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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.3 Londrina Set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n3p232 

RELATO DE EXPERIÊNCIA/PRÁTICA PROFISSIONAL

 

Religiosidade/espiritualidade em saúde: uma disciplina de pós-graduação

 

Religiosity/spirituality in health: a graduate discipline

 

Religiosidad/espiritualidad en salud: una disciplina de posgrado

 

 

Vivian Fukumasu da Cunha; Lucas Rossato; Ronan da Silva Parreira Gaia; Fabio Scorsolini-Comin

Universidade de São Paulo (USP)

 

 


RESUMO

Evidências sugerem uma relação importante entre a religiosidade/espiritualidade (R/E) e a saúde. No entanto, poucos profissionais da área têm uma formação que contemple os conhecimentos pertinentes a essa relação. O objetivo deste estudo é apresentar um relato de experiência sobre uma disciplina desenvolvida em um programa de pós-graduação de uma universidade pública do Estado de São Paulo. A disciplina se propôs a compreender como a R/E tem sido abordada no cuidado em saúde e evidenciar técnicas, instrumentos e estratégias de intervenção que podem ser utilizadas nesses contextos. Os estudantes se envolveram ativamente ao serem convidados a falar de suas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas com a R/E. A disciplina cumpriu a função de transmitir conhecimentos a partir das evidências científicas sobre a dimensão da R/E, além de formar profissionais capazes de olharem para si e para os outros de maneira empática, valorizando sentimentos e emoções e, consequentemente, ampliando recursos formativos.

Palavras-chave: educação superior; religião; espiritualidade; pessoal de saúde; atenção à saúde.


ABSTRACT

Evidence suggests an important relationship between religiosity/spirituality (R/S) and health, however, few professionals in the area have a background that includes the pertinent knowledge of this relationship. This study aims to present an experience report on a discipline developed in a postgraduate program at a public university in the State of São Paulo. The discipline proposed to understand how R/S has been approached in health care and to show techniques, instruments, and intervention strategies that can be used in these contexts. The students were actively involved when being invited to talk about their personal, professional and academic experiences with R/S. The discipline fulfills the goal of transmitting knowledge based on scientific evidence on the R/S dimension, in addition to training professionals capable of looking at themselves and others empathetically, valuing feelings and emotions, expanding training resources.

Keywords: higher education; religion; spirituality; health personnel; health care.


RESUMEN

Evidencias sugieren una relación importante entre religiosidad/espiritualidad (R/E) y salud, sin embargo, pocos profesionales en el área tienen una formación que incluya el conocimiento relevante de esta relación. El objetivo de este estudio es presentar un informe de experiencia sobre una disciplina desarrollada en un programa de posgrado en una universidad pública del Estado de São Paulo. La disciplina se propuso comprender cómo se ha abordado la R/E en el cuidado de la salud y mostrar técnicas, instrumentos y estrategias de intervención que se pueden utilizar en estos contextos, de manera que los estudiantes se involucren activamente al ser invitados a hablar de sus experiencias personales, profesionales y académicas con R/E. La disciplina cumple la función de transmitir conocimientos desde la evidencia científica sobre la dimensión de la R/E, además de formar profesionales capaces de mirarse a sí mismos y a los demás con empatía, valorar los sentimientos y emociones, ampliando los recursos formativos.

Palabras clave: educación superior; religión; espiritualidad; personal de salud; cuidado de la salud.


 

 

INTRODUÇÃO

As reflexões sobre as influências da religiosidade/espiritualidade (R/E) nos aspectos de saúde da população atravessam a história da humanidade, sendo alvo de pesquisadores em todos os tempos, desde as tradições mais ligadas à Filosofia, por exemplo, até mais recentemente as epistemologias alinhadas à produção de evidências para a prática em saúde. A temática da R/E enquanto componente da vida humana acompanha o ser humano e suas influências abrangem tanto as relações interpessoais e o âmbito sociocultural quanto o intrapsíquico, expresso em crenças, valores, emoções e comportamentos (Henning-Geronasso & Moré, 2015).

Embora na atualidade a R/E esteja presente e seja considerada enquanto dimensão importante e que interfere nas condições de vida da população, durante muito tempo foi negligenciada nas práticas de atenção em saúde. Até que essa dimensão pudesse compor um rol de intervenções e interesses de pesquisa, foi longo o percurso para que a mesma pudesse ser validada no meio científico, desprendendo-se de seu histórico associado exclusivamente à Filosofia e às ciências humanas.

Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde sua criação, tenha evidenciado a religiosidade e a espiritualidade como práticas associadas ao cuidado em saúde, somente no ano de 1998 incorporou essas dimensões em seu conceito multidimensional de saúde (Toniol, 2017). Desde a inclusão da dimensão da R/E como vértice do cuidado em saúde, um expressivo movimento foi instaurado no sentido de não apenas caracterizar o que seria um cuidado orientado por essa dimensão, como reunir evidências que pudessem associar a R/E a desfechos positivos na atenção em saúde.

Há que se considerar que os estudos sobre essa dimensão, no entanto, não foram inaugurados a partir dessa decisão da OMS, mas retomam uma extensa tradição de pesquisa em áreas como a Psicologia da Religião e a Teologia. A inclusão dessa dimensão no processo de cuidado pela OMS também não ocorreu de modo automático, mas a partir da tentativa de, primeiramente, investigar e definir o que seria, de fato, essa dimensão. Deste modo, ao considerar o humano em sua interface com os elementos da R/E, espera-se que tal dimensão não seja apenas mais um vértice na atenção à saúde, mas um componente que possa e deva ser valorizado, incorporado, investigado e constantemente questionado, a fim de que avanços possam vir à tona (Cunha & Scorsolini-Comin, 2020).

A perspectiva aqui defendida emprega o termo combinado (R/E), a fim de recuperar tanto a definição de religiosidade quanto de espiritualidade, compreendendo que as mesmas se interpenetram constantemente, tornando complexa a tarefa de tentar separá-las. Para os efeitos do estudo dessa dimensão, segundo as recomendações da OMS, parece ser oportuna a defesa do emprego da R/E, evidenciando a complexidade e indissociabilidade do fenômeno, acompanhando tendências na literatura (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019; Raddatz, Motta, & Alminhana, 2019; Scorsolini-Comin, Rossato, Cunha, Correia-Zanini, & Pillon, 2020a).

No entanto, os estudos acerca das terminologias, ora defendendo o emprego do termo religião, ora do termo religiosidade ou espiritualidade, são importantes por mostrarem diferentes movimentos epistemológicos que, por vezes, atendem a necessidades de um dado período histórico, com determinadas reflexões e paradigmas. Assim, pode-se dizer que o emprego do termo combinado também é um reflexo de uma discussão contemporânea que visa a integrar as produções tanto acerca dos efeitos da espiritualidade como da religiosidade nos desfechos em saúde. Na corporificação dessa tendência encontramos importantes contribuições da Psicologia e também da Enfermagem.

De acordo com Sá e Pereira (2007), a dimensão da R/E permeia a literatura de Enfermagem desde Florence Nightingale, sendo que no Brasil a primeira publicação científica data de 1947. A revisão dessas autoras elencou a integração entre R/E e Enfermagem a partir de prismas como: espiritualidade como parte do caráter e da moral do indivíduo que escolhe fazer enfermagem; espiritualidade como filosofia de trabalho do enfermeiro; espiritualidade como parte do currículo e formação do enfermeiro; na assistência ao paciente, como necessidade humana básica; significado da espiritualidade para quem é cuidado (paciente/cliente); significado para aquele que cuida; espiritualidade e humanização; espiritualidade, morte e morrer; espiritualidade sob a luz da Ética e da Bioética.

Em termos do cuidado em Enfermagem, pesquisas apontam que esses profissionais tendem a admitir a possibilidade de uma relação harmoniosa entre biociência e religiosidade, mas encontram grande desconforto para lidar com essa temática junto aos pacientes (Salimena, Ferrugini, Melo, & Amorim, 2016), inclusive em contextos de terminalidade, como dos cuidados paliativos (Evangelista et al., 2016) e dos cuidados intensivos (Penha & Silva, 2012). Esse desconforto pode estar relacionado a aspectos como a influência direta da sua própria R/E, da sua formação acadêmica e do receio de repercussão negativa em consequência da abordagem direta desses aspectos aos pacientes, podendo ser mal interpretado (Nascimento et al., 2013).

Ainda assim, estudos destacam a possibilidade de que o profissional de saúde seja um meio para ajudar o paciente a retomar o seu sentido de sua vida, mesmo no contexto de um adoecimento grave (Espíndula, Valle, & Bello, 2010). Essa ajuda pode se dar no sentido de contribuir para que tais pacientes se percebam e se conheçam nesse processo. Por essa razão, segundo essas autoras, a equipe multiprofissional deve proporcionar apoio, conforto e esperança de um futuro para o paciente e sua família, independentemente da cura. A partir desses achados, justifica-se a importância de uma disciplina que apresente e discuta a produção científica na área de R/E na interface com o cuidado em Enfermagem.

A partir dessa justificativa, em 2018 teve início a disciplina de "Religiosidade/Espiritualidade no Cuidado em Saúde: Pesquisas e Intervenções", oferecida no Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Essa disciplina está aberta não apenas a alunos oriundos desse programa, como de outros programas da própria Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), de outras unidades da Universidade de São Paulo (USP) e de outros programas externos à instituição. A cada nova oferta, também se destinam vagas a alunos externos, visando à integração de possíveis novos pós-graduandos interessados pela temática. A ementa da disciplina envolve reflexões sobre o papel da R/E no cuidado em saúde e suas potencialidades para a ampliação do conhecimento científico na área e o delineamento de intervenções que tenham como norte o cuidado integral e humanizado. O objetivo do presente relato de experiência profissional é apresentar uma proposta de disciplina de pós-graduação abordando a dimensão da R/E, refletindo sobre suas contribuições para a formação de profissionais alinhados às recomendações para a abordagem dessa dimensão no cuidado em saúde.

 

MÉTODO

Trata-se de um relato de experiência profissional. Esse tipo de relato tem como potencialidade a sua possível replicação em outros contextos, oferecendo reflexões a partir de uma determinada prática e possibilitando adaptações no modelo e a sua customização para outros cenários formativos, no caso, tanto da graduação, como da pós-graduação. Esse tipo de estudo tem sido empregado no campo das ciências humanas e sociais como forma de relatar experiências exitosas que possam ser consideradas inovadoras ou que tenham potencial de formação para novas estratégias de ensino, de prática e de formação de recursos humanos (Tosta, Silva, & Scorsolini-Comin, 2016).

A experiência narrada no presente estudo é a da implementação de uma disciplina de pós-graduação acerca da R/E voltada a discutir de que modo essa dimensão pode ser abordada no cuidado em saúde. Esse relato foi organizado a partir da oferta da referida disciplina nos anos de 2018 e de 2020. Os resultados foram organizados em cinco núcleos temáticos, de modo a caracterizar a disciplina e as principais reflexões oportunizadas a partir das ofertas nesse período de referência: (a) organização pedagógica da disciplina; (b) estruturação da disciplina; (c) perfil da disciplina e dos participantes; (d) percepção dos estudantes acerca da R/E; (e) potencialidades da disciplina. Esses núcleos temáticos serão discutidos com base na literatura científica acerca da R/E, buscando evidenciar suas possíveis contribuições, tanto para o campo de promoção de cuidado em saúde, quanto para a docência no ensino superior.

 

RESULTADOS

(A) ORGANIZAÇÃO PEDAGÓGICA DA DISCIPLINA

O objetivo geral da disciplina aqui apresentada é compreender como a R/E tem sido abordada no cuidado em saúde. Os objetivos específicos envolvem: (a) Conhecer as definições de religião, religiosidade, espiritualidade, laicidade, saberes tradicionais e epistemologias não-hegemônicas; (b) Pensar criticamente a relação entre religião, religiosidade e espiritualidade na atenção em saúde; (c) Conhecer algumas técnicas, instrumentos e estratégias de intervenção que podem ser utilizadas a partir desses contextos.

Entre os conteúdos abordados na disciplina, destacam-se os que envolvem as definições e os conceitos de religião, religiosidade, espiritualidade, laicidade, saberes tradicionais e epistemologias não-hegemônicas. Ainda, apresenta-se o histórico da relação entre religião, religiosidade, espiritualidade e saúde, trazendo à baila as principais abordagens teóricas e tendências que trabalham a dimensão da R/E no cuidado em saúde, como a Etnopsicologia, a Psicologia da Religião e a Psicologia Positiva. Por se tratar de uma disciplina que mescla discussões sobre teoria e prática, são importantes as reflexões sobre o panorama das pesquisas que vêm sendo realizadas nos últimos anos, bem como as possibilidades de intervenções, benefícios e cuidados éticos em saúde, ou seja, aspectos que atravessam a prática dos profissionais que se propõem a empregar a R/E na atenção em saúde. Por fim, um conteúdo importante na presente disciplina refere-se à história religiosa/espiritual do cliente/paciente/usuário, que pode ser obtida a partir da chamada anamnese espiritual.

Em termos dos conteúdos procedimentais, a disciplina busca associar teorias e argumentos científicos com dados da realidade e construir conhecimentos e questionamentos a partir de distintas percepções. Ainda em termos práticos, discute-se como aplicar o conhecimento gerado em intervenções na prática em saúde e também como obter a história religiosa/espiritual do cliente/paciente/usuário ou anamnese espiritual. A disciplina também busca fomentar determinadas atividades acerca da incorporação da R/E ao cuidado profissional, o que se dá a partir do desenvolvimento de um posicionamento ético a respeito de possibilidades, vantagens e riscos da inclusão da dimensão da R/E em intervenções em saúde. Em termos das atitudes observadas pela disciplina, também elencamos: a reflexão sobre as atitudes profissionais dos profissionais de saúde em relação à R/E no cuidado em saúde; o desenvolvimento de competências para o cuidado religioso/espiritual; a prática do acolhimento da R/E do outro; e, por fim, a avaliação crítica da importância da discussão de temas como religião, religiosidade e espiritualidade na pós-graduação em saúde.

A disciplina é desenvolvida por meio de aulas expositivas, leitura de textos, exibição de vídeos e filmes, visitas técnicas, discussões em grupo e seminários/mesas redondas. A avaliação envolve diferentes atividades, como a apresentação de seminário/mesa redonda, trabalho escrito (avaliado por construção da redação, pensamento crítico e referencial utilizado), participação nas atividades, discussões em sala de aula e relatórios da disciplina. Nas duas ofertas, realizadas nos anos de 2018 e 2020, a disciplina ocorreu exclusivamente na modalidade presencial. Destaca-se que no ano de 2020 ela foi ofertada de modo condensado, ao longo de todo o mês de fevereiro, com conclusão na primeira semana de março, antes da interrupção das atividades educacionais presenciais em decorrência da pandemia do novo coronavírus e da COVID-19 no Brasil, em uma ação necessária para o isolamento e o distanciamento social.

(B) ESTRUTURAÇÃO DA DISCIPLINA

A disciplina tem uma carga horária total de 90 horas, que foram divididas entre encontros presenciais e horas de estudo, destinadas para a confecção dos trabalhos. A organização dos encontros presenciais foi distribuída em oito momentos, sendo que os quatro primeiros envolvem a apresentação teórica dos conteúdos, bem como vivências em relação a esses conteúdos abordados. Para os demais momentos, os alunos são convidados a apresentar seminários/mesas redondas acerca de assuntos importantes na discussão da R/E, tais como: "acolhimento da R/E do outro", "R/E na educação em saúde", "crise, sofrimento psíquico e experiências religiosas/espirituais" e "práticas profissionais em saúde na interface com a R/E". O Tabela 1 sumariza esses momentos, inclusive trazendo sugestões de leituras a serem realizadas pela turma a cada uma dessas etapas.

(C) PERFIL DA DISCIPLINA E DOS PARTICIPANTES

As atividades a serem desenvolvidas e explicitadas no plano de ensino da disciplina têm por objetivo fornecer um aporte para compreensão do fenômeno da R/E e sobre como estas dimensões são abordadas em pesquisas e intervenções no campo da saúde, em especial, da saúde mental. Assim, o método de desenvolvimento das atividades procura inicialmente abordar a parte teórica referente ao conteúdo e, na sequência, a parte mais interventiva, com participação ativa dos estudantes matriculados.

No início da disciplina um movimento tem se mostrado relevante de ser realizado, que diz respeito ao levantamento das motivações que levaram os estudantes a se matricularem na disciplina. Assim, busca-se analisar e compreender as demandas dos estudantes, ao mesmo tempo em que é possível observar interlocuções que os conteúdos a serem abordados poderiam realizar com os projetos de pesquisas em desenvolvimento. Nota-se que o movimento de compreensão das influências da R/E na subjetividade dos sujeitos e, consequentemente, na forma como estes vivenciam suas questões de saúde, têm sido elementos importantes que impulsionaram o desenvolvimento de pesquisas no contexto nacional que tenham essas dimensões como objeto de estudo.

Deste modo, nas duas vezes em que a disciplina foi ofertada, observou-se que os estudantes matriculados geralmente procuraram a disciplina em decorrência de alguma aproximação do conteúdo abordado com as temáticas dos seus projetos de pesquisa. Em outros casos a matrícula ocorreu pelo fato de a disciplina perpassar tangencialmente a temática investigada no projeto de pesquisa e ser necessário compreender melhor esses fenômenos. Houve, também, situações em que a busca ocorreu pelo fato de a R/E perpassar as práticas profissionais dos estudantes nas atividades que desenvolviam no campo da saúde, educação ou assistência social.

Além dos aspectos ressaltados, também têm sido expressas como motivações para cursar a disciplina as próprias experiências religiosas e espirituais dos estudantes que trazem à baila aspectos vivenciais particulares e singulares em torno da R/E. Estes elementos possibilitam compreender, inclusive, em algumas situações, as razões pelas quais o pós-graduando elegeu seu objeto de estudo para desenvolver no seu projeto de pesquisa. A ausência ou número reduzido de disciplinas que abordem a temática nos programas de pós-graduação e graduação também foi destacada como atrativo para cursá-la, reforçando a sua importância na formação dos profissionais de saúde.

Os estudantes, em sua maioria, são oriundos de programas de pós-graduação da área da saúde ou ciências humanas da USP. Além destes, em número menos expressivo, estudantes de programas de pós-graduação de outras universidades públicas brasileiras e alunos especiais (estudantes que pretendem cursar a pós-graduação, mas que ainda não foram aprovados em processos seletivos) têm sido matriculados. A formação desses estudantes, geralmente, é em Enfermagem, Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Odontologia e Pedagogia. Dentre as formações citadas, Enfermagem e Psicologia são as mais preponderantes. Isso pode ser explicado pelo fato de a disciplina estar inserida em um programa de pós-graduação em Enfermagem e pelo fato de o professor responsável ser psicólogo e pesquisador da área da Psicologia, com experiências e publicações relacionadas à temática da R/E.

Em relação à R/E dos matriculados, há uma variação significativa de matrizes religiosas e espirituais que possibilitou conhecer, analisar e discutir vivências dos sujeitos acerca de suas R/E. Foi possível observar na disciplina pessoas que não seguem nenhuma crença religiosa e espiritual específica, católicas, evangélicas (de diferentes denominações), espíritas, espiritualistas, candomblecistas, umbandistas e muçulmanas. Até o momento, não houve nenhum aluno que se manifestou como ateu ou agnóstico. O engajamento nas práticas religiosas e espirituais variou entre os participantes e o tipo de religião/espiritualidade não foi um fator determinante para delimitar maior ou menor engajamento na disciplina.

(D) PERCEPÇÕES DOS ESTUDANTES ACERCA DA R/E

Os debates realizados em sala de aula mostraram-se ricos em termos de elementos das vivências dos sujeitos, tanto em suas vidas privadas, quanto em relação à formação e suas práticas profissionais e de pesquisa. As R/E foram descritas como dimensões importantes e que poderiam orientar o modo de vida, crenças e comportamentos dos estudantes (modo de compreender a vida e as relações humanas, reagir a determinados eventos, observar o sofrimento do outro, etc.). Estes elementos são importantes de serem considerados, pois podem ser parte constituinte da identidade profissional dos estudantes, na docência e nas práticas de cuidado em saúde.

Ao serem questionados acerca de como a R/E havia sido apresentada durante a sua formação, os estudantes descrevem como elementos pouco discutidos e, em muitas situações, cercados por tabus e receios em relação ao modo como abordá-la. Consequentemente, manifestam que poucas ou nenhuma disciplina abordou tais temáticas durante a graduação, independentemente da formação. Em relação aos estudantes da Psicologia, houve relatos em relação ao receio do envolvimento destas questões com aspectos da ciência psicológica, a manifestação de documentos do Conselho Profissional que abordam o assunto e orientam as práticas de intervenção relacionadas à R/E e as implicações disso na atuação nesta área. Um exemplo disso é a frequente menção ao Código de Ética Profissional do Psicólogo.

Quanto à maneira que a R/E está presente na vida profissional, os estudantes descreveram como uma dimensão que perpassa as atividades que realizam em diferentes contextos de intervenção, na saúde, educação e serviço social. Os estudantes manifestaram perceber que a R/E perpassa suas práticas por serem elementos presentes na vida das pessoas, interferindo em como estas concebem o mundo e acreditando na potencialidade de melhoria de situações diversas, com a ajuda de suas crenças.

Segundo os estudantes, principalmente em contexto de adoecimento, a R/E faz-se presente de diferentes formas, atuando como um elemento que acompanha a pessoa que chega para o atendimento. A R/E das pessoas, segundo os estudantes, pode se manifestar: 1) Por meio da oralidade ou gestos corporais - falas, sinais (como sinal da cruz, levantar as mãos ao céu, dançar, cânticos, entre outros); 2) Por meio de seus símbolos - camisetas com frases ou imagens, escapulário, pulseiras, bíblias, objetos abençoados, utilização de determinadas vestimentas, entre outros; 3) Pela adoção de determinados hábitos de vida - não realizar atividades determinado dia da semana, fazer orações durante alguns momentos do dia, não comer algum tipo de alimento, não realizar alguns procedimentos no corpo, evitar algum tipo de envolvimento afetivo/sexual antes de determinado momento de vida, entre outros.

Em termos de pesquisa, os estudantes mencionavam que seus estudos abordavam temas diversos em relação à R/E, como: estratégia de coping, investigação das vivências da R/E em populações LGBTQIA+, como estratégia de proteção para o envolvimento em situações de risco, como estratégia de enfrentamento no contexto da dependência de álcool e outras drogas, avaliando a influência da R/E no trabalho, a utilização da R/E enquanto potencializadora da adesão ao tratamento a determinados procedimentos de saúde, entre outros. Em relação aos seus projetos de pesquisa, os estudantes manifestaram que na literatura científica internacional existem mais publicações sobre a temática da R/E, realizadas em grandes centros de pesquisa. No contexto nacional, as pesquisas têm ganhado mais ênfase e centros de estudos da R/E têm sido implementados em universidades.

Nas discussões realizadas em sala de aula também foi problematizado como os espaços de profecia das crenças religiosas e espirituais podem se transformar em locais de cuidado em saúde, principalmente quando acolhem demandas apresentadas pelas pessoas, realizando orientações e encaminhamentos adequados. Os estudantes manifestaram conhecer instituições religiosas e/ou espirituais que tiveram papel importante, auxiliando as pessoas no enfrentamento de situações de adoecimento físico e mental, bem como no acolhimento em situações de luto. O auxílio prestado foi descrito como sendo de diferentes naturezas: orientação para procura de atendimento especializado, encorajamento, apoio financeiro, acolhimento de angústias, redução de ansiedade, realização de grupos de oração junto com a pessoa adoecida e/ou familiares, desenvolvimento do sentimento de pertencimento e amparo, entre outros.

Por outro lado, também foram manifestadas situações em que instituições religiosas e/ou espirituais, por meio de alguma figura de autoridade da mesma (padre, pastor, orientador), atuou de modo negativo no enfrentamento da doença. Nestes casos, foi evidenciado situações como: substituição do tratamento convencional por tratamento de cunho religioso e/ou espiritual, realização de promessas, doações que não tiveram o resultado final esperado, realização de rituais/orações/pedidos (ou similares) que não foram atendidos, uso de objetos que não foram suficientes para melhoria das condições de saúde, entre outros.

(E) POTENCIALIDADES DA DISCIPLINA

Por meio da experiência na disciplina foi possível perceber um envolvimento ativo dos estudantes que são convidados e incentivados desde o primeiro momento a falarem de suas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas com a R/E. Deste modo, a R/E é vista não somente como um objeto de estudo e que deve ser analisada cientificamente, mas como dimensão que faz parte da constituição dos sujeitos, interferindo em sua subjetividade e vivências, sendo parte de um repertório sociocultural e histórico que está presente na sociedade brasileira, com significativa importância para as pessoas.

É importante ressaltar que o estudo, as reflexões e os debates acerca da R/E não perdem o princípio da cientificidade acadêmica ao incorporarem as experiências religiosas/espirituais dos sujeitos inseridos neste contexto. Se partimos da premissa de que todas as pessoas são seres sociais, não condiz com a realidade abordar um tema que faz parte dos contextos de vida individual e coletivo sem que os estudantes expressem suas próprias vivências com a temática. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que o movimento de incorporar as vivências religiosas/espirituais dos estudantes nos conteúdos a serem discutidos e refletidos na disciplina, por meio da escuta ativa de seus relatos de experiência, permite a elaboração, compreensão e reflexão sobre o papel do acolhimento religioso/espiritual e diferentes formas de realizá-lo, sinalizando também que se essas manifestações encontram um espaço de diálogo nesse espaço, possivelmente, terão em outros. Assim, a disciplina busca corporificar o acolhimento da R/E do estudante, assim como recomendado, por exemplo, quando discutimos as práticas profissionais e a necessidade de reflexão sobre essa dimensão tanto no paciente/cliente quanto no próprio profissional de saúde.

A articulação entre as pesquisas a serem desenvolvidas e a produção científica nacional e internacional existente também foi um dos aspectos abordados nas aulas expositivas referente ao conteúdo teórico e nas discussões realizadas nas rodas de debates e seminários. A maioria dos estudantes com projetos de pesquisa voltados para a investigação da R/E realizou algum tipo de revisão de literatura para construção de seus estudos. Com isso, nos debates realizados foi possível a troca de informações sobre o estado da produção científica sobre a utilização da R/E, evidenciando que as mesmas têm sido exploradas no contexto nacional e internacional com diferentes enfoques e perspectivas.

Estudar, discutir e refletir sobre as implicações da R/E no contexto de formação na pós-graduação no Brasil mostra-se uma atividade relevante considerando o cenário em que somente 8% da população não possui uma crença religiosa segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2010). Nota-se que, independentemente do local em que os pós-graduandos estejam inseridos, seja em contexto de atenção e cuidado em saúde, ensino, assistência social ou na docência, compreender as diferentes formas pelas quais a R/E se manifesta e interfere nas condições de saúde física e mental da população, mostra-se pertinente.

Estudos têm apontado a utilização da R/E para melhoria das condições de saúde física e mental das pessoas em seus diferentes aspectos, enfatizando como essa dimensão pode ser considerada um elemento significativo na atenção psicossocial (Koenig, 2012). Do mesmo modo, têm sido evidenciadas, principalmente, diferentes formas pelas quais a R/E interfere nas condições de saúde mental dos sujeitos (Koenig, 2007; Murakami & Campos, 2012) e, consequentemente, nas condições subjetivas dos mesmos e no suporte social que recebem.

Discutir a R/E no contexto de pós-graduação, através do oferecimento de uma disciplina que atende majoritariamente a estudantes de cursos da área da saúde, proporciona um espaço de capacitação para que estes se tornem implementadores e multiplicadores de boas práticas em saúde que considerem essas dimensões como parte da constituição sociocultural e subjetiva dos sujeitos. Sabe-se que a R/E faz parte dos contextos de vida pessoal e de trabalho de profissionais que atuam nos contextos de atenção à saúde física e mental (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019; Raddatz et al., 2019), sendo esses aspectos evidenciados pela literatura científica. Assim, esta dimensão é importante de ser considerada nas vivências de profissionais de saúde, pois pode influenciar na forma como esses sujeitos acolhem as demandas religiosas/espirituais trazidas pela população e os significados que atribuem a elas. Do mesmo modo, a R/E pode ser uma estratégia importante para estes estudantes no enfrentamento de situações difíceis da própria práxis profissional (Ferreira et al., 2011; Nascimento et al., 2013).

O modelo adotado na condução das atividades merece ser destacado enfatizando-se a necessidade de criar espaço para que os estudantes possam manifestar quais são suas crenças religiosas ou espirituais, bem como a inexistência destas. Além disso, é necessário fazer com que o ambiente seja um local de acolhimento para diferentes manifestações da R/E, sem julgamento ou sobreposição de graus de importância entre elas. Busca-se, dessa maneira, construir um espaço confortável no qual a dimensão da R/E possa ser verbalizada, discutida, acolhida e problematizada cientificamente respeitando a diversidade e primando pela construção de uma cultura de respeito, de tolerância e de valorização desses elementos em nossa formação e em nosso cotidiano. Espera-se que os estudantes de pós-graduação, ao participarem de disciplinas como a descrita neste estudo, utilizem-se dos conhecimentos adquiridos e, ao desempenharem suas funções como docentes, tenham a capacidade de evidenciar a R/E e problematizar com seus alunos os aspectos positivos e negativos dessa dimensão na vida dos sujeitos, independentemente do contexto em que estes se encontram.

 

DISCUSSÃO

A abertura para conhecer as motivações em relação à disciplina, assim como as crenças religiosas/espirituais presentes na subjetividade dos estudantes, acabou sendo um elemento importante na condução da disciplina pelo fato de possibilitar a compreensão de elementos de cada R/E. Isso foi possível a partir das vivências dos participantes, suas formas de se relacionarem com a R/E, tanto em nível individual, como no campo social, bem como das repercussões e influências da R/E na escolha do objeto de pesquisa. Observa-se que a pluralidade de credos e as crenças dos estudantes refletem as estatísticas que compõem a predominância de uma população que se autodenomina religiosa/espiritual (IBGE, 2010).

É cada vez mais evidente a necessidade de olhar para o profissional como um ser prenhe de experiências educacionais, políticas, sociais, culturais, religiosas/espirituais, que influenciam seus valores pessoais e profissionais e, consequentemente, a sua prática e visão de mundo (Peteet, 2014). Nessa experiência fica claro, a partir das percepções dos estudantes, que o discurso de neutralidade apregoada pela ética científica e profissional não quer dizer a ausência da subjetividade do profissional, mas uma percepção de seus valores para que esse possa ser reconhecido em si e no outro e evidenciado na relação de cuidado a partir desse outro (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019; 2020).

Além disso, a oportunidade de um espaço de acolhimento e diálogo sobre a R/E se manifesta como uma maneira de possibilitar a tolerância e o respeito, incorporando um movimento que caminha para o olhar humanizado da saúde, que parte do próprio sujeito em atendimento. Observa-se que além de cumprir a função de transmitir conhecimentos a partir das evidências científicas sobre a dimensão da R/E, a disciplina segue a tendência de formar profissionais capazes de olharem para si e para o outro de maneira empática, valorizando sentimentos e emoções, ampliando os recursos formativos para dar conta das mudanças paradigmáticas necessárias em conformidade com a Política Nacional de Humanização (Cid, Dias, Benincasa, & Martins, 2019).

Os diálogos e as trocas sobre a R/E que foram favorecidos durante as discussões em sala sinalizam a importância de construir espaços para que isso aconteça, considerando os relatos de que a temática foi, predominantemente, ausente em suas formações e existem receios por parte dos estudantes, reforçando as evidências sobre a lacuna da temática no currículo profissional (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019; Nascimento et al., 2013). Ademais, criar efetivamente esses espaços vai ao encontro da necessidade percebida de que a R/E está presente na vida das pessoas e que influencia a maneira como concebem o mundo e os desfechos de saúde.

As discussões sobre como os espaços religiosos e espirituais podem se transformar em locais de cuidado em saúde, assim como situações em que instituições religiosas/espirituais ou figuras de autoridades das mesmas podem atuar negativamente no processo de saúde-doença, serviram para dimensionar o potencial positivo e negativo que a R/E tem de influenciar crenças e comportamentos. Não se trata de negar ou defender somente os desfechos positivos dessa dimensão, mas ser capaz de criticar e conhecer evidências que sensibilizem para a autonomia do outro de decidir por si. Um exemplo bastante conhecido pelos profissionais de saúde são os casos relacionados à recusa de procedimentos como a transfusão de sangue ou de hemoderivados dos que se denominam Testemunhas de Jeová. De acordo com Azambuja e Garrafa (2010), deve-se estar preparado para reconhecer conflitos éticos e/ou morais na relação, pois existem tratamentos alternativos e sanguíneos que são aceitos por esse público, o que também não impede de se recusarem por convicções. Criar um espaço na formação profissional para dialogar como são vistas as relações positivas e negativas que provêm da R/E é também desconstruir preconceitos produzidos por um olhar excessivamente biomédico, evitando estigmas que afastem os profissionais de saúde desse público e, consequentemente, esse público dos equipamentos formais de cuidado.

A variedade dos temas pesquisados pelos estudantes sinaliza a tendência de estudos que investigam o potencial positivo que a R/E tem nos desfechos em saúde (Koenig, 2012). A partir disso, os conhecimentos de cada estudante também se destacam como um diferencial para disciplina, já que cada um é capaz de somar aos conteúdos inicialmente propostos, contemplando seu objetivo. Subentende-se que as estratégias de ensino e aprendizagem empregadas foram efetivas na capacitação e formação dos estudantes, oportunizando conhecimentos e conteúdos procedimentais e atitudinais para pensar criticamente questões relacionadas à R/E, refletir sobre as próprias questões religiosas/espirituais, formando multiplicadores que considerem estas dimensões como parte da constituição sociocultural e subjetiva dos sujeitos capazes de atuar de maneira ética e humanizada.

Um último aspecto deve aqui ser problematizado, destacando a relevância da disciplina em uma sociedade eminentemente cristã como a brasileira. Nesses termos, a disciplina se faz importante na formação acadêmica e profissional dos discentes matriculados, sobretudo por possibilitar a discussão e o consequente combate à intolerância religiosa. No decorrer das aulas foram trabalhados aspectos relacionados à pluralidade religiosa/espiritual entre os alunos e cada um dos presentes teve a oportunidade de conhecer um pouco de cada R/E apresentada por aqueles que estiveram dispostos a partilhar suas experiências religiosas/espirituais durante as discussões travadas em aula. Nesse sentido, pode-se entrar em contato, por exemplo, com religiões como a umbanda, o candomblé e o Islã, que despertaram o interesse dos alunos, revelando diversos desconhecimentos acerca dessas crenças por parte da maioria dos estudantes.

Como tais religiões também são alvos de racismo e de intolerância religiosa em nossa sociedade, esse espaço tornou-se potente para que todos pudessem conhecer melhor os embasamentos de tais religiões, bem como o cotidiano de pessoas filiadas a essas crenças. Tal procedimento auxilia no rompimento de alguns conceitos e preconceitos populares e, muitas vezes, mal interpretados do sincretismo religioso no Brasil, sobretudo no que tange às religiões de matriz africana, também desconstruindo a imagem de que, em nosso país, haveria uma convivência harmônica entre todas as religiões, o que vem sendo considerado um mito. Um exemplo disto é que, no início da disciplina, alguns discentes mencionaram que a umbanda e o candomblé seriam uma mesma religião, sendo equivalentes. Embora sejam religiões de matriz africana, consideradas religiões afro-brasileiras, há que se considerar que se tratam de matrizes substancialmente distintas. Afirmações como essa não apenas demonstram demasiado desconhecimento e uma nítida ilustração de singularização das culturas afro-brasileiras, como também podem ser interpretadas como fruto de um racismo à brasileira, estrutural e velado em sua sutileza (Gaia, Vitória, & Roque, 2020; Nascimento, 2016).

Por ocasiões como essa e dada às diversas produções acadêmicas disponíveis para embasar docentes e discentes sobre os aspectos raciais e afro-religiosos em nosso país é que esta disciplina se fez/faz tão necessária, potencialmente combatente ao racismo e à intolerância religiosa e formadora de profissionais de saúde mais informados dos que aqueles que historicamente naturalizam a desumanização dos grupos sociais destinados às margens. Assim, embora a discussão sobre intolerância e racismo religioso não estivesse planejada na disciplina, tal reflexão emergiu a partir do perfil dos alunos. É importante que, a cada oferta, o docente responsável esteja aberto para que novos conteúdos possam emergir em função da necessidade do grupo. No caso da intolerância religiosa e do racismo, em específico, sugere-se que tais aspectos sejam incorporados à disciplina, haja vista que se relacionam diretamente com muitas das atitudes profissionais que foram alvo de discussão ao longo desse componente curricular.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O relato de experiência apresentado mostra-se como um espaço que caminha na tendência de uma formação mais humanizada, levando em conta aspectos que ainda são difíceis de serem reconhecidos e discutidos em níveis científicos e pessoais. Nesse sentido, competências relacionadas a experiências e conhecimentos na temática da R/E, assim como sensibilidade empática e valorização da autonomia do outro em sentir e escolher são fundamentais. A difusão do conhecimento, assim como os processos de saúde, passa por reformulações que evocam cada vez mais o protagonismo da relação, em um movimento de construção do saber dialógico e não autoritário.

Possibilitar o relato de vivências e experiências da R/E dos estudantes mostra-se um diferencial de acolhimento e de modelo de disciplina, dando margem para expressão de um assunto que é popularmente tido como tabu. Se existe uma condição favorável para expressão desse tema na formação, com base no respeito e tolerância, assim como em conhecimentos científicos que possam desmistificar equívocos na compreensão dos processos de saúde-doença, provavelmente existe espaço para o profissional investigar essa dimensão e do paciente/cliente/usuário em manifestar a sua R/E.

Acredita-se que essa experiência seja potente no sentido de oportunizar novos espaços que acolham temáticas marginalizadas e essenciais na formação de profissionais mais humanizados. Mesmo que limitada e circunscrita à região na qual se deu essa experiência, espera-se que a expansão de estudos sobre a R/E e a tentativa de preencher a lacuna do tema na formação impulsionem novas ofertas de disciplinas que abordem a temática, seja na graduação e/ou na pós-graduação. Reconhece-se como limites dessa experiência as delimitações geográficas que oportunizam o acesso à condição presencial na disciplina. Além disso, a coleta de feedbacks não identificados pode ser outra maneira de detectar expectativas não atendidas e insatisfações em relação à disciplina. O modelo aqui compartilhado pode e deve ser analisado pelos docentes e pesquisadores do campo das R/E, a fim de que novas propostas possam ser implementadas e avaliadas, compondo um rol de competências que serão cada vez mais presente não apenas na pesquisa, mas também nas práticas de diferentes profissionais, sobretudo os do campo da saúde.

Para ofertas futuras, sugere-se a criação de mecanismos de avaliação que possam acompanhar esses alunos/profissionais ao longo do tempo, verificando não apenas a repercussão desses conhecimentos em suas pesquisas/práticas e em suas próprias vidas, mas também suas sugestões para outras possibilidades de abordagem desses saberes na formação profissional. A pós-graduação, especificamente, deve estar atenta a esses componentes, que podem ser considerados inovadores por, justamente, operacionalizarem uma discussão mais próxima e significativa acerca de conteúdos majoritariamente abordados com distanciamento na formação profissional em saúde e na docência para o ensino superior.

Em decorrência da pandemia do novo coronavírus e da COVID-19 no ano de 2020, tais estratégias metodológicas apresentadas podem exigir reformulação e adaptação a um modelo remoto ou até mesmo híbrido. Compreendemos que a possibilidade de oferta da disciplina de modo remoto pode justamente romper com a limitação geográfica afirmada anteriormente, possibilitando o acesso de diferentes públicos a esses conhecimentos e a essas reflexões. Nessa nova configuração em que o ensino tem se apoiado para dar conta de atender às necessidades educacionais, além dos ajustes e desafios promovidos pelo uso das tecnologias digitais de informação e comunicação, pode-se ter o ganho de aproximar e oportunizar que a disciplina chegue com mais facilidade a outras pessoas, em diferentes regiões do país. Essa ampliação do acesso pode, inclusive, oportunizar que diferentes audiências também tragam para o debate uma maior diversidade religiosa/espiritual, acessando religiosidades e espiritualidades que, porventura, tenham uma menor penetração no eixo sul/sudeste. Essa oportunidade pode e deve ser vista como um avanço, o que não nos exime da necessidade de permanentemente revisitar as estratégias de ensino e aprendizagem não apenas no sentido de uma adaptação a um novo cenário ou a um marcador temporal provisório, mas de produção de recursos e inteligibilidades característicos desse contexto contemporâneo e dos seus desafios (Scorsolini-Comin, Melo, Rossato, & Gaia, 2020). Alguns ajustes podem ser empreendidos em termos da organização das mesas redondas e dos debates por meio de plataformas de aprendizagem, também com direcionadores no sentido da quantidade de vagas a serem disponibilizadas, a fim de que todos e todas tenham a oportunidade de se expressarem, de apresentarem suas vivências e serem devidamente acolhidos nessas oportunidades, cumprindo um dos objetivos centrais da disciplina em tela.

Além disso, frente ao momento no qual deflagramos números crescentes de transmissão e contaminação pelo novo coronavírus, de adoecimentos de diferentes ordens em decorrência desse contexto e de um número expressivo de óbitos no Brasil e no mundo, é mister que a disciplina possa desenvolver reflexões sobre o papel da R/E nesse contexto. Isso evoca, necessariamente, o contato com as realidades dos profissionais de saúde e de educação, que compõem a maioria dos estudantes que têm buscado essa disciplina em suas ofertas pregressas. Entrar em contato com esses desafios profissionais e promover uma escuta para esses estudantes e suas R/Es pode ser uma estratégia potente e acolhedora. A R/E pode ser um recurso no enfrentamento da COVID-19 para ações mais humanizadas e de apoio para os adoecidos, profissionais e familiares. A contemporaneidade dessa discussão pode e deve ser incorporada aos currículos da graduação e da pós-graduação em saúde, sendo o presente relato um direcionamento nesse sentido.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 07/04/2020
1ª revisão em: 10/11/2020
Aceito em: 17/11/2020

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Vivian Fukumasu da Cunha é psicóloga e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (ERRP-USP). Bolsista de Doutorado da CAPES.
E-mail: vivianfcunha@usp.br
https://orcid.org/0000-0002-0963-956X
Lucas Rossato é psicólogo e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (ERRP-USP). Bolsista de Doutorado da CAPES.
E-mail: rossatousp@usp.br
https://orcid.org/0000-0003-3350-0688
Ronan da Silva Parreira Gaia é pedagogo e mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (ERRP-USP).
E-mail: ronangaia@usp.br
https://orcid.org/0000-0003-2342-0019
Fabio Scorsolini-Comin é psicólogo, Doutor em Psicologia e Professor do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
E-mail: fabio.scorsolini@usp.br
https://orcid.org/0000-0001-6281-3371

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