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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versión On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.1 Londrina ene./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n1p117 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A polêmica do tempo de constituição da estrutura psicótica

 

The polemic of timing of constitution in the psychotic structure

 

La polemica del tiempo de constitución de la estructura psicótica

 

 

Luiza Drehmer de Mello e Silva; Rosane Zétola Lustoza

Universidade Federal do Paraná

 

 


RESUMO

O artigo pretende sistematizar a divergência teórica relativa ao momento de constituição da estrutura psicótica. Há autores que afirmam que essa estrutura se decide na adolescência, pois consideram que a estruturação está atrelada ao desenvolvimento do organismo. Outros defendem que a psicogenética não é o objeto de estudo da psicanálise, portanto a estrutura não se modificaria de acordo com a idade cronológica. Os primeiros propõem que a direção do tratamento vise à inscrição do Nome-do-pai, e os segundos, que possibilite a construção de uma suplência. Além disso, essa divergência teórica implica diferentes posições com relação à lei 13.438, que obriga pediatras, em todo o Brasil, a aplicar um protocolo de identificação de risco psíquico. Conclui-se que cada tese implica intervenções nos âmbitos clínico e político, de maneira que a forma com que a teoria é articulada seja necessariamente associada a uma posição ética

Palavras-chave: psicose infantil; psicanálise com crianças; risco psíquico.


ABSTRACT

The article intends to systematize the theoretical divergence regarding the psychotic structure's moment of constitution. There are authors who claim that this structure is decided in adolescence, because they consider that the structure is linked to the organism's development. Others argue that psychogenetics is not the psychoanalysis' object of study, so the structure would not change according to chronological age. The first ones propose that the treatment's direction should be the inscription of the Name-of-the-father, and the second ones, that it should enable the construction of a supplementation. Besides that, this theoretical divergence implies different positions surrounding the law 13.438, which obligates pediatricians throughout Brazil to apply a psychic risk identification protocol. It is concluded that each thesis implies interventions in the clinical and political spheres, so that the way the theory is articulated is necessarily associated with an ethical position.

Keywords: child psychosis; psychoanalysis with children; psychic risk.


RESUMEN

El artículo pretende sistematizar la divergencia teórica con respecto al momento de constitución de la estructura psicótica. Hay autores que afirman que esta estructura se decide en la adolescencia, porque consideran que la estructura está vinculada al desarrollo del organismo. Otros sostienen que la psicogenética no es el objeto de estudio del psicoanálisis, puesto que la estructura no cambiaria según la edad cronológica. Los primeros proponen que el tratamiento sea dirigido a la inscripción del nombre del padre, y los segundos, que habilite la construcción de un suplente. Además, esta divergencia teórica implica diferentes posiciones con respecto a la ley 13.438, que exige que los pediatras, en todo Brasil, apliquen un protocolo de identificación de riesgos psíquicos. Se concluye que cada tesis implica intervenciones en las esferas clínica y política, de modo que la forma de articulación de la teoría sea necesariamente asociada a una posición ética.

Palabras clave: psicosis infantil; psicoanálisis con ninos; riesgo psíquico.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho visa discutir o diagnóstico de estrutura psicótica na infância, tomando como referência o conceito lacaniano de estrutura clínica. As descrições psiquiátricas clássicas da psicose na criança levam em conta critérios fenomênicos, definindo-a como perda de contato com a realidade, sociabilidade prejudicada, ou vida fantasmática pobre e mágico-alucinatória. Porém, o que a clínica escancara é justamente a impossibilidade de estabelecer um diagnóstico que dê conta de todos os fenômenos psicóticos observáveis na infância, tornando-se necessário buscar, para além dos fenômenos, um princípio que os ordene. Tal princípio diz respeito ao modo como a criança se relaciona com a linguagem, com o Outro e com os outros. Em outras palavras, trata-se de incluir no processo diagnóstico "procedimentos que sejam da ordem da fala" (Calazans & Lustoza, 2014, p. 17).

Ao avançarmos no estudo de qual seria esse princípio, ou seja, no estudo acerca do diagnóstico estrutural de psicose na criança, deparamo-nos com diversas questões sobre as quais não há consenso: a psicose já estaria determinada na infância ou nesse período ainda haveria possibilidade de mudanças estruturais do psiquismo? Há relação entre o desenvolvimento neuromotor da criança e a constituição da estrutura psicótica? Em qual momento essa estrutura se estabelece de maneira definitiva? Será possível identificar a psicose antes de seu desencadeamento, ou seja, antes de ela se tornar evidente?

Nos debates atuais sobre a questão, há psicanalistas, como Rosine e Robert Lefort (1991), Éric Laurent (1983), Jean-Claude Maleval (1970) e Silvia Elena Tendlarz (2003) que não consideram que a noção de estrutura tenha relação com a de desenvolvimento do organismo, de forma que mesmo na criança muito pequena já seria possível trabalharmos pela orientação do diagnóstico estrutural, tal como na clínica com adultos. Ao passo que, contrariamente a essa perspectiva, há outros analistas, como Marie-Christine Laznik (2016), Elsa Coriat (1999), Alfredo Jerusalinsky (1993) e Leda Bernardino (2004) que defendem que a estrutura psicótica ainda não está determinada na infância, permanecendo indecidida nessa fase do desenvolvimento.

Divergências teóricas não são novidades na história da psicanálise. Não raro houve rupturas em escolas de psicanálise, por enfrentarem pontos de divergência significativos. Sabemos que não era o objetivo de Lacan oferecer respostas definitivas, antes, ao contrário, sua intenção era provocar questões. Não foi à toa que ele criou o dispositivo do cartel para a pesquisa psicanalítica, na tentativa de evitar fenômenos de colagem e de identificação. Por essa razão, consideramos importante não ignorar uma ou outra das perspectivas aqui investigadas. Em vez de escolher, por identificação, um pressuposto a partir do qual toda a tese se constituiria, consideramos importante demonstrar os pontos de tensão para, a partir da sua discussão, podermos nos posicionar de maneira fundamentada.

Essa divergência quanto ao tempo de definição da estrutura parece implicar em discussões, ou impasses, que justificam uma sistematização do problema teórico implicado. Esses impasses se referem a dois pontos principais. Primeiro, no que diz respeito à direção do tratamento da criança pelo analista, há diferentes consequências para a prática clínica. Os psicanalistas que consideram que a decisão da estrutura se dá ao longo do tempo acreditam existir uma maleabilidade psíquica que torna possível o encaminhamento para a neurose (pelo menos em alguns casos); ao passo que os que não associam a estruturação psicótica ao tempo cronológico do desenvolvimento, rejeitam tal possibilidade. O segundo ponto se refere ao posicionamento dos analistas frente às políticas públicas de saúde mental direcionadas à infância. Ao serem convocados a se manifestar publicamente a respeito de políticas que favoreçam a intervenção precoce na infância, os defensores da estrutura não decidida apostam na possibilidade de medidas profiláticas em situações de risco psíquico, ao passo que o outro grupo se posiciona ceticamente em relação a tais medidas.

A atualidade desse debate justifica o propósito de nosso artigo, a saber, propor uma sistematização da discussão teórica sobre o diagnóstico estrutural de psicose na infância, sem o intuito de esgotar a questão tendo em vista sua complexidade, na tentativa de contribuir para com o posicionamento teórico-clínico psicanalítico.

 

MÉTODO

Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa teórica. A metodologia utilizada foi o levantamento bibliográfico com exame crítico da literatura sobre o tema. O referencial de análise empregado foi a Psicanálise de orientação lacaniana. Como se trata neste trabalho do confronto entre duas posições divergentes dentro da escola lacaniana - a saber, a possibilidade ou impossibilidade de um diagnóstico conclusivo de estrutura psicótica na infância -, buscou-se dar voz às argumentações de ambas as posições, colocando ênfase sobretudo nas consequências distintas de cada uma delas nos âmbitos clínico (direção do tratamento) e político (propostas para o campo da saúde pública). Foi utilizada como referência maior a obra do próprio Jacques Lacan; porém, como se trata de uma discussão contemporânea entre intérpretes de seu legado, o debate realizado aqui foi propriamente encenado entre os comentadores lacanianos.

 

RESULTADOS

DIAGNÓSTICO ESTRUTURAL

Descrição dos resultados. (Estilo "Normal") O diagnóstico estrutural é proposto por Lacan a partir de sua tese segundo a qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem: trata-se de uma ordem fundada nas leis de condensação e deslocamento (ou da metáfora e da metonímia, como nomeia Lacan). Essa é a razão pela qual o diagnóstico só pode ser realizado a partir da fala do paciente, dirigida ao analista sob transferência.

O diagnóstico estrutural não parte de uma descrição dos fenômenos, mas trata-se de uma articulação teórica acerca da posição do sujeito na linguagem. A partir do discurso do analisante, tenta-se detectar como ele se defende diante da castração; como se defende "de uma perda de integridade física" (Lacan, 1955-56/1988, p. 125), ou, numa definição mais geral, de uma pulsão "que ameaçaria sua completude" (p. 125). As diferentes formas de defesa (recalque, negação e foraclusão) diante da castração implicam diferentes formas de relação com o Outro, indicando assim qual a estrutura psíquica (neurose, perversão ou psicose).

O recalque (Verdrängung) seria o mecanismo de defesa segundo o qual nega-se a falta do Outro, conservando-se, porém, o elemento da falta no inconsciente. A inscrição da castração é uma operação que indica a inscrição simbólica da falta, ou da incompletude do Outro, a partir da qual a criança se dá conta de que ao Outro materno (Outro encarnado na mãe do bebê) falta algo. O Nome-do-Pai seria o significante que permitiria à criança orientar-se a partir desta falta, levando-a a renunciar às pulsões incestuosas, consentindo assim tanto com um limite à satisfação quanto com uma tentativa de encontrar novos objetos fora do seio da família.

Porém, essa primeira experiência de satisfação (de desejos incestuosos e sensação de completude) é apenas recalcada, mas não verdadeiramente apagada. Ela torna-se inacessível à consciência, mas sua marca permanece, determinando a divisão do sujeito neurótico.

Nas palavras de Lacan (1955-56/1988),

O complexo de Édipo quer dizer que a relação imaginária, conflituosa, incestuosa nela mesma, está destinada ao conflito e à ruína. (...) - é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai. Não o pai natural, mas do que se chama o pai. A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse nome do pai (p. 114).

Quando a inscrição desse significante paterno no registro simbólico não opera na estrutura, pode-se dizer que não há demarcação simbólica dos limites da relação entre o bebê e o Outro. Lacan articula a ausência desse significante em termos de foraclusão (Verwerfung) - defesa utilizada diante da ameaça de castração simbólica, ou seja, a rejeição do significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. O termo foraclusão "é oriundo do domínio jurídico, que designa a perda de um direito por não tê-lo o cidadão exercido dentro do prazo legal estipulado. Em psicanálise a foraclusão representará a não inscrição da lei simbólica, o que traz consequências para todo o sistema significante" (Lustoza & Calazans, 2010, p.559).

Assim, quando o mecanismo de defesa operante é a foraclusão do significante Nome-do-pai, ou seja, quando não há inscrição da Lei paterna, dizemos que a estrutura psíquica é psicótica. O que é negado, por ficar foracluído do simbólico, retorna no real sob a forma de fenômenos elementares.

Em "As neuropsicoses de defesa", Freud (1894/1976) afirma que, com relação à psicose, a rejeição à representação incompatível (que diz respeito à experiência de castração) é um mecanismo de defesa muito mais radical que o encontrado na neurose. Nessa defesa, o ego rejeita a ideia incompatível junto a seu afeto, e age como se a ideia jamais tivesse existido, levando, segundo Freud, a uma confusão alucinatória. Ou seja, o ego se defende da ideia incompatível, porém esta fica ligada a um fragmento da realidade, retornando como alucinação.

Já na neurose, a representação recalcada não retorna como parte da realidade, e sim em forma de representação - ou seja, toda a operação acontece no registro simbólico. O sintoma neurótico nada mais é, nesse sentido, do que uma metáfora - substitui-se a representação insuportável por outra, mas no nível do inconsciente aquela se mantém intacta. Porém, na psicose, o retorno do que foi rejeitado, ou foracluído, não se dá no registro do simbólico. Lacan (1955-56/1988) trata de situar o lugar do retorno em cada uma das duas estruturas:

O que cai sob o golpe do recalcado retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. O recalcado está sempre aí, ele se exprime de maneira perfeitamente articulada nos sintomas e numa multidão de outros fenômenos. Em compensação, o que cai sob o golpe da Verwerfung tem outra sorte completamente diferente (p.21).

O que foi foracluído, portanto, retorna no real, na forma de alucinação, como se a representação jamais tivesse sido uma produção do sujeito. Na verdade, sequer pode-se dizer que o foracluído retorna como representação: ele vem de fora, do Outro. "O termo foraclusão como forma de negação indica por si mesmo esse local de retorno, a "inclusão" fora do simbólico" (Quinet, 1951/2009, p. 4). Lacan (1955-56/1988) discorre sobre esse fenômeno, sobre isso que é recusado na ordem simbólica e reaparece no real, referindo-se ao caso Schreber:

Eis que, absolutamente não num momento deficitário, mas ao contrário num momento culminante de sua existência, se revela para ele sob a forma de uma irrupção no real de alguma coisa que ele nunca conheceu, de um aparecimento de uma estranheza total, que vai progressivamente acarretar uma submersão radical de todas as suas categorias, até forçá-lo a um verdadeiro remanejamento de seu mundo (p. 103).

Não raro o desencadeamento da primeira crise acontece diante de situações que envolvem a morte, o sexo e a procriação - tidas como questões fundamentais do sujeito, em que é necessário ao sujeito psicótico responder por si. Segundo a teoria das estruturas clínicas, isso se deve ao fato de o sujeito não contar com o significante fundamental que lhe permitiria significar tais experiências de difícil simbolização. Seria, nesse sentido, portanto, precisamente ao desencadear-se a primeira crise que poderíamos notar a ausência do significante Nome-do-Pai.

Neste ponto, pode-se levantar uma importante questão: se, para percebermos que o significante Nome-do-Pai foi foracluído, for necessário o desencadeamento, ou seja, um retorno do que fora rejeitado no tempo da infância; seria possível perceber os efeitos da foraclusão na criança? Será, pois, possível afirmar que há estrutura psicótica em crianças? "O que será o início de uma psicose? Uma psicose tem, como uma neurose, uma pré-história? Haverá, ou não, uma psicose infantil?" (p. 104). Lacan acrescenta, no entanto, que não pode garantir que encontrará a resposta para essas questões nesse seminário. Em suas palavras: "Eu não digo que responderemos a essa questão, mas ao menos a colocaremos" (p. 104).

 

ESTRUTURA PSICÓTICA (NÃO DECIDIDA) NA INFÂNCIA E DIREÇÃO DO TRATAMENTO

Psicanalistas como Marie-Christine Laznik (2016), Elsa Coriat (1999), Alfredo Jerusalinsky (1993) e Leda Bernardino (2004) defendem que, em psicanálise com crianças, o analista deve considerar o tempo cronológico do desenvolvimento neuromotor. O principal argumento é que, embora constituam tempos e instâncias distintas, a constituição da estrutura e o desenvolvimento neuromotor possuem pontos de encontro. Trata-se de tempos que, segundo esses autores, são interdependentes, provocando efeitos numa e noutra lógica e num e noutro tempo (Levin, 1989).

Dessa forma, ainda segundo Levin, se por um lado é a primeira experiência de satisfação, ou primeira marca psíquica, que permite o desenvolvimento do tônus muscular e sua erogenidade, por outro, o desenvolvimento do corpo é que dará suporte para a constituição de uma estrutura. Em outras palavras, a estrutura significante do sujeito e sua função motora corporal se entrelaçam. Haveria, portanto, uma especificidade na clínica psicanalítica com crianças, uma vez que, no adulto, esse tempo do desenvolvimento psicomotor já terminou, não havendo mais pontos de encontro entre a constituição da estrutura e o desenvolvimento.

Desse modo, para diferenciar o desenvolvimento do corpo da constituição da estrutura, Levin diferencia o termo criança do termo sujeito. Este, segundo ele, se estrutura no registro simbólico, ao passo que a criança se desenvolve nos "embates do imaginário" (p. 35). Leda Bernardino (2004) vai na mesma direção ao afirmar que esse processo de estruturação do sujeito e de desenvolvimento da criança é uma via de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que é preciso haver um organismo para que se instaure a linguagem, também é preciso admitir que a linguagem pode induzir certas transformações do organismo. Assim, a criança estaria no entrecruzamento entre o tempo lógico do inconsciente (ou da linguagem) e o tempo cronológico do biológico; quando tais tempos fossem adequadamente conjugados, observaríamos uma criança que se desenvolve de maneira saudável.

Ao encontro deste posicionamento, Elsa Coriat (1999) defende que é preciso retomar o conceito de desenvolvimento, afirmando que ele teria ficado semiforacluído na obra lacaniana, o que, segundo ela, teria limitado a clínica psicanalítica com crianças. Ela então sustenta que o sistema nervoso central é como um papel em branco em que, na primeira experiência de satisfação, se inscreve o primeiro traço mnêmico, e então as sucessivas transcrições representarão a formação do psiquismo nas diferentes épocas da vida. Nesse sentido, segundo essa autora, para o inconsciente se constituir, a inscrição de uma série prévia de traços mnêmicos se faria necessária. Em outras palavras, seria na repetição das experiências, que dependem do desenvolvimento neuromotor, que se iria construindo a estrutura do aparelho psíquico. Logo, nesse sentido, para a inscrição de um traço mnêmico seria necessário o orgânico, por um lado, e o significante, por outro.

Elsa Coriat considera a tese lacaniana segundo a qual o inconsciente já está presente antes do corpo real do bebê. No entanto, ela sustenta que esse inconsciente está dissociado de seu corpo nesse primeiro momento. Para ele se se inscrever no bebê, este precisaria alienar-se na linguagem, a começar pela sucessão de fonemas que configura seu nome. Segundo essa autora, portanto, somente a partir do momento em que a criança conseguisse selecionar os fonemas (representações sonoras) de sua língua materna, entre seis e oito meses, é que ela poderia registrar sequências fonemáticas (significantes). Dessa forma, para o bebê se alienar na linguagem e constituir seu inconsciente, a capacidade neurológica para discernir fonemas seria também necessária.

Leda Bernardino (2004) propõe, então, considerando que o analista deve levar em conta o tempo do desenvolvimento neuromotor do bebê e da criança, que o diagnóstico que melhor contempla essa posição é o de psicose não-decidida (diagnóstico proposto por Alfredo Jerusalinsky). Por defenderem esse entrecruzamento entre o corpo biológico e a estrutura psíquica, eles sustentam que, na infância, não se produziu uma foraclusão definitiva; que haveria nesse tempo uma espécie de suspense do momento de inscrição.

Dessa forma, como a foraclusão não seria considerada definitiva até a passagem para a adolescência, seria possível operar a inscrição do significante Nome-do-Pai nesse intervalo, encaminhando a estrutura para uma organização neurótica. Segundo Rassial (1999, citado por Bernardino, 2004), apenas na adolescência é possível inferir a inscrição ou foraclusão desse significante primordial, porque só então o sujeito teria ganhado independência simbólica. Essa posição também é defendida por Levin (1989), que afirma que a "estruturação só acaba por decidir-se a partir da puberdade" (p. 35).

Nesse sentido, por associar o tempo de definição da estrutura ao tempo cronológico do desenvolvimento, Bernardino (2004) afirma que os dois tempos necessários para a formação do sintoma estão localizados, respectivamente na infância e na adolescência. O primeiro tempo, na criança, consiste, segundo Levin (1989), na fixação de impressões, ao passo que o segundo consiste na formação do sintoma, e aconteceria no fim da adolescência e passagem para a vida adulta - momento de ressignificação do anterior. Esses autores aparentemente compreendem, portanto, que a decisão da estrutura acontece no segundo momento da formação sintomática.

Dessa forma, embora Leda Bernardino (2004) considere que as operações psíquicas ocorrem de acordo com o tempo lógico do inconsciente, ela argumenta que a estrutura significante vai se articular, inevitavelmente, com o tempo de maturação, por considerar que a dimensão orgânica é a "matéria-prima" (p. 90) sobre a qual pode operar o significante. Em outras palavras, ela diz que há uma relação entre a lógica da linguagem e os acontecimentos biológicos, no sentido de que os "tempos lógico e cronológico se conjugam ou, como no caso das patologias, se curtocircuitam" (p. 32). Nesse sentido, as operações psíquicas elencadas pela autora como representando momentos-chave, tais como alienação e separação, estágio do espelho, tempo do Fort!Da!, atravessamento do Édipo, tempo de latência e entrada na adolescência, implicariam em diferentes posições do sujeito na linguagem, e apenas nessa última operação é que haveria o "ato de decisão estrutural" (p. 32).

Entre esses diferentes momentos haveria hiatos, ou seja, espaços entre um tempo e outro, suspensões, em que o analista poderia intervir através da palavra, sendo então possível, nesses hiatos, por tratar-se de períodos em que há a necessidade de remanejamento da significação da castração, haver a inscrição do significante Nome-do-pai.

Todavia, é preciso notar, ainda, que a autora reconhece ser possível, embora considere tratar-se de exceções, que a posição da criança em relação aos significantes (ou seja, sua estrutura) se cristalize de forma definitiva muito precocemente. Seriam casos em que, segundo ela, a foraclusão determinaria uma barragem à função simbólica, impedindo o prosseguimento das operações psíquicas.

 

ESTRUTURA PSICÓTICA NA CRIANÇA E DIREÇÃO DO TRATAMENTO

Segundo Barroso (2012), a formalização das estruturas clínicas por Lacan acarretou intensa reordenação do saber clínico na psicanálise com crianças. Antes disso, segundo ela, psicanalistas que atendiam crianças não contavam com a clínica diferencial entre psicose, neurose e perversão como referência para pensar a construção da posição subjetiva sob transferência. Essa indiferença à descontinuidade entre os tipos clínicos tornava-os também indiferentes a todo cálculo da clínica.

Dessa forma, a autora defende, como o casal Lefort (1991), que a psicose enquanto estrutura já está presente antes do desencadeamento, e que a clínica estrutural orienta a realização do diagnóstico de psicose a partir da identificação dos fenômenos elementares. Ela considera que a dificuldade de estabelecer o diagnóstico de psicose na criança advém de diversos fatores, como a redução da psicose à debilidade, a medicalização generalizada na contemporaneidade, e "o discurso dos especialistas, que, mediante um aparato assistencial, vai adaptar a criança, ao preço do desconhecimento de sua psicose" (Barroso, 2012, p. 10). Além disso, a autora sustenta que alguns analistas recuam ao diagnosticar a psicose infantil, por não identificarem os fenômenos clássicos da psicose, ou até "por acreditarem no poder de modificar uma estrutura subjetiva, supostamente em suspensão durante o tempo da infância." (p. 47).

Para Rosine e Robert Lefort (1991), além de a estrutura já estar presente antes do desencadeamento, a não-inscrição do Nome-do-pai é definitiva, e referente ao tempo do sujeito, lógico, referido ao inconsciente. Eles defendem, assim, que não há especificidade na psicanálise com crianças, pois a "estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao adulto" (p. 13), e é isso que determinaria a unidade da psicanálise. Dessa forma, Rosine e Robert Lefort tentaram demonstrar que quanto mais jovem for a criança, mais ela demonstra traços da estrutura: "aqueles que têm a prática com crianças não podem deixar de se sensibilizar com a proximidade desses elementos de estrutura, pela maneira pela qual o demonstram, e isso tanto quanto menor for a criança" (p. 18).

Solano-Suarez (2014), no mesmo sentido, afirma que a criança não é um ser "subdesenvolvido" (p. 11), trata-se do sujeito em relação com o gozo e com o desejo, sendo, portanto, confrontado da mesma maneira que o adulto com as "questões fundamentais que vão induzi-lo a respostas que às vezes adquirem a forma de sintomas." (p. 11).

Sabe-se que, para a formação do sintoma, seriam necessários dois tempos - o primeiro referente à defesa, e o segundo, referente ao fracasso da defesa. No entanto, parece que os autores que agora discutimos, diferentemente dos anteriores, não correlacionam esses dois tempos com a formação da estrutura. Ao menos, não consideram que seja no segundo tempo, ou seja, na escolha do sintoma, que se dê também a escolha da estrutura.

Para compreender esses dois tempos lógicos, Bassols (2014) recorre ao caso Emma, exposto por Freud (1950[1895]/1969), em seu "Projeto para uma psicologia científica": aos oito anos, Emma teria tido uma experiência de cunho sexual, que, no entanto, só adquiriu uma significação traumática posterior e retroativamente. O que acontece aos seus oito anos é que Emma entra em uma pastelaria e é beliscada pelo atendente em seus genitais, porém no momento em que isso acontece, Emma não produz nenhuma significação acerca desta experiência. Quando Emma está, então, com 12 anos, entra em uma loja, se assusta com o riso de um atendente, e foge. Sua resposta fóbica se revelaria uma histeria de angústia, segundo Bassols (2014). O que acontece é que a segunda cena ressignifica a primeira. Freud introduz, ali, a palavra retroatividade, pois nota que algo se constrói não em uma cronologia linear, mas em retroação.

Nesse caso, Freud situa esse segundo tempo na puberdade; porém, Bassols enfatiza que essa lógica de dois tempos para a formação sintomática pode ser situada numa criança aos cinco anos com uma experiência aos três. Ou seja, segundo ele, seria possível operar essa lógica de dois tempos em qualquer momento da vida. Podemos notar, portanto, que para esse autor se trata de dois tempos para a formação sintomática e não para a formação da estrutura, como para os autores que defendem as psicoses não decididas na infância.

Suzana Barroso (2012) e Silvia Elena Tendlarz (2003) também afirmam que a estrutura psicótica é a mesma em crianças e adultos, apesar de a forma com que ela se apresenta na infância poder variar. Para esta última autora, a estrutura não tem uma dimensão temporal, razão pela qual, segundo ela, Lacan não teria desenvolvido uma teoria específica da psicose na criança. Nesse sentido, a falha simbólica e as dificuldades decorrentes dela são as mesmas, independentemente da idade.

Dessa maneira, o que poderia variar não seriam os elementos da estrutura, mas sim aspectos relacionados ao imaginário, de acordo com o mito familiar em que está inserido o sujeito psicótico. Segundo o exemplo de Tendlarz:

um menino de nove anos que era esquizofrênico, tinha certeza de que seu pai estava desorganizando a camada de ozônio ao mover sua cabeça. O menino se colocou como aquele que poderia proteger a ordem do universo, alegando que ele poderia controlar essa desorganização por meio de uma televisão que ele tinha em sua cabeça. Esse é o núcleo do delírio a partir do qual ele tentou, sem sucesso, construir uma metáfora delirante que o estabilizaria (p. 3).

Silvia Tendlarz defende, portanto, que crianças psicóticas que têm tendências delirantes apresentam fenômenos muito similares aos da psicose no adulto. Porém, segundo ela, quando não há organização delirante, torna-se difícil estabelecer o diagnóstico, afinal como saber se a "criança está vivendo as imaginações intensas de uma criança, ou está lidando com um delírio?" (p. 14). No entanto, ela afirma que a ausência de delírio não quer dizer, necessariamente, ausência de fenômenos elementares, que consistem, por sua vez, em sinais muito precoces da presença da estrutura psicótica, e podem se manifestar antes do desencadeamento, ou seja, antes da invasão da alucinação e da elaboração do delírio.

Tendlarz enfatiza, portanto, que a precisão diagnóstica, baseada na linguagem, é tão necessária na clínica com crianças quanto na clínica com adultos. Além disso, tanto Silvia Tendlarz quanto Suzana Barroso (2012) criticam a forma como Margareth Mahler (1989) trabalhou o caso Stanley. Esta teria explicado a desorganização de Stanley, no tempo e no espaço, sob uma perspectiva psicogenética, segundo a qual o comportamento desorganizado corresponderia ao estágio do desenvolvimento inicial do Ego, em que a criança não é capaz de conceber relações causais, a menos que essas aconteçam no seu campo de visão imediato. Citando Eric Laurent (1983/1999), Barroso (2012) indica que onde Mahler identifica déficit cognitivo, ele identifica fenômeno elementar - ou seja, não um índice de uma fase de desenvolvimento, mas um índice de uma estrutura já decidida.

A orientação diagnóstica seria, portanto, segundo Barroso (2012), extrair do sintoma da criança a estrutura do fenômeno elementar. A autora diz que Eric Laurent (1983/1999) orienta que o analista tente perceber alguns pontos: se o significante, para a criança, está no nível do real e não no campo simbólico do Outro; se ele tem efeito de mediação e representação (como na neurose) ou, ao contrário, se apresenta-se de modo petrificado; ou ainda, se age como uma palavra devastadora, como um caroço da palavra.

Em suma, segundo a perspectiva da psicose decidida na infância, o tratamento de crianças psicóticas enfrenta as mesmas dificuldades da clínica com adultos psicóticos, quais sejam, o manejo da transferência, a posição do analista, os tipos de intervenção e a orientação do tratamento: a construção de um delírio, ou a criação de uma suplência estabilizadora.

 

SOBRE A LEI 13.438 E O PROTOCOLO IRDI

No que se refere às implicações dessa polêmica sobre o diagnóstico de psicose na infância para as políticas públicas de saúde mental, notamos hoje a discussão, no Brasil, acerca da lei 13.438, sancionada no dia 23 de abril de 2017, que altera o artigo 14° do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tornar obrigatória a adoção, pelos médicos pediatras, de protocolos que estabeleçam padrões de avaliação de riscos para o desenvolvimento:

Art. 1° O art. 14 da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescido do seguinte § 5°:

§ 5° É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico (Presidência da República, 2017).

No projeto de lei, de autoria da senadora Ângela Portela, há a sugestão de que os pediatras utilizem o Protocolo de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI). O IRDI foi criado por professores universitários e psicanalistas, a partir de pedido do Ministério Público para instrumentalizar os "pediatras e outros profissionais de saúde da atenção básica a identificar precocemente 'transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, com fins preventivos" (Pimenta, 2007, p. 2).

A intenção de identificar riscos de desenvolvimento psíquico com fins preventivos econtra fundamentos na tese de que é possível modificar a estrutura no tempo da infância e, portanto, está de acordo com a ideia de que a cura implica o encaminhamento da criança para a estruturação neurótica. Para Pimenta (2007), todavia, essa ação configura uma tentativa de profilaxia que contraria a ética psicanalítica, segundo a qual, para dar espaço ao desejo singular do paciente, o analista suspende seus ideais pessoais de saúde e bem-estar. Para essa autora, ao abrir-se mão dessa ética, o discurso psicanalítico busca um suposto estatuto de cientificidade que contraria seus próprios princípios. Em suas palavras:

Em uma primeira aproximação, constatamos o rigor teórico conceitual que embasa o protocolo: as definições dos termos psicanalíticos utilizados e a crítica às demais abordagens psi transparecem leitura e conhecimento. Também nos alegra, nesse momento inicial, a pertinência do discurso psicanalítico nesse dispositivo privilegiado de inserção social. O que, no entanto, procuraremos demonstrar neste trabalho é o fato de que, passado o "momento de ver", constatamos que, apesar da importação dos significantes da psicanálise pelo Protocolo, sua dimensão ética encontra-se, ali, forcluída. Trata-se de um uso do discurso psicanalítico (bem argumentado, é verdade) para os mesmos fins de avaliação e prevenção a que se prestam os demais discursos pretensamente "científicos" de nossa época (TCC e afins) (p. 1).

Essas autoras, assim como o "Manifesto contra a Lei 13.438", do Observatório de Políticas do Autismo da EBP/FAPOL, alertam para o risco de assim reforçarmos a patologização excessiva e indevida da primeira infância. Afirmam ainda que a interferência do médico pode atuar negativamente sobre o desejo da mãe, executando em ato o que a avaliação procura evitar, e colocando, indevidamente, a psicanálise no lugar do discurso do mestre. Além disso, ressaltam que a lei não garante qualquer acompanhamento ou tratamento dessas crianças, o que provavelmente implicará em ações meramente medicamentosas.

Rosa Mariotto e Maria Pesaro (2018), por sua vez, defendem que o uso que vem sendo feito do IRDI se sustenta na ética da psicanálise na medida em que, segundo elas, não elide o sujeito, considera o conceito de laço constituinte e a singularidade das pessoas envolvidas. Elas afirmam ainda que a aliança entre teoria e prática a partir dessa ética implica no bem-dizer em detrimento de dizer o bem, o que seria a chave para um bom uso do IRDI como ferramenta.

Nesse sentido, essas autoras afirmam que essa intervenção na primeira infância se diferencia das práticas assistencialistas, pedagógicas ou ainda associadas a movimentos de higiene mental. Da mesma forma, Julieta Jerusalinsky (2018) diz que o termo preventivo não opera no caso do IRDI como prática higienista. Segundo a autora, o protocolo leva à constatação de que a estruturação psíquica do bebê não vai bem, aspecto que viria sendo negligenciado por parte da saúde pública. Ela acrescenta que muitos pais, ao perceberem o sofrimento psíquico de seus bebês, tentaram pedir ajuda aos profissionais de saúde, mas foram ignorados, por não haver uma atenção para além do corpo físico da criança por parte das equipes. Além disso, ela aponta para o fato de que muitas crianças só são atendidas tardiamente, em torno dos 6 anos de idade, quando começam a frequentar a escola, sendo que já vinham sofrendo desde muito pequenas.

Jerusalinsky, assim, defende que a intervenção precoce não é necessariamente ou inevitavelmente higienista e patologizante, alertando para a invisibilidade do sofrimento psíquico dos bebês. Ela aponta, portanto, para o fato de que a lei 13.438 destaca, ao menos, a importância da discussão acerca do reconhecimento desse sofrimento. E, por fim, a autora diz que é preciso zelar para que os modos de implementação da lei prezem por uma leitura clínica, possibilitando um tratamento que parta da "aposta na constituição" (p. 95), e não da patologia, assim como é preciso considerar a necessidade de investir na formação dos profissionais que trabalham com saúde pública no cuidado da primeira infância.

 

DISCUSSÃO

Notamos que todos os analistas citados embasam seus posicionamentos em vasta experiência clínica com crianças. Ou seja, podem demonstrar, por meio da exposição de casos clínicos, aquilo que elaboram e sustentam em termos teóricos. Além disso, os autores estudados concordam em alguns pontos, a saber: que há psicose na criança; que há descontinuidade entre psicose e neurose; e que a psicose consiste na foraclusão do significante Nome-do-Pai. Eles parecem concordar, também, com a afirmativa de que o tempo do inconsciente, lógico, é diferente do tempo cronológico do desenvolvimento (embora os que defendem que a psicose não está decidida na infância, entendam que esses diferentes tempos têm pontos de encontro).

Porém, há divergências teóricas importantes, com diferentes consequências para o tratamento. Os adeptos da psicose não decidida defendem que o tratamento poderia ser realizado em referência ao Nome-do-pai, por partirem do pressuposto de que a foraclusão deste significante, diferentemente do recalque, não é definitiva no tempo da infância. Já para os analistas que não consideram o desenvolvimento do organismo objeto de estudo da psicanálise, assim como defendem a atemporalidade do inconsciente (que consideram o único material de trabalho do analista), sustentam que a direção do tratamento deveria respeitar os limites e possibilidades postos pela estrutura.

Notamos então que a diferença é, portanto, especialmente de ordem epistemológica. Parece-nos que não há como comprovar, ou demonstrar, o tempo de definição da estrutura psicótica, ao menos não nos moldes da ciência experimental, porque não é possível refutar nenhum dos posicionamentos aqui expostos. Se recebemos uma criança que diagnosticamos como psicótica, por exemplo, e, ao encerrar o tratamento, dizemos que se trata de uma criança neurótica, como saber se houve mudança estrutural, ou se erramos o diagnóstico em um primeiro momento?

No entanto, mesmo constatando que a questão não pode ser resolvida no sentido de um saber definitivo com relação ao tempo de definição da estrutura psicótica, não se trata de dizer, assim, que a produção de saber em psicanálise é absolutamente relativista. O que essa pesquisa nos indica é que a forma com que articulamos as questões da clínica, ou seja, como nomeamos os fenômenos que observamos, tem implicações na clínica, seja no âmbito privado ou público, sendo, portanto indissociável de uma posição ética. Em outras palavras, a discussão acerca da finalidade do conceito psicanalítico, nesse caso sobre o conceito de psicose na criança, é indispensável ao psicanalista.

Os analistas que falam em psicoses não-decididas propõem que a direção do tratamento consista na inscrição do Nome-do-pai, e parecem, assim, emitir um juízo de valor implícito de que um desfecho neurótico seria mais favorável para o sujeito do que um destino psicótico. Nesse sentido, defendem que o tratamento psicanalítico poderia curar a criança da estrutura psicótica, por encaminhá-la para a neurótica.

Já os analistas que não consideram essa maleabilidade da estrutura na criança propõem que a direção do tratamento considere o diagnóstico, justamente no sentido de intervir diferentemente de como fariam caso se tratasse de uma estrutura neurótica. Ou seja, assim como na clínica com adultos, com a criança psicótica tratar-se-ia de criar uma suplência estabilizadora. Eles não pensam, portanto, em cura da psicose, e tampouco da neurose, por considerá-las estruturas clínicas e não patologias. A direção de cura seria pensada, então, no interior de cada estrutura.

No que se refere ao posicionamento frente aos diagnósticos de massa e à medicalização generalizada da infância, independentemente da divergência teórica quanto ao tempo de definição da estrutura, todos os analistas mencionados parecem questionar o diagnóstico de massa, que desconsidera a produção do sujeito e baseia-se meramente na classificação dos comportamentos considerados desviantes.

Ressalte-se que o antigo diagnóstico psiquiátrico de psicose infantil foi retirado dos últimos Manuais Diagnósticos e Estatísticos (DSMs) da Associação Psiquiátrica Americana. Já em 1980, no DSM-III, a rubrica Psicose Infantil foi substituída por Distúrbios Globais do Desenvolvimento, e, em 1995, foi definitivamente excluída, no DSM-IV. Hoje, o que antes correspondia a uma diversidade de quadros clínicos se reduziu a Transtornos do Espectro Autista. Diante desse cenário, o número de diagnósticos de autismo

(...) cresceu de modo epidêmico (note-se bem: foi o diagnóstico e não o autismo que cresceu de modo epidêmico) e a psicose infantil desapareceu do cenário psiquiátrico. O aumento e a indiferenciação das categorias no interior do grande espectro, diga-se de passagem, não serve sequer ao esforço nosológico psiquiátrico, que costuma ser o de diferenciar para melhor tratar (Kupfer, 2013, p.13).

Todavia, embora notemos que seja um consenso a crítica aos diagnósticos de massa, notamos que a tese das psicoses não decididas pode estar contribuindo para com essa produção de psicodiagnósticos generalizados da infância, por fundamentar a lei 13438, que determina a obrigatoriedade de aplicação de protocolo de risco psíquico em crianças de até 1 ano e meio. Percebemos que isso aponta para o problema do diagnóstico, em geral, que, por um lado, pode marcar a vida da criança negativamente pelo peso de seu significado e pelo tratamento meramente medicamentoso que muitas vezes é o predominante, mas, por outro, pode permitir uma intervenção que, sem ele, não seria possibilitada. Podemos notar que a discussão se encaminha para pensarmos qual a finalidade do diagnóstico, ou seja, por que, para quê e para quem fazemos diagnóstico?

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos demonstrar, a partir dessa breve sistematização da discussão acerca do tempo de constituição da psicose, como diferentes posicionamentos teóricos têm implicações distintas de ordem clínica e política, e estão relacionados, portanto, a uma posição ética. Quanto à clínica, demonstramos a diferença para se pensar a direção do tratamento e à posição ética aí implicada. Parece-nos que a suposição de que a psicose não está decidida na criança corre o risco de induzir o analista a uma afirmação de ordem valorativa: a de que a psicose seria mais patológica do que a neurose. Tal tese poderia dificultar ao analista em formação o exercício de suspender seus desejos ligados a um bem-estar pautado na moral dominante do que seria uma infância saudável.

Consideramos importante, portanto, destacar a indissociabilidade da produção teórica em psicanálise de uma posição ética, que deve ser constantemente debatida. Lacan (1947/1998) nos fala da importância de evidenciar a noção de verdadeiro na epistemologia científica, na medida em que esta noção é que condiciona, em sua essência, o fenômeno da loucura. É o que nos parece evidente quando percebemos algumas consequências das diferentes articulações acerca da estrutura psicótica na criança.

No que se refere à dimensão pública, ou seja, concernente à lei 13.438, percebemos que a discussão se desloca para pensarmos a finalidade, ou a função, do diagnóstico, quando ele se localiza fora da relação analista-analisante. Se essa finalidade fosse dada a priori, não seria nem mesmo necessário pensá-la. Por exemplo, se provássemos que a psicose é mais patológica que a neurose, por uma via positivista da produção de saber, seria evidente que a função do diagnóstico seria tratar, curar a doença. No entanto, se não é essa a noção de verdade que cabe à psicanálise, como podemos fazer uso de seus conceitos para além do setting analítico?

Notamos que está aí a discussão em torno da lei 13.438. Aparentemente, quando há uma apropriação dos conceitos psicanalíticos (no caso o de diagnóstico estrutural) por leigos, corre-se o risco de que eles sejam utilizados desde um entendimento positivista, ou seja, tal qual o diagnóstico médico. Se isso acontece, podemos observar um estímulo à hiperpatologização da infância. Por outro lado, resta ainda a questão de como o analista pode contribuir para com a escuta, cuja ausência foi evidenciada pelos pesquisadores do IRDI, voltada para mães e bebês, que sofrem silenciados.

 

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Recebido em: 30/04/2019
1ª revisão em: 15/10/2019
Aceito em: 08/11/2019

 

 

AGRADECIMENTOS
As autoras agradecem a Capes pelo financiamento da pesquisa na forma de bolsa de mestrado da primeira autora.
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesse.
SOBRE AS AUTORAS
Luiza Drehmer de Mello e Silva é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná. Trabalhou na linha Psicologia Clínica e recebeu financiamento de pesquisa da CAPES.
E-mail: psi.luizadrehmer@gmail.com
Rosane Zétola Lustoza é psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha na linha Psicologia Clínica.
E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br

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