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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.1 no.2 Londrina jun. 2010

 

Relato de experiência/prática profissional

 

Oficinas de Psicologia: memória e experiência narrativa com idosos

 

Workshop of Psychology: memory and narrative experience with elderly

 

Talleres de Psicología: la memoria y la experiencia narrativa con la vejez

 

 

Mariele Rodrigues CorreaI,i; José Sterza JustoII,ii

IUNESP (Universidade Estadual Paulista), campus Assis.

IIUNESP-Assis.

 

 


Resumo

Um dos papéis sociais atribuídos ao idoso é o de ser a memória coletiva de seu grupo social, transmitindo um legado cultural. Em nosso trabalho com idosos, intitulado "Oficinas de Psicologia] e realizado no programa Universidade Aberta à Terceira Idade (UNESP - Assis), privilegiamos um espaço no qual essas memórias pudessem ganhar corpo e sentidos polissêmicos através da narrativa. Nas oficinas com cerca de 30 idosos, realizamos atividades com o objetivo de resgatar as memórias de acontecimentos vividos por eles, registrá-las e divulgá-las na comunidade universitária. Para os idosos, o resgate e a comunicação de suas experiências possibilitaram criar um espaço de interlocução de suas memórias, ressignificando o passado e o presente. Para o psicólogo, é um meio de implementar uma prática diferenciada que não vise o lembrar por lembrar, mas de fazer com que a lembrança seja um ato político de confronto com o presente e de questionamento do papel social dos idosos na atualidade.

Palavras-chave: memória, velhice, psicologia.


Abstract

One of the roles allocated to the elderly is to be the collective memory of their social group, transmitting their cultural heritage. In our work with seniors, entitled "Workshop of Psychology", carried in the University for the Elderly (UNESP - Assis), we privilege a space in which these memories gain materiality and senses through polysemic narrative. In the workshops with a group of 30 seniors, we record the stories told that the word can be incorporated in the group and the university. For the elderly, the rescue of the past through the narrative experience provides a space for dialogue from their memories and reinterpretation of the past and present. To a psychologist, is the opportunity for a differentiated practice that seeks to remember to remember, but this is a political act of confrontation with the present, questioning the social role of older people today.

Key-words: memory, old age, psychology.


Resumen

Una de las funciones asignadas a los ancianos ha de ser la memoria colectiva de su grupo social, en la transmisión de su patrimonio cultural. En nuestro trabajo con personas mayores, titulado "Talleres de Psicología" y realizado en la Universidad de la Tercera Edad (UNESP - Assis), hacinemos un trabajo donde los recuerdos y los sentidos logren narrativas polisémicas. En los talleres con un grupo de 30 personas mayores, registramos las historias contadas para que la palabra se incorpore en el grupo y la universidad. Para los ancianos, el rescate del pasado através de la experiencia narrativa ofrece un espacio para el diálogo de sus recuerdos y la reinterpretación del pasado y del presente. Para lo psicólogo, es la oportunidad para una práctica diferenciada que tiene por objetivo no recordar a recordar, pero este es un acto político de confrontación con el presente, cuestionando el papel social de las personas mayores hoy en día.

Palabras-clave: memoria, vejez, psicología.


 

 

Introdução

"A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada a nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento de paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual] (Bosi, p. 41, 1987).

Ao longo de nossa trajetória de vida, colecionamos diversas histórias que nos são contadas, vivenciamos intensos momentos que guardamos como relíquias de nosso passado e presenciamos acontecimentos que produzem marcas para além do tempo. Todo esse material se constitui, juntamente com outros elementos, em matéria-prima para a subjetividade. Lapidada pela ação do tempo e do espaço, essa matéria toma corpo na memória, tanto dos sujeitos quanto de seus grupos sociais.

Esse breve relato que se segue tem como propósito descrever e apresentar algumas reflexões sobre uma experiência de sete anos de trabalho com as memórias de um grupo de idosos que freqüentavam as "Oficinas de Psicologia], desenvolvidas no programa Universidade Aberta à Terceira Idade, da UNESP (Universidade Estadual Paulista) - campus de Assis. Ao elegermos a memória como ferramenta de trabalho com idosos, procuramos incitar a emergência das mais diversas lembranças de experiências ocorridas nas diferentes fases da vida, com o intuito de promover o resgate da história do indivíduo e de seu entorno. O trabalho de exercício com a memória de idosos, ao tomar histórias de vida, possibilita entrarmos em contato com o processo de construção identitária desses sujeitos, pois, "refletindo todo um universo de representações e significados, a memória, atualizada pela categoria lembrança, constitui, ela própria, uma representação que os sujeitos fazem de sua própria vida] (Ferreira, 1998, p. 208).

Trabalhar com memória de idosos pode parecer, à primeira vista, um exercício óbvio, já que um dos papéis que são atribuídos aos mais velhos é o da arte de contar histórias de um passado considerado longínquo, seja da família, da cidade ou de acontecimentos que marcaram uma determinada geração. Diz-se do idoso que ele é um saudosista, vive das memórias de anos dourados de sua juventude e sempre as evoca para confrontar o passado com os contornos do contemporâneo, muitas vezes valorizando o pretérito em detrimento do presente. É comum se ouvir dizer que o idoso é alguém que vive de lembranças, remoendo e degustando os anos que já se foram. Há até um ditado popular que diz: "quem vive de passado é museu], como se os idosos fossem meramente museus ambulantes extemporâneos, situados em um tempo que não o atual.

Apesar do que a cultura popular diz, debruçar-se na esteira do tempo que toma corpo nas memórias é realizar um trabalho político. É assim que tomamos o trabalho com a memória de idosos. Mais do que um devaneio fútil ou uma tentativa de preencher o tempo ocioso, recordar é dar corda de novo nas engrenagens da história. "Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho]. (Bosi, 1987, p. 17).

Apropriar-se da memória ativamente e transmitir os legados culturais que ela contém é reconstruir o passado, dar a ele a possibilidade de ser atualizado e narrado de uma forma diferente daquela contada nos livros. É também, agir no presente, transformá-lo mediante leituras baseadas em codificações retrospectivas. Mais ainda: é ter de volta o sentimento de pertença a uma história ou mesmo à própria sociedade, sentimento este que, muitas vezes, é expropriado dos mais velhos, justamente aqueles que, cada qual à sua maneira, tiveram participação significativa no processo de construção de uma sociedade.

 

Método

Em nossas atividades com o grupo de idosos, privilegiamos um espaço no qual as experiências guardadas na memória pudessem ganhar corpo e sentidos polissêmicos através da narrativa. A experiência narrativa, de acordo com Certeau (1994), é diferente de uma simples técnica de descrição. Para o autor, contar uma história é criar espaço para a ficção, é uma arte do dizer e de fazer a história. Essa prática implica uma relação indissociada do tempo, da noção de duração, da memória se presentificando no ato mesmo da fala: "o discurso produz efeitos ao querer dizer outra coisa do que aquilo que se diz; exerce sua estratégia por um desvio pelo passado, recorrendo à memória como uma de suas táticas geradoras de sentido]. (Mairesse & Fonseca, 2002, p.114).

Ao reler um livro ou rever um filme, o olhar sempre captura algo que antes não foi visto. Assim acontece quando um indivíduo recorda suas experiências passadas. É impossível vivê-las tal e qual aconteceram, no mesmo cenário e com as mesmas pessoas. Por isso, o trabalho de recordar é uma reconstrução de fatos da memória e da linguagem. Cada vez que uma lembrança é evocada, há a possibilidade de emergir novos significados sobre o mesmo acontecimento, assim como outros sentimentos e sensações são despertados no trabalho de reconstrução da história, independente da objetividade que se queira dar ao relato.

A experiência narrativa recorre ao passado para lançar mão das histórias impressas na memória. E é por essa última que o passado se produz não apenas como um antigo presente, mas enquanto algo que se constrói no próprio presente: "a memória se constrói no encontro com os acontecimentos, em seu instante ainda virtual, quase pronto para realizar-se. Assim, a memória consiste num meio de transformar os lugares]. (Mairesse & Fonseca, 2002, p114).

Em nosso trabalho com idosos, a memória foi evocada por meio oficinas temáticas elaboradas previamente. Adotando o referencial de grupo operativo de Pichón-Rivière (1986), centrávamos o grupo numa atividade principal, numa tarefa. No entanto, precedendo a tarefa do dia, realizávamos um exercício inicial de aquecimento, que poderia estar relacionado com a atividade do dia ou, ainda, exercícios de respiração e relaxamento, com o propósito de criar um clima e uma disposição favoráveis à participação na oficina. Após esse momento de aquecimento, passávamos para a atividade programada previamente, com temáticas variadas, como as brincadeiras da infância, os bailes e os carnavais na juventude, os "causos] e lendas transmitidos culturalmente, os usos e costumes de uma época, os cuidados com o corpo e a saúde e assim por diante.

Nessa produção de narrativas, procurávamos realizar o registro das histórias narradas, fosse em cartas, cartazes ou revistas de circulação no campus da universidade ou utilizando outros tipos de registro e de comunicação em espaços diversos tais como o ambiente familiar e afetivo, postos de saúde, escolas, comércio, pontos de ônibus, etc.

Todo esse trabalho coletivo, realizado nessas oficinas de psicologia, não visava o lembrar por lembrar. Procurávamos fazer desse trabalho um ato político de confronto com as práticas do presente e de questionamento do papel da velhice e da terceira idade na sociedade contemporânea, porque, afinal, os idosos são atores da construção da história do cotidiano. Mais do que um exercício preventivo a doenças degenerativas, como o Alzheimer, evocar a memória é um trabalho de subversão de paradigmas que alienam o sujeito de sua história, ou ainda, de enfrentamento da velocidade e da fugacidade da vivência do tempo na atualidade.

Essa arte de contar histórias, na realidade, é uma arte do encontro do que já passou com o que é atual, do encontro com a presença das ausências, com as diferentes gerações, com os fantasmas vagantes em algum lugar da memória; é o lugar das possibilidades de se produzir e transformar uma(s) realidade(s): somente através da memória se pode atingir o passado, e este, não existindo como um antigo presente, só se torna possível enquanto produção no presente, resgatado pelo imemorial. Assim, é somente a partir de hoje que se pode falar sobre o passado, e é implicado no presente e comprometido com o futuro que se faz valer o passado – um passado sempre a se refazer no presente. (Mairesse & Fonseca, 2002, p.114).

 

Resultados e reflexões

A atividade de recordar se exerce com feições diferentes em cada fase da vida. Preocupados com sua vida prática, os adultos dificilmente se entregam à arte de rememorar. Essa tarefa parece caber ao idoso: ser a memória da família e do seu grupo social. É essa sua obrigação: "lembrar, e lembrar bem] (Bosi, 1987, p. 24). No entanto, se essa experiência for tomada como única condição de possibilidade de vivência no coletivo, então a tarefa de lembrar pode se tornar aprisionadora do sujeito e há o risco de se perder a dimensão política do resgate do passado.

Em nossa experiência de atuação junto ao grupo de idosos, percebemos que o passado, seja ele advindo de uma história de vida ou mesmo de acontecimentos do cotidiano, é muitas vezes privado de expressão no meio social. Muitas de suas histórias chamadas "do arco da velha] permanecem guardadas num museu peculiar: seu próprio corpo. Passada a sua fase chamada produtiva no mundo do trabalho, o sujeito pode deleitar-se a essa tarefa de recordar, mas para quem ele o faz? Como pode exercer sua ‘função social' e seu exercício político se suas lembranças se perdem numa linguagem discursiva que não encontra interlocutores? "Ele (o idoso) não pode mais ensinar aquilo que sabe e que custou uma vida inteira para aprender] (Bosi, 1987, p. 37).

Em meio a uma sociedade que preza a velocidade, a aceleração do tempo e a compressão dos espaços, a experiência narrativa e a escuta parecem ter seus espaços demasiadamente reduzidos. Por isso, as Oficinas de Psicologia e o Programa de Universidade Aberta à Terceira Idade se prestavam a essa tentativa de oferecer aos idosos uma possibilidade de inscrição no meio social e no meio acadêmico. Cabe destacar que o contato com estudantes universitários da UNESP de Assis, onde a experiência foi realizada, exerceu um papel decisivo que sempre reconhecemos. Foram contatos intergeracionais bem sucedidos, pois havia bastante receptividade e acolhida da parte dos estudantes e uma vontade enorme dos idosos em se aproximarem dos jovens universitários. A interação ocorria tanto na informalidade dos relacionamentos travados nos diferentes ambientes do Campus, como por meio das atividades das oficinas, quando elas previam algum tipo de comunicação dos participantes das oficinas com a comunidade universitária. Os estudantes foram os principais interlocutores da terceira idade nas comunicações públicas das elaborações de suas memórias.

Com um forte veio de história oral, a narrativa memorial mistura entre as paixões humanas e o fantástico da vida entre a realidade e a ficção. Mas as narrativas contemporâneas deram lugar à informação veiculada pelo jornal, que passa os fatos de forma "imparcial e verídica]. A necessidade criada pela cultura de ter que estar bem informado leva o sujeito a um bombardeio de informações que só têm valor no instante mesmo em que surgem. Passado alguns poucos momentos, elas se perdem e se esgotam, dando lugar a outras notícias mais recentes. Seus sentidos são muito restritos, diferentemente da grande narrativa, que permanece no tempo e é polissêmica, ou seja, seus significados não se consomem. A arte de narrar é um trabalho artesanal. Trabalho que, para Bosi (1987), exige alma, olho e mão. É assim que o narrador transforma sua matéria - a vida humana: "seu talento de narrar vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor; sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo] (p.49).

Além disso, ainda segundo Arendt (1972), os legados de uma geração só podem ser transmitidos às gerações seguintes através da palavra, porque o que se pode transmitir é o sentido daquilo que foi vivido e não a vivência concreta. Assim, pensando não apenas na necessidade da apropriação da própria história, mas também na função social da transmissão da história da qual o sujeito é portador, torna-se necessário criar situações nas quais essas histórias, as experiências vividas, sejam relembradas, ressignificadas e contadas para os outros, ainda que os espaços para essas atividades estejam restritos atualmente.

Os resultados de nossa experiência, advinda de alguns anos, nos permite concluir que o fato de se ter um espaço para que as histórias de vida e a memória cultural venham à tona é densamente rico e essencial. Para os idosos, é uma possibilidade de resgate das próprias histórias que muitas vezes ficaram esquecidas por eles mesmos. É a possibilidade de poderem ter um espaço de interlocutores dentro e fora do seu próprio grupo de pares, uma vez que essas histórias podem circular amplamente por meio de panfletos, revistas, cartas, cartazes e outras formas de comunicação. Para o psicólogo, é uma oportunidade de construir uma prática diferenciada que permite a arte do encontro. Encontro não só do passado com o presente, numa dimensão estritamente temporal, mas um encontro geracional entre aqueles que possuem uma densa experiência de vida, propiciada por muitos percursos realizados, com aqueles que ainda estão no intermezzo da caminhada.

 

Referências

Arendt, H. (1972). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Bosi, E. (1987). Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Ferreira, M. L. M. (1998) Memória e velhice: do lugar da lembrança. In M. M. L. Barros (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. (pp. 207-222). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.         [ Links ]

Mairesse, D., & Fonseca, T. M. G. (2002). Dizer, escutar, escrever: redes de tradução impressas na arte de cartografar. Psicologia em Estudo, 7(2), 111-116.         [ Links ]

Pichon-Rivière, E. (1986). O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
marielecorrea@bol.com.br
justo@assis.unesp.br

Recebido em: 27/10/2010
Revisado em: 22/11/2010
Aceito em: 09/12/2010

 

 

iMestre em Psicologia e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. UNESP (Universidade Estadual Paulista), campus Assis.
iiLivre-Docente em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Coordenador do programa Universidade Aberta à Terceira Idade, da UNESP de Assis, no período de 2003 a 2008. Docente da Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UNESP-Assis.

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