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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.5 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

 

Vinte cinco dias às voltas com guillain-barré1

 

 

Helena Bocayuva

Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ

 

 


RESUMO

Este artigo trata da Síndrome Guillain-Barré (SBG), uma doença autoimune caracterizada pela rápida e progressiva fraqueza das extremidades do corpo, de forma simétrica. A síndrome é hoje a maior causa de paralisias no mundo. A abordagem privilegia a subjetividade do doente.

Palavras-chave: Guillain-Barré; paralisias; psicanálise; subjetividades.


ABSTRACT

This paper deals with Guillain-Barré's Syndrome (SBG), an auto-immune disease characterized by rapidly progressive symmetrical weakness of the extremities. The syndrome is today the major cause of paralysis in the word. The approach claims to the subjectivity of the patient.2

Keywordas: Guillain-Barré; paralysis; psychoanalysis; subjectivity.


 

 

Apresento neste artigo uma breve revisão bibliográfica sobre a Síndrome de Guillain-Barré. Na segunda parte, faço um relato da minha experiência com a doença, vivida a partir de 11 de junho do presente ano.

 

I – Breve revisão bibliográfica sobre a Síndrome de Guillain-Barré (SBG)

Depois da erradicação da poliomielite, a Síndrome de Guillain-Barré (SBG) é considerada a maior causa de paralisias no mundo.

Trata-se de uma neuropatia, de origem autoimune. Caracteriza-se pela inflamação e pela perda de mielina, isolante gorduroso e protetor dos nervos periféricos – aqueles que são exteriores ao sistema nervoso central. O diagnóstico é clínico e confirmado pelo exame do liquor raquidiano e pela eletroneuromiografia.

Os estudos mais recentes apontam o crescimento linear da incidência da Guillain-Barré de forma paralela ao envelhecimento e o gênero preponderante seria o masculino –- embora a síndrome afete crianças e adultos de ambos os sexos e todas as idades no mundo. As formas mais severas da síndrome acometem os sujeitos de 50 anos e mais (VAN DOORN et alii, 2008). 25% dos pacientes são acometidos de distúrbios agudos no sistema respiratório.

Os dados falam de uma ocorrência para uma população de 100.000 pessoas por ano. Baseados nesta estimativa, é possível calcular para o Brasil um universo de cerca de 2.000 pessoas atingidas pela síndrome –  o que empiricamente me parece um número extremamente reduzido. Adriana de Costa Tavares, referindo-se a estudo junto à população norte-americana, cita uma incidência de 2-4 casos por 100.000 habitantes.3 Lá como aqui o sistema de saúde tem precariedades notórias.

No caso, os números mentem. Como não se trata de doença de notificação obrigatória, pode-se pensar que a SGB é subnotificada. Conhece-se a inconsistência da rede pública brasileira de saúde, carente de recursos, apesar da grande abrangência. São conhecidas igualmente as dificuldades que têm os clientes dos planos de saúde privados, quando se trata de obter os cuidados que são por nós regiamente pagos. Menciono quase como anedota que meu plano foi cortado no mesmo mês que estive internada, sob a falsa alegação de inadiplência. Foi reativado depois de uma ida ao PROCON, comprovando a tese de uma amiga que somos consumidores e não cidadãos.

O prognóstico da Síndrome de Guillain-Barré é bom, com mais de 90% dos pacientes diagnosticados alcançando a recuperação total ou praticamente total no curto prazo, embora de 5 a 15% possam apresentar distúrbios motores severos por dois ou mais anos. A mortalidade da doença varia de 1, 3 a 13%, em geral ocasionadas pela baixa qualidade do tratamento específico e pela demora no diagnóstico (TAVARES, 2000). Mas quantos pacientes chegam a óbito antes que o diagnóstico seja efetuado?

Os artigos apontam a ocorrência de intervenções cirúrgicas, infecções respiratórias ou gastrointestinais que precederam a instalação da SBG, num intervalo de cinco dias a três semanas em 80% dos casos. Vacinas  também são citadas entre os fatores que podem provocar a SBG. O sintoma mais assustador no meu caso foi a súbita flacidez de todos os músculos e a tetraplegia que se seguiu e durou por cerca de três semanas.

 

II – Às voltas com Guillain-Barré

Falo de um acontecimento, uma experiência que talvez para sempre marque a minha carne, com a dor e a certeza de ser vulnerável, posto que mortal. Espantoso é vivermos como se fôssemos eternos.

Recorro a Michel Foucault para refletir sobre a categoria "experiência".  O filósofo atribui às suas leituras de Bataille, Blanchot e Nietzsche a ideia que uma experiência-limite tem por função arrancar o sujeito dele mesmo, fazer com que ele não seja mais ele mesmo – o que seria um empreendimento de des-subjetivação4 (FOUCAULT, 1980, p. 43). E mais adiante, na mesma entrevista, Foucault continua: "Uma experiência é algo que se faz só, mas que é apenas possível de forma plena quando escapa da nossa própria subjetividade, permitindo a outros retomá-la" (FOUCAULT, 1980, p. 475). Nada me remete mais à ideia de experiência-limite e de intensidade que 25 dias tetraplégica. Por outro lado, escrever e socializar esta experiência-limite me permite esboçar uma elaboração.

"Estas botas são feitas para caminhar", dizia uma canção americana da minha juventude. Meu projeto para a semana de São João que se aproximava,  coincidindo com os feriados da Copa do Mundo, era rumar para a Chapada Diamantina e fotografar a festa em Xique-Xique do Igatu, pequena cidade fundada no século XIX,  no apogeu do garimpo de diamantes, e desde então em decadência.

Iria para Salvador, e de lá para Lençóis, capital da Chapada  Diamantina, servida por voos duas vezes por semana. A partir de Lençóis, restava percorrer os 80 km de estrada de terra, em caronas variadas, e, com muita sorte, se tudo desse certo, viajando na jardineira do leite.

Sonhava andar no mato e sentir o perfume inesquecível das laranjas mais doces que existem, laranjas-rosa, como o nome que levam. Pretendia  afogar todas as tristezas nos poços e cachoeiras dos rios que cortam a Chapada. Iria, mais uma vez, encontrar velhos e novos amigos. Guardaria nas fotos e na mente as orquídeas multicolores que enfeitam as trilhas da montanha.

Entretanto, mesmo quando não percebemos, "viver é muito perigoso"6. O escritor, no caso, referia-se à experiência do amor, tão próxima da morte, como mostrou Freud (FREUD, 1920). No meio da noite, acordo para ir ao banheiro. De repente me dou conta de que não consigo pisar no chão. Com algum esforço me viro de bruços, escorrego da cama e me ponho de gatas. Assim chego ao sanitário, mas não me levanto o suficiente para sentar no vaso.

Imagens do dia anterior correm na minha cabeça. Lembrei que ao acordar, depois de tomar café, tive uma pequena dificuldade para me levantar da cadeira. Pensei que, talvez, na correria do dia a dia, estava mal alimentada. Nada que uma panela de lentilhas não corrigisse, e antes de sair para meu exercício no calçadão e na academia preparei uma boa porção, mais rápidas de serem preparadas que o feijão preto.

Minha perna esquerda estava mole, pensei na véspera da noite que engatinhei. Preciso alongar na calçada, e depois me alimentar melhor, quem sabe uns ovos logo no café da manhã. Esta parte resolvida, musculação na academia. No final do meu treino, um movimento chamou a atenção do Fred, meu preparador há uns quatro anos: era o braço esquerdo fraquejando, embora o haltere fosse bem mais leve que de hábito.

Estava muito cansada. Meu irmão mais querido havia falecido em março; em abril, tirei a vesícula, duas gripes seguidas, e agora, me cabia assistir minha mãe, já que naquele mesmo dia que me senti fraca pela manhã, meu padrasto havia sido internado no CTI – o que aos 92 anos nada anuncia de bom. Era necessário cancelar meu projeto de viagem. Desembolsei mais dinheiro e posterguei para setembro.

Depois de almoçar as lentilhas, rumei para o hospital. Toda uma série de providências a serem tomadas, começando pelos indispensáveis telefonemas para prevenir a família do meu padrasto, francesa, como ele, e lá vivendo .

Quando o médico que acompanha o doente me oferece uma carona, aceito, meio culpada por deixar minha mãe com sua acompanhante. Na saída, mais um sinal de alarme desprezado: o clínico que me oferece a carona me propõe abandonar a fila do elevador e seguir pela escada, mas, novamente, a perna esquerda não tem firmeza, e caio na escada, sem, contudo, me machucar. Alguém pergunta se não seria melhor me levar para a emergência, o próprio médico responde que eu apenas havia escorregado, e entro no táxi.

Ainda acreditava que estava fraca, por conta do luto, da intervenção cirúrgica e das gripes mal curadas – uma boa refeição mais uma noite de sono iriam me aprumar. O porteiro me ajuda a sair do táxi, ao chegar em casa e jantar me sinto revigorada, deito e durmo, sem o cuidado de trazer o celular ou o telefone fixo para o quarto – apenas o IPAD à beira da cama, ou melhor, no chão.

Chego de gatas ao banheiro, e resolvo me sentar na beirada do chuveiro, no caso, uns quarenta centimetros abaixo do nível do chão, para ser usado como banheira por quem goste. Entro e sento no chão. Depois, consegui me lavar, embora tenha sido difícil abrir e fechar a torneira. Esta parte concluída, comecei a tentar sair do buraco, agora usando os cotovelos como alavanca. Levei mais de uma hora para conseguir sair da banheira e me arrastar no chão do banheiro.

Pensamentos assustadores me ocorrem: estaria tendo um AVC? Sempre tive colesterol alto e tomo religiosamente a medicação prescrita pelo meu clínico.  Seria um processo degenerativo acelerado? Tudo muito estranho, e na madrugada todos os sinais da véspera soam como sirenes de alarme. Calma. Tenho que encontrar forças para abandonar o ladrilho frio, andar agora de gatas é impossível, sou no máximo como uma lagartixa que se arrasta pelo chão.

Tento abrir a porta que separa os quartos da sala, lá se encontra o telefone fixo. Nem pensar, raio de maçaneta dura!

Está difícil abrir o IPAD, encontro uma colher na mesa de cabeceira e preciso da ajuda dela para levantar a capa do meu tablete. Disparo e-mails! Faço um texto que traz como assunto "lúcida" e conta que não tenho força nas pernas nem nos braços. Tento ser o menos alarmista possivel, embora esteja apavorada. O e-mail segue para meu filho, para meu clínico Pedro Henrique Paiva, e amigos que moram perto e sei que acordam cedo, mas são apenas três horas da manhã. Por alguma razão, não me ocorre usar o aplicativo skype e telefonar.

Em frente ao banheiro, um quarto com tapete no chão, que chamo de escritório. Lá me deito, e para não enlouquecer tento me lembrar de todas as praias bonitas que conheço, uma por uma. Também me ocorre desejar, caso ficasse paralisada para sempre, ao menos poder mexer as mãos, para escrever. Ensaio pedir ajuda, grito o nome da vizinha, que depois me contou pensar estar alucinando.

Deitada no chão, vez por outra durmo um pouco, até que afinal ouço os passos do meu filho, sua voz, e me sinto aliviada.

Meu filho é um executivo de 35 anos, habituado a tomar decisões rápidas. Comunicação com o clinico, seguro de saúde, telefonema para minha filha que mora em São Paulo.  Só consigo dizer que estou com muito medo, "eu também, mãe" – escuto do outro lado.

A decisão tomada foi ir ao encontro do clínico, no Hospital Samaritano. Eu resmungava que o plano de saúde não cobria a emergência desse Hospital, mas fui carregada pelo meu filho no táxi, chamado pelo porteiro.

Tão logo me viu, meu experiente clínico disse o nome do mal que me acometia: Guillain-Barré.

– Você tomou vacina contra a gripe? – perguntou

Depois, chega o neurologista, dando início a uma série de exames. Deseja afinar o diagnóstico, diz. Fiz uma ressonância magnética, algo que considero da ordem da tortura e que durou cerca de uma hora. Ao final, ouvi que a imagem era incompatível com a de uma pessoa de mais de 60 anos – o que muito me tranquilizou. Fiz uma piada sobre os efeitos benéficos da vida da geração "sex, drugs and rock and roll". Estava aliviada por não ter tido um AVC, o que eu temia acima de todos os males, por ter visto uma adorável tia-avó virar um ser imobilizado, na cama, por mais de vinte anos.

Outro exame inesquecível é a retirada de liquor da espinha dorsal. O medo, talvez até mais que meu corpo paralisado, me fazia imóvel, e só o que me trazia certo conforto era a presença constante do meu filho. Os exames se seguem, todos os meus fluidos são recolhidos e analisados. Aos poucos minha identidade vai se reduzindo aos contornos inertes do meu corpo.

O hemograma fica pronto e revela um nível muito alto de leucócitos, apontando uma infecção. Seria o resultado de uma gripe mal curada? Este seria o ponto de vista do meu clínico, que acompanhava uma cirurgia no mesmo hospital, mas que nem por isso havia me deixado de lado.

O dia avança e começam a procurar um leito para mim, em um CTI aceito pelo meu plano. Sou afinal detentora de uma reserva na Santa Lúcia, de Botafogo, o que se revelou uma imensa sorte: lá fui muito bem cuidada. Espero ainda algumas horas a ambulância do meu seguro de saúde, que vai me transportar.

A chegada da ambulância me reserva outra emoção. O médico havia conhecido meu irmão recém-falecido e como ele corria de Kart. Ao me ver e ler meu nome no prontuário perguntou que parentesco nos unia, já que somos ou éramos extremamente parecidos.

O trajeto entre o primeiro e o segundo hospital é curto. Maca. CTI. Meu filho cuida da burocracia enquanto sou colocada no leito. Uma cortina de plástico me separa do outro doente. Meu filho vem se despedir, olha-me nos olhos e diz a frase que se torna um mantra: "mãe, voce vai ficar boa, foca na recuperação."

Uma técnica de enfermagem me coloca uma camisola; outra quer retirar minha calcinha e  colocar fraldas. Resisto.

– Não preciso de fraldas. Controlo a micção.

– E se você tiver vontade de urinar? – pergunta.

– Eu peço uma comadre, não é possível?

O turno está mudando, a técnica pede que eu aguarde a nova equipe. Entendo agora por que os doentes são chamados de pacientes. A paciência é a virtude que sou instada a desenvolver.

Logo cometo meu primeiro erro. Uma médica, bastante jovem, apresenta-se. Pergunto:

– Você já viu outras pessoas com Guillain-Barré? Com a sua experiência, quanto tempo as pessoas com este diagnóstico levam para andar?

A jovem responde com uma interpretação:

– Sou ansiosa como você. Esta pergunta não tem resposta. Depende.

Insisto:

– Mas o que dizem as suas estatísticas?

– Você acaba de chegar, não tenho como responder a sua pergunta.

Aprendo que o melhor é não perguntar nada. Amanhã, o Pedro Henrique me dirá, penso.

Eu era muito inocente. Nunca havia imaginado uma noite em um CTI. O barulho é infernal. Minha vizinha de cama berra:

– Enfermeira! Quero um Bromazepam! Na minha casa, eu tenho Bromazepam.

Meu médico havia deixado prescrito um remédio para dormir, caso eu precisasse. Descubro que basta pedir. Minha vizinha de cama, D. Soninha,7 é surda, por isso grita. As técnicas e os médicos não são surdos, mas falam alto. Todos falam muito alto. Instrumentos variados soam a noite toda. Choro. Durmo. Acordo.

Estou ligada a aparelhos e fios. Monitorada. Meu corpo tem acessos, entradas para as artérias e veias variadas que recebem soro e antibiótico.  Todos os fluidos do meu corpo são recolhidos. Sou informada de que antes de receber a imunoglobulina endovenosa tenho que tomar antibiótico, para debelar a infeçcão que me acometeu, cuja origem é desconhecida. Antibiótico de largo espectro, para não perder tempo.

Meu corpo dói. Gotas inúteis de Dipirona. Não são eficientes contra dores neurais. Não consigo me mover na cama. Uma técnica de enfermagem coloca um travesseiro contra a grade, de modo a me deixar deitada de lado por algum tempo. Logo, o lado também dói. A perna dói. Guillain-Barré dói.

Começa meu dia no hospital. Cada item da rotina gera certa ansiedade. Termômetro. Coleta de sangue. Controle da respiração pulmonar: auscultação. Pressão arterial. Coleta dos excrementos corporais. Descubro que não consigo mais abrir as mãos. Nem tenho forças para segurar a xícara do café da manhã. A técnica de enfermagem passa o queijo mole no pão e me dá comida na boca.

Durante as primeiras 48 horas, pioro muito. Não abro as mãos nem consigo movê-las na cama. Nenhuma parte do corpo se mexe, salvo a cabeça. Penso, logo ainda existo.  Está difícil pensar em algo que lembre a vida. Sim, com esforço e fechando os olhos vejo as cores do mar da Bahia, será que ainda verei o mar da Bahia? Lembro o azul e verde sem fim, água morna, textura de água limpa no meu corpo.

Visitas nas horas da visita. Meu filho. Minha filha, que veio de São Paulo, no meio da semana para me ver. Vieram muitos finais de semana seguidos – o que custa caro e é exaustivo. Os grandes amigos. Meu clínico, sábio e generoso. Vejo dor nos olhos dele. Tento fazer uma piada, disfarço e pergunto:

– Quanto tempo? Quanto tempo diz a estatística? – pergunto.

– Uns três meses – ele responde. – Mas você vai ficar boa – assegura.

– Isso pode dar de novo? – indago.

– Não há casos conhecidos de reincidência – afirma.

Decido não resistir à doença. Acolher o mal. Colocar o mal no colo como um bebê. Sou forte e vou vencer o mal. Um velho amigo, com quem compartilhei um quarto no ano de 1970, clandestinidade pesada, veio me ver e repetiu:

– Você é forte e vai ficar boa. Tenho certeza. Não se esqueça que você é uma guerrilheira.

O que não mata, engorda, dizemos. Na França se diz algo similar: para algo serve a desgraça.8

Meu clínico passa todos os dias. Prescreve as drogas que preciso para ter algum conforto, remédios contra a dor, remédios para dormir, remédios para evacuar e não ter dor ao evacuar. A Guillain-Barré anula toda atividade  muscular, e precisamos de músculos para tudo, até para expelir fezes e urina.

O neurologista9 que eu conheci ao ser internada também passa todos os dias, e sua presença me conforta. Reparo que estão muito atentos ao meu aparelho respiratório. Tempos depois, quando voltei para casa e pude acessar a internet, li que um dos dissabores que esta síndrome pode provocar se refere justamente às dificuldades respiratórias. Daí a necessidade de uma fisioterapia respiratória, que se inicia no meu segundo dia no CTI. Também no segundo dia começa a fisioterapia passiva, como chamam. O profissional movimenta meus membros inertes. Abre as minhas mãos, que parecem ter se fechado para todo o sempre.

O coração é um músculo, não fica de fora do monitoramento. Aprendo que na prática toda a circulação pode ser afetada pela Guillain-Barré.

Eu era uma ameba, brinquei! E ouvi: houve dias que a ameba ganhou!

Eletroneuromiografia: o médico se apresenta com um computador, assentado numa pequena mesa. Do computador saem fios que são colocados nos meus membros, provocando a dor de choques elétricos. Ouço uma piada: finge que está no DOI-CODI. Penso que deram uma olhada na biografia da paciente. Grito e começo a pensar numa ordem alfabética. Faço este exame duas vezes: na segunda, minhas pernas se movem. Imagino ser este um sinal absoluto de melhora e interrogo o médico. Eu teria a segunda forma mais branda da Guillain-Barré: AMAN.10 Conto para os meus filhos, que telefonam para o médico e perguntam quando voltarei a andar. O médico responde que ignora, mas que a resposta talvez seja nunca. Ouvi isto do meu filho, muitas semanas depois do fato, quando já andava.

Meus amigos e familiares, com ajuda de duas senhoras que têm como função intermediar as relações entre as regras do CTI e um cuidado humanizado aos pacientes, conseguem me visitar, transgredindo os horários estritos.

Depois de cinco dias no CTI, dois tomando antibióticos, três recebendo a imunoglobulina prescrita para cinco dias – que no meu caso provocou melhoras no fim de 24 horas –, ensaio abrir as mãos – sou transferida para um quarto. Recomeço a ter movimentos, primeiro, na ponta dos dedos, e no geral, nos membros superiores, no tronco, e depois nos membros inferiores – de forma oposta ao início da síndrome.

A vida num pequeno hospital é quase agradável. Conheço aos poucos todo mundo, os médicos do CTI e depois muitos outros, as técnicas de enfermagem, a equipe de fisioterapia e até o pessoal da faxina. Prometi que voltaria para agradecer, quando conseguisse caminhar e sair.

Minha filha organiza a volta para a casa. Uma técnica de enfermagem11 é contratada, assim como uma fisoterapeuta,12 que me visita diariamente. As duas contratações foram extremamente felizes.

Levo para casa o medo da doença. Nas primeiras noites, observo-me cautelosamente. Meus pés, pouco acostumados a saírem da posição horizontal, incham, assim como as pernas, o fantasma da trombose me ronda. Tenho dor. Durmo mal. Ainda não consigo ficar em pé, nem andar, e as idas ao banheiro ou à sala são penosas. Coloco os braços em volta do pescoço da técnica de enfermagem e assim ergo o tronco e passo para a cadeira de rodas ou a cadeira higiênica. Por outro lado, tenho o conforto do meu quarto, dos objetos que me cercam e me remetem à vida. Tomo banho de chuveiro, primeiro sentada, depois em pé, segurando nas alças de metal que foram colocadas no meu banheiro. Tenho o carinho dos meus filhos e dos amigos, que me visitam sem restrições de horários. Mas ainda me sinto extremamente cansada. Cansada até para ler.

Cada dia é um dia, um pouco melhor que o anterior. Após 14 dias em casa, voltei a caminhar. No final do mês de julho devolvi todo o material hospitalar que utilizei, tanto o alugado quanto o emprestado por amigos. Todos acham que dei muita sorte, que me restabelesci muito rápido e isto é atribuído aos hábitos saudáveis que mantive a vida toda, como a prática de natação e a ginástica. Minha análise pessoal deve ser incluída neste rol. O medo continua a me rondar, talvez um pouco atenuado, mas ainda presente. Medo de adoecer novamente. Medo de ter que voltar para um CTI.

Penso que fui beneficiada pelo rápido diagnóstico dado pelo meu clínico, e por não depender da rede pública de saúde. Se a saúde é dever do Estado e direito de todos na letra da lei, temos um longo caminho a percorrer para que o acesso à saúde seja realmente facultado de forma eficaz a toda a população brasileira.  Acredito e defendo uma politica de saúde priorizada pelo Estado. Por fim, aposto na força do afeto para a minha recuperação: o carinho dos meus filhos e dos amigos, com ou sem elos de sangue, tem sido fundamental. A todos, meu reconhecimento público e irrestrito.

 

Referências bibliográficas

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FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, v. IV.         [ Links ]

FREUD, Sigmund, 1920. Au délà du principe du plaisir. In: Essais de Psychanalyse. Paris: Payot, 1981, p. 49-128.         [ Links ]

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Recebido em: 28/8/2014
Aprovado para publicação em: 30/9/2014

 

 

1 Dedico este artigo a meus filhos Luciana Bocayuva Khair e Jerônimo Bocayuva Dumont.
2 Tradução do resumo feita pelo tradutor Carlos André Oighenstein.
3 Tavares, 2000.
4 Tradução minha.
5 Tradução minha. Transcrevo a frase em francês: (…). "Une experience est quelque chose que l'on fait tout à fait seul, mais que l'on neu peut faire pleinement que dans la mésure où elle échapera à la pure subjectivité et où d'autres pourront, je ne dis pas la reprendre exactement, mais du moins la croiser et la retraverser." Foucault, M. Dits et Écrits, 1980, v. IV, p. 47.
6 Guimarães Rosa, João (1908-1967) (1956). Grande sertão: veredas, p. 15.
7 Nome fictício.
8 À quelque chose Malheur est bon.
9 Aquiles Mamfrim.
10 AMAN: neuropatia motoral axonal aguda, a forma pura motora axonal da Guillain-Barré.
11 Eliane Vallegas da Silva.
12 Suely Jorge.

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