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Revista EPOS

On-line version ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.4 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

RESENHA

 

A travessia da dor

 

 

Fernanda Canavêz

Psicanalista. Professora substituta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da UFRJ. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. fernandacanavez@gmail.com

 

 

Resenha do livro FORTES, Isabel. A dor psíquica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2012. 223 p.

"Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor", compunha o sambista Nelson Cavaquinho na década de 1960. Difícil não recordar o famoso verso diante do convite feito por Isabel Fortes: apostar na positividade do sofrimento. A proposta pode ser considerada ousada por remar contra a maré dos imperativos hedonista e utilitarista, incrementados na chamada cultura contemporânea. Com efeito, A dor psíquica pede passagem aos sorrisos standartizados da felicidade advinda de um mero cálculo de prazeres para positivar a singularidade através da dor.   

Embora grandiosa, a contenda de lançar luz sobre os pontos escurecidos pelos discursos hegemônicos em nossa cultura está longe de esgotar a coragem do trabalho em questão. Isto porque também destaca os aspectos esmaecidos na própria tradição psicanalítica, nas diversas apropriações da discursividade fundada por Freud, em que sobressaem teorias que enaltecem a economia do prazer, a primazia do campo da representação e a relação do desejo com a falta. Extrapolando essas perspectivas, a aposta no sofrimento como potência - e não como mal - pressupõe a positividade da pulsão de morte. Para afirmá-la, são ressaltadas figuras da obra freudiana, como o eu-real originário e o masoquismo erógeno, não raras vezes obscurecidas por noções hegemônicas no movimento psicanalítico.  

Por fim, mas nem por isto menos importante, convém ainda destacar o brilhante estilo da autora, que se oferece a ver em seu texto, expresso logo nas primeiras linhas: "Como psicanalista, a questão da dor me comove. Escutar a dor do outro, encontrando nela aquilo que mortifica um sujeito, mas podendo ver na dor a sua beleza, é para mim um enorme desafio e um grande privilégio" (p. 25). Na expectativa de responder ao generoso convite feito ao leitor, aceitei a proposta de evocar as inquietações diante da tarefa impossível que é analisar, como pontuou Freud (1937), tomando a leitura como um desafio e um grande privilégio. É também com esse tom que passo aos caminhos que destaquei para relatar a minha experiência com A dor psíquica, um livro instigante e necessário, tendo em vista a retomada que empreende do pensamento freudiano, absolutamente afinada ao mal-estar de nossa época.

De saída salta aos olhos uma das tônicas do texto: a exposição de duas vertentes, seja de noções do pensamento freudiano, seja de modos para compreender - e, em última instância, lidar com - a dor e o sofrimento. Trata-se de um interessante recurso argumentativo, que exalta aspectos ainda pouco abordados no campo psicanalítico. Sendo assim, sustenta-se o sofrimento em duas dimensões: como um mal a ser evitado, marca maior do referencial cristão enredado pela culpabilidade; ou em sua versão positiva, como parte integrante da vida, de acordo com o referencial trágico.

Na última acepção, o sofrimento não é positivado como um ideal a ser almejado, mas é um dos predicados da vida, um dos atributos capazes de colocar em xeque o imperativo hedonista de felicidade. Dessa forma, ao decretar o "seja feliz", a cultura contemporânea acaba por gerar ainda mais sofrimento na tentativa de descartar o que pode haver de mais singular, ou seja, a dor. A experiência em nossos consultórios está bem longe de corroborar a existência de uma propensão natural para a felicidade, como o bombardeio midiático nos quer fazer acreditar, despontando o sofrimento como um dos redutos de resistência do que há de mais singular.

Contrapondo-se à visada contemporânea do hedonismo, que prima pelo bem-estar individual obtido com a acumulação de bens e acaba por transformar o sujeito em coisa, o texto lança mão do erotismo segundo Bataille. O autor francês advoga a favor do desperdício, da possibilidade de destruir a coisa no sujeito devido à dimensão sacrificial. Trata-se de destronar o princípio da utilidade em prol do gasto improdutivo, tese a partir da qual é possível identificar um expressivo ponto de articulação do pensador francês com a teoria freudiana.

Em vez de entender a experiência erótica como a busca pela completude por um sujeito marcado pela falta, esta é aventada "como uma experiência do excesso que se revela na experiência interior de quebra de fronteiras como uma situação limite de perda de si" (p. 54). É se entregar à dimensão de sacrifício capaz de perturbar o isolamento individualista, o cálculo dos prazeres indispensável à manutenção de uma individualidade que se pretende durável para um encontro legítimo com o outro. Apoiados na leitura de Bataille, vale revisitar o ponto de vista econômico da metapsicologia freudiana, pois a sobrevivência do psiquismo é garantida pelo escoamento do excesso pulsional. Em outros termos, o psiquismo é forjado justamente no intuito de dar um destino ao excesso que o atravessa.

É também sob o signo do excesso que a relação com a alteridade é tomada no pensamento freudiano, uma vez que o encontro com o outro se apresenta sempre traumático, desde os primeiros cuidados responsáveis por acarretar um expressivo impacto pulsional ao erotizar o corpo do infante. Desamparados que somos - e, portanto, frágeis -, precisamos nos abrir ao campo do outro. Mas não sem angústia, não sem excesso, não sem trauma. O texto nos convoca, assim, a considerar mais duas vertentes: se o desamparo pode ser concebido em uma face sombria que engessa o sujeito no circuito do masoquismo, também se revela propício à criação, ao colocar a abertura do sujeito ao novo, ao encontro erótico com o outro.

A primeira acepção remete novamente à contemporaneidade, visto que uma de suas marcas seria a perda de referenciais de outrora: na perspectiva familiar com o questionamento endereçado ao patriarcado ou no âmbito político-econômico, com a exaltação do Estado mínimo sustentado pelo neoliberalismo. Fazendo frente ao desalento experimentado devido à derrocada dos referenciais que serviram de sustentação à matriz subjetiva moderna, o sujeito se oferece servilmente ao outro. Nesse sentido, o masoquismo constitui umas das tintas pregnantes a colorir as formas de subjetivação contemporâneas. Em contrapartida, delineia-se a potência criativa do desamparo, capaz de suscitar o laço erótico com o outro fora dos moldes masoquistas de submissão. Aceitar a condição de desamparado e, dessa maneira, a importância do outro, é diferente de se colocar servilmente nas mãos deste para escapar de uma fragilidade fundamental.   

 A revelação da força que a fragilidade humana conserva, embora comumente oculta pela face sombria do desamparo, é o abre-alas de uma importante discussão metapsicológica, feita com rigor teórico e clareza. O objetivo é expor uma economia pulsional da dor correlata àquela do prazer, a cuja consecução a autora chega com a apresentação de mais duas vertentes, desta vez associadas ao prazer. Entendido como princípio, o prazer aponta para a regulação, para a evitação do desprazer e, por consequência, da dor, no que esta revela de aumento de excitação. Entretanto, não se trata da única forma de obtenção de prazer, já que este também se apresenta pela fruição, registro do para além do princípio do prazer.

A formalização da pulsão de morte na teoria freudiana indica certa independência da regulação do princípio, consolidando a ideia da intensidade na vertente tanto desprazerosa quanto prazerosa. Esse contexto teórico-clínico é extremamente caro às teses contidas em A dor psíquica, pois descortina a via afirmativa das figuras de intensidade no pensamento de Freud em oposição à regulação preconizada pelo princípio do prazer, responsável por enfraquecer a força pulsional. Contrariando anseios apressados, voltar as costas para a travessia da dor impede justamente a experiência do prazer em toda sua intensidade!

Sendo assim, algumas figuras de intensidade são enfatizadas no pensamento freudiano. Em primeiro lugar, mesmo antes da virada clínico-conceitual de 1920, aparece o eu-real originário (FREUD, 1915), que fala a favor de uma forma de subjetivação anterior à instauração do princípio do prazer. Se, no contexto desse princípio, o eu-prazer/desprazer incorpora o que sente como prazeroso e expulsa o que causa desprazer, há, todavia, uma fase que o antecede, em que temos o eu-real originário como pura afetação, indiferente ao objeto. Essa fase mais originária na constituição do eu é pautada apenas pela força pulsional: a continuidade é tratada como pertencente ao mundo de dentro, ao passo que a descontinuidade é reservada ao mundo de fora.

Estamos falando dos primeiros destinos da pulsão, ou seja, da transformação da atividade em passividade e do retorno sobre o próprio eu, apontamento que permite a defesa da constituição da subjetividade do eu-real originário através da dor e do masoquismo. O retorno sobre o próprio eu gera uma dor concomitante ao prazer sexual, enquanto a transformação da atividade em passividade indica o redirecionamento da energia em direção ao próprio corpo pulsional propiciado devido ao encontro com o outro.

Não se trata aí do masoquismo expresso pela necessidade de uma relação de subserviência com o outro, mas do masoquismo erógeno, mais uma figura de intensidade. Diferente dos masoquismos moral e feminino para os quais serve de base, o masoquismo erógeno não constitui uma proteção contra a angústia, mas "a experiência do desamparo é vivida na sua radicalidade, pois o sujeito neste contexto não se refugia na servidão ao outro, podendo então estabelecer com este uma experiência de erotismo. O masoquismo erógeno consiste em uma experiência da dor atravessada pelo erotismo" (p. 158-159). Assim, o masoquismo erógeno traz à baila outro registro de compreensão do psiquismo, marcado pelo excesso e pela possibilidade de uma ligação de Eros com a pulsão de morte que extrapola os limites da representação.

A tese da autora enfatiza dois sentidos para o termo ligação na obra freudiana: aquela da representação, associada a um rebaixamento energético, e a ligação a partir do próprio excesso, fora das fronteiras erigidas pela regulação do princípio do prazer. Para compreender a envergadura da proposição, cabe lembrar a mobilização do psiquismo no caso de uma experiência traumática: quando é invadido por elevada intensidade, o princípio do prazer é posto em xeque, impelindo à necessidade do psiquismo ligar o excesso a fim de voltar a tomar as rédeas da regulação.

A compulsão à repetição dos sonhos traumáticos exemplifica o mecanismo, no que expressam de tentativa de ligação do excesso, de produção da angústia-sinal que faltou precipitando o trauma. Desse modo, temos na angústia-sinal mais uma da série de figuras de intensidade que ajudam a construir outro nível de compreensão do psiquismo. Ao lado da simbolização também é possível incluir o dispêndio de energia como um importante trabalho psíquico. São diferentes formas de tratamento da energia pulsional, constituindo estratos psíquicos e modos de subjetivação igualmente distintos. O recurso da apresentação de duas vertentes expressa toda a sua fertilidade: enaltecer o aspecto múltiplo da subjetividade e não encarcerá-la em dualismos, abrindo-se "um campo maior de possibilidades" (p. 117).

A positivação da dor como travessia enaltece justamente a abertura desse campo, uma vez que "Se acreditamos ser possível transformar o mundo em que vivemos e criar novas formas de subjetivar-se, vemos na dor a matéria-prima por excelência a ser trabalhada neste ato de reconstrução psíquica, de recriação de uma subjetividade e de seu mundo" (p. 177). O caráter múltiplo também se impõe na própria maneira de filosofar e de compreender a experiência analítica, o que a autora demonstra lançando mão do pensamento de Nietzsche.

É assim que o capítulo final introduz as teses do filósofo alemão para fazer um verdadeiro elogio à alegria trágica - que comporta a dor -, em oposição à felicidade hedonista dos sorrisos para os quais pedimos passagem com a nossa dor. A proposta ética contida em Nietzsche é aquela do amor ao destino, da afirmação de tudo o que ocorre, de desejar no instante mesmo em que se vive. É superar a ideia de que uma vida sem sofrimento estaria alhures para afirmar a vida que se vive. É conceber o desejo como uma força em si, portanto para além da prerrogativa de uma falta que o despertaria. Em última instância, é reconhecer a potência apresentada pelo sofrimento, na oportunidade que traz de questionar os mecanismos de defesa do eu entrincheirado em seus dispositivos neuróticos de evitação da dor, de partilhar com o outro nossa fragilidade fundamental. Não seria este o grande convite de uma experiência de análise? Tire o seu sorriso do caminho que queremos passar com a nossa dor, queremos fazer nossa travessia de alegria!  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1915). Pulsions et destins des pulsions. In: Œuvres Complètes. Psychanalyse, vol. XIII. Paris: PUF, 1968, p. 11-43.

_____. (1937). L'analyse finie et l'analyse infinie. In: Œuvres Complètes. Psychanalyse, vol. XX. Paris: PUF, 2010, p. 13-55.