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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.3 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ENTREVISTA

 

A comissão da verdade e a ditadura pós-1964

 

 

Entrevista com Daniel Aarão Reis

Daniel Aarão Reis é Professor Titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense

 

 

Revista Epos**: É possível assumir que a ditadura que se instalou no Brasil, em 1964, deixou um legado para a sociedade brasileira que precisa ser mais bem compreendido para ser superado? A Comissão da Verdade pode ser um passo no sentido da compreensão do regime militar e da herança que este deixou?

Daniel Aarão Reis: A meu ver, a sociedade brasileira ainda está longe, muito longe, de compreender todas as implicações históricas, econômicas, políticas e culturais, do período da ditadura mais recente. Como em relação ao Estado Novo, grande parte da sociedade preferiu cobrir com o silêncio este passado com o qual deixou de se identificar.  As heranças da ditadura estão por toda a parte – no estilo de desenvolvimento, no tipo de intervenção estatal, no nome das pontes e das avenidas, na obsessão por grandes projetos, no ufanismo triunfalista, no Código Eleitoral, na própria Constituição, sem esquecer, é claro, a anistia aos torturadores. De resto, como se sabe, a tortura continua sendo praticada em todo o território nacional embora, felizmente, tenha deixado de ser uma política de Estado. De sorte que há todo um debate a ser feito, na e pela sociedade, com ênfase nas escolas, sobre este período sinistro. Sustento que esta deveria ser a prioridade da Comissão da Verdade – instaurar na sociedade um Grande Debate sobre esse passado, seus fundamentos e suas heranças. Só assim a sociedade estará capacitada a superar, de fato e em profundidade, o passado.

Revista Epos: Em artigo publicado em 2011 na revista Estudos Históricos, o senhor afirma que a Lei de Anistia fundamentou um silêncio em torno da tortura e dos torturadores e também um silêncio acerca do apoio da sociedade civil à ditadura. A Comissão da Verdade vem reunindo depoimentos e documentos sobre a tortura e os torturadores. Ela estaria, então, rompendo definitivamente o silêncio sobre a tortura e os torturadores? Quanto à associação civil-militar, o senhor acredita que essa mesma comissão está apta a revelar a forma, a extensão e a importância do apoio de grupos, setores e entidades da sociedade civil ao regime militar, isto é, a perceber a ditadura como um regime civil-militar e não exclusivamente militar?

Daniel Aarão Reis: Em várias frentes, pessoas, movimentos e organizações vêm lutando contra o silêncio a respeito da ditadura. Em primeiro lugar, destaca-se o trabalho da Comissão da Anistia e suas dezenas de caravanas, sulcando as regiões do país, suscitando, em torno da concessão de reparações, debates e reflexões. De grande valia tem sido também o movimento de jovens devotados ao "escracho" aos torturadores. Escrachar os torturadores, onde estiverem, é uma bela maneira de promover o debate e a reflexão sobre o assunto. É menos o julgamento e a condenação dessas pessoas que está em jogo, mas todo um contexto histórico que precisa ser avaliado. A Comissão da Verdade tem aí um papel de grande relevo. Ela precisa autonomizar-se cada vez mais das instâncias governamentais, lutar por orçamento próprio e total liberdade de inquirir, investigar e exigir a disponibilização dos documentos existentes, em particular os que se mantêm até hoje sob guarda das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, ela precisa ser apoiada pela sociedade. De fato, percebemos, hoje, em vários lugares e instituições a constituição de comissões da verdade regionais e locais, alem de coletivos de vários tipos, todos interessados em promover o debate sobre a ditadura e suas políticas. Destes debates, uma vez suscitados, surgirá cada vez mais claramente o caráter civil-militar da ditadura e brotarão as relações complexas que se estabeleceram neste país entre sociedade e ditadura.  

Revista Epos: Como o senhor compreende o fato de o processo que instaurou  a Comissão da Verdade no Brasil ter ocorrido muito depois dos movimentos de investigação dos crimes cometidos por regimes autoritários em outros países da America Latina?

Daniel Aarão Reis: Eu diria que as lutas contra as ditaduras nos demais países do Cone Sul, sobretudo na Argentina, no Chile e no Uruguai, foram muito mais efetivas que aqui no Brasil e isto teve implicações nas lutas travadas contra o silêncio. Por outro lado, os governos civis desses países foram bem mais corajosos no enfrentamento da resistência das máquinas militares que, por reflexo corporativo, sempre resistiram – e ainda resistem – a entregar documentos e dados que possibilitassem informação e compreensão dos períodos ditatoriais. O manto do silêncio no Brasil tem sido mais pesado e sacudido por mãos de distintas procedências e orientações políticas. No entanto, a vida vai mostrando que se fortalece a orientação de quebrar o silêncio.

Revista Epos: Existe risco de a Comissão da Verdade produzir uma única verdade oficial sobre os anos da ditadura? Isso pode ser problemático?

Daniel Aarão Reis: A Comissão da Verdade não deve ter como escopo produzir uma narrativa sobre os anos da ditadura, uma espécie de história oficial. Ela tem como objetivos esclarecer, informar e, sobretudo, suscitar o debate – à sociedade e suas instituições cabe quebrar o silêncio, e do debate, e através do debate, chegaremos à melhor compreensão e – quem sabe – à adoção de propostas e políticas que protejam o pais de novas recaídas autoritárias.

 

 

Entrevista realizada em dezembro de 2012.

 

 

** Colaborou com essa entrevista Júlia Alexim Nunes da Silva, Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio.