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Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.5 no.1 Florianopolis  2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O transtorno de personalidade borderline a partir da visão de psicólogas com formação em Psicanálise

 

The borderline personality disorder from the vision of psychologists raduated in Psychoanalysis

 

 

Matheus Rozário MatioliI; Érica Aparecida RovaniII; Mariana Araújo NoceIII

IMestrando, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP), Ribeirão Preto, SP - Brasil
II
Psicóloga, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), Serrana, SP - Brasil
III
Professora, Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), Ribeirão Preto, SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O transtorno de personalidade borderline (TPB) refere-se a um transtorno que afeta seriamente a vida da pessoa acometida causando prejuízos significativos tanto ao indivíduo com TPB como às pessoas a sua volta. O objetivo deste artigo é apresentar a experiência profissional de psicólogas com formação em Psicanálise no atendimento de pacientes com TPB, enfocando: as principais características, o processo diagnóstico e o tratamento do transtorno. Participaram da pesquisa duas psicólogas com formação em Psicanálise. Pode-se observar que as profissionais realizam o diagnóstico durante o tratamento, já que o maior interesse está no funcionamento do paciente. Além disso, o tratamento é feito de acordo com os sentimentos e pensamentos que o paciente verbaliza, e da relação terapêutica com o analista. Pode-se concluir que a divulgação de informações acerca do TPB e seu tratamento são de grande importância para esclarecer tanto a população quanto profissionais e estudantes da área da saúde.

Palavras-chave: Psicanálise; Transtorno de Personalidade Borderline; Tratamento.


ABSTRACT

Borderline Personality Disorder (BPD) is a disorder that seriously affects the life of the person who suffers from it and causes harm to the person with BPD and to the people surrounding him. This paper's objective is to present the professional experience of psychologists graduated in Psychoanalysis in caring for patients with TPB, focusing: the main characteristics, the diagnostic process and the treatment of the disorder. Two psychologists graduated in Psychoanalysis took part in this research. It was observed that the professionals made the diagnosis during the treatment, because their main interest is in the way the patient functions. Moreover, the treatment is administered according to the feelings and thoughts the patient brings and the therapeutic relation with the analyst. We can conclude that the release of the information about BPD and its treatment are very important to clarify the population, the professionals and the students of this health area.

Keywords: Psychoanalysis; Borderline Personality Disorder; Therapy.


 

 

1. INTRODUÇÃO

1.1. Personalidade

Conforme afirmado por Telles¹, Fenichel se refere ao caráter ou à personalidade como o modo habitual de conduta de uma pessoa. Esta, por sua vez, é o resultado de uma série de operações complexas referentes aos modos habituais de adaptação do ego ao mundo externo, ao id e ao superego. Desse modo, a personalidade, o caráter e a conduta são aspectos ligados ao ego (eu), resultantes de sua difícil tarefa de se equilibrar entre as exigências de três forças, o id (impulsos internos), o superego (exigências morais) e a realidade.

Segundo Schultz e Schultz² os instintos são os elementos básicos da personalidade, são as forças que impulsionam o comportamento e determinam o seu rumo. Eles são uma forma de energia fisiológica transformada, que conecta os desejos da mente com as necessidades do corpo, como, por exemplo, a fome e a sede, que são os estímulos internos dos instintos que geram uma excitação fisiológica. A mente transforma essa excitação fisiológica em um desejo, que é a representação mental da necessidade fisiológica, o instinto. Essa necessidade gera tensão e pressão, com isso, o instinto tem como meta satisfazer as necessidades e reduzir a tensão. Ainda de acordo com esses autores, para Freud o ser humano está em constante tensão instintual e age constantemente para reduzi-la, sendo que a energia psíquica poderia ser deslocada para objetos substitutos e esse deslocamento é importante na determinação da personalidade de uma pessoa.

Há dois tipos de instintos, o de vida e o de morte. O instinto de vida busca a sobrevivência do indivíduo, satisfazendo as necessidades de água, ar, comida, entre outras. Esse instinto busca o crescimento e o desenvolvimento e a energia psíquica por ele manifestada é a libido. Já o instinto de morte, é o desejo inconsciente de morrer que o ser humano tem. Um dos componentes do instinto de morte é o impulso agressivo, que é direcionado aos objetos externos2.

Freud dividia a personalidade em três níveis, o consciente, que inclui as experiências e sensações que o sujeito experimenta em todos os momentos; o inconsciente, que é o foco da teoria psicanalítica e onde estão os instintos, os desejos que regem o comportamento e; o pré-consciente, que é o depositário das lembranças, ideias e percepções que no momento não estão conscientes, mas podem ser trazidos à consciência facilmente. Ao longo dos anos Freud reviu esse conceito de níveis de personalidade e introduziu três estruturas básicas da personalidade, sendo elas: Id, Superego e Ego2.

Em uma perspectiva freudiana a personalidade se constitui a partir das vivências e pelo desenvolvimento em fases da libido (energia vital/sexual), pelo modo como se estrutura o desejo inconsciente e as formas como o ego lida com os conflitos e frustrações libidinais3.

Freud, em "Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade"4, afirma que as pulsões sexuais percorrem um caminho sinuoso de desenvolvimento para então alcançar o "primado da zona genital". Antes de este ser alcançado a pulsão pode ficar fixada em alguma organização pré-genital, como a oral e a anal, às quais retornará quando ocorrer uma repressão, o que caracterizaria uma regressão.

Deste modo, as fixações infantis da libido e a tendência a regressão para esses pontos de fixação determinam os diferentes tipos de neurose e o perfil da personalidade adulta3. Soma-se a isso o Complexo de Édipo, que caracteriza a trama inconsciente de amor da criança pelo genitor de sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo, podendo também ocorrer de forma inversa5. Considera-se que a forma como o adulto introjetou esses fatores é determinante da personalidade.

A teoria psicanalítica, em uma perspectiva kleiniana, propõe como alicerce para a estruturação da personalidade de um indivíduo a qualidade da interação entre o recém-nascido e sua mãe. A ausência de figuras cuidadoras constantes pode dificultar a formação da personalidade. Uma mãe suficientemente equilibrada e amadurecida é essencial para suprir as necessidades físicas e emocionais de seu bebê e auxiliá-lo na construção de sua personalidade. Isto acontece porque a criança recém-nascida chega ao mundo em uma condição de desamparo6.

Maciel e Rosemburg citam Brenner7 que aponta essa condição de desamparo como mental e biológica, que gera na criança a necessidade de proteção e gratificação, as mesmas vividas no útero. A mãe antes satisfazia as necessidades do feto por meio de seu corpo, agora procura outros meios para fazê-lo6.

Freud, na obra "Inibições, Sintomas e Angústia"8, afirma que ocorre uma situação biológica quando a criança ainda é feto e após seu nascimento essa relação é substituída por uma relação de objeto psíquico com sua mãe. Depender da mãe é determinante para a formação da personalidade do ser humano, ou seja, após o nascimento a criança dependerá da figura materna para iniciar a formação de sua personalidade.

1.2. Transtorno de personalidade

Foi ao final da década de 1930 e início da de 1940 que referências a pacientes não esquizofrênicos, mas com grandes perturbações para um tratamento psicanalítico clássico, começaram a surgir na literatura. Os autores Hock e Polatin, em 1949, se referiram a esses pacientes como esquizofrênicos psiconeuróticos e apresentavam como sintomas: ansiedade difusa, neuroses polimórficas e pansexualidade. Posteriormente outros autores da corrente psicanalítica aperfeiçoaram critérios diagnósticos, recebendo destaque Otto Kernberg que propôs uma teoria abrangente das perturbações da personalidade, abstendo-se das classificações superficiais relativas ao comportamento9.

De acordo com Telles1 o transtorno de personalidade, em Psicanálise, também conhecido como transtorno de caráter, se difere das demais patologias devido aos conflitos inconscientes alterarem o ego, que passa a ter características específicas, causando diminuição da flexibilidade egóica, através de uma formação reativa (oposição a um desejo recalcado, ou seja, uma reação à ele), ao invés de ser reprimido. Pensando-se que alguns padrões de conduta do dia-a-dia são de origem defensiva, uma adaptação aos conflitos inconscientes em uma tentativa de encontrar uma possível saída, pode-se entender o próprio caráter como um transtorno.

Segundo o mesmo autor, Fenichel organizou os transtornos de personalidade em três grupos, sendo eles: os resultantes de uma conduta patológica diante do id, como por exemplo, a frigidez, a racionalização e a idealização; os resultantes de uma conduta patológica diante do superego, como defesas contra culpas e masoquismo moral e; os resultantes de uma conduta patológica frente a objetos externos, como o ciúme e a ambivalência.

1.3. Transtorno de Personalidade Borderline (TPB)

Hegenberg10 afirma que tentativas ocorreram para definir transtornos que não se enquadravam nas neuroses e nem nas psicoses: esquizotimia, esquizoidia, pré-psicose, personalidade hebefrênica, psicoses marginais, paranoia sensitiva, certas personalidades perversas, personalidade psicopática, psicopata, personalidade "como se", falso self e neurose de caráter. O termo borderline surgiu com Sterm na década de 1940, porém este o incluiu entre os neuróticos. Hegenberg10, retomando o pensamento de Bergeret11, anuncia que foi Eisenstein, em 1949, que agrupou as patologias supracitadas sob o vocábulo borderline. Como se pode observar é difícil definir o borderline, porém, é importante considerar a singularidade do sujeito, tomando cuidado para não cometer generalizações, apesar disto ocorrer quando se trata de teoria.

Segundo Hegenberg10, Freud estava interessado nas neuroses, na compreensão da histeria e da castração e não se aprofundou na questão do borderline mesmo lançando a base para a sua compreensão futura como a menção à importância do apoio ou relação anaclítica, e do entorno familiar. Para a compreensão do borderline é preciso uma relação com o outro, uma relação a dois e o encontro com o analista precisa se dar enquanto pessoa e não somente em uma qualidade transferencial.

Winnicott se refere ao borderline algumas vezes, porém esteve voltado à constituição do indivíduo enquanto ser humano, ou seja, a formação do self. O borderline se sente incompleto, ou seja, seu self ainda não está constituído, consequentemente surgem as vivências de vazio e falta de sentido de vida. Isso se dá pelo ambiente não suficientemente bom na infância. Desta forma, o ambiente é importante, pois promove a relação entre as pessoas. É justamente o que o borderline necessita, alguém que o acompanhe na constituição de seu self10.

Hegenberg10 discorre sobre o TPB na visão psicanalítica apresentando as seguintes características: angústia de separação (dificuldade de se separar do outro); dilema com a identidade (dificuldade de constituir sua subjetividade); clivagem (divisão em bom e mau); questão do narcisismo (visualiza suas próprias necessidades); agressividade; impulsividade e; suicídio. Estas podem ser observadas no dia-a-dia das pessoas que apresentam esse transtorno, assim como na literatura. Este autor ressalta que pacientes com esse transtorno necessitam de um longo período de análise, além de experiência e de paciência do analista, uma vez que são pacientes difíceis.

Segundo Lowenkron12 desde o início da prática psicanalítica a questão do diagnóstico já era pensada para se fazer o tratamento, embora acontecesse junto a este ao longo da análise. Privilegia-se a escuta do sujeito, sua subjetividade em relação à subjetividade do analista, ou seja, em um espaço intersubjetivo de inconsciente para inconsciente.

O paciente com transtorno TPB apresenta uma relação intensa com o analista, já que este funciona como um objeto-subjetivo para ele, ou seja, o analista está constituindo o paciente enquanto sujeito; por essa razão, quando o analista se afasta o paciente se sente inexistente. Em um processo analítico com pacientes com esse transtorno é importante que o analista esteja atento às necessidades do paciente de receber atenção total e se isso não ocorrer, saber acolher e manejar a situação, pois isso pode gerar uma quebra de confiança na relação terapêutica10.

Segundo o mesmo autor, em uma visão winnicottiana, o tratamento de pacientes com TPB consiste no analista acompanhar o paciente na constituição de seu self , que se dá através do holding que é o provimento materno no estádio da maternagem. O analista tem que sustentar o paciente, não invadi-lo e acompanhá-lo na construção de sua subjetividade, por meio da regressão a um estado que permita essa constituição.

O paciente com TPB teme ser invadido por ideias do outro, deixando assim, de ser ele mesmo, isso pode ocorrer na clínica, quando o borderline deixa de ouvir seu objeto anaclítico. O analista deve ficar atento a movimentos transferenciais associados a essas questões, pois o paciente pode receber algumas observações como ataque ao seu self não constituído. Por isso a análise se dá ao longo de vários anos, respeitando o tempo singular do paciente no processo dessa constituição10.

 

2. OBJETIVOS

Apresentar a experiência profissional de psicólogas com formação em Psicanálise no atendimento de pacientes com transtorno de personalidade borderline (TPB), enfocando: principais características, processo de diagnóstico e tratamento do transtorno.

 

3. METODOLOGIA

Este artigo foi desenvolvido a partir de uma pesquisa realizada para a elaboração da monografia de conclusão do curso de Psicologia, dos autores, de uma Universidade do interior do Estado de São Paulo, que objetivou caracterizar o transtorno de personalidade borderline (TPB), sob o ponto de vista de dois médicos psiquiatras e de psicólogas, duas com formação em Psicanálise e duas com especialização na abordagem Cognitivo-Comportamental. Para este artigo foi destacado, da pesquisa mencionada, a participação das duas psicólogas com formação em Psicanálise (Psc 01 e Psc 02) que preencheram os seguintes critérios pré-estabelecidos: ter acima de cinco anos de experiência profissional e ter atendido pacientes com TPB.

Foram realizadas duas entrevistas semiestruturadas, uma com cada profissional, agendadas previamente. As entrevistas foram realizadas em locais escolhidos pelas profissionais, com duração aproximada de uma hora cada. Tais entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente e os dados analisados qualitativamente, à luz da técnica da análise de conteúdo. O roteiro de entrevista semiestruturado apresentou perguntas relacionadas aos seguintes temas: principais características, processo diagnóstico e tratamento do TPB.

Sobre os aspectos éticos, o projeto da monografia foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade na qual os autores estavam vinculados, na época. Os termos de consentimento foram assinados pelas profissionais, autorizando a participação e a utilização dos dados para pesquisa. Em todo o momento foi garantido o sigilo e o anonimato das participantes envolvidas.

 

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir serão expostos os principais resultados e a discussão dos dados obtidos. Serão apresentados nove temas que foram criados a partir do que se mostrou significativo nas falas das profissionais, a saber: as principais características do paciente; o diagnóstico; a influência da história pessoal; a distinção entre realidade e fantasia; a presença de embotamento afetivo e isolamento social; as dissociações do paciente; os pensamentos do paciente sobre o seu transtorno; o tratamento e; a relação da família e outros cuidadores com o paciente.

Para a apresentação deste item é necessário frisar que em alguns momentos optou-se por manter a maneira como as entrevistadas relataram suas experiências, pois estas trouxeram vários casos clínicos que enriqueceram suas falas e também contribuíram para a compreensão do transtorno de personalidade borderline (TPB) na prática profissional.

4.1. Principais características do paciente

No que se refere às principais características de um paciente com TPB observadas na experiência das profissionais, para a Psc 01 esses pacientes são rígidos em relação ao posicionamento diante da vida. Tentam manter uma boa organização, porém acompanhada de muita ansiedade. Esta tende a aumentar quando estão diante de novos acontecimentos ou quando algo se rompe. É como se eles estivessem sendo ameaçados constantemente, o que a profissional nomeou de "persecutoriedade". Quando essa ameaça é muito intensa, chega-se à ideação de morte, ou seja, são pacientes que, na visão da profissional, não tentam o suicídio, porém sentem psiquicamente que poderão morrer fisicamente. Nos casos atendidos por essa profissional não se constatou tentativas de uma morte física, porém situações em que os pacientes colocaram-se em risco; os pacientes tinham noção do que era ou não arriscado, porém sentiam-se imbatíveis:

"Imbatível no sentido de como se ela não fosse atingida por algo e se põe em situações de muito risco, por exemplo, a paciente que falava para mim constantemente na ideia que ela poderia ter sido picada por uma cobra venenosa. Que ela não tinha risco de ser picada por aquela cobra. Quando, na verdade atrás disso, ela se punha em situações de risco de poder ser picada por essa cobra. Mas com ela não tinha perigo" (Psc 01).

Apontou também, como características: a impulsividade, que tentam conter de alguma forma, não obtendo sucesso em vários momentos e; agressividade.

A Psc 02 refere as seguintes características apresentadas pelos pacientes com TPB: a impulsividade, demonstrada pelas reações agressivas e a ideação suicida; a tendência às atuações, que à primeira vista é o que mais se destaca; a dificuldade de fazer relacionamentos; os sentimentos de abandono e vazio e; o uso de um modo de se defender com muita idealização e identificação projetiva.

Na literatura, quanto às características comuns em pacientes com TPB pode-se citar: a impulsividade, a instabilidade afetiva e emocional, a raiva, o sentimento crônico de vazio, a autolesão, a ameaça e a tentativa de suicídio13. Estas foram, de uma maneira geral, apresentadas pelas entrevistadas, enriquecidas por seus exemplos clínicos. Sobre a tentativa de suicídio um aspecto interessante foi o de pensar a morte como "não-física", mas psíquica, conforme relatado pela Psc 01. Pode-se inferir em relação ao que foi apresentado, que o paciente percebe a ruptura ou o novo como algo insuportável, que poderá gerar uma morte física para ele, mas que se trata de algo que está no plano das relações do seu psiquismo e não no físico. De acordo com Hegenberg10, Winnicott se refere a esses pacientes como pessoas que se sentem incompletas e, como consequência disso, aparecem as vivências de vazio e falta de sentido de vida. Com isso, o analista funciona como um objeto-subjetivo para o paciente, ou seja, está constituindo-o enquanto sujeito, por essa razão, quando o analista se afasta o paciente se sente inexistente.

4.2. Diagnóstico

Em relação ao diagnóstico, a Psc 01 expôs que não existe uma preocupação em nomeá-lo, pois em sua linha de trabalho atende a partir do funcionamento psíquico predominante do paciente.

A Psc 02 apresentou dois enquadres distintos em relação ao diagnóstico. No primeiro, pensando no contexto institucional, como por exemplo, o hospital em que trabalhou, ela pautava-se em manuais de classificações diagnósticas, estudos de caso, estudos da história dos pacientes para a detecção de sinais e sintomas e, também, o psicodiagnóstico. No segundo, em um contexto clínico, em seu consultório, há outro olhar, em que é difícil se pensar em um diagnóstico no primeiro momento:

"Acho que isso é algo que vai se construindo ao longo do tempo, à medida que a gente vem conhecendo o paciente, vai vendo como é que ele age, a relação com ele, então acho que isso é feito mais no decorrer do trabalho. Às vezes a priori a gente tem alguma suspeita" (Psc 02).

Destaca-se que para as psicólogas com formação em Psicanálise há outra forma de trabalhar que não necessita da elaboração prévia do diagnóstico, o qual acaba sendo feito ao longo do tratamento no intuito de direcionar os profissionais na forma de conduzir o caso. Sobre esse aspecto, Lowenkron12 afirma que é importante privilegiar a escuta do sujeito e o espaço intersubjetivo entre o paciente e o analista.

4.3. Influência da história pessoal

Sobre a influência da história pessoal no desencadeamento do TPB, a Psc 01 observou que independentemente do transtorno, a história pessoal interfere expressivamente, através de experiências de muita precariedade vividas na infância, ou situações equivalentes a pessoas que sofrem terrorismo. Para ela, são pessoas que viveram situações ou experiências de muito peso e de muito terror, e que de alguma maneira foram encontrando um modo para entender e se adaptar à situação.

Segundo a Psc 02, as pessoas com esse tipo de organização mental apresentam uma questão de identidade não muito bem estabelecida, integrada e formada. Observou, em seu consultório, pacientes com dificuldades muito sérias de relacionamento, seja com o parceiro, com os pais ou outros familiares.

Como observado, a história de vida influencia no desenvolvimento do TPB, porém é importante deixar claro que isso não é determinante para o transtorno. Hegenberg10 assinala que, para Freud, é importante o apoio e o contexto familiar no desenvolvimento do sujeito. Além disso, segundo o mesmo autor, para Winnicott, o borderline se sente incompleto já que seu ambiente não foi suficientemente bom na infância. Pode-se relacionar isso ao que foi dito por uma das entrevistadas sobre uma identidade não muito bem estabelecida no caso de pacientes com TPB.

4.4. Distinção entre realidade e fantasia

Para a Psc 01 é muito difícil realizar a distinção entre realidade e fantasia, já que esses pacientes usam muita identificação projetiva. Segundo ela, são pacientes difíceis de entender, porque despertam contratransferencialmente sentimentos intensos no analista. Ela não prioriza separar, no que o paciente relata, se são dados da realidade ou não, e nem se são verdades ou não, pois parte do pressuposto de que se está na mente do paciente, é com isso que ele irá lidar. Através do mecanismo que o paciente utiliza, a profissional tenta compreender o que está se passando com o paciente:

"Às vezes ele te coloca numa situação de horror, é como se você fosse roubar alguma coisa dele, e você não está roubando. É um paciente que está trazendo situações em que as pessoas estão sempre o ameaçando. Então ajuda a gente a pensar de que isso faz parte do mundo interno dele, que pode ser fantasia" (Psc 01).

A Psc 02 também disse que é muito difícil distinguir realidade de fantasia, porque a impressão que dá, para ela, muitas vezes, é a de que o paciente está sonhando, ou que a comunicação dele é "sonhar acordado". Assim como a Psc 01, ela também trabalha com os pensamentos e os sentimentos que o paciente verbaliza.

Sobre a distinção entre realidade e fantasia na fala dos pacientes com TPB as profissionais consideram importante trabalhar com o que o paciente apresenta durante a sessão, não se preocupando se o que é relatado é realidade ou fantasia, mas partem do pressuposto que aquela é a realidade do sujeito e é nela que ele acredita.

4.5. Presença de embotamento afetivo e isolamento social

Para a Psc 01 o isolamento e o embotamento afetivo são defesas que pacientes com TPB utilizam para se colocarem em menos risco.

A Psc 02 afirmou que isolamento e o embotamento são secundários à própria dificuldade de relacionamento e, devido a tanta agressividade e impulsividade, as pessoas se afastam ou o próprio paciente se afasta, porque é doloroso para ele. Esse movimento de se voltar para dentro, se integrar, é uma forma de manter-se mais integrado e tranquilo, pois o contato é perturbador, na opinião dela.

No que se refere à presença de embotamento afetivo e isolamento social no relato de pacientes, pode-se observar que as entrevistadas relataram que tais pacientes não se isolam intencionalmente, porém os outros é que se afastam devido a tantas dificuldades e confusões por parte de um paciente com TPB. Além disso, essa é a forma que eles encontram para se defenderem.

4.6. Dissociações do paciente

Sobre como lidar com as dissociações que o paciente apresenta a Psc 01 afirmou ser muito difícil para os profissionais lidarem com elas, pois trata-se de algo pesado, já que a tendência é que o profissional se sinta como o paciente, através de uma identificação projetiva. A profissional disse que não se apontam as dissociações para o paciente, mas se transforma isso para ele. A analista tenta não ficar dissociada junto, para poder ir acompanhando o movimento que o paciente apresenta. É preciso que o profissional consiga sustentar o paciente diante de suas dissociações, possibilitando um modo diferente de relação com os objetos dentro e fora do setting.

A Psc 02 relatou que é preciso lidar com as dissociações com precaução, tentando mostrar as contradições ao paciente. As colocações do analista podem gerar muita raiva no paciente: "Tinha uma pessoa que eu atendia que ela gritava, ela falava tão alto quando eu dizia alguma coisa que era muito contrária àquilo que ela pensava dela mesma que ela gritava muito, e era uma situação terrível, ela ficava muito brava". É algo que precisa ser cuidado, na opinião da profissional, pois depois o paciente pode se sentir culpado, o que prejudica o tratamento.

A respeito de como as profissionais relataram lidar com as dissociações que o paciente apresenta percebe-se que há algumas formas de se trabalhar esse aspecto. Uma delas ressaltou a tendência do profissional se sentir como o paciente, porém é fundamental que os profissionais não fiquem dissociados junto com o paciente, para poder acompanhar o movimento que este apresenta. Outra forma de lidar com as dissociações seria tentando mostrar ao paciente suas contradições, ou procurar trazê-lo para a realidade. Pode-se inferir a partir do que foi mencionado anteriormente que é importante salientar que a dissociação de um paciente com TPB não se trata de um fingimento, mas sim uma forma de o paciente expor suas emoções. Caso as dissociações não sejam trabalhadas efetivamente, poderão vir a tornar-se um empecilho para a adesão ao tratamento.

4.7. Pensamentos do paciente sobre o seu transtorno

No que se refere ao que o paciente pensa sobre seu transtorno a Psc 01 afirmou que não fica dizendo ao paciente qual é o seu diagnóstico, mesmo quando este é realizado por um psiquiatra que encaminha o caso para ela. Ficar falando sobre o transtorno não é prioridade no atendimento, já que a vida do paciente não se limita nisso. Em sua experiência, quando os pacientes escutam que têm TPB, eles têm a ideia de que são "um louco manso, que eles são pessoas que poderiam ser mais loucas, mas que não são tanto".

A Psc 02 narrou que há várias possibilidades, que alguns pacientes acham que não têm nada, que os outros é que são muito difíceis. Outros pacientes, em sua experiência profissional, ao longo do tempo vão se dando conta que têm muitas dificuldades. Para a entrevistada essa questão varia muito de pessoa para pessoa e do tempo de tratamento.

Com relação aos pensamentos do paciente com TPB sobre seu transtorno observa-se que os pacientes reagem de maneira singular. Alguns não acreditam que tenham TPB, mas sim que as outras pessoas têm temperamento difícil. Uma das entrevistadas acrescentou que não nomeia o transtorno por acreditar que a vida do paciente não se resume ao transtorno.

4.8. Tratamento

Em relação ao tratamento a Psc 01 já havia mencionado que trabalha visando uma compreensão do paciente a partir do que este relata e das transferências e contratransferências que ocorrem ao longo do atendimento.

A Psc 02 relatou ter experiências em seu consultório com pacientes que, além da análise, fazem acompanhamento medicamentoso paralelo e, pacientes que não usam medicamentos. A partir do que foi exposto pelas entrevistadas e pensando-se no tratamento não medicamentoso, Tenenbaum14 afirma que o foco da ação terapêutica se localiza na experiência mental do paciente, ampliando seu ego por meio do desenvolvimento de "funções atrofiadas", aumentando com isso, a capacidade de mentalizar as experiências, diminuindo as vivências de trauma.

4.9. Relação da família e outros cuidadores com o paciente

Baseado na pergunta sobre como a família pode lidar com um paciente com TPB, a Psc 01 disse que sua resposta não se restringe a esse transtorno. Ela afirmou que, no geral, é muito difícil para a família lidar com as limitações do paciente. É importante, segundo a profissional, que a família compreenda que independente do diagnóstico, existe uma pessoa que está lutando do jeito dela para se manter viva. É neste sentido que, a Psc 01 pensa que os demais profissionais também devem se conscientizar. O complicado, segundo ela, é quando a família tem a ideia de que as condutas do paciente com TPB são intencionais, que ele faz chantagem ou não tem vontade de realizar suas atividades diárias. De acordo com a profissional, a família precisa ser assistida também, ou seja, necessita de um acompanhamento, mas não pelo mesmo profissional que acompanha o paciente. É importante que a família tenha consciência de que existe dificuldade e que existe dor em um ser humano, que este está sofrendo.

Segundo a Psc 02, no hospital em que trabalhou, havia pacientes com TPB em um polo mais psicótico e outros mais próximos de um polo neurótico, compreendendo que a necessidade de um cuidador depende de cada caso e do momento vivenciado pela pessoa. A entrevistada acompanhou pacientes com TPB que não precisaram de um cuidador. Sobre a necessidade de a família receber cuidados, a entrevistada acredita que não seria contraindicado e sim pertinente, já que a família sofre muito e as relações são muito complicadas: "o casamento pode não dar certo, a relação com os filhos costuma ser difícil". A profissional afirmou, ainda, não ter atendido familiares de pacientes com este transtorno.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender um transtorno de personalidade é uma tarefa necessária aos profissionais da área da saúde, uma vez que estão sujeitos a se depararem com este em sua prática. Pensando-se que o transtorno de personalidade borderline (TPB), conforme afirma Gabbard15, citando Gunderson e Zanarini16, tem sido um dos diagnósticos mais utilizados entre populações clínicas, verifica-se necessidade ainda maior de compreendê-lo. Por isso, este artigo foi dedicado à sua compreensão sob a visão de duas psicólogas com formação em Psicanálise.

Foi possível caracterizar o TPB através de uma breve revisão da literatura e sob a perspectiva teórico-prática das profissionais entrevistadas. Desta maneira, cumpriu-se o objetivo proposto, uma vez que foram apresentadas as experiências das profissionais no atendimento dos paciente com TPB.

Apesar de não se ter realizado entrevistas com os pacientes, foi possível obter informações enriquecedoras sobre eles por meio dos casos clínicos trazidos pelas profissionais que participaram da pesquisa que originou este artigo, o que demonstrou a importância de se conhecer a experiência clínica de profissionais que atuam com pacientes com este transtorno, já que o número de trabalhos que apresentam experiências clínicas são reduzidos comparados ao número de trabalhos teóricos que abordam este tema.

O TPB afeta seriamente a vida da pessoa acometida, causando prejuízos significativos ao indivíduo e às pessoas a sua volta, por isso compreender um pouco mais sobre o funcionamento psíquico daquela, pode ajudar não só os profissionais da área da saúde, mas também pessoas que convivem com ela. O impacto que o TPB tem na vida do paciente é grande, dificultando a compreensão de quem ele é causando disfunções principalmente em atividades diárias e relacionamentos interpessoais.

Vale ressaltar que, em Psicanálise, não se trabalha com generalizações e através deste artigo, buscou-se não generalizar o paciente com TPB, sabendo que cada indivíduo é único e singular. Além disso, destaca-se, mais uma vez, a prática clínica das profissionais com estes pacientes, principalmente em relação à importância de uma escuta analítica para a condução do tratamento, não se fixando no diagnóstico estabelecido, já que se trabalha com as questões que surgem durante a análise, através dos pensamentos e sentimentos que eles verbalizam.

São necessários mais estudos para ampliar a visão sobre estes pacientes, em futuros trabalhos, utilizando-se outras orientações dentro da própria Psicanálise ou ainda, em outros referenciais teóricos. Além disso, novos estudos podem abranger um número maior de sujeitos entrevistados e de outras categorias profissionais que atendem pessoas com este transtorno.

Pode-se concluir, enfim, que a divulgação de informações acerca do TPB e seu tratamento são de grande importância para esclarecer tanto a população quanto profissionais e estudantes da área da saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência

Érica Aparecida Rovani
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Artigo encaminhado 21/08/2013
Aceito para publicação em 18/05/2014