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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.10 no.2 Londrina ago. 2019

 

Artigos

 

O estatuto de regra fundamental da associação livre: sobre as bases teóricas da técnica da psicanálise

 

On the free association status as fundamental rule: theoretical pillars of this technique

 

De la condición de regla fundamental de la asociación libre: pilares teóricos de la técnica

 

 

Maria Rosa Ferrucci MonçãoI i; Helio HondaI ii

I Universidade Estadual de Maringá

 

 


Resumo

Em 1912, Freud afirmou que na psicanálise pesquisa e tratamento coincidem. Em 1923, definiu-a de tal modo que evidenciou que pesquisa, tratamento e teoria, nesta ciência, estariam integrados, sendo que o deslocamento de um desses aspectos possivelmente a descaracterizaria. Todavia, é possível notar a existência de leituras psicanalíticas extremas, que enfatizam apenas um deles, dando destaque ora para a teoria, ora para a técnica, como mostram alguns autores. Com vistas a contribuir para as discussões sobre formação e prática psicanalíticas e com o resgate da visão integradora de Freud, busca-se evidenciar as bases teóricas que fundamentam a técnica da associação livre, regra fundamental da psicanálise, a fim de esclarecer as justificativas que lhe conferem tal estatuto. Para tanto, são explicitadas duas importantes teses e descrições metapsicológicas de Freud presentes em A Interpretação dos Sonhos (1900), dentre as quais destaca-se a noção de representações-meta.

Palavras-chave: associação livre; psicanálise; metapsicologia; Freud.


Abstract

In 1912, Freud said that, in psychoanalisis, research and treatment are integrated. In 1923, Freud defined psychoanalysis in such a manner that the integration of research, treatment and theory within this science became evident, and the displacement of any of these aspects could disqualify psychoanalysis. However, there are some extreme psychoanalytical readings that emphasize only one of those aspects, highlighting either the theory or the technique, as shown by some authors. In order to contribute to the discussions about psychoanalytic formation and practice and to the retrieval of Freud’s integrative vision, the course was set to evince the theoretical basis underlying the technique of free association, a fundamental rule of psychoanalysis, in order to clarify the reasons that give it such status. Therefore, two important Freudian theses and metapsychological descriptions present in The Interpretation of Dreams (1900) are explained, from among which stands out the notion of meta- representations.

Keywords: free association; psychoanalysis; metapsychology; Freud.


Resumen

En 1912, Freud afirmó que en el psicoanálisis investigación y tratamiento coinciden. En 1923, la definió de tal manera que investigación, tratamiento y teoría estarían integrados, siendo que el desplazamiento de uno de esos aspectos lo descaracterizaría. Sin embargo, existen lecturas psicoanalíticas extremas que hacen hincapié en sólo uno de ellos, destacando la teoría o la técnica, como muestran algunos autores. Con el propósito de colaborar con las discusiones acerca de la formación y práctica psicoanalíticas y el rescate de la visión integradora de Freud, se pretende aclarar la base teórica subyacente a la técnica de la asociación libre, una regla fundamental del psicoanálisis, con el fin de aclarar las razones que le dan esa condición. A tal fin, se explican dos importantes tesis y descripciones metapsicológicas de Freud presentes en La interpretación de los sueños (1900), entre las cuales se destaca la noción de meta- representaciones.

Palabras clave: asociación libre; psicoanálisis; metapsicología; Freud.


 

Introdução

A eficácia de uma forma de tratamento psicoterapêutico de orientação psicanalítica seria justificada não apenas em termos pragmáticos pelo sucesso em seus resultados, mas, sobretudo, em suas formulações e reformulações teóricas e técnicas com vistas a uma adequação mais consistente aos fatos clínicos. A própria definição dada por Freud (1923/2011c) deixa claro: a psicanálise consiste em um meio de investigar processos psíquicos dificilmente acessíveis de outra forma; um método de tratamento, ou seja, um método terapêutico; e uma disciplina científica nova composta por conhecimentos psicológicos teóricos alcançados por esta forma mesma de investigação. Na esteira de Freud, Nogueira (2004) considera que estes três aspectos - tratamento, pesquisa e teoria - encontram-se sempre unidos. Concordando com ele, Tavares e Hashimoto (2013) relembram que a psicanálise é, sim, fundada em sua prática clínica, em seu fazer; Concordando com ele, Tavares e Hashimoto (2013) relembram que a psicanálise é, sim, fundada em sua prática clínica, em seu fazer; todavia, também surge da exaustiva elaboração teórica freudiana denominada metapsicologia.

Cabe esclarecer aqui no que consiste o termo metapsicologia utilizado por Freud. Trata-se do nome dado por ele ao arcabouço teórico que desenvolveu para descrever os fenômenos mentais a partir de três dimensões complementares entre si: tópica, dinâmica e econômica. À dimensão tópica correspondem o lugar psíquico em que as experiências psíquicas estão ocorrendo e sendo registradas e os tipos de representação que estão em pauta. A dimensão dinâmica nos diz sobre o tipo de conflito que os registros e as representações correspondentes estabelecem entre si. Por fim, à dimensão econômica corresponde a intensidade com que cada representação é investida (Birman, 2003).

Hermann (1989) elenca três esferas, a saber, processo, técnica e teoria e afirma que as três atuam reciprocamente. Para ele, processo é a encarnação do método (caminho para um fim) em uma situação clínica, está ligado ao estilo de cada analista e pode variar; a técnica - a associação livre e a atenção flutuante – é a condução do processo em conformidade com o método, engloba aspectos dos mais abstratos aos mais concretos, como a interpretação que leva em conta a transferência, a interpretação centrada no ponto de angústia, o uso do divã, o tempo de duração da sessão, etc., os quais também são passíveis de mudança. Por fim, a teoria são generalizações organizadas oriundas das interpretações do analista e, também, norteadoras das próximas interpretações. Assim, técnica, teoria e processo são três esferas que se relacionariam mutuamente: “a teoria organiza a técnica, que orienta o processo, que origina a teoria” (p. 18).

Todavia, pode haver ou, como acredita Kupermann (2008), já existiria a supremacia do discurso teórico em relação ao discurso clínico na psicanálise contemporânea, não apenas na universidade, mas também nas associações psicanalíticas. A ênfase em um ou outro dos aspectos que constituem a psicanálise acabaria por abrir um abismo em que, de um lado, encontrar-se-ia um discurso apenas teórico, reivindicando “a possibilidade de supremacia do teorismo” e, de outro, “um enfraquecimento da clínica na psicanálise” (p. 68), abrindo espaço para vertentes terapêuticas que focam apenas na eficiência em produzir resultados.

Coelho Junior (2007), por outro lado, observa que a psicanálise está sendo avaliada muito mais pela obediência ao primado da técnica do que por uma atitude profissional ética. Devido ao atual modo de formação profissional, no qual parece haver “uma exigência para que a formação passe a ser uma extensão de práticas de consumo” (p. 490) e, por isso, “formar-se psicólogo parece cada vez mais caracterizar-se (...) como uma rota pensada em termos de uma eficácia técnica” (p. 489), muitos aspectos teóricos são deixados de lado. Tal fato, tendo ocorrido no próprio processo de formação, pode se perpetuar na prática do profissional psicanalista. Para ele, a ideia de teoria costuma ser concebida como oposta à noção de técnica e esta, por sua vez, geralmente é entendida como apenas um meio de aplicação de um saber. Com esta oposição entre técnica e teoria, a tendência é que o emprego deste saber passe a ser desvinculado dos processos reflexivos que sustentam e orientam seu instrumento de aplicação, ou seja, sua técnica.

Dada a dificuldade de diálogo entre leituras extremas como as apontadas, pode ver-se comprometida a visão integradora com que desde o início Freud definia a psicanálise. O desenvolvimento do presente trabalho se deu a partir da suspeita de que a desconsideração de certas hipóteses teóricas presentes nos alicerces da prática psicanalítica pode levar a incompreensões acerca de sua legitimidade, correndo-se o risco de deixar de lado o que a justificaria.

Todo profissional, de qualquer área de atuação, possui o compromisso ético de se pautar em conhecimentos construídos e legitimados ao longo da história para exercer sua atividade. Contudo, a produção de conhecimentos é, ou deveria ser, contínua - e não estagnada – e está sempre atrelada às transformações históricas, sociais, ambientais e também pessoais. Assim, uma prática profissional implica e é implicada constantemente por todo e qualquer processo de transformação, tornando-se, com isso, um compromisso social, muito mais do que uma ação individual. Nesse sentido, e voltando a discussão para o âmbito psicanalítico, torna-se imperativo que se discuta e se reflita sobre os tipos de resultados que a psicanálise pode tentar oferecer e por quais meios serão alcançados. Trata-se de manter vivo um processo reflexivo que busca compreender e verificar constantemente a legitimidade desta prática, o motivo pelo qual ela é importante e qual o alcance de sua capacidade em contribuir com seus possíveis resultados. Em suma, o enlace entre técnica e teoria se reflete nos constantes questionamentos: por que preciso praticar essa técnica para alcançar resultados? Os resultados alcançados são importantes? Para quem e por quais motivos tais resultados são relevantes? Atualizar constantemente as respostas para essas questões é o mínimo do compromisso ético-político profissional e valorizar técnica e teoria sem que preze mais por uma do que por outra é o mínimo para manter esse compromisso.

Quando se fala em técnica psicanalítica, logo se pensa em associação livre, a tarefa que o paciente precisa cumprir, em situação de análise, de comunicar ao psicanalista tudo o que lhe vier à mente sem qualquer restrição. Esta técnica é definida como a regra fundamental da psicanálise e, justamente por seu estatuto de fundamental, não se poderia falar de psicanálise, ou do método terapêutico da psicanálise, sem considerar a associação livre.

Para uma aplicação ética e eficaz da técnica da associação livre, faz-se necessário, porém, compreender a razão pela qual ela possui este estatuto de fundamental. Pretende-se mostrar neste trabalho que a justificação teórica da regra fundamental da psicanálise, enquanto um recurso terapêutico plausível, reside em alguns pressupostos claros sobre o funcionamento do psiquismo, conforme descrito por Freud desde os primórdios da psicanálise. Para tanto, a seção inicial discute o contexto em que emergem as hipóteses de Freud. Embora claramente estabelecidas por ele, as proposições consideradas pilares teóricos da técnica da psicanálise, aquelas que justificariam o estatuto de regra fundamental à livre associação, encontrar-se-iam dispersas em uma discussão aparentemente introdutória do capítulo sete de A Interpretação dos Sonhos. Para tentar desfazer tal opacidade, as seções finais visam explicitar estas teses para conhecer o que há de essencial na técnica da associação livre, ou seja, demonstrar o estatuto de regra fundamental do recurso terapêutico da psicanálise. Com isso, espera-se contribuir para superação de leituras unilaterais, como apontadas acima.

Discussão

1. Da sugestão hipnótica à associação livre: algumas considerações sobre o percurso inicial da clínica freudiana

A sugestão hipnótica consistia na técnica utilizada para tratamento dos sintomas neuróticos na época em que Freud se aproximou deste assunto. Foi seu principal instrumento de trabalho no início de sua carreira prática com doentes histéricos e sua utilização resultou em artigos que expressavam seu posicionamento a favor desta técnica, bem como argumentos que respondiam possíveis objeções a ela. Dentre estes artigos, podemos citar Hipnose e Resenha de August Forel, Sobre o hipnotismo, e outros constantes do primeiro volume das obras completas de Freud.

As sugestões feitas ao paciente enquanto este se encontrava hipnotizado era, segundo Freud (1891/2011a), o que dava à hipnose uma eficácia terapêutica. Esta consistia em um efeito imediato ou ocorria após um tempo estipulado pelo médico. As sugestões eram feitas pelo médico e caracterizadas por falas - que teriam por objetivo modificar os sintomas dos quais o paciente se queixava, como paralisias e contraturas – às vezes associadas a intervenções do médico sobre a pessoa, como pressionar com as mãos a região incômoda do corpo do paciente.

Todavia, sob influência de Breuer, Freud (1925/2011b) passara a, além de fazer sugestões enquanto o paciente estava hipnotizado, fazer-lhe perguntas sobre o surgimento de seus sintomas. Breuer havia chegado a esse método, denominado posteriormente por ele mesmo de método catártico, durante o tratamento de Anna O. Ele teria notado que poderia encontrar a origem de cada um de seus sintomas e que estes consistiam em traços de sentimentos que ela precisara sufocar. Os sintomas foram desaparecendo conforme os sentimentos inicialmente sufocados puderam ser comunicados.

Assim, cada sintoma histérico individual desaparecia após ser trazido à consciência o fato que o havia feito surgir e após esse acontecimento ser descrito em detalhes por palavras, de modo a expressar o afeto. Nisto consistia, de acordo com Laplanche e Pontalis (1967/2001), o método catártico: uma técnica que teria como efeito terapêutico a catarse, ou seja, uma descarga apropriada dos afetos a partir da evocação e revivência dos acontecimentos traumáticos a que os afetos estariam ligados.

Com o objetivo de verificar se esta técnica valeria também para outros casos, Freud a teria utilizado em seus pacientes. Segundo Laplanche e Pontalis (1967/2001), ele passou a focar apenas no seu diálogo com o paciente hipnotizado, tendo como objetivo fazer com que a pessoa trouxesse à consciência lembranças de experiências relacionadas aos seus sintomas e que havia esquecido. Esperava-se que o paciente revivesse as experiências traumatizantes e descarregasse os afetos reprimidos. Para Kupermann (2008, p. 71), “é isso que faz com que se considere este o momento do nascimento do método psicanalítico propriamente dito, ainda que de forma rudimentar: coincidência entre investigação e terapêutica”. A investigação pela origem do sintoma do paciente coincidia com o fato de, ao reviver o momento de sua formação, o sintoma desaparecia, mesmo que apenas temporariamente.

Notou, contudo, que este recurso técnico, o método catártico, estava comprometido por algumas limitações. Deparou-se com dificuldades em hipnotizar algumas pessoas que manifestavam sintomas histéricos e notou também que alguns pacientes não permitiam nenhuma tentativa de hipnose. Miss Lucy R. e Elisabeth von R., por exemplo, não entravam em estado hipnótico nas tentativas de Freud. “Veja você, não estou dormindo, não posso ser hipnotizada” (1895/2012a, p. 160), teria dito a última após Freud tentar colocá-la em estado de sonambulismo.

A razão pela qual uma pessoa podia ser ou não hipnotizada fugia ao seu alcance. Porém, para continuar seu trabalho clínico, Freud precisava de algum método para obter as lembranças patogênicas de modo independente da hipnose. Como proceder já que o método catártico parecia inapropriado dada a dificuldade de Freud em colocar as pacientes em estado hipnótico?

Recordou-se, então, da visita que havia feito a Bernheim, em 1889, na qual verificara que ele, após acordar o paciente do estado de hipnose, fazia-lhe perguntas sobre o que teria ocorrido durante o sono hipnótico, ao mesmo tempo em que exercia uma pressão com as mãos sobre a testa da pessoa. O paciente, a princípio, não se recordava de nada; contudo, com a insistência do terapeuta, algumas lembranças começavam a lhe aparecer. Para Bernheim, como indica Jones (1953/1989), tudo o que era experimentado durante o sono hipnótico era somente aparentemente esquecido ao acordar e que, sob insistência do médico, estas experiências poderiam ser trazidas à lembrança a qualquer momento.

Para obter as lembranças, Freud (1895/2012a) inspirou-se no experimento de Bernheim e teria passado a fazer o mesmo com suas pacientes. Algumas pessoas respondiam não saberem nada sobre a origem de seus sintomas e outras relatavam algumas experiências cujas lembranças eram obscuras e limitadas. Quando Freud insistia afirmando que a pessoa sabia, sim, a origem de seu sintoma e que a lembrança lhe viria à mente, empregando-lhe uma força com as mãos sobre a testa, percebeu que a lembrança aparecia e, aos poucos, com o trabalho associativo, ficava mais clara. Assim, verificou-se que era possível trazer as lembranças à consciência mesmo com o paciente em vigília, concentrado, sem recorrer à hipnose (Freud, 1909/2003).

Freud (1895/2012a) passou a pedir ao paciente para que comunicasse a ele o que lhe viesse à mente por meio de imagens ou pensamentos enquanto lhe pressionava a testa, sem permitir que qualquer juízo sobre este conteúdo o impedisse de fazê-lo. Conforme as comunicações fossem feitas ao longo do tratamento, a lembrança esquecida emergiria. Ele acreditava que a vantagem deste procedimento consistia no fato de que a atenção do paciente era desviada de suas reflexões conscientes, ou seja, desviada de qualquer coisa sobre a qual ele pudesse impor sua vontade, de qualquer pensamento intencional. Assim, “(...) a procura insistente do elemento patogênico desaparece em proveito de uma expressão espontânea do paciente” (Laplanche & Pontalis, 1967/2001, p. 38).

Já ao longo da década de 1890, o mesmo método aplicado no tratamento das neuroses era adotado por Freud na busca pelos pensamentos que deram origem aos sonhos. Para encontrá-los, Freud (1900/2012b) solicitava ao paciente que, a partir de um elemento de seu sonho, comunicasse as ideias, imagens ou pensamentos que surgissem de modo involuntário. Quando as ideias que emergissem a partir deste elemento parecessem esgotadas, recomeçava-se o trabalho a partir de um segundo elemento e assim sucessivamente. O que se esperava era encontrar, no fim, justamente o pensamento que havia dado origem ao sonho.

Uma conclusão decisiva a que Freud (1909/2003) chegou por meio deste procedimento foi a de que as lembranças tidas como esquecidas pelo paciente não estavam perdidas, mas encontravam-se sob poder do doente. Entretanto, havia uma força que as obrigava a permanecer inconscientes, a qual era sentida sempre que se tentava trazer à consciência as lembranças excluídas da consciência, mantendo a pessoa doente. Assim, Freud chegou, com o abandono da hipnose, à teoria da repressão, ao identificar a força da resistência.

A insistência que fazia emanar as lembranças consistia em um método por meio do qual Freud (1895/2012a) precisava superar essa resistência que impedia que as representações patogênicas fossem lembradas pelo paciente. Esta mesma força psíquica teria desempenhado um papel na origem do sintoma histérico e, já na época, impedia a representação de se tornar consciente.

Ao ganho teórico assim obtido por Freud correspondem mudanças na técnica. O trabalho psicanalítico, de acordo com Freud (1909/2003), passa a ter como objetivo conduzir o sintoma até a ideia patogênica e, ao longo desse caminho, muitas resistências precisariam ser superadas.

Neste trabalho, o conflito psíquico do qual o paciente quis se ver livre reaparece e, com a orientação do analista, alcança uma solução mais satisfatória do que possibilitava a repressão. Como resultado dessa forma nova de praticar a clínica psicoterápica, o paciente pode aceitar o desejo que havia sido reprimido, ou seja, integrá-lo à consciência, ou o desejo pode encontrar outros destinos que não a satisfação primária direta (sublimação), ou o paciente pode ainda reconhecer como realmente necessária a repressão deste desejo. Nesse último caso, tratar-se-ia, contudo, de uma repressão automática, prematura, menos eficaz e geradora de sofrimento, ocorrida quando o indivíduo ainda não se encontrava completamente organizado - e, por isso, não encontrou outra forma de lidar com o instinto senão reprimindo-o - por um julgamento fruto das mais altas funções mentais do homem, o controle consciente, alcançado pelo tratamento. Do ponto de vista terapêutico, em qualquer dessas possibilidades de destino para o sofrimento psíquico, tratar-se-ia, para o paciente, de uma transformação na totalidade da personalidade psíquica que enriquece as potencialidades existenciais do indivíduo.

No capítulo redigido por Freud (1895/2012a), A psicoterapia da histeria, presente em Estudos sobre a histeria, o autor algumas vezes chama o procedimento utilizado de método catártico e outras de técnica da pressão. Independente do nome utilizado, trata-se dos primórdios da técnica também utilizada posteriormente na interpretação de sonhos, a associação livre, regra fundamental da psicanálise.

Após esta breve recapitulação das modificações técnicas ocorridas no início do desenvolvimento da psicanálise, a seção seguinte pretende discorrer sobre as bases teóricas que sustentam a técnica vigente desta ciência, a associação livre.

2. O estatuto teórico da associação livre: o papel das representações-meta

Embora presente em linhas gerais desde Estudos sobre Histeria, é em A Interpretação dos sonhos que Freud (1900/2012b) apresenta de forma elaborada sua concepção sobre a associação livre e os pressupostos teóricos sobre as quais se assenta. Pretendemos explicitar esses pressupostos a fim de justificar seu estatuto de regra fundamental da psicanálise. Contudo, optamos por, antes, fazer uma breve - mas não menos importante – discussão sobre uma concepção que servirá de base para compreendê-los. Trata-se da concepção sobre as representações-meta ¹.

Representações-meta, enquanto conceito teórico, condensa em si a noção de que o curso dos pensamentos é sempre guiado ou governado por alguma ideia, orientados por algum objetivo, sejam esses pensamentos conscientes, pré-conscientes ou inconscientes, de modo que sempre há uma finalidade (meta) que leva de um pensamento a outro - o que distingue o associacionismo concebido por Freud de um encadeamento associativo apenas mecânico entre as ideias.

Esta finalidade condicionada por uma representação-meta [Zielvorstellung] faz com que certas representações privilegiadas atraiam outras representações, mas não qualquer representação (Laplanche & Pontalis, 1967/2001). Ou seja, por representações-meta Freud considera aquelas ideias ou representações que guiam um processo de pensamento. Nesse sentido, poder-se-ia falar de representações conhecidas ou conscientes, isto é, aquelas que guiam um pensamento conscientemente reconhecido pelo indivíduo, e representações-meta desconhecidas, aquelas ligadas ao desejo inconsciente.

A importância das proposições teóricas que serão discutidas na seção seguinte consiste no fato de que são baseadas no conhecimento de que não há, para Freud, pensamentos que não sejam determinados, conduzidos por intenções conscientes ou inconscientes. É desta não aleatoriedade do pensamento que trata o pressuposto de determinismo psíquico, e a noção de representações-meta foi forjada por Freud justamente para dar conta dessa suposição. Em 1909, Freud (2003) afirma, inclusive, que não considerar o determinismo psíquico é um dos principais obstáculos que se colocam contra a aceitação das ideias psicanalíticas e que é justamente ele que torna distinto o profissional psicanalista.

Portanto, é por compreender que não há no psiquismo cursos associativos aleatórios, desprovidos de finalidade, que Freud, ao longo das modificações introduzidas na técnica terapêutica inicial, chega finalmente a estabelecer a regra fundamental da livre associação por parte do paciente. Nas palavras de Jones (1953/1989),

Em vez de menosprezar as associações divagantes como sendo acidentais, desconexas e desprovidas de significado, como outros teriam feito, Freud percebeu, intuitivamente², que devia haver alguma instância definida, mesmo que não evidente, guiando e determinando o curso desses pensamentos (p. 251).

Todavia, a explicação metapsicológica da regra fundamental baseada na concepção sobre as representações–meta é provavelmente pouco difundida. Isso porque, um levantamento em alguns reconhecidos manuais de psicanálise mostra que estes não vinculam a associação livre à noção de representações-meta. Dentre eles, destacamos Roudinesco e Plon (1997/1998) e Zimerman (2007). Não há, no primeiro, um verbete exclusivo para representações-meta como há para associação livre. Por ser a regra fundamental da psicanálise, esta é uma expressão bastante conhecida e, provavelmente, bastante consultada em manuais como o citado anteriormente. O curioso é justamente o fato de que na seção onde os autores buscam explicar a associação livre, representações-meta não é sequer mencionada.

Já no segundo, embora o autor tenha como objetivo amenizar a confusão que uma grande quantidade de escritos existentes em psicanálise poderia provocar e destine boa parte de seu livro para uma discussão sobre a técnica em psicanálise, verificou-se que nenhuma menção às representações-meta fora feita nas partes em que ele discute a técnica, tampouco em outras seções da obra.

Assim, por mais surpreendente que possa parecer, nota-se que os pressupostos teóricos que justificariam e teriam levado Freud a atribuir à associação livre o estatuto de regra fundamental da psicanálise não são tão difundidos e de tão fácil acesso.

3. Associação livre como regra fundamental: pilares teóricos da técnica psicanalítica

A fim de tentar manter a articulação necessária entre associação livre e representações-meta, esta seção visa explicitar as duas teses expostas por Freud, no capítulo sete de A Interpretação dos sonhos, as quais, entre outras, fundamentam teoricamente a técnica da associação livre. O propósito é mostrar que estas duas teses constituem os pilares metapsicológicos do método terapêutico da psicanálise.

Dessas duas teses (...) a psicanálise faz o uso mais amplo nos casos de neurose; ela chega a elevar essas duas teses à categoria de pilares fundamentais de sua técnica. (...) Sendo assim, a apreciação completa, bem como a demonstração detalhada das duas explicações, pertence à exposição da técnica psicanalítica como método terapêutico (Freud, 1900/2012b, p. 559; grifos nossos).

Tendo em vista os esclarecimentos antes apresentados sobre a noção de representações-meta, passemos às teses de Freud sobre os fundamentos teóricos da associação livre. Elas foram descritas em seu tratado sobre os sonhos, todavia valem também para as formações estruturantes do psiquismo, o que faz com que a interpretação dos sonhos seja considerada por Freud (1900/2012b) “a via regia para o conhecimento do inconsciente na vida psíquica” (p. 636, grifo do autor). A psicanálise passa, com A Interpretação dos Sonhos, a não ser mais apenas “uma ciência auxiliar da psicopatologia” (Freud, 1925/2011b, p.132) e sim “o começo de uma nova e aprofundada ciência da mente, que também para a compreensão do normal se tornará indispensável” (Freud, 1925/2011b, p.132).

É do Inconsciente, instância fundamentada por Freud nesta obra, o impulso para a formação dessas variadas classes de manifestações psíquicas; sendo assim, consistem em expressões disfarçadas do desejo inconsciente e infantil. Baseado, portanto, na tese freudiana da identidade entre essas formações (Freud, 1900/2012b), as explicações a seguir que tiverem o sonho como exemplo servem para fundamentar igualmente a técnica da análise dos sintomas.

Na primeira tese, Freud (1900/2012b) afirma que: “o domínio sobre o fluxo de representações passa a representações-meta ocultas quando se renuncia às representações-meta conscientes” (p. 559). Ou seja, as representações-meta desconhecidas assumem o fluxo do pensamento quando as representações-meta conscientes são abandonadas.

Embora Freud ainda não tenha mencionado representações-meta em 1895, ela já estaria implícita quando o autor afirma que, com a técnica da pressão (primórdios da associação livre), o paciente desvia a atenção do pensamento consciente. O procedimento, como vimos anteriormente, consistia em pedir ao paciente para que comunicasse ao analista tudo o que lhe ocorresse, sem que nada o impedisse de fazê-lo. Tal solicitação consistia em uma tentativa de diminuir a resistência imposta pelo pensamento consciente - o qual é orientado por representações-meta conscientes ligadas à censura ou outra intenção reconhecida pelo paciente - e, com isso, deixar livre o máximo possível o fluxo de pensamentos para que novos conteúdos emergissem.

Todavia, reconhece Freud (1900/2012b), poder-se-ia objetar que trabalhar com lembranças emergentes, segundo a forma descrita, seria trabalhar com representações aleatórias, que estabeleceriam relações igualmente aleatórias entre si, culminando em interpretações arbitrárias e, por isso, não justificadas. Como resposta a esta objeção, o autor esclarece que é possível somente renunciar às representações-meta conhecidas e, quando estas cessam, as desconhecidas assumem o controle e determinam o fluxo das representações involuntárias. Como indicado acima, a justificativa do uso da associação livre baseia-se na suposição de que todo pensamento é guiado por representações-meta; assim, na verdade, não há um curso de pensamento sem meta e, como consequência, o fluxo do pensamento se encontra apenas aparentemente livre.

Pretende-se, ao pedir ao paciente para que comunique tudo o que lhe vier à mente sem qualquer restrição, criar condições para que as representações-meta desconhecidas, ou inconscientes, assumam o controle do fluxo do pensamento. Deste modo, as lembranças ou representações emergentes não são arbitrárias. Pelo contrário, elas estão ligadas entre si e associadas às representações patogênicas visadas pelo tratamento. Os elementos expressos pelo paciente em sua livre associação estão ligados entre si de modo superficial e, de alguma forma, associados àqueles que realmente levaram à formação do sintoma, ou do sonho, etc.. Por isso, cada conteúdo comunicado é igualmente interessante no processo terapêutico.

O motivo pelo qual o desejo inconsciente não aparece claramente nas comunicações feitas pelo paciente está na ação da censura. É ela que faz com que o conteúdo comunicado pareça arbitrário, sem nexo e com associações superficiais e estranhas entre seus elementos. Contudo, segundo Freud (1900/2012b), devemos nos lembrar que “sempre que um elemento psíquico estiver ligado a outro por meio de uma associação chocante e superficial, também existe uma conexão correta e mais profunda entre ambos, submetida à resistência da censura” (grifo do autor, p. 558).

Com isso, a censura alcança papel de destaque na formação dos processos inconscientes. É ela – e não a suposta ausência de representações-meta - que impossibilita ou dificulta a ligação normal entre os elementos comunicados, fazendo com que ocorra uma associação superficial entre eles e estranha aos nossos olhos.

A atuação da censura, segundo Freud (1900/2012b), pode ocorrer de duas formas e a explicação de como se dá cada uma nos ajuda a entender a segunda tese de Freud: “as associações superficiais são apenas um substituto, via deslocamento, para associações reprimidas mais profundas” (p. 559).

A primeira forma seria aquela em que ocorre uma ação da censura na ligação entre dois pensamentos, fazendo com que eles acessem a consciência separadamente, de modo a permanecer oculta a ligação reprimida; todavia, em compensação, forma-se uma ligação superficial entre eles. Esta ligação superficial possibilita a ocorrência do pensamento consciente, o qual se inicia num complexo de representações diferente do qual parte a ligação reprimida, mas que é essencial.

Na segunda possibilidade, a censura não atua somente na ligação entre os pensamentos, mas atua também nos pensamentos em si devido ao seu conteúdo. Deste modo, os pensamentos aparecem modificados por pensamentos substitutos. Estes são escolhidos de modo a reproduzir, por meio de uma associação superficial e falsificadora, por assim dizer, a ligação profunda em que se encontram os pensamentos, digamos, originais.

Em suma, sobre as duas formas de ação da censura, sintetiza Freud (1900/2012) “Sob a pressão da censura, ocorreu um deslocamento nos dois casos: de uma associação normal, séria, a uma associação superficial, que parece absurda” (p. 558, grifo do autor). Levando em conta tais suposições teóricas, Freud considera confiáveis tomar as associações superficiais como pontos de partida para o trabalho analítico, pois elas podem nos levar à associação real, mais profunda.

Um desejo inconsciente, portanto, não conseguiria se manifestar tal como ele é, pois a censura o impediria de tal feito; a intensidade deste desejo é transferida, deslocada para outro elemento de menor intensidade. A censura atua sobre os elementos de maior intensidade - que se encontram mais próximos do núcleo do conteúdo patológico - fazendo com que, nestas condições, ele não consiga alcançar a consciência, ou melhor, alcance a consciência somente se disfarçado, desfigurado. Sua intensidade é, então, deslocada a outro elemento – escolhido não aleatoriamente, mas sim obedecendo às orientações das representações-meta inconscientes - o qual consegue ultrapassar a barreira da censura. Assim, devido às desconfigurações resultantes da ação da censura, o conteúdo consciente ou pré-consciente acaba por não se assemelhar mais ao real desejo, que é inconsciente.

É por este motivo que as comunicações aparentemente mais insignificantes que aparecem no contexto de tratamento devem ser levadas igualmente em consideração no trabalho terapêutico com o paciente em livre curso associativo. Todas elas são formações desfiguradas, fruto da ação da censura sobre o desejo inconsciente que busca se manifestar incessantemente. Detalhes como esses nos mostram o quanto a prática clínica perde seu sentido se não tiver seu correspondente respaldo teórico. Atentar-se para a ação da censura e suas consequências só é possível na prática a partir do conhecimento teórico que a explicita.

Na medida em que a resistência da censura diminui, o livre curso associativo do paciente obedece às representações-meta inconscientes, ou seja, estas se mantêm presentes e guiam o processo de pensamento do analisando submetido à regra fundamental, o que faz com qualquer coisa dita pelo paciente em sua livre associação possua relação com seu estado patológico.

Quando peço a um paciente para abandonar toda reflexão e me relatar tudo o que lhe vier à mente, mantenho o pressuposto de que não pode abandonar as representações-meta do tratamento, e me considero autorizado a concluir que as coisas aparentemente mais inocentes e mais arbitrárias que ele me relata se encontram em relação com seu estado patológico (Freud, 1900/2012b, p. 559).

No caso dos sonhos, por exemplo, o fato de este não ser lembrado pelo narrador na maioria das vezes poderia ser considerado uma objeção à interpretação. O conteúdo do sonho que é lembrado, e com o qual se dá a interpretação, é apresentado em lacunas, “mutilado pela infidelidade de nossa memória” (Freud, 1900/2012b, p. 539). Com isso, poder-se-ia pensar que seu relato seria feito de modo a preencher as lacunas com conteúdos escolhidos aleatoriamente, dando retoques para tornar o sonho compreensível, porém “tornando impossível qualquer juízo a respeito de seu verdadeiro conteúdo” (p. 539). Ao tentarmos reproduzir um sonho, é normal que ele seja distorcido. Estas distorções são partes do processo de elaboração pelo qual os pensamentos oníricos devem passar devido à censura onírica e, diferentemente do que se espera, elas não impossibilitam o conhecimento do sonho verdadeiro. Quando se pede a um paciente para repetir o relato de um sonho ou de parte dele, raramente ele o faz com as mesmas palavras. Ocorre que as expressões modificadas são os pontos fracos do sonho e, sob pressão da censura, precisam ser relatados de maneira cada vez menos nítida.

As dúvidas encontradas no relato do sonho também são fundamentais, de acordo com Freud. Elas se ligam a aspectos frágeis, simples, considerados menos importantes. São elas também consequências da censura e se manifestam nos elementos cuja passagem foi autorizada.

Tudo isso se deve ao fato de que o conteúdo relatado, as dúvidas, as modificações, lacunas, etc. estão associados a outros conteúdos e, seguindo a cadeia, ao conteúdo latente. “Elas permanecem em relação associativa com o conteúdo em cujo lugar se colocam e servem para nos mostrar o caminho a esse conteúdo que, por sua vez, também pode ser substituto de outro” (Freud, 1900/2012b, p. 542).

Caso o paciente não cumpra a tarefa de dizer tudo o que lhe vem à memória a respeito do sonho, a análise deste não caminhará, uma vez que, como efeito psíquico de seu desprezo pelo conteúdo, representações inconscientes não lhe ocorrerão. O mesmo acontecerá no que se refere aos sintomas psiconeuróticos.

Como quer que a interpretação da censura psíquica e das elaborações correta e anormal do conteúdo onírico possam se modificar, permanece válido que tais processos estão ativos na formação do sonho e que no essencial mostram uma grandíssima analogia com os processos reconhecidos na formação histérica de sintomas (Freud, 1900/2012b, p. 635).

Além da ação da censura, a condensação também consiste em um importante mecanismo psíquico que atua sobre os desejos inconscientes - de modo a fazer com que esses não sejam claramente expressos - e é orientada pelas representações-meta inconscientes. Embora ela tenha sido melhor evidenciada no sonho – com o fato de este parecer mais curto quando o relatamos em vigília do que quando sonhamos - também ocorre nos sintomas e demais produções inconscientes. Consiste em fazer com que a cada elemento manifesto/comunicado correspondam várias significações latentes; do mesmo modo, a cada significação latente, podem se associar vários elementos. A escolha destes elementos é orientada pelas representações-meta inconscientes.

Em suma, o que buscou-se evidenciar é que a técnica da associação livre consiste em um meio pelo qual se espera que o fluxo de pensamentos do paciente fique aparentemente livre. Trata-se de uma aparente liberdade porque, ao pedir-lhe que comunique tudo o que lhe vier à mente sem qualquer restrição, espera-se que as representações-meta conscientes sejam abandonadas. E o abandono de tais representações-meta conhecidas, na medida em que o paciente for capaz de fazê-lo, tende a traduzir-se em diminuição na resistência ao tratamento. Todavia, em seu lugar, emergem representações-meta inconscientes que passam a determinar o fluxo dos pensamentos. Assim, cada elemento comunicado ao terapeuta (pela associação livre), possui valor no trabalho de análise por conterem ocultos em si, devido à ação da censura e/ou da condensação, ligações com os elementos esperados, os desejos inconscientes.

Toda essa explicação metapsicológica pautada na noção de representações-meta seria válida para o caso de toda e qualquer produção do inconsciente. Com os sonhos, Freud amplia suas concepções das psicopatologias ao funcionamento normal do aparelho psíquico. É por isso que suas duas proposições de caráter metapsicológico são válidas e elevadas ao estatuto de principais pilares da técnica psicanalítica, ou seja, constituem os fundamentos do processo terapêutico da psicanálise. Tal fato justifica a real necessidade de o praticante conhecer os fundamentos teóricos de sua prática, condição para o exercício de uma clínica propriamente psicanalítica, ao menos freudiana.

Considerações finais

Enquanto regra fundamental, a associação livre faz parte da própria definição de psicanálise e, com isso, carrega em si aspectos teóricos e práticos que merecem ser evidenciados. Técnica e teoria se apresentam, desde os primórdios da psicanálise, como indissociáveis, tal como Freud mesmo afirma em 1912, no artigo Recomendações ao médico que pratica psicanálise, ao considerar mérito dessa ciência o fato de nela pesquisa e tratamento coincidirem. Mais tarde, em 1923, no texto “Psicanálise” e “teoria da libido”, tal inseparabilidade fica novamente explícita:

PSICANÁLISE é o nome: 1) de um procedimento para a investigação de processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis; 2) de um método de tratamento de distúrbios neuróticos, baseado nessa investigação; 3) de uma série de conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma, que gradualmente passam a constituir uma nova disciplina científica (Freud, 1923, p. 274).

Assim, parece que todo e qualquer conceito psicanalítico, seja de uso mais teórico ou de aplicação diretamente clínica, merece ser considerado à luz de seus fundamentos metapsicológicos. Por mais árido que possa ser considerado o incurso pela rede conceitual da psicanálise freudiana, parece também que é da ausência desse tipo de exercício ou de seu exercício exagerado que podem resultar leituras unilaterais como as indicadas no início deste artigo.

O trabalho clínico, ao menos o orientado pelas bases freudianas, provavelmente contém uma riqueza de materiais que podem levar o profissional psicólogo a incessantes questionamentos. Tais questionamentos podem servir como disparadores para um retorno da prática à teoria e a formulação de trabalhos que integrem estes aspectos. O mesmo pode acontecer no caminho inverso, quando questionamentos teóricos exigem um olhar diferenciado à prática. Este exercício, ao mesmo tempo em que contribui com a prática clínica do profissional individualmente, possibilita a produção de conhecimento, a qual, quando compartilhada, pode contribuir com a psicanálise como um todo, abrindo espaços para novos questionamentos e novos saberes. Trata-se de, enfim, articular teoria, tratamento e pesquisa.

¹ A noção de representação psíquica não é exclusiva da psicanálise, mas sim emprestada pela medicina e pela psicologia da tradição da filosofia ocidental. Nesta, o conhecimento é considerado verdadeiro se a representação psíquica do objeto corresponder ao objeto externo; assim, a mente seria um espaço em que as representações psíquicas do objeto se associariam. Freud, entretanto, elabora suas próprias noções a respeito da representação e as utiliza no desenvolvimento dos conceitos de pulsão, inconsciente e recalque. A teoria da representação é, com isso, fundamental na obra freudiana, visto que orientou a construção dos modelos metapsicológicos sobre o psiquismo (Campos, 2011). No texto Sobre a concepção das afasias (1891), encontra-se a primeira teoria de Freud (2011e) de representação, a qual é central para seu propósito de revisar as principais hipóteses sobre as afasias predominantes na época (Caropreso, 2003). No Projeto para uma psicologia científica, de 1895, a pulsão se torna um elemento fundamental para a desvinculação da representação sobre os processos conscientes, sendo crucial na elaboração das representações-meta. No entanto, como veremos, a representação-meta consiste em uma noção particular de representação. Isto é, ao menos no período estudado, diferentemente da noção genérica de representação (Vorstellung) como expressão psíquica da pulsão, a representação-meta (Zielvorstellung) visada por Freud na discussão do processo terapêutico corresponde a impulsos inconscientes, entendidos estes como reprimidos.

³ A introdução da suposição sobre representações-meta teria sido uma exigência necessária para fundamentar a não-aleatoriedade e a não adequação da concepção psicanalítica sobre os processos de associação à teoria associacionista clássica. Deste modo, seria necessário relativizar a opinião de Jones, uma vez que, conforme também indicado na seção anterior deste artigo, sobre o percurso da clínica freudiana, não foi intuitivamente que Freud chegou ao estabelecimento da técnica da associação livre e da representação-meta.

 

Declaração de conflitos de interesse

Não há conflito de interesse.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Rosa Ferrucci Monção

e-mail: mariarosafmoncao@hotmail.com

Endereço para correspondência
Helio Honda

e-mail: hhonda@uem.br

Recebido em: 04/09/2017
1ª. revisão em: 15/12/2017

2ª. revisão em: 24/01/02018

Aceito em: 16/02/2018

 

 

 

Certificamos que todos os autores participaram suficientemente do trabalho para tornar pública sua responsabilidade pelo conteúdo. A contribuição de cada autor pode ser atribuída como se segue: Maria Rosa Ferrucci Monção e Helio Honda contribuíram para a sistematização, investigação e conceitualização do artigo; Maria Rosa Ferrucci Monção contribuiu para a redação inicial do artigo; Maria Rosa Ferrucci Monção e Helio Honda são responsáveis pela redação final do artigo.

Os autores agradecem a Capes pelo financiamento de parte da pesquisa.

 

i Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá; Psicóloga clínica

ii Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.

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