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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

On-line version ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.6 no.1 Londrina June 2015

 

Relato de experiência/Prática profissional

 

 

Educação permanente e cogestão: experiência de um grupo gestor em saúde

Permanent education and co-management: experience of a health managing group

 

La educación continua y la cogestión: la experiencia de un grupo de gestión de la salud

 

Diogo Faria Corrêa da CostaIi; Gisela Cataldi FloresIii; Tainara Oliveira Andreetiiii

IFaculdade Integrada de Santa Maria

IIUniversidade Católica Portuguesa

 

 


Resumo

Este texto apresenta um relato de experiência vivenciado por um grupo de trabalhadores do Núcleo Regional de Ações em Saúde da 4ª. Coordenadoria Regional de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul no município de Santa Maria. O artigo apresenta uma experiência de reorganização do processo de trabalho no intuito de enfrentar a histórica fragmentação das ações no campo da gestão em saúde, além de disparar processo de aprendizagem para realizar apoio institucional aos trinta e dois municípios pertencentes à área de abrangência administrativa dessa coordenadoria. Para tanto, apostamos nas estratégias de cogestão e educação permanente em saúde enquanto ferramentas para desencadear processos de mudança e invenção de outros modos de conceber e realizar o trabalho em saúde. Com essa experiência, conseguimos desacomodar lugares instituídos, inventar novas formas de trabalhar em equipe e de maneira interdisciplinar, visando fortalecer esse grupo de trabalhadores e suas práticas.

Palavras-chave: educação permanente; saúde coletiva; sistema único de saúde.


Abstract

This paper presents the experience lived by a group of workers of the Regional Center for Action on Health of the 4th. Regional Health State Department of Health of Rio Grande do Sul in Santa Maria. The paper presents an experience of reorganization of the work process in order to tackle the historical fragmentation of activities in the field of health management, and trigger a learning process for institutional support to carry thirty-two municipalities in the area of administrative scope of this coordinating body . To do so, it relies upon the co-management strategies and continuing health education as tools to trigger processes of change and inventing other ways of designing and conducting health work. With this experience, we can dislodge established places, inventing new forms of teamwork and interdisciplinary manner in order to strengthen this group of workers and their practices.

Keywords: continuing education; public health; public health system.


Resumen

Este trabajo se presenta la experiencia vivida por un grupo de trabajadores del Centro Regional para la Acción en Salud de la cuarta. Departamento de Estado Regional de Salud de Salud de Río Grande do Sul, en Santa María. El artículo presenta una experiencia de reorganización del proceso de trabajo con el fin de hacer frente a la fragmentación histórica de las actividades en el campo de la gestión de la salud, y desencadenar un proceso de aprendizaje para el apoyo institucional para llevar a treinta y dos municipios de este órgano de coordinación. Para ello, se basa en las estrategias de co-manejo y la educación continua de la salud como herramientas para desencadenar cambio e inventar formas de llevar a cabo el trabajo de salud. Así, podemos desalojar lugares establecidos, inventando nuevas formas de trabajo en equipo con el fin de fortalecer este grupo de trabajadores y sus prácticas.

Palabras-clave: educación continua; salud pública; sistema de salud.


 

Introdução

O desafio de construir processos de gestão do trabalho que desconstruam a fragmentação das ações típicas dos serviços de saúde e que fortaleçam os modos de comunicação entre os trabalhadores e suas demandas produzem mudanças no cotidiano de trabalho, o qual potencializa práticas que buscam a integralidade do cuidado e da gestão em saúde.

Nesse sentido, este artigo se aproxima do tema da cogestão a partir de um relato de experiência vivenciado pelo grupo de trabalhadores do Núcleo Regional de Ações em Saúde (NURAS), que compõe um dos núcleos de trabalho da 4ª. Coordenadoria Regional de Saúde (4ª. CRS) no município de Santa Maria – RS.

Para contextualizar esse cenário, a 4ª. CRS é uma extensão regional da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SESRS), compondo uma das dezenove Regiões Administrativas de Saúde do Estado. A 4a. CRS é composta por duas regiões de saúde – região um chamada Verdes Campos e região dois, Entre Rios, – as quais abrangem trinta e dois municípios na região central do Estado.

Ainda contextualizando, uma coordenadoria regional de saúde (CRS) atua enquanto unidade descentralizada da SESRS no suporte técnico aos municípios nas diversas áreas e programas de saúde, promovendo capacitação e apoio institucional, além de sua atuação fundamental na implantação de Redes Regionais de Atenção em Saúde.

A experiência em questão trata da formação de um grupo gestor para o NURAS tendo como principal objetivo disparar novos processos de trabalho a partir da concepção de cogestão e apoiados na ferramenta da Educação Permanente em Saúde (EPS), entendida enquanto importante estratégia para fomentar processos de mudança nas dinâmicas institucionais.

Nesse sentido, cabe situar que o NURAS é responsável pela coordenação regional das políticas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) por ciclos de vida (saúde da criança, saúde do adolescente, saúde da mulher, saúde do homem e saúde do idoso), por políticas transversais (saúde mental, saúde bucal, política de humanização, saúde da população negra e indígena, alimentação e nutrição, saúde prisional, DST/Aids, saúde do trabalhador, práticas integrativas e complementares) e pela implantação das redes de atenção à saúde (Rede Cegonha – Primeira Infância Melhor, Rede de Atenção Psicossocial, etc.), visando o fortalecimento da atenção básica em saúde. Constitui-se, portanto, enquanto núcleo de trabalho responsável pela implementação de diversas políticas de saúde do SUS, sendo essencial seu papel no apoio e organização de serviços e redes de saúde dos municípios de abrangência administrativa da 4ª. CRS.

No entanto, o NURAS vinha sofrendo com a falta de articulação, organização e planejamento das ações em saúde e da figura de uma coordenação para o núcleo, repercutindo na assessoria aos municípios. Havia um grupo de trabalhadores desempenhando, muitas vezes, isoladamente, várias ações, porém, desarticuladas entre si. Havia a necessidade de se transversalizar as ações, construir agendas em comum, visto serem políticas de saúde que devem “dialogar” entre si, pois são interdependentes.

A fragmentação acabava reduzindo esse grupo de trabalhadores à sua tradicional definição: “um conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo que se reúnem em torno de uma tarefa, durante um tempo determinado” (Barros, 1995, p. 10). Isso se refletia no próprio modo como esses trabalhadores se viam e construíam seus processos de trabalho: isolados, tentando dar conta de inúmeras demandas. Em outras palavras, o trabalho era pensado e realizado individualmente, sem planejamento em conjunto, quando muito nos momentos em que determinada ação dependia ou interferia diretamente no processo de trabalho de outro (a) colega.

Ou seja, nas palavras de Ceccim (2005, p. 165), a “condição indispensável para uma pessoa ou organização decidir mudar ou incorporar novos elementos a sua prática e a seus conceitos é a detecção e contato com os desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho”. E esses desconfortos somente eram sentidos (e, então, pensados enquanto demandas/problemas a serem enfrentados) quando se constatava toda uma sobrecarga de trabalho.

Diante disso, a composição de um grupo gestor foi a estratégia adotada para iniciar a mudança nesse processo de trabalho instituído, tendo como objetivo modificar sua dinâmica, estruturando-o segundo a lógica da cogestão; e a EPS foi a ferramenta utilizada para desencadear um novo modo de pensar e fazer a gestão desse processo de trabalho em saúde. A seguir apresentaremos o percurso de construção desse grupo e o desenrolar dessa experiência coletiva de gestão e educação em saúde.

Método

Para Gros (2010, p. 28), um livro não se escreve apenas com as mãos, “só se escreve bem com os pés”. Ou seja, adotamos uma metodologia que nos auxiliasse a pensar a experiência que temos realizado como uma caminhada, onde trabalhador/pesquisador em saúde habitam e deixam-se habitar pelo campo/caminho do trabalho/pesquisa. Com isso, pretendemos focar essa caminhada, esse conhecimento vivo e produzido cotidianamente, trazendo para a conversa mais empiria do que propriamente análise de dados.

Trata-se de um relato de experiência de cogestão, vivenciada pelos trabalhadores de saúde do NURAS, a partir da criação de um grupo gestor para esse núcleo de trabalho da 4ª. CRS. Esse núcleo de trabalho é composto por profissionais da enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, residentes multiprofissionais, estagiários das graduações referidas e estudantes do programa PET-SAÚDE, totalizando dezessete trabalhadores.

A atual gestão da 4ª. CRS, ciente das dificuldades e demandas a serem enfrentadas, propôs um novo modelo de organização da coordenação do NURAS, centrado na figura de um grupo gestor, ao invés de um coordenador apenas. Para tanto, foi proposto o seguinte desenho: agrupar políticas estratégicas na lógica da cogestão – atenção básica, saúde do trabalhador, educação permanente em saúde e humanização – considerando as interrelações entre essas políticas. Esse desenho possibilitou a formação de um grupo interdisciplinar composto por quatro trabalhadores dos seguintes núcleos de saber: enfermagem, fonoaudiologia e psicologia, sendo denominado G4. A criação do mesmo ocorreu no mês de setembro de 2012 e esse relato discorre a partir de sua formação até abril de 2014.

Desafio posto formou-se o grupo gestor, que iniciou a discutir como seria esse grupo, que papel teria e como faria para articular e fortalecer a participação dos demais colegas de trabalho.

Tendo em mente a noção de coletivo como “plano de co-engendramento de indivíduos e de mundos, de modos de trabalhar e se formar no trabalho, de modos de subjetivação e de gestão do trabalhar” (Barros & Barros, p. 82), tínhamos, claramente, que a função desse grupo era (des) articular e (des) integrar, no sentido tanto de parceria e apoio aos colegas quanto de mexer naquilo que estava instituído e previsto enquanto processo de trabalho. Por isso, precisávamos de espaços de participação e troca de experiências entre os colegas, com a intenção de enfrentar a fragmentação do processo de trabalho do NURAS.

Sendo assim, vivenciamos as seguintes estratégias: reunião semanal de equipe (com todos os trabalhadores do NURAS) com duração de duas horas, com pautas pré-agendadas e tempos organizados para todos poderem falar e participar; reuniões quinzenais do grupo gestor para discutir e avaliar o novo processo de gestão do trabalho; reuniões com a gestão da 4ª. CRS a fim de afinar o processo de trabalho e discutir demandas, dificuldades e possibilidades do grupo gestor; uso de um mural para comunicação e visualização das atividades da semana; construção de agendas de trabalho em conjunto, partindo da necessidade de agregar e transversalizar as políticas de saúde.

Nas reuniões semanais foram utilizadas metodologias participativas por meio de discussão de textos sobre EPS, estudos de caso, análise de indicadores de saúde dos municípios, concepções de transversalidade, grupalidade, linha de cuidado, especificidades regionais, além de servir de espaço de compartilhamento de informações acerca dos encontros realizados nos municípios e eventos da SESRS, nos quais os coordenadores regionais de cada política participaram.

Nesses encontros semanais, ficava a cargo do (a) colega, que participou de determinado evento ou que naquela semana fosse responsável por apresentar suas atividades dentro da política de saúde que coordena, organizar e aquecer as discussões e momentos mais pontuais de troca de informações.

Além dessas estratégias, contamos com a participação de um pesquisador (mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que tinha como objetivo de sua pesquisa cartografar e acompanhar um processo de educação permanente em saúde (Brasileiro, 2014). A presença desse pesquisador acabou se configurando em figura de apoio à experiência do grupo gestor, através de sua participação nas reuniões de equipe, nas entrevistas com os (as) colegas do NURAS, nas devoluções e conversas informais com os membros do G4.

Nossa caminhada...

Como todo processo de mudança requer tempo e sofre resistências, tínhamos claro que precisávamos acolher as dificuldades e cuidar desse processo para obtermos êxito. Tínhamos em mente a necessidade premente de, inicialmente, criar um espaço de acolhimento e cuidado desse grupo de trabalhadores, proporcionando momentos para se falar sobre o NURAS, sobre o processo de trabalho e suas dificuldades.

A fim de compor esse grupo gestor – G4 – surgiram alguns questionamentos do tipo: o que faz um coordenador? Qual deve ser o seu perfil/papel? Parceria, cobrança, integração? Começamos a experimentar algumas possibilidades enquanto também nos experimentávamos como um grupo gestor.

Na pesquisa de mestrado de Brasileiro (2014), realizada no NURAS, o autor registrou algumas impressões sobre a constituição do G4:.

Quando o G4 começou a pensar o que fazer, o que tentar, no que apostar para conseguir gerar algum grau de mudança no NURAS, sabia-se que seria preciso mais do que remover paredes físicas ou rearranjar a disposição das mesas. Por mais que iniciativas como estas pudessem vir a ajudar, que tais ações pudessem gerar algum estranhamento, surpresa e novidade, se fazia necessária a proposição, paripassu a tais ações – ou transversais a elas – de dispositivos que abrissem caminhos e sustentassem a passagem do instituinte. (p. 97)

Tais dispositivos foram sendo experimentados (e inventados) conforme essa experiência foi acontecendo. Inicialmente, tivemos que ser firmes e próximos à figura de um chefe, instituindo o momento semanal da reunião de equipe, solicitando a participação de todos os colegas. Havia a necessidade de se colocar certo limite (ou mesmo contorno) que delimitasse um novo arranjo para esse grupo de trabalhadores, ao mesmo tempo em que fosse aberto o suficiente para negociações e invenções.

Enfrentamos, consequentemente, algumas resistências: compromissos marcados exatamente no dia da reunião, questionamentos acerca da real necessidade de reuniões semanais, ações isoladas e sem relação com a proposta de construir agendas com atividades afins e articuladas. No entanto, “a intervenção gera alguma coisa. Movimenta o grupo.” (Brasileiro, 2014, p. 100).

Essas experimentações eram discutidas nas reuniões do G4 com o intuito de elaborar estratégias para enfrentá-las, tendo em mente a necessidade de criar/fortalecer um coletivo, tensionando o instituído, buscando pontos em comum e planejando ações integradas com objetivos próximos. O que nos instigava era disparar um processo de mudança nas formas cristalizadas de trabalho no NURAS, tendo a integralidade, a transversalidade, a cogestão e a EPS enquanto princípios condutores de nossas ações.

Dentre esses conceitos, tínhamos em mente as ideias de cogestão, desenvolvidas por Campos (2000), que reconhece a importância da

(...) interpenetração (transversalidade) das instituições, assim como a necessidade de entender esses espaços não somente pelo seu aspecto negativo (...), mas também pelo seu aspecto positivo: espaços de produção de subjetividade passíveis de transformação (...) (Cunha e Campos, 2010, p. 32).

Além disso, outro aspecto relevante da cogestão e que muito vivenciamos durante essa experiência refere-se à capacidade de “jogarmos” com poderes, saberes e afetos que circulam por um coletivo de trabalhadores, visto que a cogestão

(...) busca enfrentar um tipo de fragmentação temática que contribui fortemente para a submissão e o controle das pessoas, qual seja, a de que os saberes devem ser discutidos pelos sabidos, experts (...). Assim como os afetos, os sentimentos e outras menoridades devem ser deixados fora da organização (...) (Cunha e Campos, 2010, p. 38).

Na sequência disso, durante esse processo, vivenciamos vários momentos de gestão de conflitos, ou seja, consequência do movimento que iniciamos a tensionar e que “circulam pelos corredores, pelas áreas de bastidores, como um murmúrio institucional, os conflitos encobertos” (Cecílio, 2005, p. 509) e que geravam ruídos necessários de serem ouvidos e acolhidos.

Muitos desses conflitos advinham de diferentes (e necessárias) concepções acerca do que seja saúde, gestão das linhas de cuidado, cogestão, apoio institucional aos municípios, EPS e o próprio papel do G4 e do NURAS enquanto assessoria para implementação das políticas e redes de atenção à saúde. Nesse aspecto, Brasileiro (2014) observou em sua pesquisa:

Uma coisa ficou evidente: havia uma clara demanda por espaços e momentos em que se pudesse falar sobre ‘o que ia mal’ no processo de trabalho individual e institucional, assim como uma carência pela construção de laços entre os colegas de trabalho. (p. 113).

Nisso as reuniões semanais tornaram-se espaços potentes para a construção de um novo relacionar-se para esse grupo e a EPS emergiu como elemento fundamental para ressignificar e reconstruir as relações entre os colegas, de acordo com o conceito de EPS para Ceccim (2005):

Processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho – ou da formação – em saúde em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas que operam realidades e que possibilita construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano. (p. 161)

Gradualmente todo esse processo/movimento foi sendo absorvido pelo NURAS e, com isso, se produzindo novas subjetividades, descongelando e afetando esse grupo de trabalhadores num ir e vir de negociações e (re)construções de estratégias, conforme atesta Brasileiro (2014):

As estratégias ‘reuniões do G4 – quadro branco [mural de avisos] – agenda compartilhada – reuniões semanais’ foram, assim, conformando um dispositivo de operacionalização de mudanças no processo de trabalho do NURAS, realizado pelo próprio NURAS. Criam-se estratégias secundárias, pontuais, recriam-se as estratégias em função de seus usos (e desusos)... Nada disso, contudo, é simples. Nada disso se dá, simplesmente, e nem de uma vez por todas. Tensões, discussões, incômodos, afetações. O processo é embrenhado de afecções. (p. 103)

A estratégia das reuniões semanais, por exemplo, foi sendo integrada na dinâmica de trabalho do NURAS, devido à abertura e possibilidade de se repensar essa mesma estratégia (toda vez que fosse necessária): de um espaço formal – instituído –, muitas vezes sob o signo da burocracia e às voltas com questões meramente administrativas, para um espaço aberto à constante (re) invenção, ao compartilhamento de ideias, dificuldades, angústias e apoio ao processo de trabalho de cada trabalhador (a).

Aos poucos as estratégias adotadas pelo grupo gestor foram se instituindo e produzindo efeitos. Passados alguns meses, percebemos o grupo mais unido e fortalecido. Além disso, esse espaço de encontro foi dando, cada vez mais, abertura para a circulação dos afetos, transformando reuniões em encontros caracterizados pelo cuidado com o grupo, no sentido de apoio aos colegas, considerando suas fragilidades e possibilidades de trabalho. Como exemplo, no decorrer dos encontros, espontaneamente, foram sendo agregados lanches como forma de vivenciar o afeto no cotidiano.

As reuniões potencializaram a troca de experiências e integração das ações, por oportunizarem maior comunicação em saúde e o enfrentamento por esse coletivo de suas demandas de trabalho. Isso repercutiu no fortalecimento tanto do grupo gestor quanto do próprio grupo de trabalhadores, visto se verem como um coletivo que poderia enfrentar as demandas que surgissem inesperadamente e que exigissem uma reorganização do processo de trabalho.

É pensar a construção de processos de singularização, como nos ensinam Guattari e Rolnik (2010):

O que vai caracterizar um processo de singularização (que, durante certa época, eu chamei de “experiência de um grupo sujeito”) é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global, em nível econômico, em nível do saber, em nível técnico, (...). A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante. (p. 55)

No entanto, a construção desse processo de autogoverno e vivência/experimentação de autonomia no processo de trabalho, assim como discutido em trabalho anterior (Costa & Paulon, 2012), não advém:

(...) quase que pronta e imediata, de saber se autodeterminar, de, ativamente, traçar formatos e projetos de vida. Porém, essa compreensão mais rasa da autonomia desconsidera, muitas vezes, que esse projeto de “autogoverno” está colado em processos de subjetivação muito próximos das amarras de que justamente pretende se libertar: da solidão individualista. (p. 579)

Portanto, para enfrentar esse desafio e fortalecer o processo de cogestão que vínhamos construindo, a vivência da autonomia do grupo gestor se aproximava do que Onocko Campos e Campos (2008) apontam como “a capacidade do sujeito de lidar com sua rede de dependências. Um processo de co-constituição de maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos” (p. 674). Ou seja, para dar conta da fragmentação das ações não bastava apenas termos autonomia para decidir ou realizar qualquer tipo de ação, mas, essencialmente, entendermos a interdependência entre nossas ações para garantirmos maior ou menor grau de autonomia entre o grupo de trabalhadores e o impacto nas atividades de assessoria que nos propúnhamos empreitar.

Sendo assim e já finalizando, o que aqui apresentamos foi um recorte da experiência que ainda estamos construindo e que requer constante aquecimento e novas pactuações. Porém, é possível apresentar bons resultados dessa experiência de cogestão, tendo o espaço participativo da reunião semanal de equipe enquanto estratégia principal para um maior grau de comunicação, integração das ações em saúde e, fundamentalmente, aproximação entre os trabalhadores, o que possibilita corresponsabilização, autonomia e produção de saúde e subjetividade.

Considerações finais

Consideramos relevante a construção, em nossas equipes e coletivos de trabalho, de espaços participativos e inventivos, que sejam potentes para provocar processos de mudança e abertura em nossas práticas de gestão e assistência em saúde. E, assim, entender que há muita potência e força a ser resgatada e inventada. É pensar que a potência de um coletivo consiste, justamente, na possibilidade de entrar em contato com “(...) a gênese constante das formas empíricas, ou seja, o processo de produção dos objetos do mundo (...). Ao lado dos contornos estáveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano das forças que os produzem” (Escóssia & Tedesco, 2009, p. 92).

Nesse sentido, lembramos novamente de Ceccim (2005) quando nos convoca a: (…) abandonar (desaprender) o sujeito que somos, por isso mais que sermos sujeitos (assujeitados pelos modelos hegemônicos e/ou pelos papéis instituídos) precisamos ser produção de subjetividade: todo tempo abrindo fronteiras, desterritorializando grades (gradis) de comportamento ou de gestão do processo de trabalho. (p. 167)

A experiência que vivenciamos oportunizou uma reorganização do processo de trabalho em um núcleo de ações em saúde de uma coordenadoria regional de saúde, em que construímos processos de cogestão através de momentos de educação permanente em saúde.

Esses encontros potencializaram a vivência da inventividade e da autonomia em nosso cotidiano de trabalho, além de fortalecer esse grupo de trabalhadores. As estratégias adotadas (e em negociação e consenso permanentes) fizeram fissura e abertura para momentos inusitados de aprendizagem, demonstrando que palavras como trabalho em equipe, cogestão e educação permanente em saúde são possíveis de se concretizarem e vibrarem no corpo e nos desejos desses trabalhadores. Isso porque a experiência relatada produziu impacto e efeito subjetivo nesse grupo, o que consideramos elementos essenciais para nos reencantarmos com a luta em prol de um SUS que todos desejamos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Diogo Faria Corrêa da Costa
e-mail: diogo.costa@fisma.com.br
Gisela Cataldi Flores
e-mail: gisela.cataldiflores@gmail.com
Tainara Oliveira Andreeti
e-mail: tainara-andreeti@saude.rs.gov.br

Recebido em: 05/11/2014
Revisado em: 04/02/2015
Aceito em: 17/03/2015

 

 

iPsicólogo e especialista em Saúde Coletiva (2006) pelo Centro Universitário Franciscano - UNIFRA, mestre em Psicologia Social e Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Docente do Curso de Psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria - FISMA

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