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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.3 no.2 Londrina dez. 2012

 

Relato de Experiência

 

A importância do cotidiano oferecido pelo acompanhante terapêutico a pacientes psicóticos

 

The importance of everyday life provided by the companion therapeutic to psychotic patients

 

La importancia de la vida diaria proporcionada por los acompañantes terapeuticos a los pacientes psicóticos

 

 

Aline Vilarinho MonteziI,i;

IPontifícia Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O presente trabalho compartilha o relato de um caso de Acompanhamento Terapêutico, que consiste numa modalidade de atendimento que teve início com a Reforma Psiquiátrica e utiliza, principalmente, o cotidiano como setting. Trata-se de um paciente psicótico, que teve alta de uma internação psiquiátrica com a condição de continuar o tratamento em regime de Hospital Dia. Durante dois meses e meio, o paciente foi acompanhado à clínica de ônibus, o que permitiu um maior contato com a sociedade. Foi feito uso de alguns pressupostos de Winnicott para dialogar com o relato e, para comunicar o acontecido, foi redigida uma narrativa. A partir do atendimento, foi possível concluir que o Acompanhamento Terapêutico é um importante recurso ao paciente psicótico, uma vez que se torna uma possibilidade de situá-lo e recolocá-lo frente à ruptura cultural que sofreu, retomando, dessa forma, a própria subjetividade.

Palavras-chave: acompanhamento terapêutico; cotidiano; Winnicott.


Abstract

This study shares the report of a case Therapeutic Monitoring, consisting of a service area began with the psychiatric reform and uses, mainly, the daily as setting. It is a psychotic patient who was discharged from a psychiatric hospitalization, with the condition of continuing treatment under a Hospital Day. For two and a half months, the patient was accompanied to the clinic by bus, allowing greater contact with society. It was made use of some assumptions of Winnicott to dialogue with the reporting and, to communicate what happened, was written a narrative. From the service, it was concluded that the Therapeutic Monitoring becomes essential to the psychotic patient, once that becomes a possibility to place it an place it against the cultural rupture suffered, returning thus to subjectivity itself.

Key-words: therapeutic monitoring; daily; Winnicott.


Resumen

Este trabajo comparte la historia de un caso de Acompañamiento Terapéutico, que consiste en un área de servicio se inició con 1ª. Reforma Psiquiátrica y utiliza, principalmente, todos los días como la configuración. Se trata de un paciente psicótico, que fue dado de alta de un hospital psiquiátrico con la condición de continuar el tratamiento en un Hospital de Día. Durante dos meses y medio, el paciente fue acompañado a la clinica en autobús, lo que permitió un mayor contacto con la sociedad. Se hizo uso de algunos supuestos Winnicott al diálogo con la cuenta y comunicar lo que pasó, fue una narración escrita. Del servicio, se concluyó que el seguimiento terapéutico se convierte en esencial para el paciente psicótico, una vez que se convierte en una posibilidad de que el lugar y la coloca sobre el colapso cultural que padeció, volviendo, por lo tanto, la subjetividad misma.

Palabras-clave: acompañamiento terapéutico; diario; Winnicott.


 

 

Introdução

Partindo de uma perspectiva que admite possibilidades diversas para o enquadre clínico, o presente relato objetiva discorrer sobre o Acompanhamento Terapêutico, uma prática que surgiu no início da década de setenta com a reforma psiquiátrica. Muitos aspectos relacionados ao cuidado a pacientes psiquiátricos sofreram mudanças, o que gerou intensas repercussões na concepção e no cuidado a eles.

A desinstitucionalização dos doentes mentais partiu de um movimento baseado na necessidade de reverter o modelo de atenção a esses pacientes e que, primeiramente, seria necessário desconstruir a relação "problema-solução” utilizada até então para abordar a questão da loucura. Dessa forma, desinstitucionalizar implica desmontar a solução institucional existente no paradigma médico para remontar o problema da relação com a diferença que o louco apresenta. Para tal, torna-se imprescindível envolver todos os atores do sistema organizacional, com a perspectiva de transformar as relações de poder entre as estruturas de atendimento e os pacientes através dos próprios profissionais para depois atingir outras instâncias sociais. Torna-se fundamental a mudança nas formas de cuidado instituídas entre os profissionais da saúde, alertando para o fato de que uma rede substitutiva à internação em um hospital psiquiátrico pode ser manicomial se não alterarmos o formato da atenção transformando a concepção e as práticas já estabelecidas (Cabral, 2005).

Foi nesse contexto de cuidado, transformações na prática dos profissionais de saúde e na mudança progressiva dos espaços de tratamento que surgiu o Acompanhante Terapêutico. Dada a complexidade desse profissional, as definições do trabalhado acompanhamento terapêutico também carregam essa característica, mas, dentre algumas, é possível ter uma breve noção a partir de Dametto (1971, p.90):

(...) teoricamente, é acompanhar o doente. É estar junto, verdadeiramente, em qualquer hora; é incentivá-lo a atividades construtivas, reprimi-lo em atividades destrutivas, ampará-lo nas horas de angústia. É estar com o paciente "na dele” (...) não é fazer as coisas por ele, alimentando a dependência... mesmo que o auxiliar ache uma idéia maluca, desde que não traga perigos para o paciente, deve incentivá-lo e mesmo ajudar a executar a obra. Boa ou má, deve ser levada à ação: assim, o doente aprenderá por sua experiência... O auxiliar, como qualquer técnico, estará aprendendo a toda hora com os doentes. São estes (e a nossa parte doente) que nos ensinam a tratar dos doentes e não os Tratados de Psiquiatria. Estes até podem ajudar. Mas se ouvirmos os doentes, saberemos tratá-los melhor. Isso é uma das coisas que o auxiliar tem de saber fazer.

Essa definição, que enfatiza o "estar com o paciente” remete a Winnicott, um importante teórico com o qual, estando numa perspectiva da Psicologia clínica psicanalítica, estabeleço um profundo diálogo. Ele chama atenção para a realização de intervenções que não dissociem da experiência viva do paciente, mas construir uma visão de homem como um ser que espontaneamente simboliza. A partir da simbolização integrada à experiência viva, a atribuição de sentidos ao acontecer passa a ser considerada gesto inter-humano, uma vez que se expressa como ação no mundo quando favorecida por um ambiente suficientemente bom, ancorado na compreensão como encontro de sensibilidades. Interpretações dessa ordem podem trazer também a experiência de sentir-se sustentado, favorecendo movimentos integradores através do olhar, escuta e fala atenta às necessidades do paciente de aproximar-se do verdadeiro self(Medeiros, 2009).

Entretanto, quando se trata de sofrimento psíquico, que para os fins desse trabalho me deterei à psicose, o sentimento de ser vivo e real não acontece, uma vez que ela se trata de uma organização defensiva a partir da queda no que, em termos winnicottianos, denominamos "agonias impensáveis”. Os sintomas como delírios e alucinações também são parte desse conjunto de defesas. Esse sofrimento teria seu ponto de origem em eventos acontecidos que foram vivenciados num momento em que não havia, ainda, uma pessoa constituída como tal, desde seu próprio ponto de vista capaz de memorizar a própria experiência a partir de uma articulação simbólica. (Aiello-Vaisberg, 2004).

Entretanto, para que a pessoa retome sua continuidade de ser e exista desde seu ponto de vista, Winnicott (1986) remete à importância de técnicas como o Holding, que se trata da sustentação física e psicológica proporcionada pelo terapeuta ao paciente. E através da manutenção contínua do tempo e do espaço, pode-se chegar à integração. Dessa forma, vemos que o papel do acompanhante terapêutico se assemelha às propostas winnicottianas, de estar com o paciente psíquica e fisicamente, fato que remete significativamente à importância dos contextos sociais e do cotidiano enquanto uma organização "concreta” para as defesas psicóticas.

 

Relato do Caso

Para discutir a questão da importância do Acompanhante Terapêutico no cotidiano do paciente, relatarei sob a forma de narrativa, um caso clínico, de um paciente psicótico que acompanhei por dois meses e meio.

"De volta à realidade...”

Conheci Pedro na clínica psiquiátrica onde fiz estágio de Acompanhamento Terapêutico. É um homem com mais ou menos 45 anos, mas com um olhar e postura de menino. Muito doce, ele se aproximou de mim e perguntou meu nome. Às vezes permanecia sentado, em silêncio... E parecia estar ali comigo. É um velho paciente da clínica. Tanto os pacientes como a equipe tinham um carinho praticamente maternal com ele, e, vez ou outra, passavam por ele e diziam: "e aí, Pedrinho?” ou passavam a mão na cabeça dele dizendo que havia melhorado.

A sensibilidade clínica me permitiu que, logo no primeiro contato, percebesse que ele era psicótico. Aquele olhar angustiado, as afirmações persecutórias de que o irmão estaria conspirando contra ele confirmaram minha hipótese. Após 15 dias de estágio, enquanto participava da reunião clínica da equipe, foi discutida a possibilidade dele ter alta, mas desde que um tratamento relacionado a outras redes, engajado com a família e bem assistido psicologicamente, fosse construído. E aí surgiu a possibilidade do acompanhamento terapêutico, ao qual me prontifiquei.

Conversei com o irmão (Elias) – o principal responsável por Pedro – e falei sobre o trabalho do acompanhante terapêutico. Surpreendentemente, ele aceitou. A equipe de profissionais estava receosa porque ele sempre foi pouco solicito às necessidades do irmão e quase não comparecia às reuniões de família. Levantamos as possibilidades e, como Pedro precisava continuar o tratamento indo diariamente à clínica, pensamos que eu poderia levá-lo duas vezes na semana de ônibus, uma vez que Pedro tinha uma vida social quando mais jovem e usava esse meio de transporte. Elias contou que Pedro morava com o pai, um senhor bastante debilitado e demenciado, e permanecia grande parte do tempo ocioso, fazendo companhia ao pai e fumando o dia todo.

Comecei a acompanhar Pedro. Fui à casa dele pela primeira vez e fui recebida por um senhor muito amoroso e preocupado com o filho. Muito limitado pela idade – ele já estava demenciando, fato que preocupava muito a equipe do hospital psiquiátrico – ele se esforçava para cuidar de Pedro, desde acordá-lo (Pedro não o fazia sozinho), mandar tomar banho, escovar os dentes, até preparar o leite para tomar. Confesso que fiquei surpresa diante de tantos cuidados a um homem de quase 45 anos, mas começava a entender o porquê do "Pedrinho”.

Após se aprontar, fomos pegar o ônibus. O ponto não era muito perto, o que demandava uns 15 minutos de caminhada pelo centro da cidade. Eu percebi que Pedro ficou maravilhado, como uma criança que chega a um parque de diversões, pois parecia que há anos não circulava pelas ruas da cidade "inteiramente”. O irmão disse que o dia dele se limitava a acordar, fumar, sentar no sofá e ficar com o pai. Quando jovem, ainda frequentava alguns espaços sociais como o SESI, saía com alguns amigos, mas essa rotina foi se perdendo, a ponto de Pedro ficar somente em casa.

Pedro não sabia onde era o ponto de ônibus. Ao chegamos, sugeri que ficássemos num lugar estratégico perto de onde o ônibus pararia. Ele olhava as pessoas, as lojas em volta, a quantidade de ônibus que parava no ponto... Quando entramos, ele não sabia onde sentar. Falei que poderia escolher, ele foi logo numa janela de um banco mais alto. Enquanto viajávamos, ele comentava sobre o que via: a prefeitura, as avenidas, e soltava um sorriso com tudo o que via!

Os dias foram passando... Cada vez mais eu via que Pedro se situava na rotina, nos dias da semana... Enquanto estava internado, não tinha noção de tempo. Algumas vezes conseguia acordar sozinho, identificar o ônibus, o ponto que desceríamos. Enfim, eu percebi o quanto o estar junto, situá-lo concretamente no tempo e no espaço também era parte da intervenção e do quanto beneficiava Pedro. Em alguns momentos tinha a sensação de que ele se sentia importante, pertencente a um grupo (da clínica, da sociedade) e que tinha desejos. Ele falou até em estudar para ser médico e dar aulas! Embora considerasse difícil, conseguia se imaginar numa sala de aula como professor.

O acompanhamento foi realizado por dois meses e meio. Por alguns motivos relacionados ao irmão, tivemos que encerrar. Mas foi possível perceber as diferenças. Fico pensando no que mais teria sido possível para Pedro alcançar. Nosso caminhar pelas ruas permitiu que ele se sentisse alguém pertencente ao mundo, que mora numa cidade, tem rotina, desejos, angústias.

 

Conclusão

Uma das grandes discussões a respeito do trabalho do acompanhante terapêutico gira em torno justamente das intervenções que acontecem no âmbito do concreto: organizar a rotina, freqüentar espaços sociais, resolver questões práticas, circular pelas ruas. É fato que uma aproximação tão intensa do cotidiano da pessoa favorece a construção de uma relação inerentemente íntima com o paciente.

A partir da consideração de que o cotidiano se torna um dos principais componentes do setting, podemos pensar na importância dele na constituição da subjetividade do indivíduo, uma vez que estamos numa perspectiva dialética, que diz que só é possível emergir alguém se houver a presença de outro humano.

Safra (1998) faz uma relação muito interessante entre o fenômeno da loucura e a ausência do cotidiano. Ele aponta que, em pesquisas que acompanhou sobre os "excluídos” na nossa sociedade, estes apresentam uma sintomatologia semelhante ao quadro psicótico, mas resultante de um processo de exclusão social. E a falta do contato com a cultura permite que o indivíduo perca também os elementos fundantes da sua subjetividade. Dessa forma, "a intervenção terapêutica não pode ser restrita à elaboração do campo pulsional, mas será um tipo de trabalho mais relacionado à psicanálise antropológica. O paciente precisará ser situado e recolocado frente à ruptura cultural que sofreu” (Safra, 1998, p. 106).

Dessa forma, papel do Acompanhante Terapêutico, além de ser delicado e minucioso, adquire grandes proporções ao longo do tempo, pois se implica numa missão de encontrar um lugar para que o paciente possa ser vivo e real e, ao mesmo tempo, inseri-lo nos contextos sociais, onde ele possa retomar a continuidade dos vínculos dos elementos fundantes de sua subjetividade.

 

Referências

Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2004). Ser e fazer: Enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. São Paulo: Idéias e Letras.         [ Links ]

Cabral, K.V. (2005). Acompanhamento terapêutico como dispositivo da Reforma psiquiátrica: Considerações sobre o setting. Dissertação (Mestrado). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.         [ Links ]

Dametto, C. & Galanternick, R. C.(1971). A propósito de uma técnica psicoterápica nãointerpretativa. In:Anais doVI Congresso Latino-Americano de Psiquiatria e I CongressoBrasileiro De Psiquiatria, p. 89-91. São Paulo.         [ Links ]

Medeiros, C. (2009). Girando o cata-vento: Sofrimento e cuidado na psicanálise do ser e fazer. Tese de Doutorado do Instituto de Psicologia da USP. São Paulo.         [ Links ]

Safra, G. (1998). A loucura como ausência de cotidiano. Psychê, 2(2), 99-108Links ] Arial, Helvetica, sans-serif">.

Winnicott, D.W. (1986). Holding e interpretação. Tradução de Sônia Maria Tavares Monteiro de Barros. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
alinemontezi@hotmail.com

Recebido em: 23/12/2011
Revisado em: 19/06/2012
Aceito em: 10/10/2012

 

 

i Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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