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Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.4 no.4 Florianopolis out. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Rede de Atenção Saúde Bucal: Limitações e Desafios em um Município Catarinense de Grande Porte.

 

Oral Health Care Network: Limitations and Challenges in a Large Municipality of Santa Catarina, Brazil.

 

 

Heloisa GodoiI*; Ana Lúcia Schaefer Ferreira de MelloI**; João Carlos CaetanoI***; Eduardo ZanardiII****

I Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil
II Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Ponta Grossa, PR - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A organização do Sistema Único de Saúde pauta-se atualmente pela estruturação de redes de atenção à saúde e a atenção à saúde bucal constitui-se uma rede temática em processo de consolidação. Neste contexto, objetivou-se analisar a organização da rede de atenção à saúde bucal em um município catarinense de grande porte, identificando seus elementos constitutivos e a integração entre estes. Trata-se de um estudo de natureza descritiva e exploratória com abordagem qualitativa. Os dados primários foram obtidos através de um questionário estruturado, aplicado ao gestor municipal de saúde bucal e os dados secundários coletados em bases de dados do SUS e em documentos fornecidos pelas Secretarias Municipal e Estadual de Saúde. A análise dos dados possibilitou a identificação de limitações e desafios a serem superados em cada um dos três elementos constitutivos da rede a atenção à saúde. O município possui uma ampla gama de pontos de atenção à saúde em todos os níveis de atenção e ferramentas para integração dos serviços e reorientação da atenção básica. No entanto, apresenta como necessidades a superação de fragilidades nos sistemas logísticos e de governança e a ampliação das equipes de saúde bucal inseridas à estratégia saúde da família, operando segundo princípios de vigilância à saúde.

Palavras-chave: Serviços de Saúde Bucal; Rede de Cuidados Continuados de Saúde; Assistência Odontológica Integral.


ABSTRACT

The organization of the Unified Health System is guided by structuring of health care networks. Oral health care constitutes a thematic network in the consolidation process. In this context, the objective was to analyze the organization of the network of oral health care in a large municipality of Santa Catarina, Brazil, identifying its elements and the integration between them. This is a descriptive and exploratory study with a qualitative approach. Primary data were obtained through a structured questionnaire applied to oral health public administrators. Secondary data were collected in official databases and provided by Municipal and State Health Directories. Analysis allowed the identification of limitations and challenges to be overcome in each of the three components of the health care network. The city has a wide range of points of health care at all levels of care and tools for integration of services and reorientation of primary health care. However, features such as needs to overcome weaknesses in logistics systems and governance and expansion of oral health teams entered the family health strategy, operating according to principles of health surveillance.

Keywords: Dental Health Services; Delivery of Health Care; Comprehensive Dental Care.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O Sistema Único de Saúde (SUS) apresenta como diretrizes estruturantes a descentralização e a regionalização das ações e serviços de saúde. Para a operacionalização do SUS, de forma a ocorrer a integração das ações e serviços exigidos para atender as necessidades de saúde da população, são necessárias formas de organização que articulem os serviços existentes, sem que o processo de descentralização sobrecarregue os municípios e com um arranjo organizacional sob forma de rede. Trata-se de um desafio que reside no desenvolvimento de relações horizontais entre os pontos de atenção que se encontram articulados, sob regência da Atenção Primária de Saúde (APS)1,2,3.

Assim, como forma de superar a fragmentação das ações e serviços de saúde, incluindo a atenção à saúde bucal, ainda persistente mesmo após representativos avanços alcançados pelo SUS, e reestruturar o sistema de saúde brasileiro, a proposta apresentada pelo governo e discutida atualmente diz respeito à construção de Redes de Atenção à Saúde (RAS). A conformação dos serviços em redes integradas e regionalizadas pode ser entendida como decorrente de "arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado"1,3.

No âmbito da saúde bucal, a reorganização da atenção à saúde ganha força a partir da reformulação da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB)4, denominada Brasil Sorridente. A partir deste marco o SUS assume a saúde bucal como parte integrante e inseparável do sistema, tendo os princípios da integralidade da atenção, equidade e universalização como direitos que devem ser assegurados a todos; reafirma a importância da atenção básica e da estratégia Saúde da Família como coordenadoras da atenção e inova ao estruturar o sistema de referência em atenção à saúde bucal, através dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e Laboratórios Regionais de Prótese Dentária (LRPD), os quais se constituem importantes pontos de atenção para a estruturação da Rede de Atenção a Saúde Bucal (RASB)3,4.

A organização das ações e serviços de saúde em rede, neste caso a atenção à saúde bucal, permite integrar, horizontal e verticalmente, os pontos de atenção à saúde e ofertar serviços de uma forma mais resolutiva, com melhor capacidade de resposta às aspirações e às necessidades individuais e coletivas, valorizando a atenção básica e o cuidado multiprofissional, de forma a compensar a fracionada e insuficiente presença histórica do Estado no campo da saúde bucal coletiva3,5. Essas características podem ser viabilizadas a partir da interação de elementos constitutivos das RAS: população/região de saúde definida e estrutura operacional atuando por uma lógica de funcionamento determinada pelo modelo de atenção à saúde1,6,7.

Região de saúde e população definidas constituem elementos fundamentais pelos quais a RAS fundamenta sua atenção, por meio de um processo de territorialização complexo, sob responsabilidade da atenção básica. A estrutura operacional é constituída pelos pontos de atenção e pelas ligações materiais e imateriais que comunicam estes pontos. O modelo de atenção se define como paradigma que determina o que são as necessidades assistenciais, como organizar a oferta e compreender tanto o processo saúde-doença, como suas formas de intervenção6,7.

A partir deste contexto e tomando como base as diretrizes que orientam, em âmbito nacional, a conformação das RAS e a organização da atenção à saúde bucal, o propósito deste estudo é caracterizar a organização da rede de atenção à saúde bucal em um município catarinense com mais de 100 mil habitantes, identificando a presença dos elementos constitutivos - população, estrutura operacional e modelo de atenção – bem como a integração entre eles nessa rede.

 

2. PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de um estudo de natureza descritiva e exploratória, de base qualitativa, realizado em um município de grande porte (421.240 habitantes) no Estado de Santa Catarina, Brasil8. Este município foi escolhido por apresentar maiores recursos e oferta de serviços em média e alta complexidade. Assim se caracteriza como o município de referência em diversos serviços para sua região de saúde.

Os dados primários foram obtidos através de questionário estruturado autoaplicável, enviado por meio de correio eletrônico ao gestor municipal de saúde bucal, por considerá-lo um profissional com competências específicas para o assunto em questão, obtendo-se resposta no mês de abril de 2012. O questionário elaborado para esta pesquisa, com perguntas referentes à estruturação da RAS a partir de seus elementos constitutivos teve por fundamentos a Portaria nº. 4.279/2010, as diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) e conceitos do Manual de média e alta complexidade do SUS9, estes últimos para caracterização da estrutura operacional da RASB.

Os dados secundários foram coletados através do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e do Sistema de Informação Hospitalar (SIH) a partir do DATASUS, tendo como referência o mês de abril de 2012. Também foram retirados de documentos oficiais como Planos Municipal e Estadual de Saúde e Protocolo Municipal de Saúde Bucal.

Estes dados foram organizados com ajuda do Microsoft Excel® e analisados de forma descritiva. Optou-se por desenhar uma matriz explicativa para compilar os resultados, através da comparação entre a situação verificada em cada um dos três elementos constitutivos da RASB e a situação considerada ideal para a organização desta rede, de acordo com o referencial teórico utilizado. Assim, possibilita-se uma melhor visualização dos resultados e das limitações encontradas para a consolidação da RASB no município em estudo.

Este estudo foi aprovado pelo parecer 27856/2012 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina.

 

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao analisar os dados coletados, pode-se verificar que o município em estudo encontra-se em processo de consolidação da Rede de Atenção à Saúde Bucal. Disponibiliza ações e serviços de saúde bucal de modo a seguir os pressupostos de uma rede regionalizada, com uma ampla gama de pontos de atenção a saúde bucal, e estrutura sua atenção básica através dos princípios de vigilância à saúde com possibilidades de coordenar a atenção.

O município apresenta ações e serviços de saúde bucal distribuídos nos três níveis de atenção, oferecendo a sua população a possibilidade de acesso aos serviços de diversas complexidades de forma bastante integrada, apenas com algumas limitações na articulação entre a atenção terciária e os serviços de urgência com os demais níveis. Exibe um processo de definição de sua população em consonância com os pressupostos de redes, ferramentas para integração entre atenção básica e os serviços especializados em constante evolução e adota medidas para garantir não só a integralidade da atenção, mas também a manutenção de vínculo e a longitudinalidade da atenção.

O município estudado demonstra um sistema decisório preocupado com a organização da RASB, sem negligenciar o processo de gestão dessa rede, incluindo a organização da atenção à saúde bucal tanto no texto do Plano Municipal de Saúde como em pautas de reuniões das comissões intergestores regional e bipartite. Consegue identificar suas dificuldades e estabelecer objetivos e metas para superá-las, como a necessidade de reorganizar a atenção básica através da Estratégia Saúde da Família (ESF) e a preocupação em ampliar a oferta de serviços especializados a sua população de forma a garantir uma atenção integral e resolutiva.

No entanto, foram identificadas algumas limitações para a consolidação da RASB neste município, as quais permeiam os três elementos constitutivos da RASB – População, Estrutura Operacional e Modelo de Atenção.

A definição da população é um elemento imprescindível para a conformação da RAS e fator fundamental para a organização da Atenção Básica6,7. Uma RAS exige a definição de uma região de saúde, com seus limites geográficos e populacionais; uma clientela adscrita à Unidade Básica de Saúde, para que se possa criar vínculo com seus usuários; e o levantamento da situação local de saúde a partir de critérios epidemiológicos, de forma a propiciar um amplo conhecimento das necessidades desta população e determinar o planejamento e a oferta das ações e dos serviços de saúde através de grupos prioritários1,10.

O resultado encontrado para este elemento constitutivo mostrou-se um tanto incongruente, pois mesmo apresentando regiões de saúde definidas, clientela adscrita às suas Unidades Básicas de Saúde através de um processo de territorialização complexo e realização de levantamento epidemiológico das condições de saúde bucal, as equipes de saúde bucal ainda restringem suas ações a grupos prioritários definidos segundo os parâmetros indicados pelo Ministério da Saúde e citados como populações estratégicas, tais como: gestantes, escolares e crianças.

A adoção de critérios limitados a seguirem preconizações tradicionais, sem justificativa epidemiológica e/ou social, dificulta a mudança de práticas e distanciam os serviços de saúde bucal de um atendimento voltado à vigilância a saúde e ao princípio de equidade10,11. A programação e o planejamento das ações devem estar baseados no diagnóstico das condições de saúde e necessidades de tratamento da população adscrita, o que permite priorizar grupos e alocar mais eficientemente os recursos. No entanto, assim como constatado por Pimentel et al10, ao analisarem o processo de trabalho das equipes de saúde bucal no Estado de Pernambuco, o diagnóstico da situação de saúde e a realização de ações sob a ótica da adscrição da clientela são práticas pouco realizadas, o que dificulta o planejamento e a efetividade das ações de saúde bucal3.

Contudo, participar do processo de territorialização/adscrição da clientela, identificar grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos e vulnerabilidades, como também realizar diagnóstico, com finalidade de obter perfil epidemiológico para planejamento e programação em saúde são atribuições dos membros das equipes de atenção básica/saúde da família, e, desta forma, atribuições da equipe de saúde bucal12.

Quadro 1 – Caracterização do elemento Estrutura Operacional e limitações encontradas.

 

Quadro 1

 

A estrutura operacional é constituída pelos pontos de atenção da rede e pelas ligações materiais e imateriais que comunicam esses diferentes pontos. O Quadro 1 apresenta os critérios considerados para a caracterização deste elemento constitutivo, a situação esperada para conformação em rede, a situação encontrada no município em estudo e as limitações a serem superadas.

O município estudado apresenta fragilidades na organização de todos os pontos de atenção, que pode ser influenciado pela dificuldade em planejar sua atenção à saúde bucal a partir das necessidades da população. Foram identificados problemas relacionados ao contingente de recursos humanos, pelo fato de apresentar cirurgiões dentistas atuando na atenção básica com carga horária inferior a 40 horas semanais e um quantitativo de profissionais auxiliares aquém ao número de dentistas e insuficiente para exercer a longitudinalidade da atenção.

De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica12, uma equipe composta por profissional auxiliar e dentista, atuando 40 horas semanais, apresenta maiores chances de promover vínculo com os usuários e exercer a longitudinalidade do cuidado1. Assim como a presença do profissional auxiliar é essencial para a conformação de equipes de saúde bucal inseridas a ESF. Estes profissionais possuem atribuições específicas e contribuem substancialmente para a racionalização do trabalho, aumento da produtividade, acesso e qualidade do trabalho e colaboram para a mudança de práticas e do modelo de atenção4,13.

A disparidade entre o número de profissionais auxiliares e dentistas dificulta a adoção de práticas de alta cobertura em um sistema de trabalho e a simplificação e a racionalização do trabalho odontológico, como descrito por Colussi e Calvo13 ao constatarem uma relação ruim entre o número de profissionais auxiliares e dentistas, durante a avaliação da qualidade da atenção em saúde bucal em municípios catarinenses de diferentes portes.

Os pontos de atenção à saúde são lugares institucionais onde se ofertam os serviços de saúde estruturados de forma poliárquica, com objetivos em comum e distribuídos conforme o nível de atenção. O município pesquisado estrutura-se, no âmbito do SUS, com 50 Unidades Básicas de Saúde, as quais apresentam equipes de saúde bucal em sua totalidade, facilitando o acesso e garantindo a integralidade da atenção. Estas unidades são equipadas com prontuário e agenda eletrônica e apresentam como ferramenta de integração dos serviços o Sistema Nacional de Regulação - SISREG. Os serviços de atenção secundária (AS) e terciária (AT) são oferecidos por três Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), sendo que um está localizado nas dependências de uma Universidade; duas Unidades de Pronto Atendimento e seis unidades hospitalares que ofertam serviços odontológicos. Conta ainda com assistência odontológica em uma unidade de Hematologia e Hemoterapia (HEMOSC), em um Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON) e no ambulatório de Odontologia da referida Universidade.

Apesar de apresentar uma ampla gama de pontos de atenção à saúde bucal, percebe-se a necessidade de ampliação e qualificação dos procedimentos reabilitadores, os quais ao serem realizados pela atenção básica oportunizam um maior acesso à população e possibilitam a integralidade da atenção em saúde bucal. Esta é uma opção para a redução do déficit de tratamento ainda encontrado em adultos e idosos, conforme apontado pelos resultados do levantamento epidemiológico em saúde bucal – SB Brasil 201014, e estão inclusos no rol de procedimentos ofertados pela atenção básica desde 2004, de acordo com a Portaria n. 74/200415. A oferta destes procedimentos apenas no âmbito dos CEO pode se tornar insuficiente para suprir as necessidades apresentadas pela população, estando estes resultados em conformidade com o estudo realizado por Mallmann et al16, que estimaram a necessidade de prótese em indivíduos de 50 a 70 anos residentes em Porto Alegre, e ratificam a necessidade de ampliação de equipes de saúde bucal capazes de responder às demandas de saúde da população.

Os serviços especializados são necessários para a continuidade do cuidado. Para tal, considera-se tanto a premência em se ampliar a oferta de procedimentos especializados em Odontologia, ressaltada pela PNSB4, quanto à necessidade de se possuir, além de serviços primários, serviços secundários e terciários em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades da população e assim assegurar o princípio da integralidade e a resolutividade da RASB1.

Neste estudo, constatou-se a presença destes serviços, no entanto, a AT está basicamente limitada a procedimentos na especialidade de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial17 e, assim como os demais serviços especializados do município, ainda produzem dúvidas quanto ao suprimento da demanda por serem serviços regionalizados, de acordo com os conceitos de escala e escopo1,e não seguirem critérios epidemiológicos para seu dimensionamento. Estes serviços se responsabilizam por uma população maior que a adscrita pelo município e apresentam fragilidades na integração e articulação com outros pontos da rede, em especial os serviços de AT e de urgência, aqui representado pela Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que se encontram desarticulados dos demais pontos. Mesmo apresentando seis unidades hospitalares que oferecem serviços odontológicos, apenas duas apresentam integração com os demais serviços e, ainda assim, com dificuldades em contrarreferenciá-los.

Os pacientes atendidos tanto no serviço hospitalar quanto em UPA são apenas orientados a procurar os demais níveis, ficando sob sua responsabilidade a continuidade ou proservação do tratamento. Estes óbices foram apontados no Plano Estadual de Saúde de Santa Catarina 2012-201517 e não são exclusividades da atenção odontológica. Almeida et al18 ao analisarem a presença de mecanismos de integração entre os níveis assistenciais de quatro centros urbanos, constataram que, mesmo havendo estratégias para garantir o atendimento integral ao usuário, como a criação e fortalecimento de estruturas regulatórias, organização de fluxos, prontuários eletrônicos e ampliação dos serviços, existe, ainda, ausência de mecanismos de contrarreferência da alta complexidade para os demais níveis. Apontam como justificativa a existência de diferentes prestadores de serviços, sendo a atenção hospitalar, em grande parte, regulada pelo Estado, o que se configura em um desafio para a integração com os serviços cuja regulação está sob a responsabilidade do município.

Já em relação ao serviço de urgência e emergência odontológica prestado pela UPA, mesmo que este ponto de atenção integre uma rede de atenção às urgências19, precisa estar articulado com a atenção básica para que o usuário receba a continuidade de seu tratamento.

Assim, apesar do município apresentar um sistema logístico repleto de ferramentas capazes de garantir integração dos serviços de forma articulada, existem fragilidades a serem superadas para que se possa efetivar a integração entre os pontos e consolidar a RASB. Para se estabelecer sistemas logísticos que possam garantir a integração e articulação entre os pontos de atenção da melhor forma possível é necessário incluir gestores, profissionais da saúde e saúde bucal, bem como a participação da sociedade civil nos espaços decisórios constituídos, para que se possibilite a negociação, pactuação e geração de consensos capazes de viabilizar a conduta mais adequada e coerente para a resolução dos problemas e a conformação de todos os serviços em rede7,20.

Os serviços de apoio, aqui apresentados como serviços de radiologia odontológica, patologia bucal, assistência farmacêutica e prótese dentária, foram considerados com implantação em estágio incipiente, pois a falta do serviço de prótese dentária representa um prejuízo para integralidade da atenção na perspectiva da rede de atenção à saúde bucal, considerando-se os resultados apresentados pelo SB Brasil 2010 e a necessidade elevada de reabilitação protética em adultos e idosos14,16,21.

Os sistemas de governança necessitam da cooperação de diversos participantes da RASB, sem hierarquia preestabelecida, através da análise situacional e objetivos coincidentes, com participação da sociedade civil a partir de espaços decisórios7,20. Por este fato, as ferramentas de gestão analisadas para este estudo foram o plano municipal de saúde, protocolo de atenção à saúde bucal e a existência de pautas sobre a organização da atenção à saúde bucal em reuniões da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) - instância estadual permanente de negociação e pactuação, com papel deliberativo e responsável pela operacionalização da saúde no estado22.

Estes sistemas, em conjunto com os sistemas logísticos, são considerados pela literatura elementos críticos, por depender de diversos atores sociais e necessitar de comprometimento de todas as partes, para que o objetivo teorizado possa ser alcançado7,20,22. Este município não negligencia o processo de gestão, apresentando tanto um protocolo de atenção à saúde bucal atualizado quanto um plano municipal de saúde que abordam o planejamento e a organização da atenção à saúde bucal, como também assuntos referentes à estruturação da RASB em pautas da CIB. Há o reconhecimento das dificuldades e necessidades a superar, como a reorganização da atenção básica através da estratégia saúde da família e a preocupação em ampliar a cobertura populacional e a oferta de serviços odontológicos, básicos e especializados, de forma a garantir uma atenção integral e resolutiva.

No entanto, a concretude dessas ações é prejudicada a partir do momento que suas pactuações e metas não são alcançadas e/ou implantadas e os serviços padecem com a fragilidade em estabelecer integração entre os pontos de atenção terciária e os serviços de urgência e a atenção básica ou secundária. Os sistemas logísticos e de governança, devido esta relação de interdependência que apresentam entre si, demonstram as maiores dificuldades de consolidação na RASB. São considerados, pela literatura, como processos complexos por apresentarem como requisito a cooperação de diversos atores com competências distintas e serem diretamente influenciados pelo adequado diagnóstico das necessidades da população que, consequentemente, conduz ao planejamento e estruturação dos pontos de atenção à saúde bucal. Sem o levantamento dessas informações, há dificuldades para gerir o sistema, distribuir os serviços e organizar os fluxos entre os diversos pontos. Os gestores responsáveis por esta rede temática, assim como a atenção básica/ESF, necessitam mapear a gama de serviços, desde o nível ambulatorial até hospitalar, para traçar a melhor integração e os critérios clínico-epidemiológicos necessários para a utilização e priorização do acesso1,3,7,20. Assim, os componentes fundamentais pertencentes à estrutura operacional da RAS apresentam fragilidades a serem superadas para que se possa consolidar a rede temática em questão.

A caracterização do elemento constitutivo Modelo de Atenção pautou-se pela análise da implantação das equipes de saúde bucal à estratégia saúde da família, a qual apresenta um modelo de atenção guiado pelos princípios de vigilância à saúde e é apontada não apenas como reorientadora da atenção básica, mas como estratégia prioritária para o estabelecimento da RAS1,4,12.

De acordo com Mendes7o modelo de atenção à saúde pode ser entendido como paradigma que define o que são as necessidades assistenciais, como deve ser organizada a oferta, como se compreende o processo de saúde/doença e as formas de intervenção. A atual transição da situação de saúde, juntamente com a mudança nos perfis demográficos e epidemiológicos, direciona para a necessidade de um novo modelo de atenção, o qual seja coerente com a concomitância da ocorrência de condições crônicas e agudas de saúde, bem como aquelas motivadas por causas externas. Essas condições, ainda que convoquem modelos de atenção à saúde distintos, são como faces de uma mesma moeda, para as quais devem estar contempladas respostas na RAS.

No SUS, a estratégia saúde da família (ESF) é essencial para a abordagem resolutiva dos problemas crônicos de saúde e representa o principal modelo para a organização da atenção básica e o estabelecimento da RAS1. Considerando-se que grande parte das doenças e agravos bucais fazem parte do rol de doenças crônicas23, torna-se lógico adotar a organização da RASB por meio da implantação de equipes de saúde bucal vinculadas às equipes de saúde da família, como forma de substituir um modelo de atenção à saúde bucal ultrapassado e incapaz de enfrentar os problemas de saúde bucal demonstrados pela população. A inserção das equipes de saúde bucal à ESF possibilita a criação de um espaço de políticas e relações a serem construídas para a reorientação do processo de trabalho e para a própria atuação da saúde bucal no âmbito dos serviços de saúde17.

Os resultados encontrados para este elemento constitutivo condiz com a situação exposta no Plano Estadual de Saúde 2012-201517, o qual descreve como necessidade a ampliação do número de equipes de saúde bucal inseridas à ESF e equiparação entre o número de equipes de saúde bucal e equipes de saúde da família. Para o ano de 2011 as metas pactuadas, pelo Estado, para os indicadores cobertura estimada pela equipe de saúde bucal na ESF e relação equipe de saúde bucal/equipe saúde da família, foram, respectivamente, 45% e 1,5 equipes de saúde da família para cada equipe de saúde bucal inserida à ESF. O referido município apresentou, neste estudo, uma cobertura populacional (equipes de saúde bucal inseridas na ESF) de 39,8%, considerando-se uma equipe para 3.000 habitantes, e uma relação de 2,10 equipes de saúde da família para cada equipe de saúde bucal, encontrando um resultado, ainda, aquém ao estipulado para o Estado.

A equiparação entre o número de equipes de saúde bucal e equipes de saúde da família apesar de estar determinada desde 200324 - bem como o fato da equipe de saúde bucal ser apresentada na PNSB4 como uma equipe indissociável da equipe básica multiprofissional - não se faz plena realidade em Santa Catarina e também no Brasil. Ao analisar informações sobre a implantação das equipes de saúde bucal à ESF através do portal do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, disponível em domínio público, tendo como referência o mês de abril de 2012, pode-se perceber que esta situação se repete em todos os estados brasileiros. Esta relação desproporcional pode ser explicada pela regulamentação da inclusão das equipes de saúde bucal ter ocorrido seis anos após o início do programa saúde da família e sua equiparação ter ocorrido apenas em 2003.

A ESF é considerada relevante para a reorganização das práticas em saúde bucal, com base nos princípios de vigilância a saúde e estruturada de acordo com os atributos do primeiro contato, integralidade, longitudinalidade, coordenação, abordagem familiar e orientação comunitária1,5. Trata-se da modificação do trabalho do dentista, que passa de uma abordagem isolada para uma prática integrada, atuando junto às esquipes de saúde da família. Essa mudança torna-se tão expressiva que requer ajustes na formação destes profissionais, historicamente treinados para uma atenção curativista, preparando-os para as novas realidades que encontrarão no campo do exercício profissional5. Tais ajustes podem se traduzir em realidade desde a implantação do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRÓ-SAÚDE) que impulsiona esta transformação25.

No entanto, este município atenta para a melhoria/aprimoramento do atual modelo de atenção à saúde bucal não só por perceber sua necessidade e produzir esforços para a ampliação da ESF, mas também por empregar medidas para manutenção e aperfeiçoamento de seus profissionais de odontologia através da realização de atividades de educação permanente, parcerias com instituições de ensino e aprimoramento de seu plano de cargos, carreiras e salários. Estas medidas impactam positivamente na atuação das equipes de saúde bucal, por influenciar na permanência e valorização destes profissionais e, consequentemente, melhorar as oportunidades de criação de vínculo com a população e manutenção de serviços em todos os níveis1.

O incentivo à educação permanente traz uma contribuição ímpar para a saúde. Para o gestor, surge como um fortalecimento da prática ao trabalho, já para os profissionais as capacitações podem provocar mudanças na sua atuação, através da articulação teórico-prática, além de possibilitar maior interação entre o trabalhador e o usuário26. Segundo Pimentel et al10, as atividades de educação permanente são capazes de estimular a incorporação dos pressupostos da ESF às equipes de saúde bucal. Assim, possibilitaria não apenas a mudança de práticas, mas a ampliação do acesso às ações de saúde à população e a integração da rede de serviços de saúde bucal.

Embora o município estudado apresente a estruturação de suas ações e serviços de saúde bucal operando de acordo com os pressupostos da RAS, sendo possível a identificação dos elementos constitutivos propostos por este estudo, sua RASB apresenta limitações e desafios a serem superados, principalmente no que diz respeito à operacionalização dos sistemas logísticos e de governança, para que se possa integrar os serviços de saúde bucal na totalidade de suas complexidades, através da cooperação de um conjunto amplo de atores com responsabilidades singulares. Como também, a ampliação do quantitativo de equipes de saúde bucal atuando de acordo com a conjuntura atual da vigilância à saúde, a estratégia saúde da família.

Dentre os fatores limitantes encontrados para a elaboração deste estudo pode-se elencar a dificuldade em se obter dados primários representativos da real conformação da RASB, apenas com base nas respostas do questionário; a necessidade de utilização de diversas fontes de informações, as quais, por vezes, eram conflitantes; a utilização de bancos de dados secundários, cujas limitações são inerentes ao tipo de fonte; e a abrangência municipal para o estudo de uma rede temática de atenção à saúde que possui envolvimento regional.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos analisados indicam a implantação de uma rede temática de atenção à saúde como condição para levar o cuidado à saúde bucal a um novo patamar de atenção e assistência. Essas são as contribuições trazidas com a construção deste modelo teórico sobre a construção da Rede de Atenção à Saúde Bucal, ainda pouco discutida, o qual considera a estruturação e organização dos elementos constitutivos e aponta limitações e desafios a serem superados para a consolidação desta rede.

O estudo mostrou um município que apresenta a conformação de sua atenção à saúde bucal em consonância com as diretrizes estruturantes das redes de atenção à saúde e apresenta como fragilidades a adoção de critérios de priorização da atenção sem justificativa epidemiológica e/ou social; a dificuldade de interação entre os níveis de maior complexidade e os demais, demonstrada não só pela limitação de ferramentas logísticas, mas também de gestão; e a ampliação das equipes inseridas à estratégia saúde da família, fator primordial para a (re)estruturação da atenção primária e coordenação da rede.

Pretende-se, por conseguinte, apontar caminhos que possam contribuir com a consolidação da Rede de Atenção à Saúde Bucal, como forma de garantir vínculo com a população, longitudinalidade e integralidade do cuidado, através do estímulo a novas discussões e estudos sobre o tema.

 

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Endereço para correspondência
Heloisa Godoi.
Universidade Federal de Santa Catarina.
Centro de Ciências da Saúde. Trindade.
Rua Delfino Conti, s/nº.
CEP: 88049-900 - Florianopolis, SC.
Email: heloisagodoi@gmail.com

 

Artigo encaminhado 17/09/2013
Aceito para publicação em 24/10/2013

 

 

Notas

* Mestre em Odontologia em Saúde Coletiva
** Professora Adjunto II
*** Professor Titular
**** Mestrando em Engenharia de Produção