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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Biopolítica, soberania e tanatopolítica: ensaio sobre as ideias de Foucault e Agamben

 

Biopolitics, sovereignty and tanatopolitics: essay on the ideas of Foucault and Agamben

 

 

Cristiane OliveiraI

IProfa. Adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia do IPS/UFBA. Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) com estágio doutoral no Centre de Recherches en Psychanalyse, Médecine et Societé, da Université Paris Diderot (Paris 7)

 

 


RESUMO

Este ensaio pretende confrontar algumas das ideias de Giorgio Agamben e de Michel Foucault no que diz respeito à politização da vida na modernidade. Com este intuito, são analisadas, inicialmente, as modalidades de gestão política da vida propostas por Foucault – anátomo-política dos corpos e biopolítica da população. Em seguida, são discutidas as relações entre soberania e biopolítica propostas por esses autores. Finalmente, explora-se a noção de vida nua proposta por Giorgio Agamben para acoplar soberania, instituída na atualidade pela normalização do estado de exceção, e biopolítica, que se converte em tanatopolítica.

Palavras-chave: biopoder; vida nua; soberania; modernidade; tanatopolítica.


ABSTRACT

This essay intends to confront some of the ideas of Giorgio Agamben and Michel Foucault with regard to the politicization of life in modernity. With this in mind, we analyze, initially, the modalities of political management of life proposed by Foucault – anatomical-political bodies and biopolitics of the population. Next, the relations between sovereignty and biopolitics proposed by these authors are discussed. Finally, the notion of bare life proposed by Giorgio Agamben is explored to couple sovereignty, established at present by the normalization of the state of exception, and biopolitics, which becomes tanatopolitics.

Keywords: biopower; Naked life; sovereignty; Modernity; tanatopolitics.


 

 

1. Introdução

A vida, nos séculos XVIII e XIX, transformou-se no alvo da gestão política dos indivíduos. Expressa tanto na docilização dos corpos garantida pelo poder disciplinar quanto na gestão política da vida das populações, a biopolítica é o nome dado por Foucault (2005b, 2005c) para designar no que se converteu a política na modernidade, uma vez que ela foi amalgamada a uma crescente valorização do corpo e da vida. Que nexo podemos encontrar entre vida e política na modernidade? Quando o valor da vida passa a ser investido politicamente? Que estratégias foram utilizadas para este fim? Que relação pode ser estabelecida entre soberania e biopolítica na atualidade? Como passamos da noção aristotélica recuperada por Foucault, segundo a qual o homem é um animal que tem existência política, para aquela na qual é a condição de vivente o que define a política?

Neste ensaio, pretendo confrontar algumas das ideias de Giorgio Agamben e de Michel Foucault no que diz respeito à politização da vida na modernidade. Especificamente, desejo analisar a relação entre poder soberano e biopolítica, uma vez que nela se encontra uma tensão notável entre esses dois pensadores. Para Foucault, o poder soberano sobre vida e morte dos súditos deu lugar, historicamente, à incitação permanente do valor da vida, a partir de tecnologias de poder – anátomo-política e biopolítica – cujo conjunto ele denominou de biopolítica. Por sua vez, Agamben (2002) propõe um enodamento dessas estratégias políticas, através da noção de vida nua, que pulverizou em cada um de nós uma porção de "vida matável e insacrificável", a fim de garantir o exercício do poder soberano, tomando o estado de exceção como seu lastro político-jurídico.

Com Foucault, sem Foucault, contra Foucault, Agamben analisará a relação entre vida e política, dando especial ênfase aos lugares soberanos, se são intercambiáveis, e como a biopolítica contemporânea arrastou para dentro de cada um de nós uma porção de vida sacra. Escutar esta interlocução mais atentamente, identificando seus pontos de contato e acolhendo e problematizando suas dissonâncias, interrogando, enfim, a ambos sobre o que confessam seus textos, é um esforço que começa aqui a ser perseguido.

Com este intuito, tomo como ponto de partida as modalidades de gestão política da vida propostas por Foucault – anátomo-política dos corpos e biopolítica da população. Em seguida, discuto as relações entre soberania e biopolítica propostas por esses autores. Finalmente, discuto a noção de vida nua proposta por Giorgio Agamben para acoplar soberania, instituída na atualidade pela normalização do estado de exceção, e biopolítica, que se converte em tanatopolítica no campo que é seu paradigma.

 

2. Corpos-máquina e corpos-espécie: agenciamentos biopolíticos

Foucault, em 1976, no final de A Vontade de Saber, reconhece uma forte descontinuidade entre a era clássica e a modernidade no que diz respeito à relação entre política e vida. O direito de morte, suporte do poder soberano, converte-se, na modernidade, em defesa da vida pelo corpo social. Herdeiro do patria potestas, segundo o qual o pai tem o direito de reivindicar para si a vida de seus filhos, o poder soberano, que se exercia pelo direito ao confisco, necessita dispor indiretamente da vida e da morte para firmar sua primazia sobre seus súditos nas circunstâncias em que estiver ameaçado. A partir do século XVIII, na aurora da modernidade, assistimos, supondo que concordemos com o raciocínio de Foucault, à emergência de uma nova relação entre vida e política: não mais ameaça à vida, mas incitação à vida e à saúde, individual e populacional. Dessa forma, constrói-se uma série de tecnologias de saber-poder para garantir a gestão da vida, que são exercidas através da anátomo-política e da biopolítica (FOUCAULT, 2005c).

A anátomo-política se constitui numa nova modalidade de exercício de poder na qual os corpos foram submetidos a um meticuloso processo de "docilização" (FOUCAULT, 1984), segundo o qual se visava extrair-lhe máxima utilidade, impondo-lhe máxima obediência. Esta tecnologia política se difundiu em instituições as mais diversas, como nas prisões, nos hospitais, nas escolas e em várias outras instituições totais. Centrada no ‘corpo-máquina', a anátomo-política foucaultiana produz uma nova cartografia da relação corpo-poder. As distribuições dos corpos, através do esquadrinhamento e delimitação do espaço, fazem-se a partir de localizações funcionais dos indivíduos, tornando-as intercambiáveis. A vigilância da atividade alinha-se ao controle do tempo, que aí passa a ser repartido e controlado nas suas miudezas; o comportamento é, então, decomposto em atos mais simples e monitorado dentro de uma temporalidade. Há uma sinergia entre ato e "atitude global" do corpo; sua técnica é prescrever manobras; fazendo-se com o corpo-máquina um elo coercitivo com o "aparelho de produção", para sua utilização exaustiva. O tempo da disciplina é o tempo evolutivo, com sua organização sequencial do mais simples ao mais complexo, a partir da qual a aprendizagem é comparativamente avaliada. Finalmente, a unidade não é mais a massa e sim os corpos individuais em correlação com outros, sendo que, nesse comando, há a instituição de esquemas de comportamento que passam pela equação sinalização-reação. Através de analogias, Foucault nos descreve, então, as técnicas que dão suporte a estas estratégias: o quadro, a manobra, o exercício e organização de táticas, na qual o corpo é controlado, vigiado, distribuído num determinado espaço e adestrado para um repertório de gestos e atos submetido ao tempo, num duplo movimento de individuação e massificação.

Na sua primorosa genealogia da violência nas prisões, Foucault (1984) observa que, embora as disciplinas já existissem, é somente a partir do século XVII que elas se generalizam enquanto tecnologia política. O poder disciplinar estava distanciado de outras modalidades de controle do corpo (escravidão, domesticidade, vassalagem, asceticismo), em síntese, pelo descolamento entre corpo e poder, a partir da sua utilização maximizada graças à produção de um elo entre "aptidão aumentada e uma dominação acentuada" (FOUCAULT, 1984, p. 127). Isso se fez a partir da sofisticação de um adestramento que regula os movimentos dos corpos, esquadrinhando-os, controlando a temporalidade de seus movimentos e articulando-os aos outros corpos, num duplo movimento de individuação e massificação. Mais ainda, foi a mudança no modo de exercício de poder, que passa do "confisco" à "incitação", de modo a fabricar um poder que passa a existir amalgamado ao prazer e à incitação, que possibilitou a produção de máxima obediência com máxima utilidade.

A biopolítica é definida por Foucault (2005c) como a gestão do corpo-espécie, ou seja, do corpo vivo, cujo funcionamento tornou-se, na modernidade, um imperativo a ser descrito. Na produção do conceito de população e seus correlatos disciplinares e salubristas, a modernidade trouxe a necessidade de conhecer e regular fenômenos como natalidade, mortalidade etc., a fim de garantir o controle sobre a situação de saúde da população. Aliando saber e poder sobre a vida, a biopolítica pôde ser exercida por meio de uma interpolação de uma série de regimes de saber-poder, entre eles, a demografia, estatística, economia, ciência política, a medicina clínica e a medicina social e, mais recentemente, através de uma medicina experimental. O nascimento de uma medicina social (FOUCAULT, 1995c) – pelas direções que tomou com a medicina de Estado, a medicina urbana e a medicina das forças produtivas –, assim como o hospital (FOUCAULT, 1995d), surge para dar conta desta premência histórica: antes mesmo de preservar as forças produtivas, ela se encarregou de difundir a normalização como forma de regulação social que invadiria, paulatinamente, o terreno do direito.

Uma medicina de Estado – a polícia médica – propriamente dita surge na Alemanha e se caracterizava por: maior sistematicidade do controle numérico de natalidade e mortalidade, identificada por levantamento mais exaustivo de dados nos hospitais e entre os médicos; controle normalizador pelo Estado (via universidade) da formação e da prática médicas; criação de instância administrativa (departamento, ministério) para controle das informações médicas e, finalmente, a criação da figura do médico-gestor da saúde, que exercia seu poder a partir de uma lógica distrital. Com esse percurso pela medicina de Estado alemã, Foucault quer demonstrar que há aí uma dupla motivação – política e econômica – na gestão da saúde das populações, antes de vir a ser uma medicina das forças produtivas. A medicina de Estado alemã queria, antes de qualquer coisa, fortalecer politicamente o próprio Estado nas suas tensões geopolíticas.

Já a medicina urbana, segunda direção da construção da medicina social na modernidade, foi marcadamente desenvolvida na França e estava orientada pela urbanização, que surgiu da necessidade de regular um espaço (e sua jurisdição) que não era mais somente de mercado, mas de produção, mas também de conter o perigo social ocasionado pelas tensões entre os mais pobres (os futuros proletários) e os mais ricos no espaço urbano, através de uma sofisticação da estratégia segregacionista da quarentena: controle dos vetores de epidemias ou endemias; controle da circulação da água e do ar, entendidos como agentes patógenos, e organização do espaço urbano, a partir de "distribuições e sequências", ou seja, do ordenamento de elementos comuns na constituição da cidade.

A medicina das forças produtivas é o ponto de chegada da constituição da medicina social e foi precedida pela polícia médica alemã e pela medicina das cidades francesa. Na Inglaterra, conviveu, em menor escala, com as outras medicinas (a de Estado e a urbana). A Lei dos Pobres, no entanto, marcou a solução de compromisso entre o sistema de assistência e o controle médico dos indivíduos pobres: "um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre" (FOUCAULT, 1995c, p. 95). Tem-se, ainda, a criação dos sistemas de serviços de saúde, cujas funções são a vacinação compulsória, o controle das epidemias e o controle dos focos de insalubridade.

Para Foucault, um rigoroso controle espaço-temporal do corpo aliado a permanente vigilância das condições de vida da população consistiram, então, nas modalidades de politização da vida na modernidade. A gestão política da vida foi a estratégia segundo a qual se tornou possível a submissão dos corpos com o máximo de aproveitamento e o mínimo de resistência. Ademais, fazendo-nos incorporar que a vida tem um valor, embora este valor se diferencie de acordo com a posição dos indivíduos na esfera social, constituiu-se, a partir do século XVIII, uma máquina de incitação permanente da valorização da vida. Ainda, organizando a massa em população, era possível fixar os parâmetros de sua utilização otimizada. Convocado a explicitar as bases de sustentação dessa descontinuidade, Foucault (1995b, p. 198) afirma-a como sendo uma das condições de possibilidade para a preservação das forças de trabalho, mas também para o controle dos "efeitos econômico-políticos do acúmulo dos homens".

O complexo mecanismo de incitação ao poder e à vida constitutivo do biopoder teria, segundo Foucault, sucedido, historicamente, o modelo jurídico da soberania, ainda que essas linhas de força não tenham sido excludentes. O argumento foucaultiano é que, exaltando a vida, a modernidade conseguiu agenciar os indivíduos, de modo a torná-la o argumento inexorável para controle das forças políticas, incitando-as, mas neutralizando seu valor político. Com o biopoder, passamos do "direito de causar a morte e deixar viver" do soberano para o desejo de "causar a vida ou devolver à morte" (FOUCAULT, 2005c). Em outras palavras, a centralidade da morte, que permaneceu nos tempos de guerra e pestes como a referência, na política, dá lugar à da vida, ainda que, em seu nome, a morte pudesse ser causada. O deslocamento da vida para o centro da política trouxe algumas implicações: (1) a vida passa a ocupar uma dupla posição em relação à história: simultaneamente, dentro e fora; (2) multiplicação das tecnologias de poder sobre o corpo, a vida, condições de vida, moradia etc.; (3) hegemonia da norma como critério de organização dos corpos em detrimento da lei: "uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida" (FOUCAULT, 2005c, p. 135).

Encontramos, ainda, em Foucault (1995a) a observação de que o exercício do poder na modernidade foi marcado pelo entrelaçamento da soberania com a disciplina, produzindo aí um jogo de heterogeneidades marcadas por algo que poderíamos aqui denominar de uma solução de compromisso. Ao longo de sua argumentação, ele explicita que soberania e disciplina, a partir do século XVIII, são estratégias solidárias de exercício político. Isto porque a persistência da importância da lógica da soberania nos códigos jurídicos, mesmo depois de ter sido desgastada pelo modelo absolutista, serviu de crítica tanto ao regime monárquico durante os séculos XVIII e XIX, quanto aos obstáculos à sociedade disciplinar, invenção burguesa que conjugava sujeição e eficiência. Mas, sobretudo, porque, uma vez instituída como tecnologia de poder, a disciplina precisava ser silenciada enquanto tal e o fazia através da manutenção dos mecanismos jurídicos e discursivos da soberania.

Podemos extrair do projeto político-filosófico foucaultiano outras razões que o distanciavam da análise da soberania, já que ele a entendia como um entrave à compreensão mais acurada dos jogos de força que constituem um campo político. Alternativamente, propunha uma analítica que pudesse oferecer outras chaves para o entendimento do poder (FOUCAULT, 2005c) e desconstruir os efeitos discursivos do modelo da soberania, explicitados por ele na convivência entre as justificativas de regulação jurídico-política e o embotamento dos múltiplos jogos de dominação pela ênfase no antagonismo entre poder soberano e obediência dos súditos. Em consonância com esta proposta, tomava a dominação e a sujeição em lugar da soberania e da obediência como seu campo de problematizações.

Tomemos, inicialmente, a concepção de poder que permeia seu pensamento. Suas genealogias (1984, 2001a, 2005c) contribuíram para desmontar a exclusividade da concepção estadística de poder, que o admitiria como uma força que emanaria de um centro. Além disso, a hipótese repressiva perde força nesse projeto, dando lugar a uma concepção excitativa na qual poder encontra-se espiralado com o prazer. Finalmente, poder não é uma posse, mas correlação de forças que funcionam estrategicamente num determinado campo. É uma microfísica que dá suporte ao seu projeto: "captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício" (FOUCAULT, 1995a, p. 182). O seu questionamento ao modelo da soberania está intrinsecamente ligado a essa analítica do poder. O poder-posse, centralizado, repressivo decorreria da subsistência do privilégio da lei e da soberania. Em suas palavras, trata-se de "pensar, ao mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder sem o rei" (FOUCAULT, 2005c, p. 87).

Foucault (1995e) promove um descentramento fundamental na noção de sujeito que, nas suas palavras, produz na história "estratégia sem estrategista". O sujeito é aí, a um só tempo, ilusão de origem (do discurso) e efeito de assujeitamento. Paul Rabinow (2002) sistematiza três modos de objetificação do sujeito que podem ser deduzidos a partir da análise histórica foucaultiana: o mecanismo das práticas divisórias, segundo as quais determinados segmentos (a exemplo dos loucos, pobres, leprosos) são apartados socialmente, contando, frequentemente, com a mediação do discurso científico, mas vitimizados; a classificação científica que, pela via do poder disciplinar, institui categorias pelas quais incide uma estratégia de dominação (por exemplo, o controle dos corpos pela sua assimilação do biopoder); e, finalmente, a objetificação do sujeito pela conformação ativa de um self que lhe define, que lhe essencializa e que cria o efeito do mito de autenticidade.

Foucault (2005a, 2000d, 1995a) interroga o valor analítico do conceito marxista de ideologia na luta entre dominantes e dominados. Ele não nega completamente a produção de ideologia pelo aparelho de Estado, mas afirma que elas não estão na sua base, que se constitui através da incidência nos corpos (e não nas consciências) de aparelhos de saber postos em circulação. Além disso, a recusa ao conceito de ideologia também se sustenta na sua crítica à consistência ontológica da categoria Sujeito, problematização que atravessa toda a sua obra.

Finalmente, o projeto foucaultiano dirimia a importância da lei como fundamento da política, porque via que o âmbito da normalização, onde a demarcação do lícito e do ilícito dá lugar à do normal e do patológico, passou a ser, cada vez mais, a instância de regulação das práticas discursivas e não discursivas. Ele prenuncia (o que será uma pista importante para o trabalho agambeniano) a existência de uma convivência entre a instância jurídica e a instância normativa, que está sustentada num paradoxo: a norma, instituída pelas coerções disciplinares e pelos controles populacionais não está nem no interior nem no exterior da lei. Investiguemos mais detidamente esta questão.

A resistência, outra noção importante no pensamento foucautiano e de grande valia para pensar o objeto desse projeto, não é uma força que vem desde fora. Ao contrário, ela é imanente a um campo de correlações de força concreto e deve ser "tão inventiva, tão móvel, tão produtiva" (1995e, p. 241) quanto o poder. No limite, só há poder se houver possibilidade de resistência; do contrário, emerge a dominação pela aniquilação das forças dos dominados. É em nome da chance de uma resistência possível (e de uma ética, portanto) que Foucault interpela, simultaneamente, filosofia e história.

 

3. Soberania e biopolítica

Enquanto Foucault (1995a, 2005b, 2005c) tenta demonstrar uma descontinuidade entre poder soberano e biopolítica, advertindo-nos, inclusive, das nuances discursivas que envolvem a permanência da soberania como teoria jurídico-política de referência, Agamben (2002, 2004) apostará na coexistência dessas tecnologias de poder para pensar os fenômenos complexos do pós-guerra, pretendendo indicar que nem a soberania é uma tecnologia extinta de poder nem guarda com a biopolítica uma relação de exterioridade. Estaria ele na contramão da microfísica do poder de Foucault? Por que retomar agora o poder soberano, que havia sido esquecido nos escombros da modernidade? O retorno ao modelo jurídico-político da soberania não representaria um retrocesso analítico à teoria do poder, desconstruindo o mérito filosófico-político de Foucault de ter promovido a leitura de seu descentramento?

A primeira pista para responder a estas questões vem do próprio texto de Foucault (1995a), intitulado "Soberania e Disciplina", de 1976. Nele encontramos a arguta observação de que o exercício do poder na modernidade foi marcado pelo entrelaçamento da soberania com a disciplina, produzindo aí um jogo de heterogeneidades marcadas por algo que poderíamos aqui denominar de uma solução de compromisso. Ao longo de sua argumentação, fica claro que Foucault pensa soberania e disciplina, a partir do século XVIII, como estratégias solidárias de exercício político. Isto porque a persistência da importância da lógica da soberania nos códigos jurídicos, mesmo depois de ter sido desgastada pelo modelo absolutista, serviu de crítica tanto ao regime monárquico durante os séculos XVIII e XIX, quanto aos obstáculos à sociedade disciplinar, invenção burguesa que conjugava sujeição e eficiência. Mas, sobretudo, porque uma vez instituída como tecnologia de poder, a disciplina precisava ser silenciada enquanto tal e o fazia através da manutenção dos mecanismos jurídicos e discursivos da soberania.

Como toda solução de compromisso produz resíduos, a incompatibilidade entre soberania e regime disciplinar precisa ser mediada. Aqui parecemos encontrar em Foucault (1995a) um novo terreno para a investigação da relação entre vida e política. Ele afirma que é a medicina o saber-poder que promove a mediação entre estes dois planos, já que, como ele pôde demonstrar em vários de seus estudos, é ela quem funda a "sociedade de normalização", a partir da intromissão dos critérios de normalidade/patologia no âmbito jurídico, antes povoado pelos critérios lícito/ilícito.

Foucault tentará distinguir a normalização disciplinar da normalização do dispositivo de segurança (FOUCAULT, 2004). Considerando que a disciplina prevê um controle minucioso dos gestos, do tempo, da espacialidade que se constitui entre o individual e a massa, e que tal controle infinito se processa em relação a uma finalidade, temos que a disciplina busca normalizar, mas a partir da construção de um modelo que se considera ideal para alcançar a finalidade esboçada. Seria com base nessas premissas que ele afirma, então, que a disciplina estabelece as bases para distribuir os indivíduos em normais e anormais: os que conseguem se aproximar desse modelo são normais e o que são inaptos, anormais. Mas a tarefa fundamental da disciplina seria a construção do modelo, ou seja, da norma. Daí que ele vai admitir uma nova designação para esse processo: na disciplina temos um processo de normação e não de normalização. Ele toma o exemplo do controle da varíola no século XVIII e começo do século XIX, para indicar que o êxito desse controle era incompatível com a medicina da época, mas foi levado a cabo por um empirismo, pela observação da realidade mesma da doença, utilizando-se para isso de cálculos estatísticos, demarcando, assim, a existência de modo de regulação política desde lá. Qual é o enquadre desse novo modo de intervir junto à epidemia? Antes de qualquer coisa, esse saber empírico vai incidir sobre uma observação do comportamento da doença, ela mesma distribuída pelos casos num determinado tempo e num determinado espaço. O caso é diferente do indivíduo, na medida em que um caso é sempre integrado ao coletivo da doença: ele representa parte do comportamento da doença. O caso é um dado do comportamento da doença. A partir da análise da distribuição dos casos, será possível mensurar o risco de adoecimento ou morte, especificando, em termos probabilísticos, os riscos diferenciais individuais e grupais de morte/adoecimento, a partir da identificação das situações de maior ou menor chance de ocorrência da doença.  À noção de risco se junta a de perigo, num desdobramento semântico que não é incólume politicamente. O tratamento probabilístico da epidemia vai permitir a aparição de outra categoria que é a de crise; cuja solução vai demandar uma intervenção artificial.

Esse conjunto de noções vai permitir uma nova forma de regulação do perigo que segue aquilo que Foucault denominou de "modelo da peste": nao é um modelo de exclusão, mas de inclusão-exclusiva, vigiada, monitorada. A descontinuidade entre doente e não doente, importante no sistema de exclusão, pede força para o tratamento populacional da doença. A normalidade, não estabelecida por referência a um ideal que compartimenta o tecido social em normal e anormal, dar-se-á num "jogo de normalidades diferenciais", que faz da norma uma construção empírica, estatística, cujo comportamento será descrito em termos de uma curva, e suas anomalias passam a ser os casos estatisticamente desviantes dessa curva. A norma é, portanto, empírica.

Tudo isso se desenvolve a partir do momento em que a cidade passa a apresentar um conjunto de problemas políticos e econômicos para as "técnicas de governo". É apenas quando a cidade passa a colocar problemas para a soberania que ela passa a ser alvo de produção de um saber que visava à intervenção normalizadora. É porque a cidade é um território muito mais complexo que o feudo, que o problema para a soberania está posto, porque traz os desafios de controlar, de definir regras de circulação.

O problema posto à soberania dizia respeito ao controle do território ou mesmo da conquista de novos territórios. O desafio que se coloca dentro do dispositivo de segurança não é mais o poder do rei sobre um território, mas assegurar que a circulação se processe e que haja mecanismos de controlar os perigos dessa circulação, a fim de garantir a segurança da população. Com efeito, a segurança do governo também estaria protegida. A relação que se estabelece não é mais de um soberano ao qual se submetem os sujeitos. As relações de poder se multiplicam, ou melhor, capilarizam-se; aí um novo modo de exercício de poder ganha predomínio: uma relação em que o poder não se exercerá mais pela interdição, mas pela incitação. A soberania se pulveriza? O corpo do soberano ganha nova forma? A inspiração do panóptico cai por terra, para Foucault, no dispositivo de segurança, pois ele marca o desejo de um exercício de soberania que estará em franco declínio. O olho central ao qual nenhum gesto escaparia perde sua função. A vigilância, no dispositivo de segurança, incide não sobre um corpo individual, mas sobre os limites definidos a partir da busca de ordem na aleatoriedade. A vigilância incide sobre os movimentos de uma população, domínio específico de funcionamento do dispositivo de segurança. Foucault é categórico ao afirmar que entre a soberania e a segurança figuram duas economias distintas de poder.

Se assumirmos a intuição foucaultiana de que a sociedade disciplinar está em crise,1 deveremos tentar pensar o que vem no seu lugar. Seu trabalho sobre o dispositivo de segurança, a tecnologia de poder que produz novos contornos para a normalização, já estabelece um novo arranjo entre as linhas de força para a dinâmica do biopoder. Deleuze (2005) apenas reforça esse argumento ao propor a noção de "sociedade do controle". Nela, o olhar vigilante dá lugar à "coleira eletrônica", que possibilitaria o controle ao ar livre suceder os meios de confinamento. Prova disso seria a crise das instituições (família, escola, fábrica, prisão, hospital etc.). Poderíamos pensar que um dos efeitos do assujeitamento à disciplina, a longo prazo, produziria o que vemos hoje, um controle que já pode prescindir da vigilância disciplinar, posto que já se incorporou às condutas dos homens. Enquanto que a linguagem dos meios de confinamento seria analógica, ou seja, operaria por semelhança, fazendo com que o indivíduo recomece sempre na sua circulação por eles, na sociedade de controle a linguagem é numérica, exige continuidade, modulação. A sociedade da disciplina seria constituída por dois polos – individuação e massificação –, ao passo que a sociedade de controle é regulada por senhas, cifras, que dispensam tal distinção. Temos aí capitalismo de produção contra capitalismo de sobreprodução. A temporalidade também muda: o tempo da disciplina é longo e descontínuo, enquanto que o do controle é rápido e contínuo: "é verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas" (DELEUZE, 2005, p. 224).

 

4. O paradoxo da soberania

Encontramo-nos, neste ponto, prontos para entender melhor como Agamben recupera a análise da biopolítica foucaultiana. Advertido da relutância de Foucault em trabalhar com o modelo jurídico-político da soberania (ainda que o tenha esboçado em seus efeitos discursivos), Agamben (2002, 2004) incide o seu olhar justamente para essas "zonas de indistinção" entre biopolítica e poder soberano, a fim de problematizar algumas lacunas deixadas por Foucault na sua analítica do biopoder. Para ele, não é possível compreender configurações políticas do século XX sem articular as técnicas de objetificação dos indivíduos às técnicas políticas, "duplo vínculo" que o próprio Foucault já teria identificado.

Seu projeto teórico consiste em perseguir as injunções que se produzem entre a biopolítica moderna e soberania, que guardam entre si menos uma relação de exclusão que de solidariedade. Além disso, a vida não entrou nos cálculos modernos da gestão das populações pelo poder estatal apenas com a emergência da biopolítica, mas há muito está implicada na esfera política. O que seria, então, especificamente moderno é uma exclusão-inclusiva da vida (nua) no espaço político. Nesse sentido é que Agamben propõe uma retificação da tese biopolítica de Foucault, afirmando que vida e política entrelaçaram-se de tal modo num espaço de indiscernibilidade, assegurado pela transformação do estado de exceção em regra.

Agamben (2002) afirma que o poder soberano é constituído por um paradoxo: encontra-se fora do ordenamento jurídico normal sem ser-lhe, no entanto, exterior. Ora, o soberano é aquele que, em princípio, decide sobre o estado de exceção, ou seja, quem define a partir de que momento uma determinada situação-limite impõe a necessidade de suspensão dos direitos individuais em nome da segurança do Estado. Esta situação de exclusão-inclusiva, já que é impossível de ser localizada no ordenamento jurídico, mas também não indiferente a ele, característica da exceção, cria um espaço de "indiscernibilidade" ou "indistinção" em que norma e exceção se confundem. Tal estado de coisas, por sua vez, acaba por reafirmar o exercício do poder soberano, já que lhe fornece as condições de possibilidade para agir neste espaço paradoxal. Mas por que o poder soberano não poderia mais ser exercido diretamente sobre os súditos, como outrora? Por que tantos subterfúgios para fazer valer o poder soberano de dispor da vida?

A resposta foucautiana, resgatada aqui de modo esquemático, revela que profundas transformações operadas pela gestão da vida a partir da biopolítica tornaram ainda mais difícil a reivindicação direta de morte que se estabelecia, lembremo-nos bem, na arcaica figura do patria protestas. Na modernidade, é em torno da vida que o exercício do poder se dá. É a crescente valorização da vida que, a partir do século XVIII, faz com que novos sujeitos comecem a ser fabricados, plantando num âmago de cada um a fraternidade secreta com o biopoder. Em última instância, a morte passa a ser regulada pelos códigos do biopoder e não do poder soberano:

(...) se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e se exerce ao nível da vida, da espécie, da raça, e dos fenômenos maciços de população. (...) Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte (FOUCAULT, 2005c, p. 129-130).

Agamben (2002) considera este raciocínio plausível, mas insuficiente para explicar o holocausto, designação que, aliás, ele contesta, pela sua vinculação etimológica à ideia de sacrifício. Nesse sentido, o que está em jogo na política do século XX não é a gestão da vida enquanto força a ser controlada dentro dos cálculos estatais, mas a redefinição do limiar a partir do qual uma vida deixa de ser politicamente relevante. Biopolítica converte-se, então, em tanatopolítica (e vice-versa), pela sua vinculação ao poder soberano, que, nesse contexto, autonomiza-se do estado de exceção, já que necessita, permanentemente, estabelecer o limiar de existência política dos viventes.  Para que possamos acompanhar um pouco do alcance dessa tese sobre o exercício biopolítico no século XX, será necessário investigar melhor qual é o estatuto de vida que está aqui em jogo.

 

5. O homo sacer, o poder soberano e a tanatopolítica

Para investigar o estatuto de vida que entra em cena na estrutura de exceção da soberania, Agamben (2002) recupera a figura do homo sacer, presente no direito romano arcaico, pelo interesse no paradoxo que lhe é constitutivo: trata-se de um homem cuja vida pode ser exterminada, sem que se cometa homicídio nem sacrifício. Numa análise minuciosa das explicações sobre o significado da sacralidade, tanto antigas quanto modernas, Agamben nos mostra que a dimensão sacra dessa figura não pode ser explicada pela ideia de ambivalência – fascínio e horror – que a cerca.

O homo sacer é uma figura que habita um território que não é nem exterior nem interior ao campo jurídico, pois embora sua morte não possa ser considerada homicídio também não está destituída de implicação jurídica. Encontra-se numa zona de indistinção na ordem religiosa, pois, ao contrário do que seria de esperar, pela sua vinculação com a sacralidade, a morte não pode ser submetida aos ritos que a tornassem passível de valor simbólico ou de sacrifício. Numa fina ironia acerca da pretensa "sacralidade da vida", Agamben (2002, p. 91) nos diz:

A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.

A estrutura de exceção, que é a mesma que constitui a exceção soberana, reaparece na constituição do homo sacer. O que pareceria uma mera analogia topológica entre o sacro e o soberano revela, no raciocínio agambeniano, uma íntima ligação entre eles: trata-se de figuras simétricas, isto é, só é possível definir e dar existência a um através do outro. Desta díade, Agamben extrai o que denomina ser uma "relação política originária": a vida sacra, ou seja, "vida nua", é o fundamento da decisão soberana. Sua inserção no âmbito jurídico-político se dá pela sua exclusão-inclusiva apenas no que serve ao exercício do poder soberano.

É, portanto, através da noção de vida nua, que habita a figura do homo sacer, que Agamben vai demonstrar, de modo convincente, o amalgamento entre vida e política na modernidade. Privada de valor político, mas não de utilidade política (já que ela se torna ferramenta para o poder soberano), a vida nua não é nem zoé (vida natural) nem bíos (vida politicamente qualificada). Estes dois termos, que especificavam a diferença entre duas formas de vida que distinguia o homem dos demais seres vivos no pensamento grego, perdem seu valor na modernidade.

Numa análise muito convincente sobre a função histórica da declaração dos direitos humanos, Agamben extrai a distinção entre homem e cidadão, presente desde o título Déclaration des droits de L´homme et du citoyen (de 1789). Explicita uma relativa autonomia existente entre estes dois termos, cuja disjunção foi embotada no processo de construção dos Estados-Nação modernos. A condição de aquisição de direitos de cidadão era garantida, na construção desse Estado, pela equivalência entre nascimento e nação. Filhos de súditos no território nacional teriam os requisitos para conquistar a condição de sujeitos portadores de direitos. O princípio da natividade vincula-se ao princípio da soberania para formação dos Estados-Nação. Ressalta que, na formação do cidadão, o que sempre esteve em jogo não foi a sua condição de animal político, mas a sua vida nua representada pela valorização do nascimento como exigência para porte de direitos. Uma das tarefas da modernidade é estabelecer esta fronteira, o limite a partir do qual a vida é transformada em vida nua, ou os indivíduos são transformados em viventes, a fim de redefinir os contornos do poder soberano.

O que Agamben nos revela é que a ficção da política moderna se alimentou do tamponamento dessa disjunção entre nascimento e nação, ou, ainda, de direitos do homem e do cidadão. Ela tratou de obturar essa descontinuidade. Acontece que diversos acontecimentos a partir do começo do século XX destampam esse caldeirão. Assim foi a política de desnacionalização dos judeus para que pudessem ser expropriados de sua condição de cidadãos. Os refugiados são esta outra figura que escancara esse resíduo entre nascimento e nação, já que não são mais garantia de direito algum para os indivíduos.

O campo é, para Agamben (2002), o paradigma biopolítico da modernidade, uma vez que nele política converte-se integralmente em biopolítica. É território de exercício do poder soberano sobre a vida nua, a partir da prerrogativa do estado de exceção que se converte em regra. Sua base jurídica é a "custódia protetiva", estratégia de controlar o perigo que determinados indivíduos possam representar ainda que não estejam enquadrados em nenhum crime. A cidade enquanto paradigma político dá lugar ao campo. A estrutura do Estado-Nação ancorada em território é rompida pela vida nua, que fratura a equivalência nascimento-nação. O campo é esta "terra de ninguém" habitada pela vida nua, que garante o exercício do poder soberano.

Para Agamben (2004), a proximidade entre democracia e estados totalitários pode ser fundamentada na existência da vida nua. Na sua leitura acerca da biopolítica contemporânea, ele escancara a pulverização da vida sacra, matável e insacrificável, nos indivíduos. A vida nua representa um estado de radical desamparo ao poder de morte do soberano, cujo descentramento também podemos observar nos diferentes lugares que ocupa na tessitura social. Nesse sentido, no argumento agambeniano, retornamos à vontade de matar da soberania, suportada pela centralidade que a vida nua ocupa nos cálculos do poder. Redefinir permanentemente o limiar das "vidas que merecem ser vividas" parece se constituir no imperativo biopolítico de nosso tempo, fraturando os alicerces do espaço democrático que ostentamos.

Zizek (2003) valoriza o questionamento de Agamben ao estatuto de democracia, mas o critica porque entende que, no seu argumento, ele fornece uma relação de encobrimento da vida nua pela democracia, deixando entrever uma espécie de relação dialética entre estes termos. Ele se pergunta se haveria outra via para pensar a relação entre vida e política, além da solução "pessimista", na qual vida nua e vida política estariam se tornando indiscerníveis, e uma solução "otimista" que pensaria os fenômenos totalitários como desvio do projeto iluminista. 

 

6. Considerações finais

Uma forte razão ético-política para estabelecer uma atualização da biopolítica pela especificação de uma tanatopolítica é a política de extermínio vigente no Brasil, responsável pelo genocídio de jovens negros e das classes populares. Em seus antecedentes históricos, vale lembrar que o pensamento médico brasileiro se constituiu junto com as marcas das contradições internas que a longa tradição escravagista havia gerado na dinâmica social brasileira. Dessa forma, as tensões sociais que se materializavam em termos raciais foram muito significativas.

Na formação social historicamente construída no Brasil, o "racismo étnico" e o "racismo contra o anormal", para usar a categorização foucaultiana (2005b, p. 403), precisariam ser reconhecidos a partir de outra organização dessas elucidativas chaves de análise que não a relação de recobrimento do primeiro pelo segundo, como sugere o filósofo francês, menos por uma razão teórica, mas por uma razão eminentemente política, que cumpre explicitar. Amparado pelo regime social ao qual pertencia, para o qual o racismo "étnico" não parecia se configurar como fundamento de suas tensões sociais, Foucault pensou tal forma de racismo como acoplada à gestão política da vida na modernidade, que define as vidas que merecem ser vividas. O racismo seria a forma pela qual o Estado conseguiria assegurar o assassinato em nome da vida, cumprindo, assim, sua função biopolítica, interpretação plenamente justificável no seu pensamento e plena de eloquência política. No entanto, no regime brasileiro é cabível um destaque analítico ao racismo étnico, pela historicidade de sua formação social e pelos estrondosos efeitos que se manifestam, ainda hoje, na atualidade do país, se pensarmos que a visibilidade pode ser uma estratégia política.

No Brasil do final do século XVIII e início do século XIX, a valoração biopolítica da vida foi aclimatada por forte racismo científico. Especialmente a medicina, através do discurso da degenerescência, fez equivaler a figura do degenerado à do negro/mestiço. A emancipação entre essas duas figuras do racismo não parece ter sido efetivada, ainda que se apresente, a partir da década de 1920, no contexto da eugenia, especificamente no pensamento de Renato Kehl, um combate violento à "fealdade", aos portadores de deficiências físicas e mentais, que parecia fissurar a equivalência anteriormente apontada. Se o racismo científico de Nina Rodrigues generalizava a inferioridade do negro, o racismo eugênico de Renato Kehl o misturou ao registro da anomalia, mas ainda assim atribuindo destaque à miscigenação como causa das mazelas brasileiras e defendendo o branqueamento como solução para elas. A constituição de um liberalismo à brasileira se fez à custa não só de uma naturalização das disparidades sociais, a partir da naturalização da "inferioridade" negra, constitutiva do conceito de raça, mas também da justaposição das expressões de anormalidade (criminalidade, loucura, desvios sexuais) ao negro brasileiro (OLIVEIRA, 2010).

Esse passivo histórico, enquadrado por uma relação entre Estado e sociedade fortemente marcada por seu caráter oligárquico, escravagista, patriarcal e punitivo, torna urgente uma reflexão aprofundada sobre a atualidade de um vigoroso poder de matar da soberania como tática de governo dos vivos. Os tímidos esboços de proteção social (mesmo que para acomodar tensões imanentes às aporias do capitalismo) por parte do Estado têm dado lugar, de forma vertiginosa, à recusa neoliberal desta função. É nessa perspectiva que a interlocução entre Foucault e Agamben pode nos ajudar a compreender a inflexão das políticas de extermínio na realidade brasileira contemporânea.

Os que estão expostos ao extermínio de formas de vidas não reconhecidas como tais, no Brasil, flagrantemente negros, pobres e periféricos, fazem transbordar o resto que não cabe no frame da essencialização normativa das "vidas que não merecem ser vividas", slogan nazista que ainda reverbera na atualidade, e reivindicam estatuto de vida para aqueles que submergiram na violência exercida pelo Estado.

 

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1Nota

Em 1978, num pequeno texto intitulado "A sociedade disciplinar em crise", Foucault (2001b, p. 532-533) proclama o processo de superação da disciplina enquanto tecnologia de poder nos países industrializados, sem, no entanto, desenvolver, nesse texto, o argumento. Vale como registro: "há quatro, cinco séculos, considerava-se que o desenvolvimento da sociedade ocidental dependia da eficácia do poder em preencher esta função. Por exemplo, importava, na família, como a autoridade do pai ou dos pais controlava os comportamentos dos filhos. Se esse mecanismo se quebrava, a sociedade desmoronava. O assunto importante era como o indivíduo obedecia. Nestes últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles soam cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar o desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina. A classe dirigente continua impregnada da antiga técnica. Mas é evidente que devemos nos separar, no futuro, da sociedade da disciplina de hoje."

 

 

Recebido em: 1/5/2016
Aprovado para publicação em: 30/5/2016

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