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Saúde & Transformação Social

versión On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.5 no.2 Florianopolis nov. 2014

 

Artigos Originais

 

Lançar-se no Olho do Furacão: Estratégias Pedagógicas e Sentidos de um curso para a formação do Apoio Institucional

 

Launch into the Eye of the Hurricane: Pedagogical Strategies and Meanings of a course for the formation of the Institutional Support

 

 

Maria Claudia Souza MatiasI*; Simone Mainieri PaulonII**; Mateus Felipe Otaviano PedroIII***

I Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS - Brasil
III Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo busca discutir os sentidos e efeitos das estratégias pedagógicas utilizadas nos processos de formação de Apoiadores Institucionais da Política Nacional de Humanização a partir da perspectiva dos apoiadores formados, sendo recorte dos resultados e análises produzidas em um estudo multicêntrico, qualitativo e avaliativo de 4ª geração, levado a cabo por três universidades públicas, em parceria com o Ministério da Saúde brasileiro entre 2011 e 2014. A partir do objetivo de avaliar os efeitos da Formação de Apoiadores Institucionais da Política Nacional de Humanização (PNH) para a produção de saúde no SUS, o estudo trouxe elementos para a análise dos sentidos que estes cursos tiveram para seus participantes, apontando efeitos das estratégias pedagógicas utilizadas. Método e estratégias de formação contribuíram para significativa mudança no modo como os apoiadores veem e se inserem no Sistema Único de Saúde, ampliando sua capacidade de análise e interferência no cotidiano dos serviços. O fomento de grupalidade entre os sujeitos ao longo dos cursos, destacada entre as avaliações mais positivas, assinalou a relevância de tal estratégia para a formação no SUS, considerando que a constituição de coletivos é condição para a humanização das práticas nos serviços. A complexidade da Formação de Apoiadores na perspectiva da PNH leva-nos a considerar este tipo de formação como etapa de um processo maior, que, centrado na estratégia de intervenção nos serviços, alavancaria, segundo os apoiadores, a efetiva implementação de uma política pública, humanizada e solidária de saúde para todos os brasileiros.

Palavras-chave: Política de Saúde; Humanização do SUS; Apoio Institucional; Educação em Saúde; Pesquisa-Intervenção.


ABSTRACT

The National Humanization Policy promoted and stimulated training processes for Institutional Supporters from the Training-Intervention pedagogical perspective. The approach starts from the principle that the interference in health practices is no dissociative from training processes; thus, it favors the exercise of Support Function among the participants during the course.Therefore, it participates in the establishment and/or strengthening of health collectives for democratization and transformation of management practices and health care.Then, they are a clipping of results and analyzes produced in a multicenter, qualitative and evaluative study of 4th generation, carried out by three public universities, in a partnership with the Brazilian Ministry of Health, between 2011 and 2014.From the objective of evaluating the effects from Institutional Supporters Training of the National Humanization Policy (PNH) to the production of health in the SUS, the researchincluded elements for meanings analysis that the courses had for the participants. Thereby, they pointed out the effects of teaching strategies used.Method and training strategies contributed to a significant shift in the way supporters consider and get involved within the Public Health System, expanding their interference and analysis capability on daily services.The groupality encouraging among subjects along the courses and highlighted between the most positive evaluations pointed out the strategy relevance for training in the SUS. Also, it took into consideration that collectives' constitution is a condition to humanize practices in the services.The supporters training complexity, in the perspective of the PNH, leads to consider that type of training as a step in a larger process. If training were centered in the strategy of services intervention it would leverage, according to the supporters, the effective implementation of public policy, more humane and caring about health for all Brazilians.

Keywords: Health Policy; Humanization of SUS; Institutional Support; Health Education; Research-Intervention.


 

 

1. INTRODUÇÃO

"Tudo estava quase certo em minha vida, até que me inscrevo no edital para ser uma apoiadora institucional da PNH, achei a palavra "apoiadora" fantástica, forte. Para minha alegria e honra, fui aprovada. A partir daí minha vida virou uma bagunça, tanto pessoal como profissionalmente, mas uma bagunça no bom sentido" (Plano de Intervenção de apoiador).

Desde a primeira formação de apoiadores institucionais, um curso de âmbito nacional realizado em 2006, a Política Nacional de Humanização – PNH estruturou suas diretrizes para a formação em princípios bem delimitados, propondo uma formação delineada com base em um Plano de IntervençãoI que incidisse concreta e imediatamente nas demandas emergentes dos territórios de saúde participantes do processo de aprendizagem. No texto que apresenta a Política de Formação, publicado em 2010 no primeiro Caderno HumanizaSUS, assim se destacava o caráter indissociável da intervenção nos processos até então desencadeados:

As diretrizes dos processos de formação da PNH se assentam no princípio de que a formação é inseparável dos processos de mudanças, ou seja, que formar é, necessariamente, intervir e intervir é experimentar em ato as mudanças nas práticas de gestão e de cuidado, na direção da afirmação do SUS como política inclusiva, equitativa, democrática, solidária e capaz de promover e qualificar a vida do povo brasileiro1.

A compreensão de que formar e intervir são aspectos indissociáveis de um mesmo processo se expressa, então, em uma política de formação-intervenção da PNH, na qual produção de conhecimento, interferência nas práticas de atenção e gestão, produção de saúde e de sujeitos encontram-se profundamente articuladas. Tal oferta propõe que processos de formação sejam acionados e que se constituam em um campo de tensão entre problematização e ação, produzindo-se por entre os modos instituídos, desestabilizando-os, para assim evocar outros modos de atenção e gestão, de outros mundos e sujeitos2.

Em um processo de formação tão importante quanto a experimentação dos princípios teórico-metodológicos, é a criação de movimentos de intervenção que possibilitam aos trabalhadores em saúde a invenção de estratégias de enfrentamento dos desafios que se apresentam no cotidiano dos serviços. Sabe-se, entretanto, que esta não é a perspectiva formativa que os trabalhadores da saúde, público-alvo componente dos cursos, tinham encontrado em suas trajetórias de estudantes. Via de regra, o que a maioria de nós experimentou em seus próprios bancos escolares, e viu reproduzido ao longo da vida nas diversas organizações de trabalho, são formas hierárquicas de trabalho taylorizado e fragmentário, em que as posições de quem detém o saber e de quem não o detém ficam bem marcadas, principalmente quanto ao fato de estes últimos terem de se submeter aos primeiros. Em vez de uma compreensão que polariza sujeito e objeto, ou fragmenta o saber, em lógica hierarquizadora, ou homogeniza o que vê, atribuindo significados a partir de categorias previamente construídas, a aposta aqui é em uma formação que altere a capacidade de ver, de aprender com a realidade e de apreender a realidade, o concreto, significando o que é visto sob lentes sempre novas, singularizadas pelos sentidos que diferentes sujeitos e grupos empregam para compreender, explicar, descrever o mundo3.

Neste sentido, um dos maiores desafios que os processos de formação para o Apoio Institucional tive de enfrentar foi justamente a distância, muitas vezes abissal, entre as experiências concretas de formação trazidas na maioria das "bagagens escolares" dos trabalhadores e a perspectiva de uma formação ativa, significativa para o protagonismo que ali se iniciaria. Como disse uma apoiadora ao argumentar com o gestor sobre a importância da qualidade no atendimento, para além do mero acesso aos serviços: "Diante de um saber sem poder, um poder-saber da humanização faz-se necessário".

Ao longo dos referidos processos de formação, muitos relatos deram pistas acerca dos efeitos daqueles nos apoiadores. As estratégias pedagógicas que seguiam as diretrizes da Formação-Intervenção foram sendo também objeto da análise desses apoiadores, seus formadores e da própria PNH, muitas vezes em discussões e avaliações voltadas a uma maior compreensão a respeito dos fatores associados aos resultados produzidos a partir dos cursos. A questão "forma-se para o apoio?" comparecia reiteradas vezes a nossos debates e provocava - como segue, muitas vezes provocando -, inflamados debates.

Ao final de 2009, com o encerramento do Curso realizado em Santa Catarina, já havia um conjunto significativo de experiências de formação concluídas, mas ainda não havia sido empreendido nenhum esforço sistemático de avaliar tais processos. Neste contexto, e com cada vez mais demandas de formação chegando de todas as regiões do país, a PNH, juntamente com gestores, trabalhadores, docentes e pesquisadores envolvidos em três dos processos de formação concluídos até aquele momento, iniciaram a construção de um projeto de pesquisa avaliativa. A mencionada investigação focalizou os efeitos da Formação de Apoiadores Institucionais da PNH para a produção de saúde no SUS, tendo como campo de pesquisa os cursos efetuados entre 2008 e 2010, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

O desenho metodológico apostou em um estudo de caráter multicêntrico, qualitativo, avaliativo de 4ª geração, participativo, e de caráter formativo-interventivo, que se desenvolveu entre os anos de 2011 e 2014, e teve como sujeitos os grupos de interesse envolvidos nos cursos citados4,5. Para garantir a dimensão participativa e interventiva do estudo, comitês ampliados de pesquisa, grupos interinstitucionais, oficinas e seminários com os sujeitos do estudo foram realizadosII. Além disto, a colheitaIII de dados envolveu a análise de documentos, questionários, entrevistas e grupos focaisIV.

A realização da pesquisa envolveu esforços do Ministério da Saúde e de três universidades públicas: a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/ASSIS) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo esta última coordenadora do estudoV.

O modo como as estratégias pedagógicas foram percebidas pelos apoiadores, os efeitos que tiveram na produção de novas práticas e de redes, além de mudanças concretas de suas relações com o trabalho que exercem no SUS, é o que se tornou foco desta pesquisa, bem como a possibilidade de deslocar modos de relação dos sujeitos em suas relações com os outros, com suas profissões e consigo mesmos.

Uma das categorias que emergiram a partir da análise documental e dados obtidos nos grupos focais, entrevistas e questionários apontava os sentidos que tais cursos tinham assumido para seus participantes. A análise dos relatos que falavam dos sentidos e efeitos desses cursos junto aos apoiadores constituiu vasto material de avaliação das estratégias pedagógicas, método, ferramentas e materiais utilizados nos processos de formação. Considerando a relevância desses achados para a avaliação da Política de Formação adotada pela PNH nos últimos oito anos e para a formação do Apoio Institucional, função que vem se tornando cada vez mais presente no SUS, focalizaremos esta análise no texto a seguir.

 

2. EFEITOS DA APOSTA METODOLÓGICA: A FORMAÇÃO-INTERVENÇÃO E SUAS ESTRATÉGIAS

"Ótima metodologia utilizada, que me colocou dentro do furacão, que é a PNH. Aprender na prática é algo que deixa marcas, para sempre"' (Plano de Intervenção de apoiador).

A Política de Formação-Intervenção, nos cursos de formação de apoiadores, assumiu como função norteadora "bagunçar no bom sentido" os modos instituídos de trabalhar e conhecer em saúde. Para tanto, os processos foram estruturados em torno de estratégias pedagógicas diversificadas que buscavam dar materialidade às diretrizes da Política de Formação-Intervenção em consonância com as diretrizes e princípios da própria Política de Humanização - foco e conteúdo das formações.

Algumas expressões manifestadas ao longo da pesquisa atestaram que a perspectiva de uma formação-intervenção incidia na produção de novas subjetividades, dimensão que passamos a denominar por "produção de si". Tal dimensão foi frequentemente associada pelos apoiadores a sua passagem pelo curso, que teve o efeito de modular a forma de olhar para o processo de trabalho e para a própria formação realizada.

"Os desafios encontrados no caminho não foram apenas externos, como aqueles relacionados às resistências encontradas nas instituições, mas principalmente interno, pois foi sempre necessário modificar o modelo de formação tradicional, tão intrínseco em nós" (Plano de Intervenção de apoiador).

Evidencia-se aí uma interferência do curso na construção dessa capacidade crítica, problematizadora, associada, em alguns momentos, com uma maior segurança argumentativa. Esta mesma capacidade crítica aparece, outras vezes, associada a uma posição de questionamento que coloca em movimento o pensamento, rechaçando respostas universalizantes e totalizadoras, de modo a provocar o debate.

Todo esse movimento do curso foi um pulo da estagnação para o movimento em busca de outra realidade, de não estar satisfeita com o que temos hoje (Plano de Intervenção de apoiador).

Nesse aspecto, podemos pensar que os cursos acionaram experimentações que parecem ter provocado estranhamentos àqueles que neles buscavam novos saberes sobre seu fazer. Ao desestabilizar modos tradicionais de produzir a relação com o conhecimento, moviam-se a favor das forças instituintes, forças produtoras de novos agenciamentos, como apontado pelas falas dos apoiadores nos grupos focais e nos Planos de Intervenção, no sentido ressaltado por Barros6: "Não se trata de procurar respostas universalizantes e totalizadoras, e sim de poder acompanhar movimentos do cotidiano educacional – na escola, na rua, na fábrica, enfim, nos diferentes espaços – e produzir um pensamento problematizante."

"Neste curso, partindo dos referencias da pesquisa intervenção e da PNH, há claramente uma ruptura radical com as dicotomias teoria/prática e professor/aluno. Fica evidente nos espaços e propostas do mesmo a busca da construção de uma coletividade cujas orientações são a PNH cujas atuações dos diferentes atores, em suas diferentes funções, são voltadas à construção de um SUS que dá certo." (Plano de Intervenção de apoiador).

Esta "bagunça", que parece revirar toda a vida "no bom sentido" -, na relação do sujeito consigo mesmo, como referido por outro apoiador, não se daria sem importantes alterações nos modos como eles experimentavam e passavam a olhar suas práticas e relação com os outros.

"As discussões nos levavam a compreender que "um processo de trabalho centrado em procedimentos e não na produção da saúde tende a diluir o envolvimento das equipes de saúde com os usuários". Isso fez com que eu enxergasse de forma diferenciada cada local de saúde da área de abrangência do nosso Distrito Regional de Saúde" (Plano de Intervenção de apoiador).

Resulta daí que os instrumentos e tecnologias utilizados nos processos de formação que aqui se colocam em análise buscavam, em última instância, sempre incidir nesses planos de produção subjetiva. A proposta era de provocar as esperadas mudanças nas práticas, nas relações com usuários, nos modos de produzir e conceber saúde com que tais trabalhadores vinham até então operando. Esta perspectiva afasta-se da formação com base em conhecimentos tradicionais, extraídos de uma perspectiva acadêmica distanciada da vida, para convocar a produção de conhecimentos que brotem da experimentação dos encontros, que resultem de interferências concretas no viver, permitindo a cada um se situar quanto ao seu momento no processo de aprender e de fazer saúde, e se autorizar a dar forma e visibilidade a conhecimentos até então não valorizados7.

A escrita constante dos impactos do que estavam estudando e experimentando no contato com as diretrizes e dispositivos - prática pedagógica estimulada desde os primeiros encontros -, e o exercício de compartilhamento dessas escritas implicadas nas unidades de produção configuravam, mais que metodologias ativas de aprendizagem, instrumentos diarísticos fundamentais de acompanhamento dos percursos formativos singulares de si mesmos e de uns com os outros.

" (...) este processo de relatar o que está sendo construído por mim me causou uma certa estranheza, não por não saber do que estou falando, mas ter que aparecer e mostrar o meu eu, o meu dizer, o meu fazer, enfim, por ser diferente, pois quando escrevemos trabalhos científicos, sempre somos orientados e tolhidos de certa forma pela tal metodologia que nos faz ficarmos como meros coadjuvantes, e aqui escrevendo assim, tomando nossa real posição de protagonista da história, se torna um tanto difícil" (Plano de Intervenção de apoiador).

Ao propor um modo de formar que problematiza as assimetrias de poder e convoca seus participantes a inventarem novas práticas, referencia-se a potência de uma aprendizagem conectada diretamente com a experiência, destacando-se a importância que os Planos de Intervenção assumiram como contribuição diferencial destes processos de formação. A elaboração dos referidos Planos, ao longo do curso, não pretendia que estes encerrassem a produção final do apoiador, mas que permitisse ao aluno-apoiador exercitar continuamente sua capacidade analítica e crítica em torno das demandas concretas de um segmento/equipe de trabalho do SUS de sua região.

De modo sintético, o plano situa-se então numa perspectiva vetorial, (i) fazendo convergir/canalizar toda a discussão que se abre no coletivo e (ii) permitindo vislumbrar e disparar movimentos, ações, atuações. (...) compreendemos que tanto nos momentos de discussão (problematizações), quanto nos momentos (indissociados) de propositura de ações, pode-se "fazer" ou "estar em atitudes" de intervenção! (...) um dos âmbitos de discussão de ‘intervenção' que se vem fazendo (ou se desejando) na PNH é o que denota ‘intervenção' como ‘agir no entre'. Isso assume grande relevância nos cursos-PNH, devendo permear toda a intencionalidade da formação/PNH (devendo ser, a nosso ver, um esforço para que seja a essência dos projetos pedagógicos) 8.

Nas respostas dadas aos questionários eletrônicos - com defasagem de 4 anos em média após a finalização dos cursos – 58% dos apoiadores entendiam ter conseguido desenvolver seus planos de intervenção de acordo com o planejado durante os cursos e 54% com base na diretriz/dispositivo com que dispararam a intervenção. Em relação à questão que arguia especificamente sobre os efeitos que tal intervenção teria produzido nos territórios, 84% responderam afirmativamente à produção de efeitos no território a que se destinava, principalmente em seu processo de trabalho e nas práticas de seu serviço.

Os processos formativos ofertaram também momentos de estudo teórico-conceitual, organizados em oficinas e encontros presenciais, realizados nas regiões próximas aos serviços ou nas capitais (encontros presenciais gerais). Também foram desenvolvidas atividades de ensino a distância (EAD), práticas supervisionadas pelos tutores/formadores nas cidades-polo em que os PIs eram implementados. Todos esses exercícios eram continuamente debatidos pelo grupo de trabalho, reunido semanal ou quinzenalmente nas regiões próximas em que as atividades daquele grupo eram desenvolvidas, em geral nas cidades-polo das tutoras, mas muitos grupos optavam por encontros itinerantes, fazendo rodízios para conhecerem também as realidades diferenciadas de trabalho de seus parceiros de formação.

Os efeitos das estratégias pedagógicas aparecem avaliados distintamente nos três campos de pesquisa. De modo geral, este dado nos faz pensar que o modo como a política de formação foi incorporada ao desenho de curso no Rio Grande do Sul contribuiu para esta distinção, fazendo com que 84% dos apoiadores gaúchos avaliassem muito positivamente as estratégias, enquanto que este percentual, em Santa Catarina e São Paulo, cai para 55%. A principal diferença indicada na avaliação do desenho desses cursos referiu-se à modalidade de curso adotada em cada um deles, que impactou na carga horária e exigências pedagógicas. No RS foi realizada uma especialização, com 360 horas, em SP, curso de atualização, com 278 horas, e em SC, aperfeiçoamento, com 230 horas, alertando-nos para uma relação entre o tempo de realização dos cursos e seus efeitos junto aos apoiadores, análise produzida a partir de um dos Grupos Focais.

Os mencionados cursos não pretendiam apenas trabalhar com novas ideias e práticas afinadas com a atual lógica hegemônica de produção de conhecimento e de saúde, mas intentaram uma mudança de paradigma, que levasse os apoiadores a uma experimentação ético-política dos modos de compreender e atuar na Saúde Coletiva. Aí caberia uma ampliação do debate, que extrapola o que no presente artigo propomos, acerca da relação existente entre um tempo necessário para que os conceitos-ferramenta propostos possam ganhar maior corporeidade na experimentação de cada apoiador e grupo apoiado, e os tempos singulares que cada gestão/equipe/serviço necessita ou suporta para transformar sua própria realidade com mais radicalidade. Tempos nem sempre coincidentes, geralmente dissonantes, porém necessariamente importantes de serem considerados no planejamento de qualquer intervenção.

O uso das ferramentas de Ensino a Distância foi visto como positivo para a experimentação de novos modos de trabalho e proporcionou uma aproximação maior entre os participantes. Cerca de 80% dos apoiadores consideraram adequado o conteúdo das atividades via EAD, mas a avaliação de sua relevância para o exercício da função apoio teve diferenças significativas nos três estados, tendo sido avaliado muito positivamente por quase 70% dos apoiadores no RS (onde a estrutura para o trabalho com a estratégia de Ensino a Distância no Rio Grande do SulVI foi mais robusta), mas não tão bem avaliado assim nos outros estados (média de 33%).

"O espaço virtual que, no início, gerava insegurança passou a ser usado cada vez com mais facilidade. A cada texto ia-se apropriando da Política e encantando-se com ela, com seus princípios, diretrizes e dispositivos. Cada tarefa cumprida era um desafio. Conhecer e ouvir nos Encontros Presenciais Descentralizados e Gerais os pensadores e autores da Política Nacional de Humanização era sempre um acontecimento recheado de expectativa e deslumbramento" (Plano de Intervenção de apoiador).

"Usar o EAD foi um desafio para todos nós. O que pode facilitar pra alguns, pode ser uma barreira para outros. Eu não vencia ler tudo e não conseguia entrar no EAD.". "No início me achava burra, porque não conseguia usar o EAD. Acho que usar ele podia ser mais gradual no início" (Narrativa de Grupo focal).

Entre as estratégias coletivas afinadas aos princípios inclusivos que a PNH promulga, a organização dos apoiadores em Unidades de ProduçãoVII (UPs), nas regiões dos Estados, mostrou-se crucial na formação de vínculos dos coletivos de alunos-apoiadores com os territórios de intervenção, assim como para a constituição de uma grupalidade reforçadora dos movimentos de mudança que as intervenções intentavam disparar.

Nos grupos focais, os relatos apontam para uma dimensão fundamental dessa grupalidade promovida pela ‘estratégia-UP', vista como elemento que fortaleceu os participantes quanto à experimentação dos Planos de Intervenção. De acordo com Campos9, as UPs são uma "(...) composição multiprofissional e englobam todos os envolvidos com a produção de um certo resultado ou de um certo produto claramente identificável". Embora haja assinalamento que não só as UPs contribuíram para a grupalidade, mas também outros espaços de encontro vivenciados durante o período do curso, o modo como os processos formativos se utilizaram da estratégia político-pedagógica das UPs foi destacado. Indo ao encontro do sentido trazido por Campos, verificou-se a troca de experiências e saberes sobre o SUS, sobre a PNH e, especialmente, a criação coletiva de alternativas de enfrentamento às inúmeras resistências com que os apoiadores em formação iam se deparando.

"Observo que a UP propicia um crescimento valioso, com transversalização de saberes, vivências, apoio mútuo, aumento de postura crítica e inclui nossas perturbações enquanto colegas de "per-curso". Nesta roda são produzidos encontros pautados na afetividade e circulam subsídios para que possamos com maior segurança nos posicionar e sustentar argumentações em defesa do SUS que queremos e acreditamos ser possível" (Plano de Intervenção de apoiador).

Entretanto, nos variados instrumentos com que os dados foram colhidos, emergem diferentes registros alusivos ao fomento à grupalidade a partir das vivências na UP: espaço de queixa, grupo de estudos, estratégia de fortalecimento naquele coletivo que falava a ‘língua da humanização'. Neste sentido, foi ressaltada, também, a preocupação recorrente entre os apoiadores durante o curso - e que se tornou preocupação dos formadores na sequência, e dos coordenadores da política de formação-intervenção mais tarde – quanto a um efeito "engrupelhamento" dos apoiadores em torno de seus parceiros de trajetória de formação. Seria, então, preciso pensar nos riscos de uma grupalidade apenas com quem "fala a mesma língua", o que, do ponto de vista da função apoio, seria absolutamente limitado e limitante.

"Permanece a agonia por não me sentir ouvida com atenção e reconhecida como Apoiadora Institucional, sabido que nossas apostas como trabalhadores terão mais êxito com apoio da Gestão. Tal sentimento de aflição tem sido amenizado através da oportunidade de colocá-lo em rodas de conversa: do Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) da SMS e na Unidade de Produção (UP) [nome] com o apoio de colegas e Tutora, seja virtualmente ou presencialmente" (Plano de Intervenção de apoiador).

Não raro, os encontros presenciais gerais, que eram mais distantes uns dos outros (mensais ou bimensais) porque reuniam todos os apoiadores em formação, promoviam confraternizações e brincadeiras entre as UPs que manufaturavam camisetas, apelidos e slogans próprios com marcas regionais, num clima que muitas vezes lembrava o de equipes de gincana. Ao mesmo tempo que isto indicava toda força criativa e animadora das UPs em relação ao trabalho que vinham desenvolvendo, anunciava um contraponto muito forte ao que os cenários vividos nos serviços e narrados nos Planos vinham trazendo: trabalhadores isolados, cotidianos solitários, relações na saúde esvaziadas. Os encontros de encerramento dos cursos, com despedidas muitas vezes emocionadas, deixavam em suspenso como esta experimentação de grupalidade refletiria à frente naqueles grupos e trabalhadores.

Este é um dos aspectos paradoxais que emergiu nas avaliações feitas pelos apoiadores. À medida que os "episódios-cursos" estimulavam fortemente a grupalidade, o medo de que a conclusão dos cursos produzisse uma espécie de "efeito rebote", pela perda de espaço de apoio aos apoiadores, antes existente pela troca de experiências na UP, levou apoiadores e formadores a problematizar os riscos do possível caráter intimista de tal experimentação. Mas logo o caráter de experimento do próprio curso-intervenção também era lembrado em sua dimensão de dispositivo, como indica este trecho do Plano de Intervenção de um apoiador, corroborado por afirmações equivalentes nos grupos focais na etapa seguinte:

"Apesar de uma situação de dificuldades nos serviços, (...) é visível a produção de uma grupalidade e de este espaço ter se configurado com um lugar de construção de estratégias coletivas para o enfrentamento das adversidades dos serviços. Um exemplo desse movimento foi a rapidez com que as equipes chegaram à conclusão da importância de se reativar as assembleias com os usuários e familiares, como forma de inseri-los em assuntos referentes à gestão e potencializar sua atuação visando à manutenção dos serviços. Até o momento o CAPS i e o CAPS II [nome] reativaram as assembleias" (Plano de Intervenção de apoiador).

Vale aqui observar que tais resultados apresentam distinção nos três campos. Há indicadores de forte grupalidade em quase 70% dos apoiadores que responderam ao questionário no Rio Grande do Sul, já nos outros dois campos há percepção de que esta grupalidade constituída à época do curso era mais frágil, aparecendo a avaliação de forte grupalidade em 45% dos pesquisados de Santa Catarina e em 27% dos sujeitos de São Paulo.

A composição das estratégias da UP com a coordenação de uma formadora, como uma trabalhadora da saúde, inserida na realidade do SUS da região e, ao mesmo tempo, com algum acúmulo na coordenação de processos grupais e práticas educacionais, foi constantemente referida como fator que contribuiu para que os apoiadores suportassem as tensões que as mudanças demandadas lhes exigiam. Nestas falas, a UP apareceu como estratégia positivamente avaliada em função da sustentação que promoveu tanto do ponto de vista da grupalidade que ajudou a constituir e consolidar quanto do ponto de vista de espaço de construção argumentativa e de estratégias de condução dos planos.

Cabe problematizar se o sentido inicialmente proposto por Campos10 para as UPs, como arranjos que pretendem interferir na distribuição desigual de poder característica de sistemas hierárquicos rígidos, coincidiu com a experimentação vivenciada pelos apoiadores nestes cursos. Assim definidas, as UPs devem envolver a construção de um comum para os coletivos, a partir do debate acerca de temas relacionados ao trabalho cotidiano e da pactuação de compromissos voltados ao desenvolvimento dos serviços, suas equipes e pessoas a quem seu trabalho se destina. De certa forma, a dimensão experimentada nos cursos tangencia pontos desta formulação, na medida em que foi constantemente levantada a importância das UPs para o empoderamento dos próprios apoiadores que, uma vez legitimados pelo grupo de formação, autorizavam-se mais a ofertar suas análises e propor novas formas de operar nos serviços.

O que se verifica mais fortemente, todavia, é que o sentido que estas UPs assumiram nos cursos ganhou contornos próprios, distinguindo-se da definição/função inicial proposta pelo autor, sobretudo se analisarmos que o processo de legitimação e protagonismo outorgado pela UP aos apoiadores não se dava diretamente nos serviços e equipes nos quais pretensamente teriam que intervir. Ressaltamos, porém, que a questão central que se apresenta para análise aqui é menos a da correspondência entre o conceito de UP e a experimentação realizada no curso do que a da avaliação dos efeitos de adotar a constituição de UPs como estratégia de desenvolvimento de grupalidade, análise e compartilhamento das decisões acerca dos rumos envolvidos na condução de um plano de intervenção.

De fato, o posicionamento quanto à importância das UP's para a política de formação-intervenção da PNH continua a fazer sentido para os apoiadores, mesmo passado tantos anos após a finalização daqueles processos. Em entrevista, um apoiador catarinense enfatizou a importância do trabalho nas UPs para "dar força ao apoiador e ao grupo durante o processo de mudanças que os cursos mobilizam". O trabalho nas UPs também foi apontado como enriquecedor da experiência de se trabalhar em rede, com diferentes saberes e modos de pensar. Os conflitos ali vivenciados foram significados como exercício que ensinou sobre as dificuldades no território e da articulação do trabalho em equipe (Depoimento de um apoiador).

"O tempo foi passando, fui me apropriando dos conteúdos e timidamente passei a colaborar com minhas opiniões e relatos nos espaços que o curso disponibilizava, os trabalhos foram sendo realizados com algumas dificuldades, mas encontrava sempre muito apoio hora por parte dos integrantes da [nome dado à UP do RS] que aos poucos se tornaram grandes amigos, amizades estas que continuarão pra sempre (...)" (Plano de Intervenção de apoiador).

As funções de formador e apoiador pedagógico também foram estratégias positivamente avaliadas, ainda que muitos dos apoiadores não tenham permanecido em contato com seus formadores após a finalização dos cursos. Algumas expressões trazidas nos grupos focais reiteraram a importância desta figura articuladora para o fomento à grupalidade e sustentação do trabalho que a UP acompanhava.

"Durante o per (curso), o choro, as dificuldades, os entraves, os conflitos e as frustrações também estiveram presentes, porém a unidade da nossa UP, a presença incansável da tutoria e o revigoramento a cada encontro presencial se sobrepuseram a essas questões" (Plano de Intervenção de apoiador).

Vale destacar que uma boa experimentação de vivências coletivas é fundamental à sustentabilidade da própria Política, na medida em que permite a busca por experiência equivalente nos serviços para dar passagens à produção de novas práticas.

Em relação às atividades individuais (diários, exercícios de EAD no seu serviço, observações do mesmo, etc), estas foram avaliadas de modo diferente nos três campos, sendo novamente o RS o território onde foram mais bem avaliadas. Cabe assinalar que se lançou mão de algumas ferramentas para dar conta desta formação em um continuum. Ferramentas emprestadas da análise institucional, presente nas bases da formulação da Política Nacional de Humanização, se atualizaram e auxiliaram tanto na formação quanto na prática dos trabalhadores que vivenciaram o curso, intervindo em seus processos e modos de ver/estar no trabalho.

"A análise das implicações, desde as primeiras aulas do curso de especialização, foi estimulada, não a partir de uma exploração do conceito, mas partindo a orientação para que colocássemos em nossas produções textuais, nossos sentimentos, expectativas, dificuldades, êxitos. É um movimento de análise que demanda exercício, rigor e desprendimento para exercitar um pensar e uma escrita que, simultaneamente, exige estar atento à objetivação de determinados aspectos relativos à realidade onde propomos a intervenção, aos movimentos subjetivos operados a partir da mesma, e, antes disso, aos movimentos que nos levaram ao encontro com o SUS e a Política Nacional de Humanização" (Plano de Intervenção de apoiador).

Já a estratégia dos encontros presenciais gerais – quando todas as UPs reuniam-se nas capitais para seminários/oficinas estruturantes dos módulos seguintes - foi avaliada como positiva e enriquecedora, associada a momentos de ansiedade e encantamento com a proposta. Tal encantamento é percebido por alguns apoiadores como algo ilusório, "no início, tu te ludibria, te maravilha" (GRUPO FOCAL Passo Fundo/RS), fazendo crer que houve um misto de sensações produzidas no encontro com a Política de Humanização. As atividades coletivas seguiram a mesma curva em relação às avaliações positivas: RS (80%), SC (69%) e SP (48%).

"Participar dos Encontros Presenciais Gerais – EPG foi motivador e estimulante, a cada EPG eu percebia o potencial que a Política Nacional de Humanização nos fornecia para favorecer a produção da saúde em nossos territórios" (Plano de Intervenção de apoiador).

Contrapondo a ideia acima, houve outros encontros presenciais nos quais se realizavam relatos de experiências e palestras de especialistas em determinadas temáticas, contando ainda com convidados externos aos cursos. Os relatos e o excesso de participantes contribuíram para uma avaliação negativa indicando-os como cansativos, fazendo com que as expectativas quanto ao encontro não correspondessem nem com a proposta que aprendiam da PNH, nem com o que vinham experimentando no curso.

"Nos primeiros encontros locais, foram abordados alguns temas relacionados à humanização, onde as dúvidas relacionadas à Política começaram a surgir e a ser discutidas na roda, isso foi gerando ansiedade do desconhecido e despertando em cada um o interesse de conhecer mais detalhado a política. Os encontros locais e regionais seguiram sempre usando os dispositivos da PNH, mas nos encontros estaduais, a coordenação deixou de lado os princípios da política como "trabalhar em roda" fazendo uso do método tradicional, não muito resolutivo e cansativo" (Plano de Intervenção de apoiador).

 

3. DESAFIOS VIVIDOS A PARTIR DO CURSO: DAQUILO QUE OS PROCESSOS FAZEM VER E FALAR

"Ainda não posso falar com muita segurança sobre a PNH, mas, com certeza, minha maneira de olhar, e de ver as coisas, mudaram. O que antes tinha que ser provado por ‘A+B', hoje pode ser "vamos discutir", "vamos ver o que melhor para todos". Sinto que neste período de formação cresci muito, mas tenho muito ainda a aprender (...). Aprendi que o saber coletivo é muito grande, e não tem limites" (Plano de Intervenção de apoiador).

Após algumas explanações sobre as dificuldades encontradas durante o curso e outras que perduram até hoje, os participantes apontaram estratégias e mudanças que, juntamente com o contexto em que estavam inseridos, puderam ser experimentadas no curso. Um desses exemplos é o do contrato de metas, estratégia instaurada para amenizar o impacto da mudança de gestão e evitar a quebra do planejamento realizado com base na Política de Humanização. Com o contrato de metas, os novos gestores encontram um cenário tal que, ou criavam estratégias melhores que aquelas colocadas no contrato, ou eram forçados a manter o contrato antigo (Narrativa de Grupo Focal).

Em várias narrativas há relatos sobre serviços que já desenvolviam ações de humanização antes do curso. O papel mais importante da PNH nestes locais foi o de instrumentalizar as equipes para estas práticas que já aconteciam, possibilitando o fomento de grupalidade em determinados espaços, a partir de ofertas como a da discussão e problematização do funcionamento dos Grupos de Trabalho de Humanização (Grupo focal).

Como todo processo participativo, com uma dimensão de intervenção que não se propõe a ser pré-suposta, pré-estabelecida por experts que supõem saber a priori o que vai servir para os outros, tais cursos também produziram efeitos que seus projetos iniciais não supunham quando foram planejados. Um exemplo disto é a aproximação da metodologia da formação-intervenção aos processos de formação realizados via educação permanente nos territórios. Uma das falas, colhida nos Grupos Focais, traz o exemplo citado por uma apoiadora que, anos depois de ter participado da formação de apoiadores, realizou um curso sobre Saúde Mental, coordenado por uma ex-formadora da PNH. A apoiadora entende que o sucesso e resultados positivos deste segundo curso podem ser atribuídos à utilização dos princípios da formação-intervenção aprendidos no curso de apoiadores. Enfatiza a validade de se fomentar que as ferramentas e conteúdos aprendidos sejam experimentados na prática de trabalho ainda durante a formação, localizando nesta estratégia um potente modo de integrar ensino-serviço (GRUPO FOCAL BLUMENAU). Nesta linha, outros apoiadores também corroboraram a potência do caráter interventivo desta formação:

"O curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS não é um curso como outro qualquer, mas sim um processo em que se aprende e, ao mesmo tempo, se multiplica aquilo que é experienciado e vivenciado. É interessante a proposta desse curso por ser essencialmente interventivo e por ter como base a Política Nacional de Humanização (PNH), norteada pela autonomia e protagonismo dos atores sociais, o que requer corresponsabilidade e co-participação entre todos os envolvidos no processo de produção de saúde" (Narrativa de Grupo focal)

De um modo geral, o que se percebe nestes relatos é que a estratégia da intervenção ao longo do curso teve efeitos diretos e indiretos. Nos três estados, mais da metade dos apoiadores mencionaram que conseguiram implementar o plano conforme o planejamento inicial. Mas muitos não o conseguiram, o que poderia ser um dado preocupante, a princípio. No entanto, o que se observou investigando as respostas é que foram várias as dimensões de intervenção consideradas pelos sujeitos, inclusive em relação aos tempos. Uma das mais significativas mudanças por eles atribuída à experimentação da intervenção foi aquela relacionada a uma produção de mudanças em si mesmo.

"Eu não consegui realizar meu projeto que eu pus no trabalho, mas eu consegui fazer muitas outras coisas. Hoje eu escreveria sobre outra coisa. Nós mudamos e encontramos outras brechas. E isso ficou, não importa se o projeto aconteceu ou não. E ao mesmo tempo, o PI teve um sentido. Será que se não tivesse PI, eu estaria pensando hoje dessa forma?" (Narrativa de Grupo Focal).

A informação colhida ao final dos questionários revela que cerca de 70% dos apoiadores atribuem os efeitos decorrentes do Plano de Intervenção à sua atuação como apoiador. A produção subjetiva que aconteceu ao participar do curso impulsionou os apoiadores a diversas ações, diferentes das habituais. Tais ações forçaram os sujeitos a conversarem com outros serviços e trabalhadores, no caso, para construir o plano de intervenção, ou mesmo para poder executar o que acreditavam ser a melhor opção para a produção de saúde. Os relatos esclarecem que a construção de uma saúde melhor depende do diálogo entre os profissionais e os serviços, pois ‘ao se pensar um sujeito global, seus cuidados também são globais'. Neste viés, as especialidades de saúde, quando trabalham individualmente, não permitem esta integração no serviço para o cuidado.

"Durante o Curso de Apoiadores da PNH, a cada encontro, fui percebendo mudanças em mim, pude conhecer um pouco da extensa Rede que interliga a saúde, e me descobri fazendo parte dela. Entendi que é impossível não estar em relação com outros, que somos todos "um dependente do outro" em relação ao SUS" (Plano de Intervenção de apoiador).

De outro lado, um importante objetivo da formação de apoiadores que era a formação de redes loco-regionais aparece nos relatos dos apoiadores como efeito que ficou aquém do esperado. A proposta de ampliar "(...) a capilarização da Política Nacional de Humanização, fomentando a construção de redes regionais e a ampliação de coletivos regionais da PNH nos territórios"11, a partir dos cursos, não se deu de modo a impactar significativamente a produção de redes. A falta de uma rede que desse suporte aos apoiadores aparece como uma das causas da não continuidade da experimentação do apoio. Aqui, esta rede é vista como algo que não se constituiu com o curso e nem a partir dele, e de que há uma demanda dirigida a outrem, para que intervenha neste processo e de algum modo resgate os apoiadores da posição em que alguns se percebem hoje, despotencializados para o pleno exercício do apoio. Deve-se considerar as implicações do entrevistador com o tema, visto que o mesmo era também consultor da PNH (Grupo focal).

Para alguns entrevistados, o fato de não ter acontecido a constituição de um grupo de trabalho com os apoiadores formados após o curso dificultou o acesso e contato entre eles, que veem a formação como ponto de partida, como acionamento de processo de formação, devendo estar inserido em uma ação maior e com mais financiamento do SUS. Esta informação corrobora uma lembrança forte trazida por alguns formadores de que, no encerramento dos cursos, o clima tinha sempre um misto de celebração pela conquista e luto pela perda dos espaços de encontro. Luto este que, no caso dos cursos de especialização do RS, chegava reincidentemente a provocar choros coletivos e deixava os formadores preocupados com o efeito de "enclausuramento" que os encontros e as UPs pudessem ter provocado.

"A gente se deixa engolir pelos problemas do dia a dia" e "vai se enclausurando, quando vê, passou quatro anos!" (Narrativa de Grupo focal).

"E agora como nós vamos ficar sem o TelEduc (plataforma de EAD utilizada no RS)?" (Plano de Intervenção de apoiador).

Parece que o curso produziu certo enquadre para o exercício do apoio, com espaços de supervisão, de compartilhamento, de discussão conceitual. A pergunta que fica é: sem este enquadre, o apoio não se viabiliza? A hipótese do enquadre parece encaixar com o saudosismo extremo dos apoiadores entrevistados ao falarem daquele período. Referem que a troca de saberes e encontros entre apoiadores e formadores foram exitosos, mas após o curso esse contato foi se perdendo.

O fim das condições ‘ideais' para o exercício do apoio proporcionadas pelo curso e as dificuldades atuais foram narradas em tom de desabafo nas vivências pós-curso. Existia nessas falas um anseio em compartilhar as vivências e dificuldades para o exercício do apoio.

Houve também uma associação das dificuldades atuais enfrentadas pelos apoiadores com o baixo financiamento do SUS para a implementação da PNH, explícita na comparação feita com o PMAQVIII, que estaria sendo bem aceito pelos municípios e priorizado pelos gestores em virtude de distribuir recursos.

Merece então destaque tal dimensão de processualidade requerida pelos apoiadores para sua formação. Esta foi vista como processo que não termina, ou não deve terminar, com o curso, sendo necessário continuar discutindo e refletindo sobre o tema mesmo após seu encerramento. Apesar de haver uma avaliação de que muito daquilo que foi trabalhado no curso ainda está presente no fazer dos apoiadores, e que cotidianamente o curso ainda mostra seus reflexos, há análises feitas pelos apoiadores de que este foi uma etapa que não deveria ter se encerrado ali. Nota-se um sentimento de que, ao se encerrar o curso, os apoiadores ficam "órfãos".

Assim, após o seu término, as dificuldades enfrentadas para avançar com a PNH na instituição foram atribuídas à falta de "apoio para apoiador", com relatos de que este ficou falando sozinho na sua instituição, e que os colegas do trabalho não se apropriaram da PNH. Tal associação força-nos a refletir sobre uma visão da função apoio como a de um suposto saber messiânico, fundamentado em expectativas totalizantes que o colocam como único capaz de garantir a inserção da PNH nas instituições. Faz-nos refletir também sobre o quanto destas visões foram produzidas a partir do curso, e, mesmo que não o tenham sido, resta-nos ponderar acerca da frequência com que tais visões totalizantes habitam as práticas e os sujeitos, e que o curso talvez não tenha conseguido incidir sobre este modo de estar no mundo.

 

4. CONCLUSÕES: DO QUE DIZEM OS APOIADORES ACERCA DE UM SUS QUE PRECISA DAR MAIS CERTO...

"Penso agora que este é o começo da minha trajetória na Humanização. Depois de tudo acabado, começo novamente. Saio deste Curso com minha mala cheia de novas teorias e conhecimentos. Este teve sentido pra mim no fim do caminho (ou começo dele), quando percebi que a PNH é uma forma de fazer o SUS melhorar enquanto saúde" (Plano de Intervenção de apoiador).

Foram muitas as lições apreendidas com os apoiadores a respeito dos efeitos desses cursos e dos efeitos das estratégias pedagógicas adotadas pela política de formação da PNH. Uma que nos impacta particularmente é a da ideia de que uma formação que se proponha a intervir tanto na produção de conhecimentos quanto de subjetividades é uma formação que transborda um curso, não cabe nele. Neste sentido, aparece entre os apoiadores a compreensão da formação como um processo permanente, articulado à produção-intervenção, muito procedente em relação a uma Política que propunha um processo formativo que incidisse no cotidiano dos serviços.

"Nossa pretensão é uma intervenção permanente. Não pretendemos que este trabalho se encerre em tarefa monográfica, queremos inovar, rompendo a lógica da rotina, propondo injetar ânimo novo em nossas ações em saúde, sobre nossos processos de trabalho" (Plano de Intervenção de apoiador).

Aprendemos também sobre a complexidade que o próprio tema da formação em humanização encerra. Boa parte dos conceitos trabalhados pela humanização são conceitos-ferramenta. Para de fato dominá-los, é preciso deixar que nos dominem, pois não basta aprender a enunciá-los corretamente, é preciso deixar que nos cortem, que interfiram em nós, para que, assim, interfiram em nossas práticas. Dito de outro modo, são conceitos que só fazem sentido quando o saber não se dissocia do fazer, sendo que requerem uma boa dose de coragem para ganharem a dimensão de corporeidade que toda experimentação exige. Uma prática que requer fôlego e um tempo diferenciado de formação e experimentação, um tempo de deslocamentos que são éticos, estéticos e políticos. O que as falas de muitos dos apoiadores sinalizaram é que os cursos acionaram a experiência de estar ‘em relação' uns com os outros, com estes conceitos, com novos modos de pensar e fazer saúde colocando-os neste ‘olho do furacão', que é a transformação das práticas, do cotidiano de quem trabalha por um SUS melhor e uma vida mais digna para todos. No entanto, o término de tais cursos também produziu em muitos apoiadores o sentimento de solidão, de estar à mercê dos ventos desse furacão. Algo que precisa ser tomado pela PNH e pelo SUS como desafio conceitual, metodológico e político a ser encarado, na medida em que cada vez mais a função Apoio vem-se incorporando a outras políticas públicas.

Apesar de afirmarmos que o curso ‘aciona' a formação para o apoio, mas não a encerra, 93% dos apoiadores consideram-se como tal nos dias de hoje. Não temos dúvida de que "as águas que rolaram" no trabalho cotidiano dos referidos apoiadores ao longo dos anos de pós-curso foram campo de experimentação fundamental para a consolidação desse processo de formação para o apoio, assim como para que eles hoje se reconheçam com as competências necessárias ao exercício desta função. Chama atenção o efeito desses cursos para a relação do apoiador com o SUS – objeto maior a que uma formação de apoiadores visa. É o que nos diz um dado extraído dos questionários: 99% dos apoiadores afirmaram ali que sua relação com o SUS modificou-se após o curso.

Por fim, descobrimos que aqueles foram cursos que, mais do que darem respostas, ensinaram a interrogar, e que o fazer experimentado na formação de apoiadores produziu conhecimentos concretos sobre a humanização e sobre a formação para esta Política. Descobrimos também que a formação fundada na perspectiva ético-estético-política pode ser uma ‘formação-sustentáculo', uma formação singularmente potente para dar respostas aos desafios que a sustentabilidade das políticas públicas vem nos colocando.

Ao longo da pesquisa, a dimensão formativa foi uma das que mais reverberou entre os pesquisadores, formação para o exercício ativo de uma outra escuta do campo e dos sujeitos: a escuta para os sons da interferência, da intercessão, em que os lugares de pesquisados e pesquisadores confundem-se e passam a compor uma nova relação com o conhecimento, com o saber-poder, para todos que dela participam.

De fato, trabalhar com a perspectiva do paradigma ético-estético-político na Formação-Pesquisa-Intervenção mostra-se como algo que efetivamente "tira as coisas do lugar" e "faz uma bagunça", no bom sentido!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Maria Claudia Souza Matias
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Ciências da Saúde
Campus Universitário - Trindade
CEP: 88040-900. Florianópolis, SC – Brasil
Email: claudiamatias2005@yahoo.com.br
Tel.: (47) 9113-5138

 

Artigo encaminhado 05/10/2014
Aceito para publicação em 13/11/2014

 

 

Notas

* Doutoranda em Saúde Coletiva
** Professora Adjunta
*** Graduando em Psicologia
I. Documento no qual constaria o mapeamento das demandas do sistema ou serviço onde o apoiador atuaria; a escolha de diretriz e dispositivos da PNH, através dos quais o profissional direcionaria sua intervenção e por fim, o modo como se deu a pactuação e a execução de suas ações12.

II. O projeto de pesquisa levou em consideração todos os aspectos éticos determinados na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, tendo sido aprovado sob o número 152.518 em 8/11/2012.

III. Termo usado em substituição à "coleta" de dados, com o intuito de diferenciar da tradicional etapa de pesquisas que se resume a levantar informações já prontas, por considerar que há uma dimensão de produção em qualquer ato que entre em contato com o campo.

IV. O detalhamento completo da metodologia da pesquisa citada encontra-se no artigo "Errâncias e itinerâncias de uma pesquisa avaliativa em saúde: a construção de uma metodologia participativa", que também compõe a presente edição desta revista.

V. Pesquisa realizada por meio de convênio entre três universidades públicas brasileiras – UFRGS, UFSC e UNESP - e o Ministério da Saúde, no âmbito do Projeto "Desenvolvimento de Técnicas de Operação e Gestão de Serviços de Saúde em uma Região Intramunicipal de Porto Alegre – Distritos da Restinga e Extremo-Sul", tendo sido firmado entre o Ministério da Saúde e a Associação Hospitalar Moinhos de Vento, através do termo de ajuste de número 05/2011, assinado em 31 de dezembro de 2011. Este Projeto está vinculado ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), criado pelo Ministério da Saúde em 2011 para habilitar entidades certificadas como de reconhecida excelência a apresentar projetos para a melhoria da gestão e qualificação do SUS. O estudo foi financiado também pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (processos nº 454758/2012-0 e 476289/2013-0) e contou com a parceria das Secretarias de Estado da Saúde desses estados, mediante a participação de alguns de seus servidores nas equipes de pesquisa.

VI. O debate específico do uso do EAD como dispositivo da política de formação-intervenção da PNH feito a partir da experiência do RS pode ser encontrado em: PAULON, S. M. e CARNEIRO, M. A Educação a Distância como Dispositivo de Fomento às Redes de Cuidado em Saúde. Interface. Comunicação, Saúde e Educação, v.13, p.747-757, 2009.

VII. Grupos compostos pelos alunos do curso organizados em coletivos macrorregionais de saúde e coordenados por um formador/tutor.

VIII. O Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica/PMAQ é uma iniciativa do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde que objetiva "induzir a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade da atenção básica, com garantia de um padrão de qualidade comparável nacional, regional e localmente de maneira a permitir maior transparência e efetividade das ações governamentais direcionadas à Atenção Básica em Saúde"13.