SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número4A Percepção dos Profissionais da Estratégia Saúde da Família sobre as Implicações da Violência intrafamiliar em Crianças e AdolescentesPercepção do acadêmico de enfermagem sobre o seu processo de saúde/doença durante a graduação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.4 no.4 Florianopolis out. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O Quotidiano e o Imaginário no Processo Saúde-Doença para as Famílias Quilombolas

 

The Imaginarium of Lifestyle and Health-Disease Process for Families Quilombolas

 

 

Rosane Aparecida do PradoI*; Juliana Fernandes da NóbregaI*; Gerusa RibeiroI*; Rafaela Vivian ValcarenghiII**; Rosane Gonçalves NitschkeII***

I Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), Florianópolis, SC - Brasil
II Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um estudo qualitativo do tipo descritivo-exploratório realizado em uma comunidade de remanescentes quilombolas da região sul do Brasil. Teve-se como objetivo conhecer o quotidiano e o imaginário do processo saúde-doença para as famílias de remanescentes quilombolas e, tecer reflexões sobre o cuidado necessário a esta comunidade adotando o enfoque da Promoção da Saúde. A coleta dos dados foi efetuada por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas com 12 famílias durante o ano de 2011, nas atividades de um Projeto de Extensão. Optou-se pela análise temática sugerida por Minayo (2010). Tendo emergido duas categorias de análise: "Concepções do processo saúde-doença para as famílias quilombolas" e "Maneiras de cuidar da saúde para as famílias quilombolas". Os resultados do estudo foram discutidos à luz da Sociologia Compreensiva trazida pelo sociólogo Michel Maffesoli, apontando para a necessidade de transformações no cuidado á saúde, especialmente, indicando rumos para uma atuação de enfermagem que considere as pessoas e famílias como participantes ativos dentro do processo de adoecer e ser saudável.

Palavras-chave: Enfermagem familiar; Atividades cotidianas; Processo saúde-doença; Promoção da Saúde; Saúde da Família.


ABSTRACT

This is a qualitative study of the descriptive-exploratory study on a community of Maroons remaining in southern Brazil. Had as objective to know the everyday and imaginary disease process for families remaining Maroons and weaving reflections on the necessary care to this community by adopting the approach of Health Promotion Data collection was conducted through interviews semi-structured interviews with 12 families during the year 2011, the activities of an Extension Project. We opted for the thematic analysis suggested by Minayo (2010). Having emerged two categories of analysis: "Conceptions of the disease process for families Maroons" and "Ways of health care for families Maroons". The study results were discussed in light of the Comprehensive Sociology brought by sociologist Michel Meffesoli, pointing to the need for changes in health care will especially indicating directions for a nursing performance that consider people and families as active participants in the process sick and being healthy.

Keywords: Family nursing; Activities of daily living; Health-Disease Process; Health Promotion; Family Health.


 

 

1. DEPENDÊNCIA

A família contemporânea passa por diversas mudanças, como a diminuição do número de filhos, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o encontro entre diferentes gerações, o aumento das famílias monoparentais chefiadas por mulheres e a frequência de divórcios, caracterizando-se por uma grande variedade de formas1 denotando famílias plurais.

Essas transformações parecem traduzir os avanços na comunicação, tecnologia, globalização, questões de gênero, entre outros aspectos. Assim, cada uma dessas mudanças, isoladas ou em conjunto, refletem em questões que são fundamentais para a estrutura e a dinâmica familiar. Podemos dizer, então, que a família se constrói, se desconstrói e se reconstrói buscando novas e outras formas de adaptação às novas demandas2.

Nesse sentido, observa-se que a complexidade da família demanda outros e novos olhares, numa persp ectiva de apreensão e compreensão de cada contexto3. Entretanto, ainda podemos pensar a família como um sistema de interações e relações guiado por princípios e determinado por fatores diversos, permitindo assim, evolução em seu desenvolvimento. A família tem um papel significativo para existência humana, sendo que em cada fase da vida, o indivíduo pode vivenciar uma relação que expressa uma influência de sua família2.

A partir das nuanças e da complexidade que envolve o conceito ou noção de família, o presente estudo dirige o olhar para as questões referentes às famílias quilombolas, as quais possuem suas peculiaridades e especificidades, sendo ainda pouco investigadas pelos profissionais de saúde, no sentido de conhecer sua realidade e planejar ações para promover sua saúde.

O quotidiano e o imaginário das famílias no processo saúde-doença remetem ao tema de promoção da saúde, onde as pessoas necessitam ser protagonistas dos seus cuidados, e a enfermagem pode ter um papel relevante nesse aspecto, identificando as necessidades singulares das famílias e auxiliando na potencialização de seus papéis frente às situações de saúde-doença. A família é importante enquanto grupo coletividade, bem como espaço de cuidado, de fortalecimento do sujeito, de apoio, de escuta, de sentimento e na promoção da saúde4.

As famílias da comunidade quilombola são descendentes de negros escravos habitando uma comunidade rural onde se organizam em sua cultura; hábitos e costumes. Segundo o Ministério da Cultura5, os remanescentes das comunidades dos quilombos são os grupos étnico-raciais, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

A enfermagem, ao realizar atividades com comunidade de quilombolas, vislumbra oportunizar às pessoas interrogarem-se acerca de sua saúde, sobre suas condições de vida e de hábitos saudáveis, atitudes e sensibilização ao cuidado pessoal e ao ambiente, "em um contexto mais amplo de comunidade, não poderia ser assim chamado se não for tecido de histórias de vida/biografias compartilhadas; esse tecido é constituído de fios intersubjetivos ou juízos subjetivos"6.

Para delinear estas ponderações, buscaremos subsídio teórico na Sociologia Compreensiva de Michel Maffesoli que enfoca o quotidiano e o imaginário. As obras do sociólogo fundamentam-se na razão sensível, isto é, a harmonia entre a sensibilidade e a interpretação racional num movimento que integra o simbólico, o imaginário e, ao mesmo tempo, a razão e os sentidos7.

A noção de quotidiano que utilizaremos neste estudo é entendida como "a maneira de viver dos seres humanos que se mostra no dia-a-dia, através de suas interações, crenças, valores, significados, cultura, símbolos, que vai delineando seu processo de viver, num movimento de ser saudável e adoecer, pontuando seu ciclo vital"8.

É no quotidiano que as imagens se apresentam formando nosso imaginário. Estas profusões de imagens carregadas de significados produzem o imaginário coletivo numa relação de retroalimentação (imagem – imaginário). Assim, podemos inferir que o mundo imaginal expressa uma cultura, comportamentos e valores em um determinado contexto histórico-social.

No imaginário ancoram-se as complexas relações humanas e ambientais, que envolvem a cultura, a religiosidade, a situação sócio-econômica - política e as expectativas intrínsecas de cada pessoa. Isto não pode ser mensurado, todavia, pode ser considerado em prol da pessoa, família, comunidade e da sociedade.

É nesta perspectiva que se baseia parte dos princípios da Promoção da Saúde, ao propor ações para impulsionar, favorecer, fomentar e trabalhar a favor da produção de saúde sustentada por uma concepção ampliada do processo saúde-doença.

A Promoção da Saúde compreende o desenvolvimento de programas, políticas e atividades planejadas de modo a alcançar a população como um todo em seu quotidiano, não se reduzindo a uma intervenção sobre grupos de risco para doenças específicas9. Imprimindo, portanto, um cunho técnico-político amplo que permite lançar novos olhares para a atuação dos profissionais da saúde.

Ao adotar esta abordagem, acreditamos na possibilidade de encontrar alicerces para desenvolver com às famílias e comunidades quilombolas, meios para aumentar o controle sobre os determinantes sociais da saúde com vistas a promover condições para partilhar saberes e decisões juntos aos profissionais da saúde.

Diante da discussão exposta, este estudo teve como questão norteadora: Como é o quotidiano e o imaginário do processo saúde-doença para as famílias quilombolas?

 

2. OBJETIVOS

Conhecer o quotidiano e o imaginário do processo saúde-doença para as famílias quilombolas.

 

3. PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de um estudo qualitativo descritivo-exploratório, realizado em uma comunidade de remanescentes de quilombolas na região sul do Brasil em um Projeto de Extensão. Os coordenadores do projeto foram dois professores enfermeiros com o apoio do grupo de docentes e discentes vinculados ao Curso Técnico em Enfermagem de uma instituição pública de autarquia federal do estado de Santa Catarina. A coleta dos dados foi efetuada por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas com 12 famílias. As famílias, neste caso, foram representadas por membros (geralmente duas ou três pessoas) que, naquele momento, estavam disponíveis e que se consideravam elemento chave daquela unidade familiar. Para a coleta dos dados, adotou-se a estratégia de visita domiciliar, guiada pela Agente Comunitária de Saúde (ACS) da Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro, com o caráter de observação, conhecimento e levantamento das principais necessidades das pessoas que habitam a localidade, fornecendo subsídios para posterior organização e planejamento de ações educativas em saúde.

Desta forma, procuramos obter informações que indicassem o conhecimento do quotidiano daquelas famílias e que estivessem relacionadas ao processo saúde-doença. Os questionamentos pautaram-se no tempo de residência na comunidade, situação sócio-econômica e de trabalho, perfil familiar de saúde e questões sobre a relação saúde e ambiente percebida pelos residentes. Neste manuscrito, vamos nos limitar a responder três questões: 1) O que é saúde para você? 2) O que é Doença para você? 3) O que é importante para manter sua saúde e da sua família?

Os encontros com a comunidade foram mensais e ocorreram entre os meses de agosto a dezembro de 2011, sendo sempre aos sábados. Os dados foram registrados sendo posteriormente organizados. Optou-se pela análise temática sugerida por Minayo10. Deste modo, frente aos dados coletados, os pesquisadores realizaram inferências e interpretações guiadas pelo acervo teórico selecionado, procurando pistas em torno das dimensões sugeridas pela leitura do material e também pelas interações em locus apreendidas através do quotidiano. Para realização do estudo, seguiram-se os pressupostos da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS), que preza pelo seguimento das quatro normas básicas de bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) do Instituto de Cardiologia de Santa Catarina, sendo aprovado pelo parecer número: 02/2011 na data de 31 de janeiro de 2011. A autonomia dos participantes da pesquisa foi garantida através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo que para cada família foi atribuído um codinome, de acordo com aspectos culturais de comunidades Quilombolas.

 

4. RESULTADOS

Neste tópico, apresentamos um recorte do trabalho desenvolvido com a comunidade de remanescentes quilombolas, onde buscamos conhecer o quotidiano e o imaginário das famílias diante das situações que envolvem a saúde e doença. As 12 famílias participantes trouxeram sua perspectiva, e, a partir do diálogo, permitiram uma coleta de dados, que, após serem transcritos, organizados e analisados, possibilitaram a emersão de duas categorias: "Concepções do processo saúde-doença para as famílias quilombolas" e "Maneiras de cuidar da saúde para as famílias quilombolas", levando-nos a repensar sobre as formas de abordagem dos profissionais da saúde junto às famílias desta comunidade. Todavia, importa alertar que estas categorias estão profundamente interligadas e repletas de significados que certamente não conseguiremos esgotar neste momento.

4.1 Concepções do processo saúde-doença para as famílias quilombolas

Nesta categoria, elencamos as noções manifestadas pelos participantes do estudo, sendo extraídas de seu dia-a-dia e vinculadas as produções imaginárias das famílias quilombolas. As famílias enfatizaram que saúde é estar apto para o trabalho e poder contar com uma assistência de saúde que disponibilize a entrega de medicamentos, propiciando consultas médicas à população, conforme podemos verificar nas falas abaixo:

"Saúde é estar sem doença para trabalhar!" (Caçandoca)

"[...] é ter atendimento médico e medicamento no posto!" (Palmares)

As famílias, ao resgatarem de seu imaginário o significado de doença, sinalizaram que estar doente é não ter como trabalhar e prover o sustento da casa, como as seguintes afirmações

"[...] é ficar sem trabalhar" (Abuí)

"Ficar doente é estar acamado e depender de outros" (Camburí)

4.2 Maneiras de cuidar da saúde para as famílias quilombolas

Esta categoria faz o elo entre as concepções do processo saúde-doença apresentadas e as maneiras pelas quais as famílias buscam manter a saúde e conduzir situações diante da doença.

As famílias elegem como indispensável no cuidado da família contar com uma assistência em saúde eficiente, sendo apontado como dispositivo a Unidade Básica de Saúde (UBS), proporcionando consultas médicas e o fornecimento de medicamentos como manifestado nas colocações:

"Importante contar com atendimento médico e com os remédios no posto!" (Quilombo)

Frente a este panorama, apreendemos que as noções sobre o processo saúde-doença, bem como as maneiras de cuidado das famílias quilombolas, encontram-se ancoradas numa vertente que propaga fortemente a medicalização como única alternativa de tratamento e ainda um entendimento restrito de que o atendimento em saúde é representando basicamente pela figura do médico prescritor.

 

5. DISCUSSÃO

Na categoria "Concepções do processo saúde-doença para as famílias quilombolas", foi possível compreender que as famílias consideram fundamental possuir condições físicas para o trabalho, sendo este extremamente importante para subsistência das famílias.

O trabalho aparece com constância nos diálogos e reporta a uma ideia de que ter saúde é estar apto para a atividade laboral e trazer o sustento das famílias. Importa destacar que muitas pessoas desta comunidade são trabalhadores autônomos que exercem tarefas ligadas a serviços gerais como limpeza, manutenção e de auxiliares em construções/ou reformas.

Este aspecto torna-se um essencial indicativo da preocupação das famílias sem atrelar sua saúde com o trabalho, apontando para a força do imaginário que expressa um cultura produtivista, impregnada de um energismo, tão característico do perfil da modernidade de nossa sociedade. No entanto, esta característica também fomenta um significado de saúde como ausência de doença, restringindo seu conceito ao campo biofisiológico.

O conteúdo destes dados permite repensarmos a atuação dos profissionais da saúde e a herança que tem se propagado na sociedade. Assim como o estudo de Souza11 que indica a iminente necessidade de retomar o quotidiano das famílias para partir em busca de um cuidado de enfermagem mais sensível e que procura um atendimento holístico e plural.

O tema saúde dos quilombolas é ainda incipiente e precisa trilhar um longo caminho de debates e reflexões. O autor prossegue concluindo que a literatura demonstra uma grande disparidade na atenção à saúde. No Brasil, com uma realidade de pessoas historicamente marginalizadas, faz-se necessário o envolvimento social e profissional para transfiguração desta realidade12.

Pensar a pesquisa e o cuidado ás famílias implica em considerar o comportamento de cada um de seus membros, no qual o cuidado ao indivíduo-família envolve também, auxiliá-los a desenvolver resiliência frente às situações de risco e danos à saúde3.

Nas diversas formas de famílias que podem ser visualizadas, evidencia-se um papel importante enquanto grupo, coletividade, uma tribo, no dizer maffesoliano, enquanto espaço de cuidado, de promoção dos sujeitos, de apoio entre si.

As maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com outros e com o contexto, os valores nos quais acreditam, o que é aceito ou tolerado em uma comunidade, são fundamentais para pensarmos em nosso papel, enquanto profissionais de saúde, de agenciadores e potencializadores de processos de mudança em relação ao imaginário e quotidiano do processo saúde e doença.

Na categoria "Maneiras de cuidar da saúde para as famílias quilombolas", todos os fatores sinalizados pelas famílias manifestam a difusão da cultura hegemônica baseada numa racionalidade medico-centrada, onde os indivíduos são observados de forma fragmentada e descontextualizada de sua realidade.

Devido a estas características pontuadas, pensamos ser fundamental algumas transformações, ou transfigurações, passando de uma imagem para outra, nas práticas de saúde vigentes. Evidenciamos a promoção da saúde por entender que, a partir de suas diretrizes, seja possível alcançarmos um conceito, uma noção dilatada de saúde.

O ambiente em que a família vive fazendo parte do contexto e o processo de interação entre as pessoas são importantes componentes a serem destacados na promoção de saúde das famílias. O ambiente familiar se constitui em espaço que permite descobrir, perceber e compreender as ações e papeis que envolvem o cuidado familiar. Conhecer a estrutura familiar, a interação entre os membros e o ambiente, os problemas de saúde, situações de risco e vulnerabilidade são vitais no planejamento de cuidados à saúde da família2.

Para promover a saúde das famílias quilombolas, considera-se importante o incremento de alguns aspectos como o desenvolvimento de sentimento positivo de "estar no mundo", bem como o desenvolvimento de capacidades de forma individual e coletiva, aquisição de conhecimentos, habilidades e competências para empregar em situações diversas de saúde e doença. Outro aspecto pertinente a ser destacado é conhecer as necessidades e aspirações de cada família, tentando fortalecer suas aptidões para mobilizar e assegurar recursos necessários, conforme as especificidades de saúde-doença13.

Para o fortalecimento dessas famílias, buscando empoderamento frente aos processos de saúde-doença, é imprescindível a atuação dos profissionais de saúde, em especial a enfermagem, pois são recursos facilitadores para a promoção de saúde, na construção de relações de parcerias, apoio e solidariedade voltados para o quotidiano das pessoas, estimulando a capacidade de cada membro integrante da família quilombola.

Conceber cada membro como sujeito potente, e portanto, garantindo a promoção de sua cidadania, reafirmando sua autonomia apresenta-se como um caminho profícuo pois, compreende-se que o outro tem um saber sobre si, e é co-responsável por sua saúde, sendo um sujeito-ator do processo4.

Assim, o objetivo das intervenções de enfermagem é despertar mudanças que auxiliem os sujeitos e famílias a darem respostas mais efetivas aos seus problemas de saúde, reconhecendo a unidade de realidade de cada um, para que estes descubram uma outra realidade, contribuindo para um contexto mais favorável14.

Com o intuito de promover a saúde das famílias quilombolas, consideramos primordial considerar os pressupostos do método de educação crítico-reflexiva freireana. Acreditamos que, através de um intercâmbio de saberes entre profissionais e sujeitos, seja possível o desenvolvimento de capacidades destas famílias para a tomada de decisões frente ao seu quotidiano que envolve saúde e doença.

Assim, promover a saúde requer atividades de educação em saúde, com a utilização de abordagens que valorizem o desenvolvimento de consciência crítica e o despertar pela luta de direitos para melhoria da qualidade de vida das famílias.

Nessa perspectiva é fundamental que o educador – profissional de saúde, compreenda que ensinar não se baseia na transferência de conhecimentos, e sim, na criação de possibilidades para sua produção e ou construção15. Nesse sentido, cabe valorizar os membros das famílias, sua autonomia, capacidade de agir sobre o mundo, capacidade de ser sujeito da reflexão e ação, cuidando para a libertação do olhar, um pensamento libertário16.

Freire17 traz a educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens. Logo, as famílias quilombolas teriam sua autonomia sendo reafirmada em sua saúde e não domesticadas conforme a "sabedoria" dos profissionais em suas orientações. Respeitando a liberdade, individualidade, à expressão ao pensamento libertário idealizado pela integração do trabalho manual, da vivência da prática ao conhecimento cientifico.

Em consonância com o legado de Paulo Freire, a Sociologia Compreensiva, proposta por Michel Maffesoli, encontra afinidade ao advogar que o pesquisador é também ator e participante, sendo importante adotar a compreensão no lugar da explicação. Ressalta, ainda, o exercício da ação de colocar-se no lugar do outro, apontando que é preciso uma atitude de empatia, subjetividade e intersubjetividade18. Dessa forma, evidencia-se o quotidiano e o imaginário das famílias quilombolas como valioso determinante no planejamento de ações para a promoção da saúde.

Essa perspectiva de trabalhar com o quotidiano e o imaginário do processo saúde-doença das famílias quilombolas nos permitiu trocas a partir de uma convivência de mundos tão diferentes, lembrando-nos a Nitschke19 quando diz "algumas famílias, através de suas imagens, nos remetem a ideia de que a existência da diferença permite a troca em todas as suas dimensões, incluindo sua contradição".

 

6. LIMITAÇÕES DO ESTUDO

Ao longo desta experiência, encontramos algumas limitações para realizar o presente estudo, como a reprogramação de encontros devido às más condições climáticas, a inexperiência na condução dos diálogos e dos registros durante as entrevistas por parte dos estudantes, a distância e dificuldade de transporte para chegar até a comunidade bem como as visitas ocorrerem aos sábados em período integral.

No entanto, salienta-se que todos os entraves apontados acima foram, sem dúvida, uma rica experiência acumulada para planejamentos posteriores.

 

7. CONSIDERAÇÕS FINAIS

Conhecer o quotidiano das famílias de remanescentes quilombolas permitiu visualizar parte dos significados sobre saúde e o que consideram importante para manterem-se saudáveis.

As famílias consideram que saúde é estar apto para o trabalho e que a doença pode deixá-los sem condições de prover o sustento de seus membros. Deste modo, acreditam que, para estarem saudáveis, necessitam de atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS), a partir de consultas médicas e do fornecimento de medicamentos.

Compreendemos que esta visão do processo saúde-doença evidencia-se principalmente por prezar pela saúde física que pode ser mantida por meio de medicamentos, indicando que a atuação dos profissionais da saúde ainda prossegue cristalizando um modelo de saúde biomédico hegemônico.

Estes aspectos podem estar atrelados às dificuldades desta comunidade e de suas famílias manifestarem suas capacidades, buscando outras alternativas terapêuticas como também a reivindicação de melhores condições de vida e saúde.

Os achados deste estudo apontam para extrema necessidade de transformações nas ações dos profissionais da saúde, enfatizando que a Enfermagem, devido suas especificidades, pode seguir outros rumos com vistas à investir numa relação família – profissionais da saúde mais cooperativa, emancipadora, afetiva e, portanto, mais efetiva

As visitas junto às famílias permitiram melhor compreensão dos anseios e das dificuldades vividas e relatadas, pois foi possível o exercício da compreensão, ou seja, olhar pelo olhar do outro, sem perder o próprio olhar, aprendendo e sentindo juntos, inserido numa ética da estética..

As ações do projeto permitiram integração e participação efetiva das famílias numa estreita relação, pois à medida que se estabeleceu a aproximação, a inserção foi facilitada e as pessoas sentiram-se à vontade para socializar seu imaginário que envolve saúde, doença, qualidade de vida e necessidades em saúde.

A participação de uma Agente Comunitária de Saúde da localidade facilitou a inserção do grupo e o vínculo entre a equipe do projeto e a comunidade, o que reforça a importância do seu trabalho realizado pela Unidade Básica de Saúde, lembrando que o lugar faz o elo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Petrini JC, Alcântara MA, Moreira LV. Família na sociedade contemporânea. IN: Menezes JEX, Castro MG. (Orgs.) Família, população, sexo e poder: entre saberes e polêmicas. Salvador: Edições Paulistas; 2009. p. 257-274.         [ Links ]

2. Teixeira MA, et al. Estratégias de investigação em família numa perspectiva interacionista. IN: Silva LWS. (Org) Família em contexto: multiversas abordagens em investigação qualitativa. Salvador: Arcádia; 2012. 160 p.         [ Links ]

3. Silva LWS, et al., O pensamento sistêmico como caminho para a investigação a família – metodologias, experiências e perspectivas. IN: Silva LWS. (Org) Família em contexto: multiversas abordagens em investigação qualitativa. Salvador: Arcádia; 2012. 160 p.

4. Debastiani C, Belini MIB. Fortalecimento da rede e empoderamento familiar. Boletim da Saúde 2007; 21(1): 77-87.         [ Links ]

5. Brasil – Decreto 4887, de 20 de novembro 2003 que regulamenta o procedimento para regulação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF. 2003.

6. Prado RA do, Ribeiro G, Bastos TQ. Ação educativa em saúde: um olhar sobre a comunidade de remanescentes quilombolas em Santa Catarina. IFSC; 2012.         [ Links ]

7. Maffesoli M. Elogio da razão sensível. Rio de Janeiro: Vozes; 2005.         [ Links ]

8. Nitschke RG. Pensando o nosso quotidiano contemporâneo e a promoção de famílias saudáveis. Ciên Cuidado Saúde 2007; 6(supl 1): 24-6.         [ Links ]

9. World Health Organization. Health promotion: concepts and principles, a selection of papers presented at Working Group on Concepts and Principles. Copenhagen: Regional Office for Europe; 1984.         [ Links ]

10. Minayo MCS. O desafio do Conhecimento. 10 ed. São Paulo: HUCITEC; 2010.         [ Links ]

11. Souza LCSL de. (Tese) O quotidiano de cuidado de enfermagem a família: um encontro entre as imagens dos profissionais e das famílias na hospitalização materno-infantil. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. 2008.         [ Links ]

12. Freitas DA, et al. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. RevCEFAC[online] 2011; 13(5):937-943.         [ Links ]

13. Souza AJ, et al. Construindo movimentos para o fortalecimento da família. Fam. Saúde Desenv 2006; 8(3): 265-272.         [ Links ]

14. Galera SAF, Luis MAV. Principais conceitos da abordagem sistêmica em cuidados de enfermagem ao indivíduo e sua família. Rev Esc Enferm USP 2002; 36(2): 141-7.         [ Links ]

15. Leite NSL, Cunha SR, Tavares MFL. Empowerment das famílias de crianças dependentes de tecnologias: desafios conceituais e a educação crítico-reflexiva freireana. Rev Enferm UERJ 2011; 19(1): 152-6.         [ Links ]

16. Maffesoli M. O conhecimento comun. Introduçao à sociología compreensiva. Porto Alegre: Ed. Meridional Ltda; 2010.         [ Links ]

17. Freire P. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro, paz e terra, 2011.         [ Links ]

18. Nóbrega JF da, et al. A Sociologia compreensiva de Michel Maffesoli: Implicações para a pesquisa em Enfermagem. Cogitare Enf 2012; 17 (2): 373-6.         [ Links ]

19. Nitschke RG. Mundo imaginal de ser família saudável: a descoberta de laços de afeto numa viagem no quotidiano em tempos pós-modernos. Pelotas: Editora da UFPel; 1999. p.199.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rosane Aparecida do Prado
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC).
Avenida Mauro Ramos, Nº950, Centro.
CEP: 88020-300 - Florianopolis, SC - Brasil
Telefone: (48) 2210500
Email: rosane@ifsc.edu.br

 

Artigo encaminhado: 11/09/2013
Aceito para publicação: 27/10/2013

 

 

Notas

* Docente
** Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem
*** Professora Adjunta