sobre a vida dos entrevistados. Pelo número reduzido de entrevistas e pela limitação própria do método qualitativo em generalizar os resultados, não é possível utilizar as informações para caracterizar todo o conjunto de líderes comunitários da cidade do Rio de Janeiro, de modo que as informações coletadas se limitam para fins analíticos ao interior do universo estudado.  Apesar desta limitação metodológica, a riqueza das informações obtidas revelou dados importantes sobre a dinâmica da vida desses líderes e interferências na sua saúde.

Ao analisar os dados obtidos em campo, destaco a importância de levar em conta: 1) o universo simbólico das pessoas envolvidas na pesquisa; 2) as representações que os indivíduos possuem de saúde e doença (sofrimento materializado no corpo); e 3) a precariedade dos serviços de saúde pública no Brasil. Tais ressalvas são fundamentais para uma pesquisa cujo objeto de estudo é complexo. Quando digo que é importante respeitar o universo simbólico dos líderes – incluindo aí suas representações de saúde/doença/mal-estar – quero dizer que se deve tomar o devido cuidado para não interpretar de modo incorreto ou enviesado os relatos dos participantes. Há que se levar em conta as diferenças socioculturais entre pesquisador e ‘pesquisado’.

De toda maneira, podemos considerar que a saúde é um valor importante para o ser humano. Sentir-se bem pressupõe uma complexa articulação entre o físico e o psíquico (dimensão individual) e a rede de relações sociais (dimensão coletiva da existência). Dessa forma, a saúde tem um impacto na vida das pessoas. Se considerarmos válido o postulado que afirma que o estado físico se altera em consequência das emoções e das circunstâncias sociais, da mesma forma é permitido afirmar que todos esses estados são alterados pelo contexto espacial (e ecológico).

Brasil (2003) aponta que o tema da violência atual incide sobre a clínica, desestabilizando modelos tradicionais. Os relatos de situações em que a violência desborda, seja pela intensidade com que se apresenta, seja por seu caráter inusitado, têm posto os profissionais frente a impasses que põem em cheque não apenas as referências teóricas e clínicas, mas o modo de funcionamento social, as relações sociais, as condições atuais de cidadania. "Seria a violência de outra ordem que não a do sintoma?", questiona a autora. Como agir frente aos relatos de violência, carregados de dor? Como os profissionais "psi" devem ouvir isso?

As unidades de saúde mental têm servido como ponto de referência aos afetados por situações de violência. Essas unidades passam a funcionar como ponto de ancoragem para a clientela em busca de apoio e/ou da prescrição de medicamentos para enfrentar situações-limite. Pacientes e familiares unem suas vozes para pedir o reconhecimento de que a violência é capaz de enlouquecer (grifos meus). Além da demanda por atenção clínica, estas unidades passam a ser uma referência de acolhida protetora para os ameaçados pela polícia ou pelo narcotráfico até que se viabilize outro tipo de apoio familiar ou institucional.

O atendimento imediato às vítimas e todo esforço de reabilitação e readaptação representam hoje no Brasil uma sobrecarga dos serviços de emergência dos hospitais gerais, dos centros especializados e dos institutos médico-legais, indicando a necessidade de adequação de recursos humanos e de equipamentos ao crescimento da demanda por tratamento (MINAYO, 1994b; DIMENSTEIN, 2001 e outros).

Conforme descrito em parágrafos anteriores, não foi fácil obter informações sobre assuntos tão delicados (tráfico, violência, mal-estar etc.). O medo de represálias e a desconfiança dos entrevistados não podem ser descartados como fator de comprometimento da fidedignidade das respostas. Apesar disso, foi possível colher depoimentos reveladores acerca da dinâmica cotidiana dos líderes comunitários. Compreendemos que a forma como o líder enfrenta sua realidade – marcada não apenas pela violência urbana, mas também pela violência simbólica, estrutural, da instabilidade no trabalho – está relacionada com o espaço que esse líder comunitário habita.

Com relação ao primeiro núcleo analítico deste estudo, em que tentamos entender como o fenômeno da violência tem afetado o desenvolvimento urbano, concluímos que a violência urbana dificulta e, em algumas situações, impede o desenvolvimento sócio-espacial nos territórios segregados – sobretudo porque limita a atuação dos movimentos sociais no sentido forte (SOUZA, 2006b) – e o exercício pleno da autonomia dos cidadãos. A autonomia desses líderes é muito reduzida quando o trabalho que desenvolvem coloca suas vidas em risco.

Já o segundo núcleo de análise, em que investigamos (se e como) as experiências de violência urbana afetam a saúde dos líderes, nossos achados corroboram resultados de outras pesquisas (MINAYO, 2009; SONODA, 2011; PERES, 2006; SOUZA & MINAYO, 2005), em que é possível afirmar que a violência afeta diretamente a saúde humana. Pode-se inferir ainda que doenças/psicopatologias/mal-estar/sintomas encontrados nos relatos dos participantes transcendem o orgânico, o psíquico e o somático: são também da ordem do ‘social’ (uma condição espacial que repercute na saúde).

Outro ponto importante a ser destacado aqui é o cuidado que tivemos em não estabelecer uma relação direta de causa-e-efeito entre a violência urbana e impactos na saúde (em específico, na saúde dos entrevistados). Reconhecemos que muitos fatores afetam a saúde e suas condições. Na fala dos líderes comunitários, outras questões, que estão para além da violência urbana, aparecem: a moradia precária, o desemprego, a história de vida familiar, entre outros. E não apenas essas outras questões afetam suas rotinas, mas também outros tipos de violência: a violência institucional, estrutural, simbólica, intrafamiliar etc.

Em relação aos serviços públicos de saúde, a pouca procura por tratamento médico e psicológico por parte dos entrevistados deve ser analisada também em função das dificuldades de acesso aos sistemas primários e secundários de saúde no Brasil (pelo funcionamento precário), assim como das dificuldades materiais para chegar às unidades de saúde (custos com passagem, por exemplo), e não apenas como "não adesão ao tratamento", displicência, resistência, ignorância etc. Conforme relatado por muitos entrevistados, estes sentiam necessidade de ajuda médica e/ou psicológica, mas as dificuldades para ter acesso aos recursos limitavam o tratamento.

Acreditamos ser importante levantar um ponto para reflexão no que se refere ao serviço prestado por nós, psicólogos (ou futuros psicólogos), com relação ao nosso saber "psi". Conforme anuncia Dimenstein (2001), embora a entrada do psicólogo nas instituições públicas de saúde tenha ampliado seu campo de trabalho, parece não ter alterado os modelos teóricos e práticos que fundamentam sua atuação – clínica/setting terapêutico. Ou seja, "não houve uma contextualização, revisão ou até mudança nas suas formas tradicionais de atuar. Daí a dificuldade de construir novas práticas voltadas para a produção social da saúde e da cidadania" (p. 59) A psicoterapia continua tendo um lugar privilegiado dentro do campo da assistência pública à saúde, e não sabemos se esta é a maneira mais eficaz de atender a essa demanda – a começar pelo pouco tempo e número reduzido de profissionais nos serviços. As dificuldades podem ser ainda maiores, como as de se manter um tratamento psicológico a médio e longo prazo, a falta de recursos para chegar até as unidades de saúde etc. Assim, gostaríamos de propor um aprofundamento do debate sobre a prática de psicólogos com as vítimas de violência, sobretudo para as populações mais vulneráveis, que, via de regra, constituem a clientela atendida nos serviços públicos de saúde.  Estamos preparados para isso?

 

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Recebido em: 31/08/2012
Aceito para publicação em: 28/12/2012

 

 

Nota

1 É preciso esclarecer que esta pesquisa foi realizada antes da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em algumas favelas cariocas.