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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.4 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Corpo e afeto nos primeiros escritos freudianos

 

 

Nelma CabralI; Marcia Defelipe DursoII; Mariana Barreiros MeliandeIII; Ricardo Defranco L FonsecaIII; Vladimir Porfirio BezerraIII

IPós-doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Pesquisadora do Curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Membro do EBEP (Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos)
IIGraduanda em Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Bolsista de Iniciação Científica (CNPq)
IIIGraduandos em Psicologia da Universidade Estácio de Sá

 

 


RESUMO

Pretendemos com este trabalho abordar a relação entre corpo e afeto nos primeiros escritos freudianos, considerando o período compreendido entre 1890-1897. Consideramos necessário apresentar os dois quadros nosológicos distintos, descritos por Freud, um baseado no conflito psíquico e outro, no afeto de angústia. Partimos do princípio de que estas formulações podem nos servir de bússola para avançarmos em direção não só a uma compreensão da relação entre corpo e afeto na psicanálise, mas também nos auxiliar a pensar sobre a pregnância tanto do corpo como do afeto nas diversas formas de mal-estar contemporâneo, como as depressões e as compulsões.

Palavras-chave: psicanálise; conflito; histeria; corpo; afeto; angústia.


ABSTRACT

This article intends to address the relation between the categories of body and affection in the early Freud writings whereas the period from 1890 to1897. It is also necessary to introduce the two distinct nosological panoramas described by Freud, one based on the psychic conflict and the other on the affection of anxiety. We assume that the formulations here presented can serve us as a compass to move us forward not only to a better understanding between the body and affection on psychoanalysis but also it can help us think about the presence of both body and affection in the various forms of contemporary 'malaise' as depression and compulsion.

Keywords: psychoanalysis; conflict; hysteria; body; affection and anxiety.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo, pretendemos abordar a relação entre corpo e afeto nos primeiros escritos freudianos, considerando o período compreendido entre 1890-1897. Com essa pretensão, ao percorrermos esses textos, buscamos extrair as formulações ou noções sobre corpo, afeto e sobre o entrelaçamento dos dois, de modo a mostrar o esboço de um mapa conceitual que já apontava para um outro campo de saber e prática terapêutica, que não o da medicina.

Partimos do princípio de que as formulações freudianas desse período sobre o entrelaçamento entre ambas as categorias podem nos servir de bússola para avançarmos em direção não só a uma compreensão da relação entre corpo e afeto na psicanálise, como à problematização da pregnância tanto do corpo como do afeto nas diversas formas de mal-estar contemporâneo.

Para refletir sobre as formas de sofrimentos de sua época, em especial, a histeria, que instigava os médicos com os excessos que convulsionavam o corpo e que, tal como a depressão hoje é considerada o mal do século, era o mal daquele momento, Freud, se num primeiro momento, buscou nas ideias e formulações da ciência médica do século XIX a explicação e a terapêutica para essa modalidade de sofrimento, seguiu outra direção ao colher, na herança médica grega, em outros campos de saberes e no saber popular, ideias e noções para entender e oferecer aos seus pacientes o alívio necessário para saírem do aprisionamento neurótico. Desse modo, foi com o uso da hipnose com sugestão e do método catártico, e com os impasses e questões trazidos por ambos, que descobriu que através da fala o sofrimento neurótico poderia ser transformado em sofrimento banal, e que a conversão somática da histeria era uma forma de neutralização afetiva.

O desafio, que se apresenta ao nos propormos problematizar a relação entre essas duas categorias, advém de que, assim como não existe uma teoria do corpo em Freud, também não existe uma teoria do afeto, o que exige dessa primeira incursão em seus textos um trabalho de reflexão teórica e clínica sobre a especificidade no discurso freudiano do afeto, do corpo e da relação entre corpo e afeto.

Antes de adentrarmos nessa reflexão, entretanto, consideramos necessário apresentar, num primeiro tópico, as respostas dadas por Freud aos estudos que realizou dos problemas levantados pela histeria e que se estendiam para outras formas de sofrimentos psíquicos e que constituiu a separação em dois quadros distintos dos sujeitos lidarem com as intensidades que avassalavam seu corpo tanto advindas do exterior como do interior: as neuropsicoses de defesa e as neuroses atuais.

 

ENTRE O CONFLITO PSÍQUICO E O FRACASSO DA LIGAÇÃO PSÍQUICA

Não é novidade que foi tentando entender o sofrimento histérico, que não encontrava alívio nos tratamentos médicos, que Freud lançou um novo olhar sobre a histeria e a neurose. O passo inicial foi a descoberta, em sua experiência clínica, de que havia acontecimentos que os histéricos esqueciam e dos quais não se recordavam. Algo lhes escapava à consciência sem que houvesse qualquer lesão cerebral ou degenerescência. Em sua perspectiva, os histéricos eram submetidos à compulsão de ideias excessivamente intensas, aflitivas, capazes de despertar afetos de vergonha, autocensura e dor psíquica, decorrente de experiências que, devido a sua intensidade, foram vivenciadas como traumáticas, e por essa razão, a lembrança de tais acontecimentos foi afastada da consciência.

Importante ressaltar que, num primeiro momento, junto com Breuer, Freud considera o trauma psíquico uma experiência desagradável, vivida sem uma reação, devido ao estado em que o sujeito se encontrava no momento do acontecimento. O trauma constituía-se como um "corpo estranho" a ser eliminado pela ab-reação. Entretanto, à medida que abandona a hipnose o trauma passa a ser considerado um "infiltrado" que produz um conflito psíquico e aciona uma defesa psíquica (FREUD, 1895a, p. 303).

É o que Freud mostra no caso clínico Elisabeth Von R., quando narra o conflito vivido pela paciente, e evidencia que: "Ela conseguiu poupar-se da dolorosa convicção de que amava o marido da irmã induzindo dores físicas em si mesma" (FREUD, 1895b, p. 180). O desenvolvimento da observação e de suas implicações é o suficiente para que ele possa concluir que uma ideia intensiva de Elisabeth em confronto com a sua moral instalou um conflito, e como forma de defesa a paciente colocou em ação um conjunto de sintomas.

Vale observar que as teorizações freudianas de 1894 não comportam mais a ideia de que o trauma ocorre num estado especial, o estado hipnoide. Não comportam também, como escreve Mezan (1989), a amplitude excessiva dada à teoria dos "afetos estrangulados' em toda e qualquer neurose.

 Assim é que no artigo As neuropsicoses de defesa (1894a), Freud argumenta, ao contrário de seus antecessores Breuer e Janet, que a histeria não é inata, mas sim adquirida em consequência de um esforço voluntário dos pacientes para se defenderem de um pensamento ou sentimento aflitivo. Mas, se a histeria reclama modificações em sua teoria das neuroses, as fobias, obsessões e a psicose exigem de suas investigações serem agrupadas junto com a histeria no conjunto das patologias que teriam em comum pôr em ação modalidades de defesa psíquica frente a uma representação intensa e incompatível. Articulando representação, quantum de afeto e defesa psíquica Freud expõe, nesse artigo, sua hipótese de trabalho, evidenciando aí um ponto de ruptura com a medicina de sua época.

...nas funções mentais, deve-se distinguir - uma carga de afeto ou soma de excitação - que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meio de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo (FREUD, 1894a, p. 66).

As neuropsicoses de defesa têm como causa geral a intolerância do eu frente a uma representação ideativa carregada de afeto. A diferença entre histeria, neurose obsessiva e fobias é o caminho percorrido pelo afeto, após a separação do afeto da representação ideativa. Enquanto na histeria, ele é convertido no corpo, na neurose obsessiva e nas fobias, liga-se a outras representações, que se impõem ao psiquismo de maneira ostensiva e aparentemente incongruente. Já na paranoia, o eu rejeitaria a representação incompatível e o afeto, comportando-se como se a representação jamais lhe houvesse ocorrido, o que resulta numa confusão alucinatória.

Em Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896a), Freud nos apresenta a etiologia específica dessas neuroses e relata que nos tratamentos efetuados se deparou com causas sempre de ordem sexual, traumas ocorridos na infância, vividos sem um sentido sexual, ganhando tal sentido à época da puberdade, ocasionando aí sentimentos de vergonha ou autorrecriminação. Importante observar que, nesse período, Freud ainda não fazia distinção entre as fantasias de seus pacientes sobre sua infância e suas recordações, embora já se aproximasse dessa descoberta.

Se as pesquisas freudianas sobre a etiologia das neuroses possibilitaram mostrar que o fator hereditário não causou as neuroses, mas sim uma sexualidade precoce que ganhou um valor traumático na puberdade (FREUD, 1896b, p. 153), a descoberta de que as cenas de sedução narradas por suas pacientes não ocorreram necessariamente, levou Freud a renunciar, como escreve nas cartas a Fliess,1 a noção de trauma como remetendo necessariamente a uma realidade objetiva, exterior ao sujeito.

Além dos casos, que se caracterizam por uma defesa psíquica, Freud se deparou também com situações nas quais não havia nenhum conflito psíquico. E foi seu engajamento na investigação das diversas formas de adoecimento psíquico e a decisão ética em orientar sua escuta para levar em consideração a história do sujeito, a moral vigente na época, as exigências de restrições ou renúncias nas práticas sexuais, e não apenas considerações anatômicas e neurofiosiológicas, que o levou a apresentar dois quadros nosográficos distintos. Um já abordado nos parágrafos anteriores - as neuropsicoses de defesa - e o outro, que é o da ordem das neuroses de angústia, que têm como causa precipitante uma excitação sexual somática que não estabelece ligação com o psíquico.

Não podemos deixar de incluir na amostragem dos artigos considerados, para problematizar a neurose de angústia, as correspondências de Freud com Fliess, que contêm os rascunhos A, B e E, pois elas evidenciam o esforço freudiano para delimitar a diferenciação entre as diversas formas de neuroses, em relação à presença nas mesmas do afeto de angústia e da sexualidade.

No artigo Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada 'neurose de angústia' (1895c), Freud introduz a expressão neurose de angústia para destacá-la da neurastenia,2 entidade clínica descrita, antes de Freud, pelos seguintes sintomas: pressão intracraniana, fadiga física, irritação espinhal, estados deprimidos e dores difusas e que era atribuída a relações sexuais anormais, como a masturbação.

A partir da descrição, através de exemplos, de uma série de sintomas como irritabilidade geral, expectativa angustiada, ataques de angústia ou equivalentes, Freud caracteriza a neurose de angústia por uma transformação direta do excesso de excitação sexual no somático em que a ligação psíquica não ocorre. No Rascunho E (1894b), em que trata da origem da angústia, escreve:

(...) nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em - angústia (FREUD, 1894b, p. 238).

Assim, se há afetos ligados a uma representação que, em virtude de um conflito psíquico, é separado da representação como ocorre nas neuropsicoses (FREUD, 1894a, p. 56), há também afetos que não advêm de uma representação recalcada (FREUD, 1895b, p. 99).

O que Freud mostra é que, diferentemente das neuropsicoses, nas quais o afeto acha-se apartado de seu representante ideacional, mas que, não obstante, mantém certo vínculo com ele, na neurose de angústia parece não haver nenhuma ideia definida que possa ser considerada a contraparte deste afeto, um quantum em estado livre de flutuação pronto a se ligar em qualquer conteúdo solto, desimpedido (FREUD, 1895c, p. 96). Ou que, se na histeria o excesso de excitação é convertido por um mecanismo psíquico no somático, na neurose de angústia é o corpo que produz uma resposta, dado a precariedade do psíquico em possibilitar uma resposta articulando ambos os registros. Não há aí a produção de um símbolo articulando o somático com o psíquico. De outro modo, a neurose de angústia "(...) é produto de todos os fatores sexuais que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada" (FREUD, 1895c, p. 110).

 

AS DUAS FACES DO AFETO

Ao nos dobrarmos sobre o registro do afeto e mapear como ele se apresenta na amostragem dos artigos considerados, fica claro que não estamos diante de uma teoria do afeto, mas um esboço e algumas formulações sobre esse registro, o que nos leva a afirmar que é um dos registros centrais de suas investigações.

Ao trabalharmos as noções de afeto presentes, nesses artigos, podemos enunciar que: 'todo afeto enquanto intensidade implica uma representação psíquica ou não' e 'todo afeto implica necessariamente um corpo'. Retornaremos à segunda proposição mais tarde. Para desenvolvermos a primeira, podemos desdobrá-la na investigação da noção de afeto na constituição psíquica, nas neuropsicoses de defesa e nas neuroses atuais.

Ao apresentar no Projeto para uma psicologia científica (1895d), o aparelho psíquico como um aparelho atravessado por intensidades, Freud explora a dimensão econômica dessas intensidades que se fazem sentir nas vivências de prazer, desprazer e dor. Explora também a dimensão dinâmica decorrente do conflito psíquico e do entrelaçamento dessas duas dimensões distingue dois fenômenos psíquicos, o afeto - quantidade ou significado - e a representação. E introduz, logo no início desse artigo, uma concepção quantitativa justificando que a mesma deriva diretamente de suas observações clínicas, da presença tanto na histeria quanto nas obsessões de ideias excessivamente intensas.

Importante observar que às vezes Freud utiliza o termo quantidade ou intensidade (FREUD, 1895e, p. 129) indicando a possibilidade de um dos termos substituir o outro. Em outros momentos, o termo intensidade é acrescentado à quantidade mostrando, nesses casos, a possibilidade de uma diferenciação, como faz no Projeto, e que permite afirmar, com Garcia-Roza (1991, p. 87), que o termo intensidade implica a quantidade, mas não se reduz a ela.

Pensar sobre o afeto, na perspectiva de Freud desse artigo, exige necessariamente que consideremos a constituição psíquica do ser, desde as primeiras experiências de um bebê. Inicialmente este só possui instintos (fome, frio) que precisam ser saciados para que possa sobreviver. Por uma limitação biológica, o bebê humano não tem recursos para proporcionar alguma forma de apaziguamento aos estímulos endógenos, e por essa razão, depende inteiramente da mãe (ou substituto) para lhe fornecer por meio de uma ação específica o objeto necessário à sua satisfação. Essa dependência da entrada em cena de um outro que propicie uma experiência de satisfação aos estímulos endógenos3 que o acometem mostra, diz Freud, que uma das marcas do bebê humano é o seu desamparo. Desse modo, a relação de dependência, que se estabelece, entre a mãe e o bebê marca "de forma decisiva a estruturação do psiquismo, destinado a constituir-se inteiramente na relação com outrem". (LAPLANCHE, 1988, p. 157).

Com a ação específica, o bebê encontra meios para remover a tensão provocada pela urgência da vida. A consequência desse movimento é a inscrição de traços mnêmicos da experiência no psiquismo e a erogenização do corpo, o que Freud desenvolveria futuramente. A remoção da tensão endógena é vivenciada pelo bebê como prazerosa. Esta vivência rudimentar constitui a base para novas e diversificadas experiências capazes de enriquecer o repertório do bebê e conferir a elas um significado, através de uma operação de simbolização. Do contrário, quando o bebê não é satisfeito, a experiência dá lugar à dor, pois a energia interna despertada pela necessidade não encontra um investimento externo capaz de apaziguá-la. Essa situação é vivenciada como desprazerosa, facilitando no seu sistema de memória o reconhecimento do objeto que "provoca" o desprazer. Isto é um protótipo de mecanismo de evitação, ou de defesa, de que o organismo se vale para não se sujeitar novamente ao desprazer. O afeto tem, portanto, seu embrião nas primeiras experiências de prazer, desprazer e dor, e se configurou, na forma de ideias excessivamente intensas, como um fator decisivo para o surgimento de um novo campo de saber e uma nova prática, a psicanálise.

Inicialmente, quando compartilhava com Breuer suas ideias sobre a histeria, o afeto era tomado como trauma, e era entendido como resultante de um ataque exterior, através de uma soma de excitação que encontrava o sujeito num estado de incapacidade para exibir qualquer reação nesse momento, ocasionando assim um aprisionamento da carga de afeto e o sofrimento neurótico. Desse modo, o afeto seria "como signo de uma vulnerabilidade inerente ao sujeito face a uma realidade exterior que o agride e o extravasa" (SCHNEIDER, 1993, p. 14). Para livrar-se desse sofrimento seria preciso o uso do método catártico para que o afeto pudesse ser estrangulado. Na perspectiva de Schneider (1993), o afeto, nesse momento do pensamento freudiano, se apresenta como mal e cura para o mal.

Mas se o método catártico tem seus limites, a verbalização contribui para um equacionamento do afeto e promove uma 'talking cure', descobre Freud com os ensinamentos de Anna O a Breuer. As narrativas clínicas da Sra. Emmy Von N evidenciam as histórias de medos e alucinações, lembranças de seus irmãos e irmãs brincando com animais mortos ou, então, de sua irmã e de sua tia no caixão, aparecendo com toda nitidez e em cores, devido a sua intensidade. Freud descobre, então, que era preciso, além de eliminar o sintoma, como no método catártico, impedir o surgimento dessas ideias num grau de intensidade aterrorizante.

Dos afetos a serem liquidados aos afetos aflitivos e afastados pelo eu da consciência ou aos afetos dolorosos que não encontram uma possibilidade de representação psíquica, Freud realiza uma trajetória marcada por inflexões teóricas e clínicas dispondo os fundamentos primordiais para a criação da psicanálise.

Ao trazer para suas problematizações as observações de que os sintomas neuróticos estavam relacionados com a dimensão da história do sujeito, com questões morais e com questões de ordem prática, como o uso de recursos contraceptivos, Freud argumenta que os afetos não poderiam ser reduzidos a uma causa hereditária ou de degenerescência, enfim, a uma deficiência do funcionamento do sistema nervoso, a um comprometimento nos processos neurofisiológicos.

Em Neuropsicoses de defesa (1894a), escreve:

Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento de uma ocorrência de incompatibilidade na sua vida representativa - isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade do pensamento (FREUD, 1894a, p. 55).

Uma exploração do emprego do afeto no tratamento conceitual dado às neuropsicoses de defesa mostra que a expressão 'soma de excitação' aparece como o fator quantitativo do afeto. Frente a uma situação conflitante, o eu retira da representação poderosa o afeto a ela ligado, deixando-a enfraquecida, e imediatamente dá a este afeto um destino, que se expressa como um sentimento. Desse modo, não só na histeria, mas nas demais neuropsicoses, o afeto enquanto quantidade intensiva situa-se primariamente na esfera psíquica ligada a uma ideia, e delas se destaca para encontrar destinos independentes, enquanto a ideia é recalcada.

Se nos artigos em que apresenta suas pesquisas e teorizações sobre as diversas neuroses Freud se serve de vários termos ou expressões como "cota" ou "carga de afeto", "soma de excitação", "acúmulo de excitação", "ideias excessivamente intensas", procurando mostrar como o afeto enquanto quantidade ou intensidade se faz presente no psíquico e no corpo, é nas narrativas e discussões de seus casos clínicos que podemos encontrar as variações afetivas dos sentimentos.

Nas considerações do caso de Miss Lucy, Freud postula como base do próprio recalcamento uma sensação de desprazer e a existência de um núcleo formado a partir de um trauma, quando o eu isola uma ideia incompatível excessivamente intensa e recalca essa ideia que a ele se impôs. Esse núcleo passa a funcionar como um polo para onde outras ideias incompatíveis e aflitivas para o eu vão se reunir (FREUD, 1895b p. 143 e 149). Tais considerações nos levam à observação de Schneider, em que se evidencia o deslocamento de Freud com a abordagem desse caso - sua atribuição a histeria tanto de uma medida defensiva do eu como um ato de covardia moral, em que essa covardia se sobrepôs aos sentimentos que nutria pelo seu patrão. E no caso Elizabeth, o caráter penoso do afeto, a dolorosa convicção de seu amor pelo seu cunhado, e não o representativo, o motivo da sua cisão. O recalque da representação incompatível dependeu da perda de toda intensidade afetiva ligada a esse amor e de sua conversão em dores e paralisias.  

A questão torna-se problemática para Freud em termos de uma terapêutica em que a fala e a produção de sentido vão assumindo uma primazia. Se o afeto não se situa na esfera psíquica, no sentido de não ter passado por uma inscrição, em virtude do fracasso de simbolização, faz-se necessário articular o registro psíquico com o do campo das intensidades. É o que traz Freud no artigo em que separa a neurose de angústia da neurastenia. Nesse artigo, distingue um afeto de angústia com uma base psíquica, como ocorre em algumas fobias através do mecanismo de transposição, do afeto da neurose de angústia, em que não há uma base psíquica para a angústia. Considera o afeto de angústia decorrente de uma incapacidade do psíquico em emitir uma reação, num determinado momento, a um perigo externo, ou seja, a excitação exógena, e a neurose de angústia, da impossibilidade de reagir a uma excitação endógena, que atua de modo constante.

A noção do afeto de angústia, presente na neurose de angústia, é a de um quantum de excitação de origem somática e de natureza sexual que se faz acompanhar por uma baixa da participação psíquica. Entendemos que esse quantum de excitação da tensão sexual não pode ser designado por uma intensidade psíquica, em função do que já desenvolvemos no primeiro tópico, a saber, a questão de na neurose de angústia não haver simbolização.

Quando a excitação endógena sexual cresce continuadamente chega-se a um limite no qual um afeto psíquico é despertado e um grupo de ideias atingido, produzindo então para essa tensão uma significação psíquica. Mas se essa ação específica - a produção de significação - não for realizada, a tensão sexual física é transformada em angústia, cujos sintomas físicos podem se manifestar na dispneia, sudoreses, palpitações. Tais sintomas físicos da neurose de angústia são substitutos da ação específica omitida posteriormente à excitação sexual (FREUD, 1895c, p. 112). De outro modo, o excesso de excitação não simbolizado fica assim impedido de ganhar um sentido, e se descarrega no corpo provocando angústia. Não há, portanto, uma regulação psíquica desse excesso de excitação.

Há que se observar a diferença estabelecida por Freud sobre o afeto de angústia presente nas neuropsicoses de defesa e nas neuroses de angústia, e que será desdobrada em vários momentos de seu percurso, como o faz em Inibição, sintoma e angústia (1926), e que nos leva hoje a diferenciar uma angústia do real de uma angústia do desejo.

Na perspectiva de Schneider, o afeto apresenta-se no discurso freudiano desse período sob duas faces: a face da impressão, o campo das quantidades intensivas, e a face da expressão emocional, que não se reduz a uma efetuação de sentido como simples designação. 

Na narrativa do caso de Miss Lucy, Freud observa a plasticidade com que a paciente narrava suas lembranças e liga essa plasticidade ao afeto em questão. Assim é que recolhe como resposta sobre a ocasião em que sentira o cheiro de pudim queimado pela primeira vez, a nitidez de uma cena em que se emocionou pela afetuosidade demonstrada pelas crianças das quais cuidava, e em relação ao cheiro de fumaça de charuto, a punhalada sentida no coração ao ouvir o seu patrão gritar com um convidado quando este, ao se despedir das crianças, tenta beijá-las (FREUD, 1895b, p. 141 e 146).

Mas se a expressão do afeto advém de um sofrimento psíquico em que há uma conexão associativa entre a dor física e o afeto psíquico, como mostra Freud, em suas discussões dos casos clínicos, devemos nos perguntar sobre a expressão do afeto quando esse não se situa na esfera psíquica.  De outro modo, quando não implica necessariamente representações e se manifesta na forma de mal-estar difuso como angústia e dores inespecíficas.

Ao mostrar que o grito não se constitui como 'o efeito de uma pura causalidade orgânica', mas a interpretação e esboço da encenação de um sofrimento, Schneider enuncia que, para Freud, 'o grito é a tradução representativa do afeto e do objeto, mensagem endereçada a um destinatário' (1993, p. 85 e 88). Em sua perspectiva, o grito seria o esboço de uma tentativa de nomeação desse sofrimento, o que permite afirmar a realização de um trabalho entre o sofrimento e o grito.

Mas ao demarcar que o grito não expressa o simples sofrimento, pura prova do quantitativo, Schneider nos possibilita indagar sobre a expressão de afeto nas neuroses de angústia. Nessas neuroses, em que o excesso de excitação desperta o psíquico, mas não encontra neste acolhida, não há como interpretar, o que significa a existência de uma quantidade à deriva incidindo sobre o somático, que reage ao mesmo de forma cega.

Seja de origem interna ou externa, o afeto vai permear o sujeito ativa e passivamente, suscitando-lhes sensações das mais diversas que o levarão a experiências singulares. Podemos enunciar que tanto em seu registro intensivo como em seu registro expressivo o que mais importa na abordagem freudiana do afeto, nos artigos aqui trabalhados, é menos uma leitura neurofisiológica e muito mais uma experiência ética e uma experiência estética, em que o corpo é o palco.

 

DE QUE CORPOS SE TRATAM NOS PRIMEIROS ESCRITOS FREUDIANOS?

A noção de corpo histérico extraída dos primeiros escritos freudianos mostra uma subversão ao apresentar um corpo que não se adequava ao discurso médico, pois é um corpo transpassado pelo desejo e pela história, e ao problematizar a noção de corpo na neurose de angústia. Para delinearmos como a categoria de corpo encontra-se presente nos artigos considerados, é preciso partir da histeria, pois, com a conversão histérica, Freud introduz uma nova concepção de corpo, um corpo atravessado e implicado pelas ideias excessivamente intensas, distinta da concepção de corpo biológico.

Podemos ver o primeiro afastamento de Freud de uma abordagem biológica do corpo em seus estudos sobre as afasias quando mostra a impossibilidade de elucidar certos distúrbios da linguagem por uma localização anatômica, e propõe, nesse artigo, um primeiro modelo de aparelho psíquico como aparelho de linguagem. Marcamos esse afastamento, pois, anterior a esse período, Freud realizou pesquisas sobre a histologia e a anatomia do sistema nervoso, no Instituto de Fisiologia coordenado por Brücke. E com tal movimento, o microscópio foi substituído pela clínica e pelas influências de Breuer e Charcot com os estudos sobre a histeria.

A fórmula proposta por Charcot para a histeria seria de que decorreria de uma degenerescência nervosa de causa única hereditária, e os outros fatores etiológicos, como o trauma, seriam acidentais (FREUD, 1893a, p. 30). Fascinado pela psicopatologia da histeria de Charcot, Freud toma, num primeiro momento, a neuroanatomia e as explicações neurofisiológicas, para delas se afastar, ao encontrar como resposta para suas indagações clínicas a existência de uma outra configuração do corpo estreitamente relacionada com o psíquico. Um corpo que fala e é afetado pela fala, como mostra a paralisia facial da Caecilie, associada a uma cena em que foi insultada pelo marido e que o insulto foi sentido como "uma bofetada no rosto" (FREUD, 1895b, p. 199).

Estendendo a atuação de traumas psíquicos a todos os fenômenos histéricos e não apenas à histeria traumática de Charcot, Freud mostra, a partir do exemplo de um homem que sofre um insulto, é esmurrado, sem exibir qualquer reação física, o trauma na histeria. A aceitação desse insulto em silêncio pode ser expressa como uma 'mortificação'. E argumenta que, os fenômenos histéricos derivam de uma impossibilidade de reagir imediatamente por vias motoras a uma soma de excitação muito intensa. Essa intensidade da soma de excitação é retida em uma região do organismo que se constitui numa zona histerógena, e através da simbolização, o acontecimento traumático ganha uma expressão, "como se houvesse a intenção de expressar um estado mental através de um estado físico" (FREUD, 1893b, p. 43). As zonas histerógenas são regiões supersensíveis do corpo que reagem ao mais leve estímulo, podem situar-se na pele, nas partes profundas, nos ossos, nas membranas e nos órgãos dos sentidos (FREUD, 1888, p. 79)

Com essas noções de zonas histerógenas primeiro e depois de conversão histérica, Freud mostra que o corpo na histeria não obedece à mesma descrição anatômica e à mesma lógica de funcionamento das descrições e explicações dadas pelo conhecimento médico.

Segundo Birman (2001), a desordem histérica se apresentava como um caleidoscópio, pois diversos signos exibiam-se nas mais desnorteantes combinações: paralisias, afasias, sintomas gástricos, visuais, auditivos, sinestésicos, alucinatórios, álgicos, numa série inventada em particular que deixava a todos perplexos. Mas se, apesar da perplexidade, a psicopatologia atribuía à histeria uma base nervosa - uma degenerescência, uma lesão cerebral generalizada - decorrente da hereditariedade, Freud desvia-se dessa leitura e passa a apostar em uma etiologia sexual, que afeta o organismo, alterando-o e produzindo uma nova configuração corporal, ignorando o registro da anatomia clínica.

Nas narrativas clínicas de Caecilie, Freud observa que, se durante semanas a paciente sofreu com uma dor na testa ao descrever uma cena ocorrida quando contava com 15 anos, em que a avó, uma mulher rigorosa, lhe dirige "um olhar tão 'penetrante' que fora direto até o cérebro" (FREUD, 1895b, p. 201), tal dor não poderia ser atribuída a uma causa orgânica, mas a uma ruptura na cadeia associativa que implicou o afastamento de um símbolo. 

Desse modo, vemos como a gênese dos sintomas histéricos é atribuída a um trabalho de simbolização do psíquico, articulando ambos os registros corpo e psíquico. Assim, sensações físicas descritas como bofetada no rosto, punhalada na região cardíaca, olhar penetrante atingindo o cérebro e outras, evidenciam que regiões do organismo, ao serem afetadas pelo olhar e pela fala carregados de raiva, ressentimento, atenção ou sedução do outro faz emergir um outro corpo, que ignora a anatomia e o funcionamento dos nervos. Como escreve Freud,

A histeria ignora a distribuição dos nervos. (...) Ela toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sobre a roupa (FREUD, 1893c, p. 212).

Não se trata de um corpo unificado, mas de um corpo constituído por regiões atravessadas por intensidades e uma polissemia de sentidos, que, como mostra Fortes (2012), organiza-se a partir de uma anatomia fantasmática, que desconhece a linguagem da anatomia científica.

Importante notar que as problematizações de Freud sobre a etiologia das neuroses, a partir de uma leitura psicológica, se indicam sua recusa em dar importância exclusiva ao corpo biológico para pensar essas formas de sofrimento, colocam o corpo no centro de suas considerações, como podemos ver no caso da Srta. Elisabeth, em que, ao ter uma região hipersensível da perna beliscada, expressava prazer e não dor, no que Freud é levado a pensar estar diante de uma expressão de volúpia. E a observar que, diferentemente de outros pacientes, parecia gostar quando se aplicava nela choques dolorosos com aparelho de alta tensão. Nesse caso clínico, Freud mostra como, através da "participação da conversa" das pernas doloridas, pode ser revelada a série de símbolos a que estavam ligadas as dores, e chegar ao recalque do desejo erótico de Elisabeth pelo cunhado, e da transformação da carga de afeto no corpo.

Em Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1893c [1888-1893]), Freud afirma que a histeria se comporta como se desconhecesse a anatomia, isto porque a histeria toma os órgãos pelo sentido comum, e evidencia um corpo fragmentado que não se reconhece como uma unidade interligada. A sintomatologia descarregada na inervação somática na histeria tem a ver somente com uma anatomia espectral, que é aquela que serve aos propósitos da representação esquecida e é exatamente nessa pressuposição que se assenta o corpo da histeria, inserido no corpo biológico e, ao mesmo tempo, apartado dele.

Podemos dizer que, a partir da apresentação de seus casos clínicos e da noção de conversão histérica, Freud traz uma noção de corpo, que não se restringe ao corpo da histeria, em que o somático é habitado por um outro corpo, o corpo representado, tecido pelo desejo inconsciente, e que, em Três ensaios sobre a sexualidade (1905) será apresentado como um corpo que se constitui por uma gramática erótica a partir da relação com o outro.

Mas se a histeria abre caminho para a introdução de outra noção de corpo, advindo da economia de prazer e desprazer, há que se perguntar como fica a dimensão do corpo nas neuroses de angústia em que o caminho da elaboração psíquica não é percorrido, em que, em lugar da fala afetando o corpo como na histeria, o que se tem é um afeto doloroso.

Os sintomas da neurose de angústia mostram um corpo com acessos de vertigem locomotora, espasmos do coração, dificuldade em respirar, inundações de suor, fome devoradora e um sentimento de angústia que toma o indivíduo. Freud considera o acesso de vertigem como um dos sintomas mais graves dessa neurose, descrevendo-o como um mal-estar que atinge as pernas e impede o indivíduo de ficar em pé, associado a sensações de que o solo foge por debaixo dos pés, peso e tremor das pernas (FREUD, 1895c, p. 97-98).

Embora a histeria e a neurose de angústia tenham algo em comum, pois em ambas as somas de excitações sexuais tomam regiões do somático, como Freud mostra, a forma de incidência desses afetos é distinta. Com efeito, pois na neurose de angústia não há uma participação psíquica, e, além disso, a soma de excitação sexual remete ao atual do sexual, enquanto na histeria, à sexualidade infantil. O que fica evidente desse mapeamento é que não estamos diante da mesma configuração de corpo na neurose de angústia e que ela também não se reduz ao somático.

Tomando a distinção de Birman (2003) entre sofrimento psíquico e dor psíquica, atribuindo ao primeiro uma derivação do conflito e ao segundo a ausência de simbolização, o que faz com que a dor psíquica incida sobre o corpo e a ação, indagamos se, ao pensar uma noção de corpo para neurose de angústia, o mesmo não pode ser feito para outras formas de mal-estar, ou ainda, se não nos possibilita falar de infinitos corpos, que emergem e se constituem por lógicas distintas.

Para pensar o corpo na neurose de angústia, é importante considerar a perspectiva de Fernandes (2006), que afirma a possibilidade de extrair do pensamento freudiano duas abordagens distintas, uma centrada na lógica da representação e outra, na do transbordamento. Em seu trabalho de leitura do corpo em Freud, a autora aponta que nas neuroses atuais, quadro de neuroses que inclui a neurose de angústia, neuroses decorrentes de um 'transbordamento da sexualidade no corpo' funcionam como o ponto de partida para se pensar uma outra modalidade de corpo na psicanálise, diferente do corpo representado - o 'corpo do transbordamento'. É importante considerar também a leitura de Fortes (2012), que explora a noção de excesso pulsional como um dos pressupostos fundamentais para se pensar o corpo na psicanálise.

Se o corpo da histeria deriva de um acréscimo de libido no psiquismo e o corpo da neurose de angústia implica um decréscimo de libido no psiquismo, e, consequentemente, o retorno do acúmulo de excitação ao corpo, é possível pensar que, assim como a histeria põe em cena um outro corpo, que não se reduz ao somático, a neurose de angústia põe em cena também um outro corpo que se configura a partir da relação de um excesso de excitação com o psíquico, pois embora não consiga uma elaboração por essa via, o afeta de algum modo. Com isso, consideramos que o corpo na neurose de angústia pode ser pensado como um 'corpo do transbordamento' ou um 'corpo do excesso pulsional' e que, numa linha de raciocínio ou na outra, pode ser pensado com mais densidade no percurso freudiano a partir da problemática do narcisismo e da pulsão de morte.

 

PARA CONCLUIR...

A incidência da depressão, da síndrome de pânico e de diversas formas de compulsões na cultura contemporânea evidencia a presença maciça do corpo e de perturbações na ordem do afeto, do pensamento e da ação, convocando-nos a pensar os recursos que dispomos em termos conceituais e práticos e o que precisamos criar para acolher esses sujeitos e possibilitar-lhes um outro destino para a dor que dilacera seu corpo e sua alma.

Ao trabalharmos os quadros nosográficos, das psiconeuroses e das neuroses atuais, vemos a importância do percurso realizado, pois nos possibilita pensar as diversas formas de mal-estar que nos são contemporâneas, em que predomina uma linguagem instrumental e empobrecida de suas dimensões simbólicas.

Além disso, foi possível mapear nos artigos considerados duas faces do afeto, a da impressão, das quantidades intensivas, e a da expressão emocional, que não se reduz a uma efetuação de sentido como simples designação. Mapeamos também noção de afeto na constituição psíquica, nas neuropsicoses de defesa e nas neuroses atuais, e com isso, foi possível mostrar que, se nas neuropsicoses de defesa o afeto implica o psíquico e o corpo, nas neuroses de angústia, o afeto volta-se sobre o somático, que reage ao mesmo de forma cega. Ao indagarmos sobre a expressão do afeto quando este não se situa na esfera psíquica foi possível extrair que, se o grito é o esboço de uma tentativa de nomeação de um sofrimento, há formas de adoecimento psíquico em que o excesso de excitação incide sobre o corpo e paralisa o psiquismo.

Ao mostrarmos que todo afeto implica o corpo, foi possível delinear duas modalidades de corpo na psicanálise, o corpo representado, do qual o corpo da histeria é o modelo privilegiado, e o corpo do transbordamento ou do excesso, que exige, para um aprofundamento maior, um percurso nos artigos freudianos que abordam o narcisismo e a pulsão de morte.

 

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Recebido em: 06/06/2013
Aceito para publicação em: 30/06/2013

 

 

NOTAS

1 Na carta 59, de 2 de abril de 1897, Freud comenta com Fliess a sua descoberta de uma nova fonte a partir da qual surge uma nova produção inconsciente, as fantasias histéricas, que remontam às coisas ouvidas em idade muito tenra e só compreendidas muito mais tarde, e na carta 69, de 21 de setembro de 1897, dentre os motivos apresentados por Freud para afirmar que "não acredito mais em minhas neuróticas", encontra-se a ausência no inconsciente de 'signos de realidade', o que impossibilita distinguir verdade e ficção afetiva.
2 Freud agrupou tanto a neurastenia como a neurose de angústia no quadro de neuroses atuais, em 1898, no artigo A sexualidade na etiologia das neuroses.
3 Os estímulos endógenos são considerados os precursores da pulsão e podemos dizer que nesse contexto o afeto na base da constituição psíquica ocupa o lugar que a pulsão virá ocupar mais tarde.