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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.4 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ENTREVISTA

 

"O preço da criatividade, o mais belo nome que se pode dar ao desejo democrático"

 

 

Entrevista com Joel Birman sobre as manifestações brasileiras de junho/2013*

 

 

O protesto contra a classe política tem uma longa história no Brasil. O que há de específico nestas manifestações?

A questão das manifestações dos anos 1960 foi o restabelecimento do regime democrático; nos anos 1980, através do movimento "Direitas já", a consolidação imediata e efetiva dos direitos. Seguiram-se vinte anos de letargia. Diante deste silêncio ensurdecedor, uma ideia instalou-se progressivamente: a juventude é completamente despolitizada, ela nada quer saber daqueles que a representam.

É esse estereótipo que os manifestantes trazem de maneira notável?

Sim. A primeira característica deste movimento é seu caráter multirracial, trans-geracional e a-partidário. Esta é uma manifestação que se posiciona sob o signo da multidão, para falar como Negri. Mas a ausência de palavra de ordem, ou de líder, é uma força e não uma fraqueza. Todas as manifestações convergem para um objetivo claro.

A saber?

O ponto é direcionado para uma crítica da representação política. Esta crítica ocorre em dois eixos: a alienação partidária dos governantes, ocupados com negociações que estão a léguas de distância da vida e do desejo das pessoas, e uma crítica não menos radical à corrupção.

Falemos sobre os famosos 'vinte centavos'. Eles são simbólicos, pois atingem o próprio sistema da corrupção.

No Brasil, as empresas de ônibus estão apoiadas sobre um sistema de concessão. As empresas privadas exploram o serviço por um tempo determinado. Nós somente compreenderemos o valor simbólico desses famosos vinte centavos se considerarmos que estas empresas privadas financiam as campanhas políticas. Não somente o serviço é de péssima qualidade, como também toca no financiamento das campanhas. É por isso que o aumento do preço da passagem é percebido como intolerável.

Estas manifestações são marcantes em sua unidade, uma unidade sem representantes. Trata-se menos de constituir a sociedade civil que de reconstituir a classe política?

Certamente. O desejo, se posso dizer assim, voltou-se contra a sociedade política no sentido organizacional do termo, o desejo, se posso dizer, é torcido. O que está em jogo não é mais passar de um regime a outro, mas de uma democracia formal a uma democracia real.

Que reação este protesto massivo e totalmente inesperado suscitou nos governantes?

A classe política reagiu a esta insurreição de nível nacional de duas formas opostas, ambas a meu ver inadequadas. Para mim, que participei das manifestações dos anos 1960, uma evidência se impõe: o desmantelamento do aparato repressivo ainda não se efetuou. Há uma sofisticação dos instrumento de neutralização dos manifestantes, sofisticação que é tanto mais chocante e injustificada na medida em que o movimento é majoritamente pacífico. Os próprios manifestantes se encarregaram de limpar a manifestação da presença dos vândalos. Então, por que os reprimir? A isto se acrescenta uma resistência jurídica.

Sobre que ponto apresenta esta resistência?

O que está em jogo é saber se devemos organizar um plebiscito ou um referendo. Um plebiscito consiste em uma consulta popular: as questões fundamentais relacionadas ao financiamento de campanha e às modalidades de representação são colocadas ao povo e ele vota. O referendo deixa ao Congresso, ao mesmo tempo, a iniciativa de propostas e a votação final. O plebiscito não interessa aos parlamentares. O referendo não interessa aos manifestantes. Esta neutralização feita de dentro, este "golpe" do Congresso, é o que se deve evitar. Assim como o movimento pretende cortar o elo que leva dos 'vinte centavos' ao financiamento dos políticos, trata-se de questionar uma representação costurada com linha branca.

Mas também inventar um espaço para além da representação?

Em certo sentido, sim. Os dois movimentos (a crítica da representação e a criação de um espaço sem representação) reforçam-se um ao outro e é por isso que a ausência de líder é uma boa coisa e não me assusta. É este o preço da criatividade, o mais belo nome que se pode dar ao desejo democrático.

 

 

Tradução: Cláudia Braga de Andrade.

 

 

NOTAS

* Entrevista concedida originalmente à Revista Causeur. A versão original em francês está disponível em  http://www.causeur.fr/bresil-manifestations-juin,23618