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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.6 no.2 Londrina dez. 2015

 

Resenha

 

 

Letícia Cardoso Barretoi

Universidade Federal de Santa Catarina

 

Piscitelli, A. (2013). Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: CLAM/EdUerj.

 

Adriana Gracia Piscitelli é argentina e fez graduação em Ciências Antropológicas - Universidad de Buenos Aires (1979), especialização em Gender and Development - University of Sussex (1988), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (1990), doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e estágios pós-doutorais na Universidad Autónoma de Barcelona (2004, 2011, 2013); na Universidad Autónoma de Madrid (2007), na Universitat Rovira e Virgili (2009) e na Universidad de Barcelona em 2014. A autora é importante referência nos estudos de gênero no Brasil, tendo, dentre suas diversas contribuições, participado da fundação e coordenação do Núcleo de Estudos de Gênero-PAGU, da Universidade Estadual de Campinas, integrado o Comitê Consultor do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos/CLAM. É pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas, no Núcleo de Estudos de Gênero-PAGU, professora plena no Departamento de Antropologia Social e no Doutorado em Ciências Sociais da mesma universidade, havendo coordenado a área de Gênero no período 2008/2012. Tem atuado principalmente nos seguintes temas: gênero, memória, parentesco, sexualidade, turismo sexual, prostituição, migrações, tráfico internacional de pessoas, teoria feminista e teoria antropológica. Além do livro aqui resenhado, é autora do “Joias de Família, gênero e parentesco em grupos empresariais brasileiros vinculados a famílias”, Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

O livro “Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo”, publicado em 2013 pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é fruto de um trabalho elaborado pela autora para processo de progressão na carreira docente. Nele, Piscitelli busca produzir uma síntese a partir de pesquisas que vem produzindo desde 2004 sobre os mercados transnacionais do sexo. Almeja compreender os diferentes aspectos da inserção de mulheres brasileiras nos mercados transnacionais, heterossexuais do sexo, a partir de análise de dados de diferentes pesquisas realizadas acompanhando os trânsitos destas mulheres no Brasil e em países do sul da Europa. Apesar de alguns trechos de capítulos haverem sido previamente publicados na forma de artigos, as reflexões anteriores são problematizadas e reconstruídas no esforço de síntese, produzindo insights interessante mesmo para aquelas pessoas que conhecem os artigos utilizados.

A obra é dividida em seis partes, além do prefácio, da apresentação e das considerações finais. O capítulo “Gênero nos mercados do sexo” tem como enfoque os debates acadêmicos em torno da prostituição, demarcando as principais posturas e suas distinções, especialmente dentre as feministas no período das chamadas “Batalhas do sexo”. Se posiciona como adepta do termo mercado do sexo (ao invés de indústria) considerando que esta expressão permite vislumbrar as trocas materiais e simbólicas presentes neste contexto que inclui a indústria do sexo, mas que inclui manifestações tão diversas como de mercados, comércio, dádiva e intercâmbios. O capítulo traz um bom panorama para iniciantes nos estudos nestes temas.
Em “Etnografia” a autora oferece pistas essenciais para pesquisadoras que se interessem pelo tema, ao abarcar aspectos diversos e fundamentais da pesquisa etnográfica. Para apreender as implicações culturais, políticas e econômicas dos trânsitos e a forma como as mulheres corporificam suas interações com parceiros (afetivos e/ou sexuais) estrangeiros, Piscitelli realizou entrevistas, observações, coletas documentais. Para além dos métodos escolhidos, chama a atenção sua proposta de acompanhar as mulheres (e alguns de seus parceiros e outras pessoas envolvidas nos trânsitos) nos seus cotidianos tanto no Brasil quanto em outros países, circulando por espaços de trabalho, mas também de sociabilidade. Este é um aspecto muitas vezes pouco enfatizado em pesquisas na área de psicologia, que trazem inserções em campo mais breves, pautadas essencialmente por entrevistas ou questionários. Dentro dos debates sobre prostituição, o contato prolongado e próximo das protagonistas possibilita, como já ressaltado por outras autoras e outros autores, noções menos enviesadas da mesma, além de mais alinhadas aos objetivos e crenças das pessoas que se inserem na atividade. Piscitelli, inclusive, realça que ela mesma possuía uma visão díspar dos fenômenos estudados antes de realizar tais inserções.

No item “Tráfico internacional de pessoas”, analisa instrumentos internacionais e nacionais de controle e penalização do fenômeno. Evidencia que se tornou central à agenda de debates sobre a prostituição e os direitos humanos, embora sejam coisas diversas, que limita os trânsitos à exploração e à criminalidade, e não à migração, causando danos colaterais que atingem as mulheres prostitutas migrantes. Questiona ainda a vinculação entre estes dois fenômenos e o turismo sexual. A vinculação da prostituição ao tráfico de pessoas tem produzido noções de que a primeira seria intrinsecamente ruim e prejudicial à pessoa que a exerce e à sociedade, sendo necessário reprimir, eliminar ou controlar a atividade. O livro demonstra como, além de haver a possibilidade de agência e de atingir objetivos migratórios, perceber a prostituição como tráfico pode prejudicar mais do que auxiliar as pessoas tidas como “vítimas”.

No capítulo “Deslocamentos” destaca a diversidade de realidades e objetivos das mulheres que circulam nestes mercados transnacionais do sexo, mas que há um padrão migratório semelhante. Muitas delas trabalhavam em espaços turísticos e estabeleciam relacionamentos sucessivos com estrangeiros, incluindo trocas materiais e simbólicas, almejando melhorar de vida ou viajar. Se para a legislação supranacional qualquer “ajuda” neste processo migratório pode ser interpretada como tráfico de pessoas, Piscitelli enfatiza que há quatro tipos de viagens, incluindo o financiamento da viagem por parte de clubs, por namorados, por elas mesmas ou com ajuda de pessoas próximas e que apenas a primeira envolve necessariamente a produção de dívidas. Ela enfatiza ainda que em qualquer um dos casos, mesmo quando havia dívida ou necessidade de pagar algum dinheiro no processo, as mulheres tendiam a perceber a exploração como econômica e nunca como sexual (como é frequentemente dito nos supostos casos de tráfico).

Em “Singularidade” e em “Diversidade”, se debruça sobre as formas como as noções de “brasilidade” são construídas em diferentes momentos e espaços, marcando a forma como as brasileiras se inserem nos mercados do sexo e do casamento no exterior. Aqui, é interessante a forma como articula casamento e prostituição não como partes opostas de um mesmo espectro, mas como experiências que se aproximam e afastam em dados momentos dos trânsitos dessas mulheres. As experiências não são também restritas a opressão ou agência, mas interpretadas à luz das formas como cada mulher maneja as percepções sobre si no processo de trânsito entre os países.

O fato de a autora ser referência na área de estudos, aliado à densidade teórica e analítica da obra, a tornam leitura obrigatória para pessoas que se interessam por temas como prostituição, tráfico de mulheres, mercado do sexo e suas interfaces com questões de gênero, sexualidade, raça, migração, dentre outras. O livro oferece excelente panorama sobre os debates presentes no campo e o mesmo é feito em diálogo constante com os diversos e ricos materiais colhidos através de etnografia multissituada de longa duração. Sua importância se dá também por reconhecer a um só tempo possibilidades de opressão e agência existentes nas múltiplas possibilidades de inserção e de trânsito pelo mercado do sexo. Assim, se distancia de posturas acadêmicas e práticas que se pautam por visões dicotômicas e polarizadas sobre temas como a prostituição, restringindo a experiência das pessoas que a vivenciam exclusivamente a violência ou a autodeterminação. Também se mostra leitura essencial para psicólogos e psicólogas que se interessam pelos temas tratados e suas interfaces, especialmente ao ressaltar a necessidade de inserções e contatos com o campo que permitam trocas efetivas de saberes e práticas, produzindo novas formas de se pensar o mercado do sexo e suas interfaces com categorias como gênero e sexualidade.

 

Endereço para correspondência
e-mail: leticiacardosobarreto@gmail.com

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