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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.1 Londrina jan./abr. 2020

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n1p243 

RELATO DE EXPERIÊNCIA/PRÁTICA PROFISSIONAL

 

Potencialidades de um curso em saúde mental: a lógica psicossocial em uma experiência ativa de ensino

 

Potential of a mental health course: the psychosocial model in active learning method

 

Potencial de un curso en salud mental: la lógica psicosocial en una experiencia activa de ensenanza

 

 

Tatiane Guimarães Pereira; Patrícia Santos de Souza Delfini; Isabella Teixeira Bastos; Camila Junqueira Muylaert; Alberto Olavo Advíncula Reis

Faculdade de Saúde Pública - USP

 

 


RESUMO

O artigo objetiva apresentar e discutir a experiência de um curso de difusão científica em Saúde Mental realizado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. O público participante foi composto por profissionais de saúde atuantes em diferentes áreas em todo território brasileiro. O curso visou contextualizar o panorama atual da saúde mental coletiva, apresentando a rede de atenção psicossocial, tendo em vista alcances e desafios presentes nas práticas nesse campo. A metodologia ativa embasou todo seu processo de planejamento e execução. Além da parte teórica, visitas em serviços de saúde mental foram realizadas, o que se mostrou ferramenta potente de conhecimento da realidade e permitiu a reflexão sobre avanços e dificuldades vivenciadas no território a partir do compartilhamento e confronto de realidades. A realização desse curso deixou clara a importância de oferecer espaços de discussão do trabalho que possam promover o protagonismo dos profissionais de saúde mental.

Palavras-chave: ensino; saúde mental; saúde pública.


ABSTRACT

This paper presents and discusses the experience of a scientific course about Mental Health at Public Health School, University of São Paulo. The participants were health professionals who work in different parts of Brazil. The course aimed to contextualize the current situation of public mental health, to present the psychosocial care network and to discuss outcomes and challenges of practices in this field. The active learning method was adopted for the planning and development of the course. Besides the theoretical part, the course promoted guided visits at different mental health services and this strategy was considered by participants as a powerful learning tool. The classes also provided moments of sharing and discussion of different experiences of professionals, allowing reflection about achievements and difficulties of each territory. This course clearly showed the importance of providing daily work discussion opportunities in order to promote the leading role of mental health professionals.

Keywords: education; mental health; public health.


RESUMEN

El objetivo del siguiente artículo es presentar y discutir la experiencia de un curso en Salud Mental realizado en la Facultad de Salud Pública de la Universidad de São Paulo. Los participantes fueron profesionales de la salud de todo Brasil. El curso tuvo como objetivo contextualizar la situación actual de la salud mental colectiva, presentando la red de atención psicosocial, teniendo en cuenta los logros y desafios presentes en las prácticas en este campo. La metodologia activa basó todo su proceso de planificación e implementación. Además de la parte teórica, hemos visitado los servicios de salud mental que resultó ser una poderosa herramienta de conocimiento de la realidad, así como también la puesta en común y discusión de las realidades, lo que permite la reflexión sobre los avances y las dificultades experimentadas en su territorio. Este curso evidenció la importancia de ofrecer oportunidades de generar el protagonismo de los profesionales de salud mental.

Palabras clave: ensenanza; salud mental; salud pública.


 

 

INTRODUÇÃO

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO CURSO E SUA CONSTRUÇÃO

A Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) oferece, sob responsabilidade de sua Comissão de Cultura e Extensão Universitária, uma programação especial de cursos de difusão científica que compõem o Programa de Verão. Trata-se de uma maneira rica de desenvolver e fortalecer os laços da academia com a comunidade que refletem a diversificada atuação dos Departamentos da Faculdade. O Programa de Verão é um evento realizado há mais de vinte anos, entre os meses de janeiro e fevereiro, possuindo alcance nacional. Nos anos de 2014 e de 2015, o Programa totalizou mais de vinte cursos ministrados e aproximadamente 1.200 alunos.

O curso do qual trata o presente artigo intitula-se "Saúde Mental e Rede de Atenção Psicossocial: Desafios da Atualidade" e contou com público-alvo de pesquisadores, pós-graduandos, profissionais da área de saúde e afins, interessados em discutir teorias e práticas voltadas à saúde mental coletiva. A carga horária total do curso foi de 30 horas, divididas entre 22 horas de aulas teóricas e 8 horas de aulas práticas, distribuídas em uma semana (de segunda a sexta-feira). Seu objetivo foi contextualizar o panorama atual da saúde mental coletiva, apresentando a rede de atenção psicossocial, tendo em vista alcances e desafios presentes nas práticas desse campo. O curso assumiu os contornos de metodologia ativa, uma proposta pedagógica que contempla o protagonismo do estudante. A partir dessa contextualização discutiram-se temáticas específicas no âmbito da saúde mental: gênero, criminalidade, infância e adolescência, pessoas em situação de rua e usuários de álcool e outras drogas.

A ideia de oferta do evento surgiu no Laboratório de Saúde Mental Coletiva (LASAMEC) do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Criado em 2003, o LASAMEC tem se voltado para pesquisas variadas relacionadas à saúde mental. A partir de pesquisas realizadas, discussões emergidas e da própria lógica de funcionamento do laboratório, norteadas pela importância e riqueza de espaços reflexivos sobre a atuação em Saúde Mental Coletiva, reconheceu como demanda dos profissionais de saúde mental a existência de espaços para articular sua prática com o aporte teórico que sustenta os modos de cuidados preconizados pelas políticas vigentes.

Nesse contexto, a partir de documentos que norteiam as políticas públicas em saúde mental vigentes, revisitamos brevemente: o percurso histórico da loucura, a consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira e seus precursores (Amarante, 2007; Reis et al., 2013;), o Modelo Psicossocial (Costa-Rosa, Luzio, & Yasui, 2003) e a produção da Rede de Atenção Psicossocial (Ministério da Saúde, 2001, 2011), com enfoque no conhecimento da realidade de operação da política e de seus tensionamentos. Esses temas foram abordados nas aulas expositivas dialogadas e embasaram as discussões presentes durante a semana de curso.

Sabe-se que em meio ao arcabouço teórico que apoia a ideia dessa rede, historicamente acompanhada por profundas transformações, é premente a necessidade da constante análise crítica das ações em saúde mental (Reis et al., 2013). Ao considerarmos os caminhos históricos percorridos pelo campo, deparamo-nos com um processo complexo de múltiplas facetas presentes nas áreas da assistência clínica, jurídica e de questões epistemológicas e culturais (Amarante, 2007; Campos, 2003; Costa-Rosa, 2003; Delfini, 2010). Esses caminhos possibilitaram a mudança do olhar dirigido ao usuário pautado no modelo de atenção psicossocial, o qual destaca o cuidado garantindo a interlocução e a singularidade no lidar com o sofrimento psíquico humano (Bastos, 2013).

Para a área da Saúde Pública, o campo da Saúde Mental se mostrou relevante a medida que encampou ideais defendidas pela Reforma Sanitária e também desempenhou papel de vanguarda nas transformações sociais e políticas daquele momento. Impulsionou importantes contribuições conceituais e práticas destinadas à Saúde Pública tais como as ideias de acolhimento, escuta qualificada e clínica ampliada (Campos, 2003; Costa-Rosa, 2003; Cunha, 2005; Reis et al., 2013).

Nesse contexto, a saúde mental e a rede de atenção psicossocial compõem um campo empírico que necessita de urgência na produção de conhecimentos, em especial um tipo de saber para quem atua nesse campo (Minayo & Galhano, 2015). Nesse sentido, Delgado (2015) cita alguns entraves como a fragilidade de estrutura e processo da rede de serviços de saúde mental do SUS, as lacunas na formação dos profissionais das diversas áreas, a escassez de ações de Educação Permanente nos serviços, além da pouca oferta de programas de pós-graduação e ausência de agenda de prioridades de pesquisa respaldada na política pública nesse campo.

Disponibilizar, portanto, um espaço para propagar o conhecimento sobre temáticas que sustentam a Atenção em Saúde Mental e, sobretudo, somar com experiências compartilhadas por docentes e alunos tornou o curso terreno fértil para a ressignificação dos processos de trabalho. Nesse ensejo, Ceccim e Feuerwerker (2004) ressaltam a importância da capacitação na discussão de conteúdos e tomada de um olhar crítico sobre o conhecimento adquirido e a sua atuação. A partir de discussões sobre vivências e aspectos emocionais inerentes ao contato com a realidade prática, adquire-se novo olhar frente às relações da dinâmica do trabalho com os processos de cuidado à saúde.

Pautados nessa premissa, o presente curso foi planejado com aulas teóricas propostas com participação ativa dos alunos, desmistificando o olhar hierarquizado professor-aluno, tal qual defende a metodologia ativa de ensino-aprendizagem. O plano foi oferecer espaços de interlocução para complementar a teoria exposta, que ilustraram de maneira enriquecedora as temáticas trabalhadas em sala. De modo semelhante ao preconizado pelo modo de atenção psicossocial (Costa-Rosa, 2000; Costa-Rosa et al., 2003) no cuidado em saúde mental, o curso foi estruturado com a proposta de possibilitar formas horizontais e intersubjetivas de reflexão e discussão.

Ao considerarmos a complexidade da Reforma Psiquiátrica e as diversas concepções envolvidas na execução da proposta ético-política do curso, destacamos as quatro dimensões citadas por Amarante (2003) para produzir alcance e reflexão acerca da operatividade da Reforma psiquiátrica na realidade das atividades propostas. A base para essa análise foram as dimensões teórico-conceitual (o que se produz de conhecimento sobre a loucura), técnico-assistencial (a rede que é configurada e o cuidado que é oferecido), jurídico-político (arsenal de leis asseguram os direitos e a cidadania) e sociocultural (simbolizações sobre a loucura). Tais concepções serviram de subsídio para o desenho do curso e possibilitaram reflexões ao nos depararmos com a prática expressa na conversa com os profissionais e os usuários dos serviços visitados e entre os alunos, mostrando-se as quatro dimensões presentes na visita e nas atividades teóricas das aulas.

Pelo descrito, podemos considerar que o curso buscou identificar as dimensões político-operativas representadas pelos atores sociais da rede nos territórios, compondo-se a partir de divergências e paradoxos movidos por um processo social que transpôs a apreensão de uma teoria. Reforçou-se a importância da articulação entre as dimensões citadas nas exposições e as discussões realizadas em sala de aula e nas visitas aos serviços.

Elegemos o município de Mauá - São Paulo, como local para realização das visitas, pois ali estava ocorrendo uma importante experiência de construção de um modelo de atenção em saúde mental baseada nos preceitos da Reforma Psiquiátrica. O investimento e a priorização da saúde mental pela gestão pública proporcionaram a implantação e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial, alicerçados em uma perspectiva antimanicomial e pautada no modo de atenção psicossocial. Os participantes do curso foram divididos em grupos de acordo com seus interesses e direcionados a diferentes serviços do município: Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), Centro de Atenção Psicossocial voltado à usuários de álcool e outras drogas (CAPad), Centro de Atenção Psicossocial para adultos com funcionamento 24 horas (CAPS III), Residência Terapêutica e Unidades de Acolhimento Transitório.

A visita, como técnica de aprendizagem, também pode ser pensada sob a perspectiva defendida por Freinet (Boleiz, 2012), importante autor e inspirador das metodologias ativas de aprendizagem, pois possibilita o contato dos alunos com a experiência, assim como o levantamento de interesses e questionamentos frente àquela realidade. Além disso, aproximar-se da realidade é uma estratégia potente de conhecimento, uma vez que o cotidiano do serviço se revela como importante fonte de aprendizado (Muylaert, 2013).

A composição diversificada do público discente do curso foi levada em consideração para a organização das atividades propostas em sala. Para isso, foi planejado discorrer sobre noções básicas de cada temática, bem como, aprofundá-las e problematizá-las na realidade observada a partir das visitas aos serviços. Nesse sentido, a atividade inicial que propiciou o contato com a experiência variada dos discentes e, assim, o desenvolvimento das atividades pautadas nessa realidade, foi uma dinâmica de apresentação de cada aluno, com a proposta de falar de si e expressar suas expectativas em relação ao curso. Essa atividade norteou o andamento e as temáticas que seriam (ou não) abordadas ao longo da semana. Tais expressões dos alunos também serviram de aparato para o aprofundamento dos desejos e anseios de cada um e do grupo como um todo para integrá-los no processo de aprendizagem, compreensão convergente com a teoria de Freinet (Boleiz, 2012).

AS METODOLOGIAS ATIVAS COMO PROPOSTA PARA EXECUÇÃO

As práticas educativas adquirem relevância e imperiosidade nas ações de saúde, uma vez que ambos os campos, saúde e educação, possuem intersecção na promoção de desenvolvimento humano e inserem-se num ciclo constante de aprender e ensinar (Pereira, 2003). Atualmente, a educação superior passa por mudanças influenciadas por tendências pedagógicas que contemplam o desenvolvimento crítico-reflexivo dos alunos a fim de que sejam capazes de transformar sua realidade social (Prado, Velho, Espíndola, Sobrinho, & Backes, 2012). Nesse entendimento, a prática pedagógica pautada na compreensão da metodologia ativa gradativamente vem substituindo formas tradicionais de ensino, dissolvendo a hierarquização das relações em sala de aula e deslocando o protagonismo dos professores aos alunos no processo de ensino-aprendizagem (Iochida, 2004).

Há várias estratégias ativas de aprendizagem, como o método do Arco de Charles Maguerez, a Aprendizagem Baseada em Problemas (Prado et al., 2012), que permite a extração dos problemas da realidade por meio da observação direta realizada pelos alunos. Também, há a Aprendizagem baseada em equipes (Team Based Learning-TBL) compostas por preparação, testes individuais e grupais (Bollela, Senger, Tourinho, & Amaral, 2014). Outra estratégia ativa de aprendizagem com base teórica-filosófica de Freire (1999) é a pedagogia da problematização, tendência pedagógica que possui como princípio o lugar ativo do aluno (Godoy, 2001; Freire, 1999).

Baseada no estímulo crítico-reflexivo, a educação da problematização planeja o ensino a partir da experiência anterior do aluno, assumindo que esse tome o lugar de frente no ensino, sendo o professor o mediador que auxilia e sistematiza elementos que o aluno traz para análise e transformação do saber (Godoy, 2001). A mudança do processo de ensino-aprendizagem se respalda na ideia de educação como expressão social e política (Freire, 1999).

Nesse sentido, esses métodos são alternativas inspiradoras de um ensino inovador que ultrapassa a abordagem tradicional (Berbel, 1998). Independentemente do modo de aplicação, todo método de aprendizagem ativo deve ter como eixo norteador a centralidade no educando e o processo pedagógico enquanto trabalho humano, como destacaram Freire e Freinet (Boleiz, 2012).

Freinet, francês educador primário na área rural, em meados de 1920, desenvolveu técnicas que partiam da observação do comportamento dos seus alunos, e constatou que podia exercer a docência em sintonia com as necessidades das crianças que ele ensinava, afastando-se de manuais que não respondiam às ansiedades e especificidades de seus alunos (Boleiz, 2012).

Portanto, a metodologia ativa serviu de referência para o planejamento e execução do curso oferecido, pois se revela potente na formação de profissionais qualificados, humanos que valorizem seu contexto, minimizando as falhas e desigualdades das políticas de saúde e educação de nosso país (Prado et al., 2012). Além disso, tal método possibilita a participação ativa de todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES

O curso, organizado por docente e pós-graduandos da instituição promotora do evento, dedicados às pesquisas na área de saúde mental e experiência em docência, contou com a participação aproximada de 30 alunos em cada um dos dois anos em que foi oferecido: 2014 e 2015. Com base em 57 fichas preenchidas pelos participantes no último dia do evento, foram levantados dados em relação ao sexo, local de residência atual, grau de escolaridade, tempo e área de formação.

Constatou-se que a maioria dos participantes era do sexo feminino (50), havendo apenas 7 do sexo masculino. Residem em diferentes regiões do Brasil, sendo que a maioria se concentra no estado de São Paulo (42). Também fizeram parte do grupo pessoas que vivem em outros estados: Rio Grande do Sul (2),Goiás (2),Acre (1),Amazonas (1),Ceará (6),Minas Gerais (1) e Santa Catarina (1).

Houve uma ampla diversidade no grau de escolaridade dos participantes: alunos de graduação (9),recém-formados (6),estudantes de especialização (18), especialistas (13), mestrandos (10), mestres (2),doutorandos (1) e doutor (1). Em relação à área de formação ou de estudo, a maioria era da Psicologia (39). Embora em menor número, contamos com participantes de diversas outras áreas: Enfermagem (4),Medicina (2),Terapia Ocupacional (2),Biomedicina (2),Biologia (2),Fisioterapia (1),Pedagogia (1),Gestão de Políticas Públicas (1),Serviço Social (1),Fonoaudiologia (1) e Biblioteconomia (1). Dentre aqueles já graduados, a média de tempo de formação foi de oito anos.

Esses dados podem indicar que o interesse pela saúde mental não se prende, tal como poderia se esperar tradicionalmente, a poucas e circunscritas formações acadêmicas. Neste sentido, parece prosperar o princípio que vem a contemplar a saúde mental como um campo multidisciplinar e intersetorial. Além da diversidade de formações, há a ampla escolaridade dos alunos bem como a proveniência de diversos estados do país, que revela a riqueza de trocas de experiências interestaduais e de momentos da trajetória profissional que cada aluno pode oferecer e usufruir nas trocas interpessoais oportunizadas pelo curso. Podemos considerar que tal interação se mostrou produtiva, uma vez que todos os alunos demonstraram interesse por futuros encontros.

A VIVÊNCIA EM SI

Para início das atividades com a participação ativa dos alunos, propusemos uma dinâmica de apresentação e expectativas deles em relação ao conteúdo por meio de expressão gráfica de cartazes realizados em subgrupos. Tais desenhos foram apresentados, discutidos e fixados na sala com o intuito de constante revisitação durante a semana. Nos dois anos em que o curso foi oferecido evidenciou-se motivações semelhantes e relativamente convergentes no que se refere à busca pelo curso, tais como:

- Formação e atualização acadêmica e prática em Saúde Mental;

- Troca de experiências e possíveis construções de caminhos na prática;

- Formação, entre os participantes, no decorrer da semana, de uma "equipe multiprofissional", assim nomeada por eles, composta por várias regiões do Brasil e áreas de saber entre profissionais experientes, recém-formados e graduandos;

- Reflexões sobre uma rede além de um conjunto de equipamentos isolados, mas que propiciasse articulação efetiva entre esses serviços;

- O compartilhar das angústias advindas da atuação em Saúde Mental.

Nesse momento os participantes ressaltaram, também, a pouca oferta de cursos na temática e, destacaram a disposição dos horários e dias consecutivos do formato do curso em questão como algo positivo. Fato esse citado pelos participantes de outras cidades e estados.

Após a dinâmica inicial de apresentação e tomada de expectativas dos participantes, as aulas foram realizadas com o cuidado de contemplar questões levantadas pelo grupo sob referência da educação problematizadora.

No segundo momento, houve uma aula de abertura sobre a história da loucura, Reforma Psiquiátrica Brasileira e seus precursores. No segundo dia, houve aula expositiva dialogada sobre Redes de Atenção em Saúde e princípios do SUS, com fechamento participativo dos alunos em dinâmica sobre redes e o compartilhar de experiências deles. Nos outros dois dias, abordamos sobre a Rede de Atenção Psicossocial e os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Cada tema foi trabalhado com carga horária média de três horas. Em vários momentos, os docentes ilustraram as apresentações com exemplos práticos e convidaram os participantes a dividirem suas vivências a fim de obter uma construção coletiva sobre o tema abordado e se aproximar da forma ativa de aprendizagem.

Portanto, a parte teórica do curso foi planejada considerando percursos históricos, políticos e sociais que configuraram o entendimento atual da Saúde Mental. Os temas abordados foram o contexto histórico e os movimentos sociais que culminaram no olhar diferenciado e no panorama atual da loucura como a Reforma Psiquiátrica brasileira e seus precursores internacionais. Após o contexto histórico-social, outros conteúdos foram ministrados, como os conceitos dos modelos de atenção psicossocial e os consequentes serviços instituídos norteados pelos princípios do Sistema Único de Saúde. Temas específicos e emergentes também foram pauta de discussão como álcool e drogas, consultório na ou de rua, Saúde Mental na Infância e Adolescência e os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico com seus desafios para inserção na lógica psicossocial.

A proposta da visita aos serviços de saúde foi utilizada como ferramenta ativa para criar situações de aprendizagem envolvendo a problematização da realidade (Diesel, Baldez, & Martins, 2017). Reservada para um dia todo, a partir de um contato anteriormente feito com a coordenadoria de Saúde Mental de Mauá, foram visitados quatro serviços: CAPS III Adulto, CAPSij, CAPSad, Residência Terapêutica e uma República Terapêutica (similar à Unidade de Acolhimento Transitório). Em todos os serviços visitados havia um profissional para apresentar o local, acompanhar a visita e responder as questões levantadas pelo grupo e discutidas previamente em sala. Por questões de tempo e logística, cada participante teve que optar por apenas um local de visitação.

A receptividade dos profissionais de Mauá somada ao interesse e envolvimento dos participantes do curso permitiu a construção de um terreno fértil para ressignificação de posturas e práticas já sedimentadas. Tais reflexões ocorreram por meio da proposta ativa. Na aula posterior à visita, os participantes que estiveram no mesmo dispositivo se reuniram com o objetivo de pontuar as principais considerações acerca do serviço e, em seguida, dividir com o restante do grupo. Cada grupo contou para toda a classe sobre o modo de organização, fluxo e percepções do serviço articulando com a realidade dos serviços de origem deles mesmos, pontuando especificidades locais, convergências e possibilidades de novas configurações de processos de trabalho em seu local. Desse modo, os desafios relatados de um aluno eram pensados coletivamente, construindo ações em palavras em ambiente favorável à aprendizagem (Diesel et al., 2017). Assim, todos puderam compartilhar e trocar impressões sobre os dispositivos visitados, refletindo e comparando suas práticas com a realidade visitada.

No encerramento, foi planejada uma atividade de avaliação em relação às expectativas levantadas inicialmente. Realizamos uma roda de conversa, potente para ressignificação de sentidos e horizontalização de saberes, além de ser estratégia coincidente com as ideias do modo psicossocial de cuidado como também com os preceitos de Freire (Sampaio, Santos, Agostini, & Salvador, 2014). Dessa forma, a roda de conversa foi proposta para que todos os envolvidos, participantes e organizadores, pudessem compartilhar sobre as impressões da semana. Nesse espaço, os participantes comentaram se e como as expectativas foram alcançadas a partir das discussões em aula e das reflexões sobre os desafios da área de saúde mental. A maioria avaliou como produtiva a semana, porque puderam trazer sua prática nas aulas expositivas dialogadas, durante a visita e na atividade de reflexão posterior. Ressaltaram, ainda, a visita aos serviços como rica oportunidade de conhecer as configurações que a rede de saúde mental tem assumido na atualidade. Vários alunos que são e atuam em outros estados reforçaram a importância de vivenciar a rotina dos serviços da Grande São Paulo. Ademais, a expectativa expressa no primeiro dia sobre as trocas de experiências resultou em possíveis construções de caminhos na prática dos trabalhadores ali presentes. Assim, a fala de um servia para o outro contar sobre experiências bem ou malsucedidas que poderiam inspirar o colega a adaptá-la a sua realidade. No final do encontro, para possibilitar uma expressão mais alusiva à necessidade e à impressão de cada um, foi dado uma folha de papel sulfite para que cada um discorresse sobre sua opinião.

A ida à campo foi o principal destaque apontado pelos participantes como técnica ativa de ensino, pois contemplou as necessidades dos participantes que não conheciam presencialmente os serviços, como também o desejo dos experientes em confrontar realidades e refletir sobre avanços e dificuldades vivenciadas no seu território. Por isso, na opinião dos participantes, as visitas poderiam ainda ocupar maior parte da carga horária.

 

CONSTRUÇÃO E APLICAÇÃO DO CURSO: POSSÍVEIS REFLEXÕES

A Saúde mental no modelo de Atenção psicossocial é entendida como um processo social, construído no movimento de entrelaçamento de dimensões paradoxais, jeitos de pensar e ideologias (Amarante, 2007). Essa lógica nos acompanhou desde o desejo de promover o curso, no planejamento do programa e na vivência com os participantes, pautados na construção coletiva e protagonismo de todos os envolvidos nesse ensino, sejam participantes e docentes. Outro pressuposto que nos motivou na realização do evento foi criar a oportunidade de desenvolver uma crítica e uma ação política sobre o papel e a função dos técnicos na produção e reprodução das práticas e conceitos. Nesse sentido, tal espaço pode contribuir para encorajá-los a enfrentar os desafios nas perspectivas ético-política e científica que são, para Basaglia (2000, citado por Amarante, 2003) inseparáveis, ou seja, ser profissional e cidadão é acima de tudo, ser homem.

Assim como preconizado pelo modo de atenção psicossocial, os serviços devem ser locais de trocas sociais e de produção de subjetividades (Amarante, 2007). Esse entendimento foi estendido como proposta do curso, a partir do estímulo à postura ativa dos participantes. Tal posição de protagonismo foi sustentada pela metodologia ativa, que propõe práticas educacionais estimuladoras das ações horizontais entre todos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Esse formato de produção de conhecimento é terreno fértil para expressão de vivências, em variados e divergentes contextos promovendo a produção de saber e de fazer.

O fazer se circunscreve na prática cotidiana de cada profissional de modo heterogêneo, em contextos específicos de inserção que impossibilitam a uniformização e padronização de modus operandi. Sobre isso, Muylaert (2013) discute que há um desejo dos profissionais de haver um manual com diretrizes de execução das atividades rotineiras, mas ao considerar que manuais são construídos na perspectiva de descrições reducionistas e generalizadoras, diverge dos preceitos que sustentam o Modo de Atenção Psicossocial. A mesma autora reflete, também, que esse desejo de um manual norteador pelos profissionais seja possivelmente um sintoma da necessidade de espaços legítimos e ricos de reflexão e compartilhamento das atuações. Ofertar tais espaços, seja na Saúde Mental e nas demais esferas da saúde, torna possível a mobilização de pessoas e de instituições, no sentido de uma aproximação entre as instituições formadoras e as ações e serviços do SUS. Nesse prisma, há o desenvolvimento de condições de crítica e de reflexão sistemática e estímulo às mudanças no processo de formação e de cuidado em saúde (Ministério na Saúde, 2004).

Essas condições de reflexão vão ao encontro do desejo de valorização dos trabalhadores pela formação e estudo, requisito para a realização de trabalho criativo. Assim, são necessárias condições mínimas como espaços de discussão e de potencialização das ações, estratégias que podem minimizar os entraves emblemáticos do SUS e da Reforma Psiquiátrica, bem como o sentimento de solidão relatado por trabalhadores de saúde mental (Muylaert, 2013).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização desse curso deixou clara que a realidade dos serviços, bem como a sua existência, na composição de uma rede, nem sempre eram conhecidas aos olhos das pessoas que o procuraram, mesmo que algumas delas já estivessem inseridas em contextos de vivência e discussão relacionados a saúde mental.

O encontro dos participantes com os profissionais do serviço e a academia reforçou a importância da interlocução entre o que acontece nos espaços de trabalho e o que os participantes, inseridos nesses contextos de saúde mental ou não, trazem a esse cotidiano. Isso pode promover a potencialização da discussão desses processos tendo em vista os achados em pesquisa relacionados acima e o discurso sobre a importância dessas trocas.

A composição da rede se faz no cotidiano de trabalho a partir de diversas microproduções que podem acontecer nessas trocas ou desdobramentos que os serviços fazem com a academia e outros espaços de interlocução possíveis, como proposto nesse trabalho.

Diante da complexidade do campo e da pouca oferta de formações voltadas à temática relatada, espera-se que essa experiência motive outras instituições na criação de espaços reflexivos sobre teoria e prática em saúde mental, bem como espaços de fortalecimento e potencialização da rede dos profissionais de saúde.

 

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Recebido em: 27/11/2018
1ª revisão em: 30/04/2018
Aceito em: 13/07/2018

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Tatiane Guimarães Pereira é psicóloga pela Universidade Paulista, mestre e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Laboratório de Saúde Mental Coletiva da Faculdade de Saúde Pública da USP (LASAMEC). Docente da Universidade de Sorocaba - UNISO. Trabalha na área da Saúde Mental Coletiva.
E-mail: tatianeguimaraespereira@gmail.com
Patrícia Santos de Souza Delfini é psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutora em Saúde Pública pela USP. Pesquisadora do LASAMEC. Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Trabalha na área da Saúde Mental Coletiva.
E-mail: patriciadelfini@gmail.com
Isabella Teixeira Bastos é psicóloga pela Universidade de São Paulo, mestre e doutora em Saúde Pública pela USP. Pesquisadora .do LASAMEC. Docente da Universidade Paulista - UNIP. Trabalha na área da Saúde Mental Coletiva.
E-mail: isabellatbastos@gmail.com
Camila Junqueira Muylaert é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica, mestre e doutora em Saúde Pública pela USP. Pós doutora em neurociência - Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio proprietária da Quickblue- aceleradora de pessoas.
E-mail: camilajmuylaert@gmail.com
Alberto Olavo Advíncula Reis é psicólogo pela Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot, Mestre em Psicologia - Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot e Doutor em Saúde Pública pela USP. Coordenador do Grupo LASAMEC. Trabalha na linha da Saúde Mental Coletiva.
E-mail: albereis@usp.br

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