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Saúde & Transformação Social

On-line version ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.4 no.4 Florianopolis Oct. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O uso de jogos teatrais como instrumentos de ensino de enfermagem em saúde mental

 

The use of theater games as teaching tools in mental health

 

 

Carlos Renato Pinto FerreiraI*; Carla Araujo Bastos TeixeiraI*; Emilene ReisdorferI**; Ana Carolina Guidorozzi ZanettiI***; Edilaine Cristina da Silva Gherardi-DonatoI****

I Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se descrever e analisar a experiência do uso de jogos teatrais, segundo o Fichário de Viola Spolin, no ensino de saúde mental. O estudo foi norteado através da abordagem qualitativa, realizado em uma turma de Enfermagem de uma Universidade do estado de São Paulo, com os 46 estudantes matriculados na disciplina Cuidado Integral em Saúde Mental II. As atividades desenvolvidas foram realizadas e descritas a partir de vivências individuais e coletivas em dois momentos distintos. A coleta dos dados ocorreu através de questionário semi-estruturado baseado no Fichário de Viola Spolin, além do registro de observadores não-participantes. Os relatos foram analisados a partir dos sentidos das palavras, com a utilização de suporte teórico para embasar os conteúdos das mesmas. Os relatos permitiram vislumbrar a potencialidade da intervenção dos jogos como complemento da formação do profissional, considerando o enfermeiro como um ser humano constituído por características físicas, psíquicas e sociais assim como os clientes aos quais recebem o cuidado.

Palavras-chave: Ensino; Saúde Mental; Jogos Teatrais.


ABSTRACT

The objective was to describe and analyze the experience of the use of theater games, according to Binder Viola Spolin, the teaching of mental health. The study was guided by a qualitative approach. The scenario was the class of Nursing of São Paulo state, with 46 students enrolled in the course Comprehensive Care in Mental Health II. The activities were carried out and described from individual and collective experiences at two different times. Data collection occurred through semi-structured questionnaire based on Binder, beyond the record of non-participating observers. The reports were analyzed from the senses of words, with the use of theoretical support to support the contents thereof. The reports provided valuable insights into the potential of the intervention of the games as a complement of professional training, considering the nurse as a human being consisting of physical, psychological and social as well as customers to whom they receive care.

Keywords: Teaching; Mental Health; Theater Games.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O jogo é uma das atividades que acompanham o desenvolvimento da humanidade. A característica lúdica dos jogos atrai pessoas desde a antiguidade, e até hoje pode ser observado como um instrumento pedagógico em diversos setores do ensino. Através do jogo pode-se notar as dinâmicas relacionais, assim como a capacidade espontânea de absorção de conhecimento e possibilidades de reflexão1.

A capacidade de captar as experiências de uma forma sensível se faz presente assim como o acesso a capacidades cognitivas e sensoriais. Frente aos estímulos realizados por ferramentas artísticas, a potencialidade criativa pode ser vivenciada, propiciando a percepção e análise crítica, possibilidade de perceber as potencialidades do outro, bem como formas de se tornar mais participativo e transformador da reali dade2.

A importância da espontaneidade e prontidão frente às inúmeras situações cotidianas é de suma importância para a vida, para o aprendizado e para a dinâmica do ensino. A aplicação de jogos teatrais propicia resultados criativos na capacidade de solucionar problemas frente a muitos estímulos, além de proporcionar a liberdade pessoal na experiência e as habilidades são desenvolvidas junto à diversão3.

A necessidade de reflexão e possíveis mudanças em relação à formação acadêmica de profissionais de saúde é uma questão na atualidade do ensino. Romper antigas estruturas cristalizadas em que as informações transmitidas são depositadas em alunos passivamente receptivos é um desafio4.A busca de novos modelos de ensino, de novos conteúdos e direcionamentos práticos requer uma flexibilidade educacional em função da busca de caminhos diferenciados para a formação de profissionais da saúde. O processo pedagógico ocorre em um diálogo de subjetividades, e o aprendizado só se efetiva se o conhecimento compartilhado é significativo para todos os atores envolvidos5.

No contexto da saúde mental, atender as necessidades de diversos conteúdos psíquicos requer um cuidado redobrado por parte dos enfermeiros6. O enfermeiro necessita de suporte e apoio em relação às suas próprias questões afetivas e emocionais. O auto-conhecimento é um caminho importante e o relacionamento interpessoal é adquirido com a prática. O enfermeiro psiquiátrico deve colocar-se como sujeito participativo no desenvolvimento de suas habilidades, deve usar a auto-conscientização e a sua pessoa como meio para a relação positiva com o sujeito7.

As preocupações com uma formação pessoal são um reflexo da contemporaneidade para futuros cuidadores. No campo da saúde mental esta preocupação está presente e a postura do enfermeiro frente às dificuldades encontradas requer dobrada preocupação, levando-se em conta a complexidade das enfermidades psiquiátricas. É necessário permitir ao aluno trazer sua "história" para a situação de aprendizado, para que o conteúdo a ser aprendido tenha realmente significado para ele8.

O Jogo Teatral é um instrumento facilitador destes processos individuais, utilizado tanto para a prática teatral quanto para o auto-conhecimento diante das relações e imprevistos cotidianos. Como ferramenta de ensino mostra sua eficácia, dependendo do enfoque que lhe é validado.

Viola Spolin, através de seus jogos, mostra um caminho que oferece um apoio lúdico e estruturante rumo à espontaneidade, criatividade, auto-conhecimento e prontidão para o imprevisto em diversas situações. O universo de Viola Spolin tem influência significativa na didática da linguagem teatral na escola. Suas propostas são direcionadas tanto com os procedimentos pedagógicos como com o resultado estético, cujas sínteses deveriam ser apresentadas à comunidade local e não apenas escolar9. A base de sua proposta pedagógica repercutiu intensamente no meio educacional brasileiro10.

Tendo como preocupação o desenvolvimento pessoal dos profissionais da saúde mental e levando-se em conta um ensino que propicie um encontro autêntico e criativo, a escolha do Jogo Teatral é um propício argumento para o desenvolvimento prático na busca de um contato espontâneo. Essa espontaneidade no cuidado dos pacientes com sofrimento psíquico pode promover a abertura necessária para a absorção do aprendizado em sua prática. A educação pela arte pode viabilizar meios para o indivíduo compreender e decodificar as diferentes formas de fazer, pensar e sentir presentes nas representações simbólicas da arte2.

Na educação, a arte teatral representa um instrumento facilitador que contribui de uma maneira lúdica e ao mesmo tempo reflexiva no aprendizado de diversas camadas do ensino11. Na saúde e especificamente na enfermagem, esse caminho pode alcançar proporções satisfatórias. A educação em saúde começa quando o indivíduo traz consigo um conhecimento prévio sobre o assunto em questão. Se logo após o aprendizado, o conteúdo for colocado em prática, esse conhecimento será apropriado de forma mais significativa12.

Assim, a arte teatral - aqui especificamente o Jogo Teatral - como ferramenta expressiva, busca o formato estético e reflexivo aos que escolhem o caminho dramático como forma de expressão e apoio pedagógico no ensino do cuidado em saúde mental ao estudante de enfermagem. O material emergente das experiências individuais e coletivas, através de exercícios e experiências dramáticas pode possibilitar uma construção estrutural, psíquica e social, servindo como pilar de sustentação de abordagens interpessoais dos profissionais da enfermagem que de uma forma íntima são também os responsáveis pelos pacientes que buscam cuidados específicos.

Objetiva-se com este estudo descrever e analisar a experiência do uso de jogos teatrais, segundo Fichário de Viola Spolin, no ensino de saúde mental, através dos relatos de estudantes de licenciatura e bacharelado em enfermagem, os quais cursaram a disciplina de Cuidado Integral em Saúde Mental II no ano de 2010.

 

2. METODOLOGIA

O estudo foi norteado por uma abordagem qualitativa, onde fundamentalmente o pesquisador faz a interpretação dos dados13. O referido método mostrou-se mais adequado, pois a proposta foi trabalhar com a experiência dos estudantes, em um processo específico (uso de jogos teatrais no ensino de saúde mental), buscando entender como estes perfazem e significam a experiência. Assim, faz-se necessária uma metodologia que permita descobrir e justificar as percepções e a complexidade das interpretações dos sujeitos pesquisados14.

O estudo foi realizado na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. A população de estudo compreendeu todos os 46 estudantes matriculados na disciplina de Cuidado Integral em Saúde Mental II do Curso de Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem da referida instituição. A aquiescência do estudante foi manisfestada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EERP – USP, protocolo número 1076/2009, em 24 de setembro de 2009.

No total, foram realizados 7 encontros de vivência dramática com duração de aproximadamente 3 horas, cuja finalidade foi promover a sensibilização da percepção pessoal na relação com o outro através de jogos teatrais de Viola Spolin3.

O fichário de jogos teatrais é um conjunto de atividades estruturado em forma de fichas, as quais contem: preparação, foco, descrição, instrução e avaliação (fatores norteadores de procedimentos e regras). Notas e áreas de experiência foram acrescentadas, tornando os jogos teatrais de fácil entendimento e aplicação, tanto por profissionais quanto por leigos. O fichário possibilita experiências e Segundo Viola Spolin, cada experiência se realiza na penetração orgânica com o ambiente, envolvendo todos os níveis: intelectual, físico e intuitivo. A criatividade e espontaneidade que envolve a dinâmica de seus jogos está relacionado com a vivência do imediato, o aqui e agora.

Os encontros tiveram temas específicos, sendo o último uma síntese dos seis anteriores. As atividades desenvolvidas em cada encontro basearam-se em fichas de exercícios do Fichário de Viola Spolin, seguindo as necessidades de aprendizagem do estudante de enfermagem para o cuidado em saúde mental.

No primeiro encontro foi realizado o "jogo relacional com a bola" objetivando a interação dos participantes. Foram realizados também o "jogo sensorial da visão" cujo foco é "ver, como extensão física dos olhos" e "expandir a visão". O "jogo sensorial de toques" cujo foco é sentir o contato com a parte da pele indicada pelo instrutor. E o "jogo sensorial de cinestesia" cujo foco é exercício. As perguntas realizadas estão descritas na análise das atividades.

A coleta dos dados foi realizada durante as atividades coordenadas pelo pesquisador através do registro dos observadores não-participantes com a aplicação de um questionário semi-estruturado de cada encontro, além de registros em audio e vídeo. Foram utilizados diferentes espaços físicos (salas de aulas) para a prática do exercício teatral, os quais foram tomados, dessa forma, como espaços cênicos (assim chamado o espaço do exercício espetacular) para o desenvolvimento dos jogos.

A partir do primeiro encontro, os exercícios posteriores foram sendo escolhidos pela demanda que os resultados do próprio jogo oferecia. Para esta análise foram escolhidas seis (06) questões oriundas das atividades propostas nas fichas de jogos. As questões do primeiro encontro estão relacionadas às atividades sensoriais e relacionais.

Para a facilitação da análise foram construídas tabelas segundo as palavras-chaves dos participantes, categorizadas e descritas para posterior análise. Processualmente, foi realizada uma exaustiva exploração do material, onde os documentos foram submetidos a diversas leituras no sentido de capturar as impressões do pesquisador, selecionar os trechos de maior relevância, sintetizar e interpretar os relatos dos participantes, seguindo-se os passos pertinentes apontados pela análise de conteúdo15.

A apreensão da experiência foi respaldada na experiência coletiva, porém com um enfoque aprofundado nos resultados da análise e observações registradas. Todo relato foi analisado a partir dos sentidos das palavras, com a utilização de suporte teórico para embasar os conteúdos que as próprias palavras carregam. Segundo Zanela16, Vygotski chama a atenção ao fato de que para a compreensão da linguagem do outro é necessário ir além das palavras, na investigação da linguagem, a busca dos sentidos se torna fundamental, posto que o sentido é expressão dialética dos planos singular e coletivo.

Assim, a análise dos dados foi realizada em função da mobilidade da experiência do grupo com enfoque aprofundado em temas específicos levantados pela vivência, segundo os tópicos do fichário e respaldado por conteúdos teóricos da área teatral e de cuidados na saúde.

 

3. RESULTADO E DISCUSSÃO

3.1. Sensibilização

No universo teatral, a preparação sensorial do artista é fator importante para o bom aproveitamento corporal e consequente sensibilização da comunicação em cena. Segundo Spolin3 é imperativo preparar todo o equipamento sensorial, para que se possa estabelecer um contato puro e direto com o meio criado com os objetos e pessoas dentro dele. Ao final do encontro foi entregue a cada participante um questionário contendo perguntas pertinentes às vivências. A seguir serão descritos as atividades sensoriais realizadas durante os sete encontros.

3.2. Sentindo o eu como eu - Ficha A2

Nesta atividade, os jogadores foram instruídos a permanecerem imóveis, em silêncio e com os olhos fechados (exercício modificado da posição sentada para deitada em decúbito dorsal), onde o foco era sentir o contato com a parte da pele indicada pelo instrutor. Esse jogo sensorial foi direcionado verbalmente com todos os detalhes relacionados ao toque e à sensibilidade orgânica da pele com a roupa ou o toque da roupa na pele do corpo, um "mapeamento" realizado a partir dos membros inferiores até o topo da cabeça. No questionário, os participantes responderam as seguintes perguntas: Houve alguma diferença entre sentir a roupa no corpo e sentir o corpo na roupa? Qual?

Tabela 1 – Análise dos relatos: jogo sensorial de toques (No. = Ocorrências)

 

 

Muitos caminhos artísticos lançam mão da sensibilização do trabalho da percepção da pele para uma maior entrega e consequente presença cênica no aqui-agora. Estamos habituados a sentir a pele somente em condições especiais, mas dificilmente habitamos a pele integralmente.

Perceber se houve diferenças do toque do corpo na roupa ou da roupa no corpo é uma percepção muito específica e subjetiva, que depende das experiências individuais em relação ao desenvolvimento da sensibilidade tátil. É o nosso maior sentido e através da pele podemos ter informações importantes do meio que nos cerca, desde temperaturas ou densidades até percepções afetivas17.

3.3. Caminhada no espaço – Ficha A7

Após o exercício do jogo sensorial da pele, os participantes foram instruídos a perceberem a sustentação do corpo durante a caminhada, se haviam tensões durante o movimento e a localização das mesmas. Esse era o Foco do exercício. No questionário, a pergunta era a seguinte: Como é perceber as tensões em você e como é sustentar seu corpo no ambiente? Quais as regiões que percebeu estarem tensas?

As tensões musculares pelo esforço (consciente ou inconscientemente) podem acarretar dores ou outras sensações desconfortáveis. Temos que ser observadores de nossas contrações excessivas que impedem o livre trânsito das nossas comunicações. Esse tipo de experiência proposto pelo exercício pode levar a uma consciência corporal mais aguçada, que durante as atividades rotineiras passam despercebidas, e muitas vezes quando a percebemos podem nos surpreender.

Este estado de presença profunda do aqui-agora também é uma característica inerente ao contexto da enfermagem. Em seu artigo intitulado "O quotidiano como referência para a investigação das intervenções de enfermagem", Pereira17 nos mostra como a presença e reconhecimento da realidade no aqui-agora na relação enfermeiro-paciente é um fator fundamental nas intervenções.

Tabela 2 – Análise relatos: Jogo sensorial de cinestesia (No.=Ocorrências)

 

 

3.4. Extensão da visão – Ficha A 20 e Visão Periférica – Ficha A 53

Após a consciência da caminhada no espaço, os participantes foram instruídos a ficarem parados e continuarem na presença física sensorial vivenciada anteriormente e a levarem a atenção para a visão. Inicialmente foram convidados a enviarem suas visões na observação de toda a sala, em objetos e nos outros colegas. Também foram orientados a realizar exercícios com o globo ocular em várias direções e profundidades sem o movimento da cabeça. O foco desse exercício é "ver, como extensão física dos olhos" (A 20) e "expandir a visão" (A 53). A pergunta realizada no questionário foi: Como foi para você ampliar a sua visão?

Tabela 3 – Análise relatos: Jogo sensorial da visão (No.=Ocorrências)

 

 

A maioria vivenciou uma percepção visual alterada, cada qual relatando com particularidade as suas sensações, principalmente em relação à observação de detalhes que não poderiam experienciar em outros momentos, como a capacidade da ampliação do campo de visão e a visualização do horizonte.

No contato de ajuda, sem a atenção nada se desenvolve. Olhar, perceber o enfermo é atentar aos detalhes fisionômicos que muitas vezes ele trás. O primeiro sinal de que alguém está me interessando pode ser percebido pela insistência com que busco seu olhar18. A comunicação não verbal requer muitas percepções, dentre elas o da visão. Muitas palavras são ditas, mas o que meus olhos veem, podem ouvir outras palavras; os olhos podem dar outro sentido a elas.

3.5. Análise do Encontro – Interação – Jogo de Bola – Fichas A9 e A10

Os participantes foram instruídos a fisicalizar a construção de uma bola (inexistente) e jogá-la contra a parede. Logo em seguida dois grupos foram formados, onde um realizava a atividade e o outro assistia (platéia). O grupo em atividade se colocava em círculo e os participantes tinham que jogar uma bola (inexistente) direcionando-a uns aos outros. Todos participaram. O peso da bola e formato variava segundo as instruções do pesquisador. Em muitos momentos modificava segundo o peso que o jogador da bola dava a ela. As palavras não podiam ser usadas. O Foco desta atividade era manter a bola no espaço. O tópico da Área de Experiência era a "Interação", "Tornando o Visível o Invisível", a "Comunicação não-verbal" e o "Movimento Expressivo". Uma das perguntas que foi realizada era a seguinte: Como se relacionou com a bola e com o grupo?

Tabela 4 – Análise dos relatos: Jogo relacional com a bola (No.=Ocorrências)

 

 

Na descrição dos observadores na proposta de jogar a bola individualmente na parede, muitos sorriam durante a atividade e outros pareciam ficar envergonhados, mas aos poucos iam se soltando, brincavam com a bola de diversas maneiras.

Nos relatos do questionário do trabalho individual com a bola, a experiência, em sua maioria foi relatada como se a bola estivesse ali realmente, inclusive em percepções de diferentes manuseios de formatos e pesos da mesma, porém alguns participantes ficaram incomodados. Na relação da bola com o grupo, alguns relatos do questionário são parecidos, como a promoção de interação e diversão, com características inerentes a um trabalho coletivo no sentido construtivo, porém alguns relatos de dificuldades de interação foram registrados.

Neste trabalho, os exercícios eram relacionados aos recursos sensoriais individuais, onde os participantes foram instruídos a fisicalizar, ou seja, utilizar todo o corpo para expressar a existência de uma bola. Segundo Spolin4, fisicalizar é como apresentar o material expressivo a um nível físico e não verbal, em oposição a uma abordagem intelectual e psicológica.

Independente de qual seja as nuances particulares das relações em equipe, é importante ressaltar que o jogo de bola pode representar as interfaces relacionais em um grupo. O que naturalmente ocorre em uma dinâmica de jogo, pode muitas vezes representar dinâmicas inter-relacionais, na vida e no trabalho. Cabe aos integrantes do grande "jogo da vida" aceitar o jogo relacional em qualquer situação em grupo. No caso, uma abordagem de cuidado requer muita atenção para melhores tomadas de atitudes, sabendo "jogar" com bola do momento, seja sozinho ou em uma situação coletiva.

3.6. Quem iniciou o movimento? – Ficha A 13

Após o Jogo da Bola ter sido realizado com ambos os grupos, os alunos foram orientados a permanecerem na mesma formação (em roda) e lhes foi informado sobre a dinâmica do jogo naquele momento. Um jogador sai da sala enquanto os outros escolhem alguém para ser o líder, que inicia os movimentos. O jogador que saiu foi chamado de volta. Vai para o centro do círculo e tenta descobrir o iniciador dos movimentos (mexendo as mãos, batendo palmas, balançando a cabeça). O líder pode mudar de movimentos a qualquer momento, mesmo quando o jogador do centro estiver olhando para ele. Quando o jogador do centro descobrir o iniciador, dois outros jogadores são escolhidos para assumir seus lugares. O Foco do jogo então era tentar ocultar do jogador do centro que inicia os movimentos. No questionário haviam duas perguntas: Como se sentiu na roda se movimentando? Como se sentiu no centro da roda?

Tabela 5 – Análise dos relatos: Jogo relacional de movimento (No. = Ocorrências)

 

 

Em relação à primeira pergunta, os alunos escreveram sobre a atenção despendida no momento do jogo; atenção ao outro ou com o grupo. Alguns informaram ser divertido. É importante ressaltar que muitos relatos eram pertinentes à interação e convivência em grupo, pois o próprio foco do jogo induz ao comprometimento relacional.

Em relação à segunda pergunta é importante ressaltar que onze (11) integrantes não participaram indo ao centro da roda devido ao tempo do encontro estar se esgotando. A atenção foi relatada por muitos e o jogo sensorial da visão (realizado momentos antes) ajudou a percepção do entorno. Relatos de dificuldade de participação e exposição foram registrados, o que também é esperado em trabalhos em grupos, onde o encontro lúdico é pouco praticado.

Segundo relatos dos observadores, a maioria dos participantes se divertiu, apesar de no começo alguns ficarem com vergonha e incomodados por não conseguirem observar de onde vinha o movimento inicial. Outra observação é que os alunos utilizavam poucos movimentos do resto do corpo, utilizavam com cautela somente os braços. Os participantes que se encontravam ansiosos tiveram maior dificuldade em perceber quem iniciava o movimento. Os tópicos da Área de Experiência desse jogo são "Jogo de olhar- ver" e "Jogo sensorial".

Para Spolin4, a dinâmica do grupo era estimulada e reforçada através de seus jogos. Acreditava na dinâmica de crescimento de um grupo que joga em função de um objetivo e de solucionar os problemas propostos. Para ela qualquer jogo digno de ser jogado é altamente social. A partir desses relatos é importante observar que o trabalho em equipe pode despertar tanto situações prazerosas, onde o produto que nasce desse contexto pode ter características de aproximação com suporte de atenção, como também situações de afastamento, por dificuldades coletivas ou pessoais, às vezes por competitividade, que parece estar presente no grupo.

Por outro lado, o trabalho em equipe requer a atenção necessária com enfoque profissional em prol do paciente. Nos encontros interpessoais o momento de troca de informações pessoais e coletivas é fator essencial. Assim como em outras situações nas quais acontece um encontro de seres humanos, isto acontece também em uma situação de enfermagem, de forma autêntica, específica e intencional, com significados particulares, para alcançar um objetivo comum19.

Rever nosso papel perante a equipe frente aos cuidados com o outro requer a abertura necessária para a consciência e transformação, precisamos questionar e descristalizar nossos próprios papéis para que possamos abrir espaço para a produção de vida das pessoas em sofrimento mental19.

3.7. Comentário Livre

O último item do questionário do primeiro encontro é um comentário livre sobre as experiências dos participantes. Aqui podemos observar situações vividas que não puderam ser registradas nas perguntas anteriores, ou que tiveram algum significado referente ao próprio processo de auto-conhecimento ou referente às relações profissionais. Isso pode ajudar a apreender a experiência do grupo e a análise dos conteúdos mencionados.

Percebemos a importância do resgate sensorial no aqui e agora (corporal) e a relação interpessoal frente às dinâmicas propostas pelos jogos teatrais de Viola Spolin. É importante ressaltar que esse tipo de atividade, onde a exposição e consequente reflexão de si e do outro, pode de alguma forma ajudar a refazer e a reestruturar as relações, porém, é necessária a experiência, por vezes difíceis, da consciência dos bloqueios e travas que habitam os conteúdos e interações.

Os primeiros exercícios relacionados à percepção sensorial puderam contribuir na integração do indivíduo e seus conteúdos na relação destes com o meio que o rodeia. Em um segundo momento, os jogos dinâmicos puderam ativar as relações, percebe-se o despertar da comunicação corporal e da espontaneidade. Com a demanda do dia-a-dia perdemos a sensibilidade em função dos pensamentos, do futuro, da busca incessante que permeia a existência. É preciso resgatar a naturalidade do que já existe.

Para apoiar os conteúdos psíquicos nos cuidados da saúde mental, o enfermeiro necessita de suporte e apoio em relação às suas próprias questões afetivas e emocionais. O relacionamento interpessoal é adquirido com a prática; a capacidade de reflexão e tomada de consciência acontecem na vivência com o outro. O enfermeiro psiquiátrico deve colocar-se como sujeito participativo no desenvolvimento de suas habilidades, deve usar a auto-conscientização e a sua pessoa como meio para a relação positiva com o sujeito7.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso de jogos teatrais no processo de ensino de saúde mental para estudantes de enfermagem mostrou potencialidades frente à complexidade do cuidado nesta área. Muitos caminhos artísticos lançam mão da sensibilização corporal e sua percepção para uma maior entrega e consequente presença cênica no aqui-agora. Os exercícios de sensibilização corporal e interação, utilizados pelos jogos teatrais para tal fim, repercutiram de maneira sensível na maioria dos participantes.

Os relatos dos estudantes permitiram vislumbrar a potencialidade deste tipo de intervenção para a melhoria da formação do profissional, considerando o enfermeiro como um ser humano constituído por características físicas, psíquicas e sociais assim como os clientes aos quais presta seu cuidado.

O despertar dos sentidos pode ajudar o aluno a se colocar no lugar do próprio corpo, estando atento a cada situação vivenciada no aqui-agora. O auto-conhecimento passa pelo conhecimento do existente. Observar-se, e estar com os olhos voltados para o "mundo interno" pode capacitar a percepção dos sinais que o organismo emite, podendo ou não interagir com o espaço que está ao seu redor.

Inovar a capacidade de percepção do outro com dinâmicas através dos jogos nos mostrou a importante relação que os próprios jogadores fizeram: a relação consigo e com o outro, com a dinâmica profissional e a quebra de barreiras das comunicações - barreiras e dificuldades muitas vezes morando na inconsciência.

A prática dos jogos pode ajudar nesse caminho, mas é importante salientar que apenas um encontro e uma experiência não bastam para alicerçar o relacionamento interpessoal. É uma busca em permanente processo do auto-conhecimento para estar presente aqui-agora com o outro.

De maneira geral, a inclusão da atividade teatral, dentro do enfoque aqui apresentado, para o ensino do cuidado em saúde mental ainda é bastante restrita no que tange à formação do profissional de saúde e, mais especificamente, do enfermeiro. Acredita-se que este tipo intervenção deveria se constituir em parte indissociável do processo de formação, podendo se desenvolver desde os primeiros contatos do aluno com seus clientes, pois a capacidade de relacionar-se com o outro no contexto de cuidado à saúde é condição primeira para qualquer área de atuação, não se limitando ao cuidado em saúde mental.

 

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Endereço para correspondência
Carla Araújo Bastos Teixeira
Universidade de São Paulo.
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto.
Avenida dos Bandeirantes, 3900.
Campus Universitário - Bairro Monte Alegre.
CEP: 14040-902. Ribeirão Preto - SP – Brasil.
Email: carlinhateixeira@hotmail.com

 

Artigo encaminhado 30/04/2013
Aceito para publicação em 05/11/2013

 

 

Notas

* Mestre em Ciências
** Doutora em Ciências
*** Professora Doutora
**** Professora Associada