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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.5 no.1 Londrina jun. 2014

http://dx.doi.org/10.5433/2236-6407.2014v5n1p119 

Relato de experiência/Prática profissional

 

 

Shantala e winnicott: o toque a partir do vínculo

Shantala and winnicott: the touch from the bond

 

Shantala y winnicott: el toque a partir del vinculo

 

 

Karina Cyrineu Valei

Centro de Referência em Reabilitação

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Este artigo trata de identificar e estabelecer associações entre a técnica de massagem infantil indiana conhecida no ocidente como Shantala à teoria de desenvolvimento infantil de Donald Winnicott, baseado na experiência pessoal e profissional da autora. Ela relaciona a oferta da massagem como um espaço potencialmente terapêutico para a estimulação do desenvolvimento saudável do nascituro em um sentido amplo - aspectos físicos e emocionais, a partir do estabelecimento de um vínculo saudável com seu cuidador. A atenção com o ambiente-cuidador, onde o reconhecimento do bebê enquanto um ser em desenvolvimento que "existe" e se expressa, são valorizados na prevenção e terapêuticas dos transtornos do desenvolvimento neuro-psico-motor.

Palavras-chave: massagem infantil, vínculo, desenvolvimento infantil.


Abstract

This article is to identify and establish associations between the Indian infant massage technique known in the West as Shantala to the theory of child development Donald Winnicott, based on personal and professional experience of the author. She relates the offer massage as a potentially therapeutic space for the stimulation of healthy development of the unborn in a broad sense - physical and emotional aspects, from the establishment of a healthy bond with their caregiver. Care for the caregiver environment-where the recognition of the baby as a developing human being "there" and expresses, are valued in the prevention and treatment of developmental disorders neuro-psycho-motor.

Keywords: infant massage, bonding, child development.


Resumen

Este artículo es identificar y establecer asociaciones entre la técnica de masaje infantil india conocida en Occidente como Shantala la teoría del desarrollo infantil Donald Winnicott, basado en la experiencia personal y profesional del autor. Ella relaciona la oferta de masaje como un espacio potencialmente terapéutico para la estimulación del desarrollo saludable de los niños por nacer en un sentido amplio - los aspectos físicos y emocionales, desde el establecimiento de un vínculo sano con su cuidador. El cuidado del cuidador entorno en el que el reconocimiento de que el bebé como un ser humano en desarrollo "no", y expresa, se valoran en la prevención y el tratamiento de los trastornos del desarrollo neuro-psico-motoras.

Palabras-clave: masaje infantil, la vinculación, el desarrollo del niño.


 

Descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor do viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da experiência de vida de cada bebê. (Winnicott, 1975, p. 102-103)

O bebê passa cerca de 9 meses no ventre uterino, onde lhe é provido alimento, calor, aconchego e... movimento. Ele se mexe em todas as direções no líquido uterino, acariciado pelas paredes do útero materno. Não é um ambiente silencioso. Ele ouve as batidas ritmadas do coração e os sons do metabolismo de sua provedora, embora não a perceba ainda como um ser separado dele.

Ao nascer lhe é oferecido um berço - que por mais carinhoso que possa ter sido preparado, lhe é um estranho. Além disso, tem que filtrar todo um meio de novos estímulos que o contato com o novo habitat lhe proporciona, lidar com inominadas sensações de fome, frio, desconforto, barulho... Como acolher este pequeno ser que tem essa imensa tarefa de se adaptar ao seu novo lar? Essas questões me foram provocadas, principalmente, com algumas obras do famoso obstetra francês Frederick Leboyer, dentre as quais destaco os livros Shantala (Leboyer,1995) e Nascer sorrindo (1979).

Já dizia Donald Winnicott, profundo estudioso do desenvolvimento do psiquismo infantil - o melhor ambiente do bebê é a mãe. O corpo da mãe. A mãe é quem provê o necessário que ele necessita para crescer e enfrentar esses desafios.

O livro Shantala nasceu da amizade de Leboyer com uma mãe indiana, observando sua arte de massagear o filho Gopal. Ela tinha uma paraplegia, tendo sido anteriormente ajudada pelo médico em um Centro de atendimento em Calcutá.  Assim, a massagem indiana que ficou conhecida no ocidente com o nome dessa mãe, na verdade é parte da medicina ayurvédica adaptada para bebês. Recentemente, Leboyer disponilizou imagens de Shantala massageando Gopal às margens do Tâmisa em vídeo (Leboyer, 2010), o que auxilia em muito na aprendizagem prática, mas não só tecnicamente. Referência sobre parto humanizado sobre as mudanças da compreensão da consciência do recém-nascido, (Leboyer, 1979), o poeta e filósofo consegue traduzir em verso e imagem a essência da massagem, transportando-nos para uma outra forma de olhar e cuidar da vida:

a massagem dos bebês é uma arte tão antiga quanto profunda. Simples, mas difícil. Difícil por ser simples como tudo o que é profundo. Em toda arte há uma técnica. Que é preciso aprender e dominar. A arte só aparecerá depois. De fato ela está ali o tempo todo. Visto que, justamente, ela está além da existência. (Leboyer,1995, p. 29)

Mobilizada por essa proposta muito precocemente observando seu uso no ambiente familiar e anos depois, pela força das imagens do livro de Leboyer, fui apresentada à técnica num curso. Mas a arte é um processo que necessita respiração, tempo, e, prática. Assim conhecendo os verdadeiros mestres, meus próprios filhos, depois partilhando essas descobertas com meus primeiros pacientes mães-bebês e com tantas trocas que o universo foi me ofertando.

Trabalho num serviço público de assistência à saúde que atende crianças com transtornos no desenvolvimento neuro-psico-motor. Interessei-me pela possibilidade de utilizar essa massagem com as mães cujos bebês necessitavam tão precocemente de cuidados. A relação com o pensar de D. Winnicott foi um caminho óbvio para mim, que já era entusiasta de sua teoria. Quais provimentos o ambiente oferta para o desenvolvimento do ser humano em seu estado mais vulnerável? E como isso reflete em sua forma de ser e existir no mundo?

Do encontro desses dois ícones – o obstetra e poeta francês e o pediatra e psicanalista britânico - com minha trajetória pessoal e profissional, nasceu este registro. Longe da pretensão de resumir toda a contribuição Winnicottiana, este relato visa apontar conceitos dessa clínica que considero relevantes na prática da massagem no ocidente.

Tenho observado na minha vivência pessoal e prática clínica um distanciamento do papel de mãe enquanto a melhor provedora e estimuladora de seus filhos, e a dificuldade de tocá-los com profundidade, respeito e vínculo, como uma comunicação natural, mas cada vez mais terceirizada a terapeutas especialistas. Sim estes são muitas vezes necessários, mas nunca substitutos do papel materno de olhar, ouvir e tocar seus bebês.

Pois bem, para Winnicott, "um bebê sozinho não existe". Sua sobrevivência pressupõe o cuidado por um outro. Embora o processo maturacional seja uma tendência natural de qualquer ser vivo saudável, o ambiente precisa prover condições para que isso ocorra. O ambiente para o bebê é a mãe ou seu cuidador, inicialmente. O início do desenvolvimento é o início do Ego. O Ego do bebê é forte à medida que a mãe é suficientemente boa, que funcione como um bom Ego auxiliar. O bebê parte do início de uma dependência absoluta, tanto que nem dá conta da dependência. Ele olha a mãe e vê a si mesmo. Em seguida caminha para uma dependência relativa, passando para a independência, nunca absoluta.

Todo o processo de desenvolvimento passa pelos cuidados maternos, que Winnicott chama de holding. O holding é o cuidado físico e emocional que a mãe propicia ao bebê. Ela sustenta (holds) uma situação para o bebê, cuida dos aspectos fisiológicos, físicos, ambientais; inclui a rotina completa do cuidado; está atenta às mudanças instantâneas: isso inclui o holding físico, que é uma forma primeva e intensa de amar. Para que isso ocorra é necessário uma empatia materna, o que  não é adquirido simplesmente por um treino, mas especialmente por uma vivência dela própria.  É necessário que a mãe sustente o bebê emocionalmente (Winnicott, 1960). Essa sensibilidade é nomeada de preocupação materna primária (Winnicott, 1956).

A mãe suficientemente boa é capaz de prever as necessidades do bebê. É o período de dependência absoluta da mãe e do ambiente, mas à medida que ele se desenvolve e dá os primeiros gestos espontâneos de independência é necessário também que o cuidador reconheça e permita sua evolução. A mãe suficientemente boa não é a que dá tudo a qualquer hora, mas a que está sintonizada com o bebê e respeita suas necessidades, inclusive de autonomia. Importante falar do papel da falha materna, que, em certa medida, proporciona o desenvolvimento intelectual do bebê. Ele tem que usar da memória e de sua capacidade cognitiva para processar essa falta; por exemplo, tendo esperança que sua mãe venha, como aconteceu antes.

Em seguida pensemos na inserção psicossomática (Winnicott, 1970). No início temos um estado não integrado, com tendência à integração. É o manejo (handline) da mãe pelo bebê, que vai propiciando experiências de continuidade do existir, e o bebê vai se integrando, propiciando que a psique habite esse corpo. Essas experiências vão fazer com que o bebê perceba uma membrana limitante, definir o interno e o externo. Só depois podemos pensar em introjeção e projeção.

nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê humano, um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente, que de fato, o bebê ainda não separou de si mesmo. Gradativamente, a separação entre o não-eu e o eu se efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o bebê e com o meio ambiente. As modificações principais realizam-se quanto à separação da mãe como aspecto ambiental objetivamente percebido. Se ninguém ali está para ser mãe, a tarefa desenvolvimental do bebê torna-se infinitamente complicada." (Winnicott, 1975, p. 153)

A mãe tem importância crucial também no estabelecimento das relações objetais. A função da mãe que permite isso é a apresentação de objetos.  Ela antecipa o que ele necessita, identificando-se com o mesmo. O bebê precisa experimentar sua onipotência, vivenciar um período de ilusão, ou seja, o que ele vê ser como se o tivesse criado subjetivamente (alucina o peito e a mãe lhe introduz o mesmo). Isso faz com que o bebê viva a onipotência e passe a acreditar que criou isso. Se isso ocorre de maneira satisfatória, o bebê pode desenvolver a capacidade de usar o objeto, como se ele fosse criado subjetivamente por ele, na experiência onipotente de ilusão.

O seio é mais que uma alucinação. O bebê vai criando dúvidas. Será que eu criei ou já existia antes de mim? Cria os dentes e começa a criar objetos objetivamente percebidos, e não mais subjetivamente concebidos.  Os objetos transicionais (Winnicott, 1975) auxiliam esse processo, possibilitando um espaço de transição entre a ilusão da onipotência para a  realidade. É nesse espaço transicional que é possível o gesto criativo, a arte, a religião, e em nosso caso, a massagem. Esta entra com uma provisão ambiental dentro da rotina de cuidados da criança, que apresenta estímulos (objetos) para seu desenvolvimento físico e emocional, a partir do vínculo com um cuidador sensível às suas necessidades, reações perante o toque, reconhecimento dos sinais e gestos de seu amadurecimento.

É pelo seu movimento que entra em contato com o mundo, num processo de integração. Mas, por outro lado, casos há em que o bebê olha a mãe e não vê nada (o que é bastante perturbador) ou apenas o humor da mãe, o que é propiciador do desenvolvimento de um Falso-self, que tem início na submissão. Há uma invasão, algo diferente de sua necessidade. O gesto invasivo produz uma resposta reativa. O Falso Self tem início nessa submissão (Winnicott, 1952), mas que se estabelece quando essa a falha não é eventual.

A definição de Self permite uma melhor compreensão desse conceito:

O Self, que não é ego, é a pessoa que é eu, que é apenas eu, que possui uma totalidade baseada no funcionamento do processo de maturação. Ao mesmo tempo, o Self tem partes e, na realidade, é constituído dessas partes. Elas se aglutinam desde uma direção interior para o exterior no curso do funcionamento do processo maturacional, ajudado como deve ser (maximamente no começo) pelo meio ambiente humano que sustenta e maneja e, por uma maneira viva, facilita. O Self se descobre naturalmente localizado no corpo, mas pode, em certas circunstâncias, dissociar-se do último, ou este dele. O Self se reconhece essencialmente nos olhos e na expressão facial da mãe e no espelho que pode vir a representar o rosto da mãe (...) São o Self e a vida do Self que, sozinhos, fazem sentido da ação ou do viver desde o ponto de vista do indivíduo que cresceu até ali e está continuando a crescer, da dependência e da imaturidade para a independência e a capacidade de identificar-se com objetos amorosos, sem a perda da identidade individual (Winnicott,1970, p. 210)

Se por um lado o Self  constiui  o sentido de existência, do eu-mesmo, todos temos um pouco de Falso Self, que faz parte do contato social, da atitude social. Ele pode servir com uma função defensiva do verdadeiro Self. O Falso Self pode ser afetado pela realidade externa, mas o verdadeiro Self nunca pode se submeter. Assim com a análise, a massagem terapêutica se faz com o verdadeiro Self, visto que não pode servir à invasão do eu, mas, pelo contrário, como uma vivência com um outro que sustente a integração.

A Shantala é uma massagem que pode ajudar nesse processo, nessa acolhida do bebê a este mundo aqui de fora - este grande desconhecido. Mais do que um toque, o amor na sua expressão mais concreta. Deve fazer parte do holding materno, numa ambiência previamente planejada: local tranquilo, climatizado, onde possa ser oferecida sem interrupções.  A atitude da mãe é essencial. É ela mesma, sozinha ou sob orientação, e não um terceiro, quem propicia a oferta de estímulos - estímulo visual, o contato com o olhar, tátil (o toque, o óleo aquecido), cenestésico (os movimentos), sonoro (a própria voz ou música instrumental para bebês). Mas não para um ser passivo. A escuta, o olhar e o reconhecimento das reações e comunicações do bebê são fundamentais. A massagem deve ser uma troca, uma relação, não uma invasão. Deve fazer parte de uma maternagem, visando uma relação que começa numa díade de dependência e caminha para o amadurecimento e relação afetiva com um outro. O bebê que recebe a massagem e no seu processo natural de amadurecimento passa a imitar os gestos com suas mãozinhas ou mesmo se desinteressar momentaneamente das manobras para explorar o ambiente, ampliando seu universo.

Para aprender a técnica - a deliciosa leitura do livro-poema "Shantala" de F. Leboyer (1995). Para deslumbrar a arte - como dizia o próprio Leboyer - deixar que ele - o bebê, seu maior mestre, lhe ensine o caminho...

O Eu, que nasce do afeto, na expressão do existir, que é uma arte.

 

 

Referências

Leboyer, F. (1995). Shantala: Uma arte tradicional massagem para bebês. São Paulo: Ground.         [ Links ]

Leboyer, F. (2010). O filme Shantala: Uma arte tradicional massagem para bebês. São Paulo: Ground.         [ Links ]

Leboyer, F. (1979). Nascer sorrindo. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1988). Psicose e cuidados maternos. In Winnicott, D. W. Textos selecionados: Da pediatria à psicanálise (pp 375-387). Rio de Janeiro: F. Alves. (Original publicado em 1952).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Karina Cyrineu Vale
e-mail: karinacyrineu@gmail.com

Recebido em: 19/10/2013
Revisado em: 06/02/2014
Aceito em: 15/07/2014

 

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