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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Racismo de Estado, biopoder e negligência: retratos da saúde na história brasileira

 

State's racism, biopower and neglect: health portraits in brazilian history

 

 

Paula de Melo RibeiroI; Carlos Alberto Ribeiro CostaII

IDoutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia: Estudos da subjetividade, da Universidade Federal Fluminense. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. E-mail: paulamelo_psi@yahoo.com.br
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, campus de Rio das Ostras. E-mail: carloscosta.psi@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente texto elege como tema a intrincada questão das ditas "doenças negligenciadas". Nomeadas por instituições nacionais e internacionais como "doenças de países subdesenvolvidos" ou "doenças dos trópicos" − a despeito de não respeitarem fronteiras geográficas ou temporais −, essas moléstias são consideradas "negligenciadas" devido à possibilidade de gastos sustentáveis como meios de combate, prevenção ou tratamento que, apesar dessa viabilidade, não se efetivam. Constata-se, pois, um aparente paradoxo, manifestado pela racionalidade política das atuais formas de (des)enfrentamento a essas moléstias: o Estado − que, a princípio, deve fomentar e assegurar a vida de sua população − age negligenciando certas doenças e permitindo que milhares de vidas se percam. As "doenças negligenciadas", tomadas como um "analisador" − ferramenta disruptiva que, ao conferir visibilidade e dizibilidade às relações instituídas, permite questionamentos e intervenções −, facultam supor que tais estratégias, a princípio contraditórias, "o fazer viver e o deixar morrer", são de fato operações intrínsecas, relacionadas àquilo que Foucault nomeia de "biopoder". A partir do contexto sócio-histórico brasileiro − apreendido desde a análise bibliográfica de artigos, livros, documentos e tabloides concernentes ao assunto − este artigo intenta, assim, indagar a intrincada máquina de "fazer viver e deixar morrer" relativa às "doenças negligenciadas".

Palavras-chave: doenças negligenciadas; biopoder; Racismo de Estado.


ABSTRACT

This paper chooses as its theme, the intricate issue of so-called "neglected diseases". Nominated by national and international institutions as "diseases of developing countries" or "diseases of the tropics" – despite they do not obey geographical or temporal boundaries – these diseases are considered "neglected" because of the possibility of sustainable spending in resources to fighting, prevention or treatment, and, despite its viability, this spending not become accomplished. It is noticed, therefore, an apparent paradox, expressed by the political rationality of the current forms of facing these diseases: the State − that, in principle, should to promote and ensure the life of its population − acts neglecting certain diseases and allowing thousands of lives are lost. The "neglected diseases", taken as an "analyzer" − disruptive tool that, by giving visibility and utterability to established relations, allows questions and interventions – provides to suppose that such strategies, contradictories in principle, of "do live and let die" are, indeed, intrinsic operations, in relation with what Foucault called "the biopower". From the Brazilian socio-historical context − seized from the literature review of articles, books, papers and tabloids concerning the matter − this article intends therefore ask the intricate machine "to live and let die" on the "neglected diseases".

Key words: neglected diseases; biopower; States's Racism.


 

 

1. Introdução

Recentemente, um relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2015) clamou aos governos do mundo, principalmente aos "países em desenvolvimento", que aumentassem o investimento para enfrentar as "doenças da pobreza". Dentre as 17 formas de "doenças tropicais negligenciadas" (DTNs), a OMS destacou, por exemplo, que "a dengue está presente agora em mais de 150 países" (ibidem), alojando um paradoxo: "algumas doenças tropicais negligenciadas não são mais estritamente tropicais". Para combater tal problema, a OMS previu "investimentos nacionais inteligentes", focados em prevenção e tratamento, que "representariam um aumento de apenas 0,1% na despesa nacional corrente para a saúde em países de baixa e média renda afetados, no período de 2015-2030" (ibidem). Ante a possibilidade de gastos sustentáveis em saúde e a existência de meios de prevenção/tratamento, como apreender que essas doenças continuem afetando milhões de pessoas? Se mesmo hoje se reconhece que tais mazelas desafiam fronteiras, clima e tempo (cólera e tuberculose, hoje consideradas enfermidades dos trópicos, já foram moléstias comuns na Europa antes do século XX), como entender que sejam conhecidas como doenças "tropicais" e que sejam − como aponta a OMS − "negligenciadas"?

Um efeito da nomeação "doenças tropicais" é naturalizar sua existência e persistência em certas populações. Logo, a expressão "doenças típicas de países ‘subdesenvolvidos" talvez diga menos respeito à localização geográfica do que ao contexto econômico e político, o que implica pensar fatores como a gestão e a negligência. Mas não seria esse um paradoxo político, o Estado, que deveria assegurar a vida de sua população, negligenciar parte da mesma? Seria esse o limite dessas políticas, algo que escapa às estratégias de poder para gerir a vida?

A partir dessa conjuntura e questões (que destacam a dimensão política que perpassa o governo da vida e das populações contemporâneas) propõe-se, aqui, explorar o suposto paradoxo, atentando para a dualidade de estratégia dessa política: também faz parte do funcionamento atual, da racionalidade de Estado, negligenciar certas doenças e deixar que milhares de vidas se percam. A essas duas faces da moeda, a esse "poder de Janus", que mira duas posições ao mesmo tempo, "o fazer viver e o deixar morrer", Foucault (2005, p. 287) dá o nome de "biopoder". Este artigo evoca para si, a partir de exemplos do contexto sócio-histórico brasileiro, o ofício de indagar essa intrincada máquina de "fazer viver e deixar morrer" relativa às "doenças negligenciadas".

 

2. O biopoder e as duas faces da saúde da população

Desde o século XVI, o Estado moderno se desenvolveu como uma nova estrutura política. Na contramão da tese tradicional que afirma ser o Estado responsável apenas pelas políticas que visam à população em sua totalidade, Foucault (1995) afirma que a maior sofisticação do Estado moderno está, curiosamente, no fato de este ser uma forma de poder que se vale tanto de técnicas de individualização quanto de procedimentos de totalização. Essa tecnologia que incide sobre o um e sobre o todo é destacada como o elo entre a racionalidade de governo moderna e uma forma de poder precedente denominada "poder pastoral", o que significa que esta mecânica presente no modo de funcionamento do Estado não lhe é própria; essa racionalização remonta a uma antiga tecnologia de poder originada nas instituições cristãs, ela tem seu germe na difusão da "tecnologia pastoral". Foi o cristianismo que estabeleceu essas novas relações de poder no mundo antigo. É ele que postula o princípio segundo o qual "certos indivíduos podem, por sua qualidade religiosa, servir a outros não como príncipes, magistrados, profetas, adivinhos, benfeitores e educadores, mas como pastores" (FOUCAULT, 1995, p. 237).

O tema do poder pastoral − caracterizado pela ideia de que a divindade, o rei ou o chefe é um pastor seguido por seu rebanho de ovelhas, amplamente difundido nas sociedades hebraicas − é praticamente ausente nos textos políticos da Antiguidade grega e romana. Essa forma específica de poder − ou pelo menos sua função − passou a se ampliar fora da instituição eclesiástica a partir do século XVIII. Esse novo poder, que, ao mesmo tempo "individualiza" e "totaliza", emerge, numa versão especificamente política, reconfigurado e laicizado, com o Estado de governo do século XVIII. "De certa forma, podemos considerar o Estado como a matriz moderna da individualização ou uma nova forma de poder pastoral" (ibidem, 1995, p. 237). Porém, no momento em que confluem a consagração estatal e a dispersão religiosa, emerge, junto ao nascimento de novas formas de relações econômicas e sociais, um tipo de questionamento que antes parecia caracterizar prioritariamente o âmbito religioso: o problema inicial sobre a maneira de como conduzir as almas se desdobra para o campo de ação do governo político no que diz respeito à condução da vida em todas as suas possibilidades. Ao ser incorporado e transformado pelo governo típico das estruturas políticas modernas, o poder pastoral incorpora novos objetivos em sua dinâmica. Não mais um poder preocupado primordialmente com a salvação de um povo em outro mundo, mas que tem por objetivo assegurá-la em vida, na sua imanência, ainda neste mundo, salvação transmutada em saúde de toda população e de cada indivíduo.

E é assim que na passagem do século XVIII para o XIX o indivíduo, tomado como espécie, entra nas estratégias e nos cálculos do poder político. Logo, a saúde da nação se torna alvo essencial de um poder que incide diretamente sobre a vida. Esse processo de estatização do biológico se dá historicamente acoplado à construção e ao fortalecimento do Estado nacional e à afirmação da burguesia, assim como à formação de um dispositivo médico-jurídico visando à medicalização e à normalização da sociedade. Foucault cita três inovações inerentes a esse poder:

1) a primeira delas é a emergência da noção de "população", que, segundo o autor, nem a teoria do direito nem a prática disciplinar a conhecia. Os juristas lidavam apenas com o indivíduo contratante e a sociedade constituída por esse contrato. As disciplinas, por sua vez, lidavam com o indivíduo e seu corpo. O elemento "população" se referirá a uma multiplicidade de corpos, sendo essa multiplicidade entendida como um problema ao mesmo tempo político e científico, ou seja, como um problema biológico e como um problema de poder;

2) o segundo elemento é a natureza dos fenômenos que são levados em consideração. São fenômenos coletivos, que só se tornam pertinentes no nível da massa, que aparecem em efeitos econômicos e políticos. "São fenômenos aleatórios e imprevisíveis, se os tomarmos neles mesmos, individualmente, mas que apresentam, no plano coletivo, constantes que é fácil, ou em todo caso possível, estabelecer" (FOUCAULT, 1999, p. 293);

3) o terceiro aspecto de importância sublinhado pelo autor diz respeito aos mecanismos de poder implantados pela "biopolítica". Esses últimos mecanismos têm funções um tanto diversas das que eram próprias ao dispositivo disciplinar. A biopolítica se detém, sobretudo, em previsões, estimativas, estatísticas e medições globais, ou seja, essa tecnologia de poder se interessa por aquilo que se define como as determinações dos fenômenos coletivos, ela tenta agir sob a égide de um discurso que levanta como dados pertinentes, por exemplo, a taxa de natalidade, de morbidade, a expectativa de vida etc.

Com isso, o poder passa a se mostrar cada vez mais como direito de intervir para fazer viver, majorar a vida, multiplicá-la e torná-la isenta de todo tipo de acidentes, eventualidades e deficiências. Logo, justifica-se a interferência no mais elementar nível da vida, caberá a ele administrar a existência humana com o propósito de "defesa da espécie". Não é difícil visualizarmos, hoje, traços que denunciam o enraizamento cotidiano dessa racionalização referida à experiência da saúde e à defesa da vida da população. Vivemos em meio a uma medicalização em massa, a proliferação de novos tratamentos, novas categorias nosológicas, novos especialismos etc.

Ao mesmo tempo, tal poder desvela sua dimensão não concentrada ou hierarquizada, em efeitos mais plurais sobre a subjetividade: as próprias pessoas buscam se adequar a princípios que lhes indicam, por exemplo, como se alimentar, o que beber, como ter práticas sexuais livres do perigo das doenças, como ter vida longa e juventude eterna. Logo, critérios de saúde, tais como as taxas de colesterol, de hormônio, de glicose, o tônus muscular, desempenho corporal, vigor físico, entre outros, tornam-se preocupações corriqueiras. Nas palavras de Ortega (2004, p. 4), a saúde deixa de ser a "vida no silêncio dos órgãos": ela exige a autoconsciência de ser saudável, deve ser exibida, afirmada continuamente, de forma ostentosa, alçada a princípio fundamental de identidade subjetiva. "A saúde perfeita tornou-se a nova utopia apolítica de nossas sociedades. Ela é tanto meio quanto finalidade de nossas ações. Saúde para a vida. Mas também viver para estar em boa saúde. Viver para fazer viver as biotecnologias" (ibidem, p. 4).

Não obstante, simultâneo ao poder que tenta a todo custo gerir a vida, outro mecanismo possibilita negligenciar determinadas existências: é o que ocorre quando, por exemplo, certas doenças afetam milhares de pessoas a cada ano, não havendo, para elas, tratamento ou acesso a medicamentos satisfatório e/ou adequado. Em sua maioria, as pessoas afetadas não têm poder de compra, não constituindo, consequentemente, um mercado consumidor gerador de lucro para a indústria farmacêutica. Mas esta não é a única justificativa para o descaso, seu pretexto não é meramente econômico (em muitos "países em desenvolvimento" é sabido que é o governo o maior comprador de medicamentos, há "quebras de patente" etc.). A falta de acesso ao tratamento não é redutível apenas ao fator econômico, mostra-se relacionado ao fator político: a negligência para com uma parcela específica da população. Em outras palavras, também é parte da racionalidade de Estado negligenciar certas doenças e deixar que milhares de vidas se percam.

O direito de vida e de morte foi um atributo fundamental na teoria clássica da soberania. O poder que o soberano exercia sobre a vida de seus súditos só era efetivo porque o chefe do poder monárquico detinha o direito de matar (FOUCAULT, 2005, p. 287). "Este direito de matar derivava do patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de ‘dispor' da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha ‘dado'" (idem, 1999, p. 127). No entanto, a formulação desse direito de vida e de morte já se mostra um tanto mitigada nos teóricos clássicos. O direito de vida e de morte só é admitido quando o soberano se encontrar ameaçado, quer dizer, o direito de matar terá certas restrições, não será mais exercido de forma absoluta e de modo incondicional, mas apenas em alguns casos em especial.

É a partir da Idade Clássica, entre os séculos XVII e XVIII, que o Ocidente presentifica uma mudança significativa em seus mecanismos de poder, uma transformação no direito político. Surge nesse momento um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a "barrá-las, dobrá-las ou destruí-las" (FOUCAULT, 1999, p. 127). Essa mudança política não abandona a velha lógica do direito de soberania, ela a complementa. O poder de morte deve, nesse momento, acomodar-se às exigências de um poder que pretende gerir a vida. Logo, o fundamento do direito soberano que era "fazer morrer e deixar viver" dá lugar, desde então, a um poder de "fazer viver e deixar morrer" (idem, 2005, p. 287). A morte, antes fundamentada no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, é "revertida no direito do corpo social de garantir sua própria vida, de mantê-la ou desenvolve-la" (idem, 1999, p. 128).

O poder de morte passa a se apresentar como complemento do poder positivo sobre a vida, que visa regular os fenômenos de população. O "poder matar para poder viver" se torna princípio de estratégia entre os Estados; o que está em questão não é mais a "existência jurídica" da soberania, mas a "biopolítica da população". Com isso, há uma nova tomada do poder sobre as existências, os fenômenos próprios à vida humana entram no domínio das técnicas políticas. É nesse momento que se vê surgir uma estatística da vida (taxas de natalidade, de mortalidade etc.) e que, concomitante a essas estratégias de poder, criam-se "campos de saber que pretendem dar conta do estudo do homem" (FOUCAULT, 1999). Para além do poder absoluto, dramático e centralizado da soberania, que implicava o poder "fazer morrer", eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, que incide sobre a "população" como tal, sobre o homem como ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o de "fazer viver". "A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer" (ibidem, 1999, p. 294).

 

3. "Deixar morrer" do "fazer viver" na história brasileira

No caso do Brasil, como de tantas outras nações, a história da consolidação do Estado se confunde com a própria história da institucionalização da medicina. Esta desponta no século XIX como parte do Estado, e, assim, delineia sua história como alvitre da necessidade de o Estado intervir na sociedade e, principalmente, na vida da população, que precisava se adequar às novas exigências das relações sociais. A medicina, dessa maneira, tentará definir modelos de comportamento que incidiram principalmente sobre as classes sociais subordinadas (LUZ, 1982).

O objetivo de uma política sanitária, caro aos médicos naquele período, reforça e viabiliza projetos políticos de consolidação do Estado nacional; assim, o planejamento estatal e o controle sobre a vida das populações – especialmente da classe trabalhadora, sempre sob suspeita – se efetivam em nome da "neutralidade" do saber para "o bem de todos" (ibidem, p. 11). Tal lógica se desdobra e revela a força do racismo na história da medicina e da saúde pública no Brasil. Note-se, por exemplo, o contraste entre o grande esmero dispensado à febre amarela por médicos e políticos, nas três últimas décadas do século XIX − em decorrência da relação entre a moléstia e a imigração europeia −, com o descuido, no mesmo período, com que foi abordado o problema da tuberculose, doença de acepção muito ligada à população pobre1 e negra da cidade. "Em fins do século XIX e início do XX, a tuberculose era a maior responsável pela mortalidade na cidade do Rio de Janeiro. Todos os anos ela eliminava grande contingente da população, só sendo sobrepujada por outra doença nos anos de epidemia" (NASCIMENTO, 1999, p. 42).

Ao que se sabe, o primeiro grande surto de febre amarela atingiu a população do Rio de Janeiro2 por volta de 1850. Os médicos constataram que a moléstia acometia de forma branda a população negra da Corte: apesar de atingir os negros, em geral, a moléstia raramente ocasionava morte. Por outro lado, a população branca (principalmente os imigrantes) foi a que mais sofreu com a tragédia no que diz respeito a vítimas fatais. Ao infectar prioritariamente imigrantes no interior de uma economia escravocrata, a febre amarela não representou preocupação para o governo imperial: "o poder público alegava que a moléstia não atingia a população da Corte, mas sim aqueles que por ela passavam" (CHALHOUB, 1996, p. 77).

Em contraste com esse período, justamente por vitimar prioritariamente os imigrantes, a febre amarela ganhou notoriedade e se tornou problema de saúde pública do Brasil. Quando tal flagelo se convertera num obstáculo à realização do projeto político que gradativamente passou a se impor aos latifundiários: o preenchimento do mercado de trabalho com os pauperizados imigrantes europeus, principal forma de enfrentar a eminente emancipação dos escravos. Em suma, "a febre amarela, com os infalíveis estragos que provocava entre os imigrantes recentes, passou a ser percebida como um empecilho à ideia dos cafeicultores de "suavizar" a transição do trabalho escravo para o trabalho "livre" por meio da imigração europeia" (ibidem, p. 89).

Desse modo, devido aos intermináveis surtos de febre, é criada, ainda em 1855, a Junta Central de Higiene, órgão imperial encarregado de cuidar dos problemas de saúde pública, a Câmara Municipal da Corte passando a debater ações reservadas à regulamentação da existência das habitações coletivas. Prontamente se vê erigir a ideia de que os cortiços e epidemias de febre amarela eram temas indissociáveis. Os cortiços supostamente suscitavam e alimentavam a febre. A partir de 1870, cria-se a concepção de que é preciso intervir de forma extrema na urbe para suprimir as estalagens e apartar do centro da capital as "classes perigosas" que nele residiam. Classes duplamente perigosas, porque disseminavam a doença e afrontavam as políticas de controle social citadina (CHALHOUB, 1996, p. 8). Outra face dessa negligência se explicita no contraste entre a febre amarela e outra doença, a tuberculose, que, na época, não era pauta de preocupações do governo, ocupado com as doenças epidêmicas.

O centro do Rio de Janeiro, pela forma como se desenvolveu, preservava condições materiais favoráveis ao aparecimento de epidemias, ocupando a febre amarela posição primordial na atenção do Estado. Tal posição era reforçada com a "predileção" da doença pelos estrangeiros que aqui aportavam (NASCIMENTO, 1999, p. 48). A questão do saneamento do Rio de Janeiro passa então a se constituir como principal motivo de mobilização das autoridades, os sucessivos governos colocam em pauta o saneamento da capital federal. Sua maior motivação claramente se associava ao interesse pelo comércio internacional: "Não eram as condições de saúde da população trabalhadora aí residente que estavam em jogo, mas, sim, o rápido crescimento da economia do país e a intensificação das atividades portuárias" (ibidem, 49).

É, então, sob a alegação de que os pardieiros eram fontes miasmáticas de infecções febris na cidade, que se assiste ao aniquilamento desses, restringindo-se as ações a transferir à força os habitantes dos cortiços para outros mais longínquos do centro urbano. O principal inconveniente dessas habitações estaria no "risco" (foco de moléstias e vícios) que causavam aos moradores adjacentes. Isto é, "a utilidade do projeto não se assentaria na melhoria das condições de vida das classes populares em si, mas sim na vantagem de torná-las menos perigosas para a classe dominante" (CHALHOUB, 1996, p. 54). A saúde pública, então, passava a significar higiene, extermínio das habitações das classes pobres. Com isso, o governo deixava de considerar outros aspectos relevantes, como a nutrição e as condições de trabalho da população. As condições de saúde nos cortiços não se revelavam preocupantes apenas em relação à febre amarela. Chalhoub mostra que é a tuberculose que ameaçava se tornar endêmica no país.

A doença, que já naquele tempo era associada às condições de miséria da população, matava incessantemente a população pobre. "Na cidade do Rio de Janeiro, a tuberculose matava implacavelmente todos os anos e no ano todo, e desconfio que nas últimas décadas do século fazia mais vítimas fatais do que todas as doenças epidêmicas de maior visibilidade somadas" (CHALHOUB, 1996, p. 94). É claro que, ao eleger e priorizar a febre amarela em detrimento de outras doenças, em especial a tuberculose, os cientistas da higiene, através de políticas públicas, tinham como objetivo tornar o ambiente urbano sadio para um determinado setor da população. A febre amarela, ao afligir os imigrantes, punha em risco o projeto dos cafeicultores, que esperavam que esta população pudesse substituir os negros em suas lavouras. O objetivo final, pois, seria o combate às doenças hostis à população branca, e a expectativa que a miscigenação e as enfermidades "reconhecidamente graves entre os negros lograssem o embranquecimento da população, eliminando gradualmente a herança africana da sociedade brasileira" (ibidem, p. 9).

Havia motivos, digamos, nada óbvios ou "neutros", na opção em priorizar o combate à febre amarela em detrimento da tuberculose − doença que, como já foi mencionado, os próprios médicos associavam à nutrição e às condições de trabalho e de vida em geral da população. Durante todos esses anos da crise aguda de saúde pública na cidade do Rio (aproximadamente entre 1850 e 1920), a tuberculose matou muito mais do que qualquer doença epidêmica. A tuberculose, porém, parecia atacar indiferentemente brancos e negros, nacionais e estrangeiros e, desculpa suprema, era doença extremamente grave "até mesmo em Paris" − o que sugeria nos eximir de qualquer culpa por abrigar a peste. A febre amarela significava basicamente o oposto: além de não acometer Paris e se deflagrar no Rio anualmente, era um verdadeiro flagelo principalmente para os imigrantes (ibidem, p. 56).

A partir do momento em que a ciência determinou em definitivo a tuberculose como uma enfermidade contagiosa, surgiu, ao mesmo tempo, a reivindicação de que ela fosse tomada como um problema público a cargo do Estado. Exemplo disso é a luta travada por Oswaldo Cruz na tentativa de que o Estado tomasse para si a tuberculose como questão. Em 1907, o pesquisador apresentou um plano de combate em que explicita uma série de ações contra a moléstia. "Fornecendo-se habitações higiênicas, alimentações abundante e boa, não se permita o trabalho das crianças nas fábricas, evitem-se os esgotamentos orgânicos de causas higiênicas, físicas e morais (...) que se terá fornecido ao organismo a arma da luta que fará sucumbir o bacilo assaltante" (CRUZ, apud NASCIMENTO, 1999, p. 143).

Segundo Nascimento (ibidem, p. 50), a resposta dada pelo poder estatal na época era de que embora a tuberculose se constituísse como problema público, ela ainda não possuía importância necessária que a fizesse ser tomada como uma questão política de peso; logo, seria inviável naquele momento submeter tal plano de combate à enfermidade às esferas dos poderes Executivo e Legislativo. Ao que consta na imprensa da época, Oswaldo Cruz se desentendeu com Afonso Pena, que, "comprometera-se a pedir ao Congresso o crédito de 12 mil contos, mas voltara atrás alegando que o combate à tuberculose devia ser adiado até que se caracterizasse como calamidade pública". Mas o que significaria um estado de calamidade pública? A exemplo da febre amarela, poder-se-ia afirmar que para o poder público, no início do século XX, a tuberculose se mostraria catastrófica se chegasse a influir diretamente na economia do país.

Como visto, a febre amarela atingia negativamente o cerne da estratégia econômica no final do século XIX, a saber, a mão de obra estrangeira. A tuberculose, por outro lado, estava ligada aos negros, que naquela ocasião não tinham importância para a economia. Destarte, a relação do Estado com a doença é historicamente definida e distinta a cada conjuntura. Ao nos aproximarmos da conjuntura brasileira de início do século, vemos que a característica fundamental era de um Estado que mantinha "os direitos individuais assegurados aos ricos e não aos destituídos, para que a vida em sociedade pudesse ser regulada pelo mercado econômico e político, condição necessária para a nova ordem capitalista se desenvolver" (NASCIMENTO, 1999, p. 146). Ora, essa forma de racionalidade se faz presente, também, contemporaneamente.

 

4. Mais vale prevenir que remediar: um novo enredo para uma velha história

O Relatório global sobre a tuberculose, da Organização Mundial de Saúde (2014), publicizou, recentemente, que cerca de nove milhões de pessoas desenvolveram tuberculose no mundo em 2013 (p. 13). Em seu website, o Ministério da Saúde do Brasil (2015) explicita que a nação se encontra em 22º lugar no ranking dos países responsáveis por "80% do total de casos de tuberculose", sendo esta enfermidade entendida como um tipo de agravo "fortemente influenciado pela determinação social", diretamente relacionado à "pobreza e à exclusão social". Embora os números indiquem, nos últimos dezesseis anos, a diminuição "em 38,4% a taxa da incidência e 35,8% a taxa de mortalidade da doença" (ibidem), a doença insiste em certos segmentos:

À medida que a tuberculose diminui na população em geral, em alguns segmentos, a doença se distribui de forma mais concentrada. Os grupos populacionais mais vulneráveis são aqueles que vivem em condições desfavoráveis de moradia e alimentação, em conglomerados humanos, e entre pessoas com sistema imune deficiente e com dificuldades de acesso aos serviços de saúde (ibidem).

Dados recentes (PILLER, 2014) informam que a taxa de infecção no município do Rio de Janeiro é de 95,2/100.000 habitantes, número muitas vezes superior ao recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Como pontua a autora, a ocorrência da tuberculose "está diretamente associada à forma como se organizam os processos de produção e de reprodução social" (ibidem):

Nas populações mais vulneráveis, as taxas de incidência são maiores do que a média nacional da população geral. É duas vezes maior na população negra e quatro vezes maior na indígena. Na população carcerária, a taxa é 25 vezes maior e, entre os portadores de HIV, é 30 vezes maior. Na população vivendo em situação de rua, a taxa chega a ser 67 vezes maior (4,10-12). Quanto ao risco anual de desenvolvimento de tuberculose ativa, a desnutrição e o diabetes elevam o risco em 2-4 vezes, o uso de imunossupressores eleva o risco em 2-12 vezes, a silicose o aumenta em 8-34 vezes, e a infecção por HIV o aumenta em 50-100 vezes (ibidem).

A probabilidade de o sujeito entrar em contato com o bacilo e a deste contato resultar em caso da doença depende não só da circulação do bacilo na população, mas também de condições que reforcem ou enfraqueçam as defesas dos indivíduos. A tuberculose é, sem dúvidas, um analisador3 não apenas da saúde da população, mas das condições sociais em que esta vive: ela demonstra como as condições de alimentação, habitação, de trabalho e de saneamento são determinantes do estado de saúde. A saúde inclui mais que a medicamentalização.4 Por outro lado, é possível observar que a forma como as políticas públicas respondem à questão da saúde da população pobre restringe-se, muitas vezes, à medicalização, produzindo, de certa forma, mais negligência, ao desconsiderar a complexidade dos processos de saúde e os elementos socioeconômicos relativos à etiologia de várias das "doenças tropicais".

Dessa forma, o Estado delega à medicina questões insuperáveis na medida em que esta teria que abordar explicitamente o problema da natureza das relações sociais na determinação da doença. Para tal, crucial seria tomar a saúde como "expressão de condições sociais de existência, não como estado teórico de ausência relativa de morbidez", e não responder às solicitações sociais apenas através de fármacos (Luz, 1982, p. 18). Desse ponto de vista, reduzir a saúde à ausência relativa de doença tem sido, no Modo de Produção Capitalista, a forma institucional de eludir o problema das condições sociais de existência, pois:

Os problemas de saúde estão intimamente conectados com os problemas de cidadania, com os problemas dos direitos humanos, porquanto a estrutura econômica, cultural e social da comunidade influi profundamente sobre seu estado de saúde. Esta influencia é exercida por forças sobre as quais a medicina não tem poder de atuação e sua prevenção é problema político e de governo (ibidem, p. 18).

Os subsídios que a medicina pode dar não suprem a demanda de saúde que a população almeja, isso, é claro, se aceitarmos que a saúde não depende essencialmente de medicamentos, mas é influenciada diretamente por fatores econômicos e sociais. Não cabe à medicina, portanto, "ser repositora (ou substituta) de algo que a própria estrutura social subtrai" (LUZ, 1978, p. 167). Não é pretensão do Estado acabar com a tuberculose, doença associada à pobreza e às más condições de vida da população. Para esse mal não existe fármaco possível. O poder público parece funcionar dentro da lógica do menor gasto possível quando o assunto são "doentes pobres", atualizando, através dessa negligência, seu poder sobre a vida e sobre a morte.

Outro exemplo de incidência desse poder é o problema da dengue na cidade do Rio de Janeiro. A doença reemergiu no município no ano de 1986, tornando-se endêmica e apresentando anos epidêmicos. A média das taxas de incidência em anos não epidêmicos é de 27 casos/100.000 hab., já a dos anos epidêmicos é de 470 casos/100.000 hab. Apesar da gravidade do problema, o governo nunca se mostrou inclinado a resolver a questão de forma definitiva, a responsabilidade dos surtos da doença sempre foi ou transferida à população, que "não elimina os reservatórios de água em suas casas", ou, então, ao clima, "do verão chuvoso etc.".

Curiosamente, no verão de 2007, a doença, velha conhecida da população, retorna, de forma pujante, a diferença é que, nesse ano, a cidade viria a ser sede dos jogos Pan-Americanos, fato que parece ter feito a sociedade encarar a doença de outra forma. O jornal O Globo, de 23 de fevereiro, traz como manchete "Dengue pode afetar turistas e atletas no Pan" (ALVES, 2007).

Na reportagem, um epidemiologista assegura que "Não é provável que haja uma epidemia na cidade porque muita gente já teve dengue e está imunizada. Mas, se a situação continuar assim, quem corre risco são os turistas e atletas, que estão suscetíveis ao mosquito". Turistas americanos, argentinos, canadenses, uruguaios, fora os atletas, podem ter dengue se o plano de combate à doença não sair do papel (ibidem). O problema, segundo o especialista, é que os casos de dengue registrados no Rio são todos em decorrência do vírus tipo 3. Este tipo de vírus não seria encontrado nas Américas Latina ou do Norte, à exceção da Venezuela e do Caribe, o que tornaria o problema ainda mais grave, de acordo com o pesquisador, pois quase todos os turistas poderiam ser infectados pela moléstia. Mais uma vez, observa-se a velha história insistir; as personagens e o enredo são outros, mas algo permanece: a preocupação do Estado com a doença ganha proporção à medida que ela ameaça não só a população pobre, mas também outros setores da sociedade, como os turistas do Pan.

Para proteger turistas e atletas do "mal", o governo tomou diversas medidas, o Ministério da Saúde, por exemplo, planejou a campanha "Pan Sem Dengue". Tal campanha teria contado com 1.050 agentes de saúde, a ressalva é que esses agentes serão retirados dos municípios vizinhos ao Rio, para garantir a saúde de nossos turistas. A previsão era a de que, com esse número de trabalhadores, as favelas que circundam os locais de jogos e a Vila Olímpica fossem inspecionadas, e, assim, não levassem perigo biológico aos excursionistas. Até o dia 10 de abril, 4.876 casos da doença já haviam sido notificados na cidade, o que mais preocupava as autoridades era a existência de focos do Aedes aegypti próximos aos locais de competição. A Secretaria Municipal de Saúde decidiu, então, criar brigadas antidengue para atuar na Vila Pan-Americana e nos locais de competições, como o Maracanã e o Estádio Olímpico João Havelange. Resolveu, também, proibir que os agentes de controle de endemias tirassem férias em julho.

No verão de 2008, eis que a dengue retorna ao Rio de Janeiro. O diferencial é que nesse ano não houve Jogos Pan-Americanos e as autoridades locais assumem a questão de forma diversa ao ano anterior. Com isso, enquanto a doença regredia em cerca de 40% no país, no Estado do Rio de Janeiro ela cresceu 117,42%. Nas primeiras cinco semanas de 2008 ocorreram no Estado 8.486 casos, constituindo, assim, cerca de 16% dos casos de todo o Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Parasitologia.

 

5. Conclusão: O Racismo de Estado e a negligência com a saúde

De forma abreviada, apreciamos como, desde o século XIX até os presentes dias, a gestão política da vida vem comparecendo em sua dupla faceta, de "fazer viver, deixar morrer". O doente "negligenciado" continua sendo, em sua maioria, a massa pobre que vive em condições precárias de existência. É claro que a moléstia também atinge outros setores da população, mas esses números, em sua grande maioria, estão ligados a situações como a incidência da AIDS, diabetes e outras tantas enfermidades que debilitam o organismo humano, fazendo com que a tuberculose se instale. A moderna prática da "gestão científica" da cidade continua a escolher cuidadosamente seus beneficiários e entende que o saneamento e as transformações urbanas, questões diretamente ligadas à moléstia, não implicam compromissos com a efetiva melhoria das condições de vida de uma massa enorme de pessoas. Diante de tais fatos e tendo em vista o funcionamento do Estado − que, formalmente, reconhece como seu o papel de defesa da vida, seu maior objetivo –, como aceitar que este mesmo modo de funcionamento implique a negligência e morte de cidadãos?

Foucault confere à construção do "Racismo de Estado" − ontologização de elementos biopolíticos − um lugar de destaque. Para ele, fora justamente a emergência do biopoder que inseriu esse racismo nas engrenagens dos Estados modernos. "O racismo é o meio de introduzir, afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder" (FOUCAULT, 2005, p. 304). O direito de matar do Estado é, assim, assegurado desde que o Estado funcione no modo do biopoder pelo racismo. "Entre a minha vida e a morte do outro se estabelece uma relação pautada no modelo biológico, a morte do outro significa a morte do inferior, esta purificação tornaria a vida mais saudável" (ibidem, p. 305). O imperativo de morte, dessa forma, não denota simplesmente uma relação guerreira de enfrentamento, ela só é admissível no sistema de biopoder se visar não ao fortalecimento diretamente atado à eliminação. É, portanto, a partir do princípio segundo o qual a morte do diverso é a condição para a consistência biológica da própria pessoa, na medida em que ela é parte de uma raça ou de uma população, que o racismo assegura sua função de morte na economia do biopoder.

No século XIX, a justificativa do governo imperial para a eliminação dos cortiços era de que eles eram responsáveis pela disseminação da febre amarela pela cidade. Os cortiços, ou, mais especificamente, a classe pobre, ameaçavam a saúde da população em geral. Com o decorrer do tempo, as formas de racismo, por vezes, tornaram-se sofisticadas ou mesmo mais veladas. O que não quer dizer que elas desapareceram de nosso meio. Acredita-se, portanto, que o Racismo de Estado se faz presente em nossas práticas quando, por exemplo, a saúde da população pobre é negligenciada, quando esta mesma parcela da sociedade é responsabilizada pelo seu estado de saúde, ou, mesmo, quando ela é medicalizada quando as medidas efetivas de prevenção e tratamento implicam melhores condições sociais de existência. Apesar das naturalizações em torno das ditas "doenças tropicais" (ou de "países em desenvolvimento"), a análise dessas revela que tanto a enfermidade sob a óptica médica quanto os significados que o doente atualiza em seu corpo implicam, em sua historicidade, sua sobre-determinação por arranjos políticos e sociais. 

 

Referências bibliográficas

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1Notas

A tuberculose incidia de modo heterogêneo na população. "A população não se distribuía homogeneamente pela cidade quanto à condição de habitação, a inserção no trabalho não era a mesma para todos, os alimentos não estavam igualmente acessíveis nem se tinha igual acesso aos recursos médico-sanitários" (NASCIMENTO, 1999, p. 42).

2 Segundo as estimavas, quase um terço da população do Rio de Janeiro contraiu a febre amarela no verão de 1850, o número de mortos nessa primeira epidemia alcançou cerca de 4.160 habitantes (CHALHOUB, 1996, p. 61).

3 O conceito de "analisador" foi formulado por Guattari, no contexto da Psicoterapia Institucional, e foi incorporado pela Análise Institucional Socioanalítica (LOURAU, 2003). Trata-se de acontecimentos que produzem rupturas, criados ou já ocorridos, com potencial para dar visibilidade e dizibilidade às relações instituídas, tomadas como naturais.

4 Sobre a diferença entre "medicalização" e "medicamentalização", Amarante (2007, p. 95) esclarece, a partir de Foucault e Ivan Illich, que o termo "medicalização diz respeito à apropriação, por parte da medicina, de tudo aquilo que não é da ordem exclusivamente médica, ou predominantemente médica". Na medicalização, problemas político-econômicos e sociais seriam tomados como questões puramente médicas. Ainda segundo Amarante, a medicamentalização, por outro lado, está relacionada à "utilização de medicamentos para responder à situação que é entendida como patológica" (ibidem, p. 95).

 

 

Recebido em: 22/5/2016
Aprovado para publicação em: 15/6/2016

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