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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versión On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.12 no.1 Londrina ene./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n1p03 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Opressão racial internalizada: um estudo com negros brasileiros

 

Internalized racial oppression: a study with the brazilian black population

 

Opresión racial internacionada: un estudio con la población negra brasileña

 

 

Aline Gomes da Silva Pimentel; Nelson Hauck Filho

Universidade São Francisco

 

 


RESUMO

A opressão racial internalizada refere-se a um processo de interiorização de estereótipos raciais negativos, por parte de pessoas negras, ocorrendo enquanto autoatribuição de uma posição inferior em uma suposta hierarquia racial. O objetivo do presente estudo foi traduzir ao Português Brasileiro a Internalized Racial Oppression Scale for Black Individual (IROS), desenvolvida nos Estados Unidos, que avalia opressão racial internalizada. Também se pretende identificar a pertinência da temática no contexto brasileiro. O estudo ocorreu em duas etapas, em que a primeira foi a tradução propriamente dita e, a segunda, discussão com grupo focal. Os itens foram avaliados como sendo de fácil compreensão, necessitando poucas alterações e resultando em uma versão traduzida para o Português Brasileiro. A partir da discussão com o grupo focal foi possível identificar a pertinência da temática ao contexto brasileiro. Porém, existem especificidades a serem consideradas em estudos futuros para a adaptação e validação da escala.

Palavras-chave: tradução; racismo; opressão racial internalizada.


ABSTRACT

Internalized racial oppression refers to a process of internalization of negative racial stereotypes by black people, occurring as a self-attribution of a lower position in a supposed racial hierarchy. The aim of the present study was to translate the individualized Internalized Racial Oppression Scale for Black (IROS) into Brazilian Portuguese, developed in the United States, which assesses internalized racial oppression. It is also intended to identify the relevance of the theme in the Brazilian context. The study took place in two stages, in which the first was the translation itself, and the second, discussion with a focus group. The items were evaluated as being easy to understand, requiring few changes and resulting in a version translated into Brazilian Portuguese. From the discussion with the focus group, it was possible to identify the relevance of the theme to the Brazilian context. However, there are specificities to be considered in future studies for the adaptation and validation of the scale.

Keywords: translation; racism; internalized racial oppression.


RESUMEN

La opresión racial internalizada se refiere a un proceso de internalización de estereotipos raciales negativos por parte de la gente negra, que ocurre como una autoatribución de una posición inferior en una supuesta jerarquia racial. El objetivo del presente estudio fue traducir la Escala de opresión racial internalizada individualizada para negros (IROS) al português brasileno, desarrollada en los Estados Unidos, que evalúa la opresión racial internalizada. Tambiên se pretende identificar la relevancia del tema en el contexto brasileno. El estudio se desarrolló en dos etapas, en la que la primera fue la traducción en si y la segunda, la discusión con un grupo focal. Los items fueron evaluados como fáciles de entender, requirieron pocos cambios y resultaron en una versión traducida al português brasileno. A partir de la discusión con el grupo focal, fue posible identificar la relevancia del tema para el contexto brasileno. Sin embargo, existen especificidades a considerar en futuros estudios para la adaptación y validación de la escala.

Palabras clave: traducción; racismo; opresión racial internalizada.


 

 

INTRODUÇÃO

A temática da opressão racial internalizada a ser abordada neste estudo, possui como base conceitual concepções relacionadas à discussão do fenômeno do racismo propriamente dito. Portanto, a fim de ampliar a compreensão desses temas complexos, também serão brevemente elucidados os conceitos de raça, preconceito racial e discriminação racial, diretamente relacionados ao tema. O termo raça ao longo do tempo foi associado a diferentes significados, desde aspectos biológicos quanto a aspectos políticos e sociais. A ideia relacionada à existência de subcategorias que se formariam por atributos físicos em comum, atualmente desconsiderada por boa parte comunidade científica, serviu como base para práticas imperialistas ao redor do mundo. Nesse sentido, a exploração de determinados grupos racializados tinha como justificativa a crença em uma espécie de hierarquia entre raças, como se determinados grupos raciais fossem civilizadamente superiores a outros. Por outro lado, mais atualmente, uma nova compreensão acerca do conceito de raça defende a importância de que seja reforçado, para que possa ser afirmado positivamente. Isto justamente no sentido de unificar e fortalecer grupos socialmente discriminados devido a tal concepção hierárquica de raças como o caso dos negros, por exemplo (Guimarães, 2011; Schucman, 2010).

A partir da descrição de raça pela ótica dos aspectos morfológicos em comum, o preconceito racial se dá por meio da atribuição de características psicológicas, morais e comportamentais a determinados grupos raciais, como se fossem intrínsecas. Nesse sentido, tais grupos são julgados de forma prévia por meio de crenças e representações estereotipadas. Já a discriminação racial se constitui por meio de ações, atitudes ou comportamentos que podem gerar desvantagens ou prejuízos a um grupo ou a um indivíduo por conta de sua raça (Almeida, 2019; Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017).

Em relação ao racismo propriamente dito, cabe ressaltar que sua conceituação é bastante complexa, podendo abarcar diferentes dimensões que se inter-relacionam (Campos, 2017). Em razão disso, serão abordados ângulos acerca do fenômeno, neste estudo, mais precisamente em seus níveis estrutural e pessoal, que servirão como base para caracterizar o construto da opressão racial internalizada, a ser apresentada logo mais.

Dessa forma, o racismo pode ser compreendido como um processo de sistematização dos fenômenos apresentados, que se materializa na medida em que ações discriminatórias já não ocorrem de forma isolada, mas sim sistematicamente, interferindo no cotidiano das relações sociais. Isto é, o racismo é entendido como um mecanismo, que a partir da concepção de hierarquia de raças, atua legitimando desigualdades, segregação, estratificação e opressão. Nessa configuração estrutural, as expressões do racismo são naturalizadas, ocorrendo de forma normalizada na sociedade. Assim, pode-se dizer que o racismo é parte da estrutura social constituída historicamente e que se consolidou por meio de ações discriminatórias repetidamente praticadas, que se manifestam de forma generalizada nos contextos sociais, políticos, econômicos e institucionais (Almeida, 2019; CFP, 2017).

No Brasil, o racismo em relação aos negros pode exemplificar essa dimensão estrutural. Após a abolição da escravatura em 1888, cerca de 380 anos após o seu início, a concepção de superioridade da população de raça branca sobre a população de raça negra se mantinha. Nessa época, os negros já correspondiam a, aproximadamente, 55% da população e, assim sendo, em um processo eugenista, a elite brasileira, por meio da imigração europeia, justificada pela mão-de-obra, objetivou também "branquear" o Brasil. Esse embranquecimento se refere à ideia de que era necessário que a população, já em sua maioria negra, pudesse ser "clareada" para eliminar a negritude e os estereótipos negativos associados à raça (Carone & Bento, 2002). E foi nesse contexto que, após a suposta libertação, os negros foram marginalizados, já que não eram alfabetizados e competiam em condições desiguais com os imigrantes europeus, diminuindo a possibilidade de se emanciparem socialmente (Lins, Lima-Nunes, & Camino, 2014).

Nesse aspecto, as condições atuais da população negra se associam ao antigo cenário de desigualdade racial. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população preta e parda corresponde a 54% da população brasileira. No ano de 2018, representava 64,2% dos trabalhadores desocupados ou subutilizados e 47,3% em condições de informalidade. A pesquisa Síntese de Indicadores Sociais apontou que, em 2017, pretos e pardos eram maioria em setores com remuneração mais baixa: agropecuária 60,8%; construção civil 63% e serviços domésticos 65,9%, atividades essas com os menores rendimentos no ano mencionado. Além disso, pretos e pardos representam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos. Em relação às condições de moradia, em 2018, 44,5% dos pretos e pardos viviam em domicílios com ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico (coleta de lixo, abastecimento de água por rede e esgotamento sanitário por rede). Por fim, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas e pardas de 15 anos ou mais, é maior que o dobro de pessoas brancas: 9,1% pretos e pardos para 3,9% brancos. (IBGE, 2017; 2018). Tais dados apontam para desigualdades raciais que se estruturaram a partir da conjuntura social estabelecida pelo mecanismo hierárquico de poder, não se tratando apenas de atos discriminatórios isolados.

Na medida em que se discutem as desigualdades geradas pelo racismo intricado na estrutura social, é importante ressaltar aspectos que indivíduos negros, inseridos nesse contexto, podem experienciar. O racismo, nesse sentido, pode gerar diferentes efeitos psicossociais para os indivíduos. Um deles, denominado como "crescimento e questionamento", diz respeito às possibilidades de um indivíduo refletir sobre o racismo vivenciado, por meio de referências culturais, sociais, políticas ou familiares e, com isso, construir recursos psíquicos e sociais para seu enfrentamento. Por outro lado, outro efeito descrito como "utilização de mecanismos psíquicos defensivos contra o racismo", relaciona-se ao não enfrentamento do racismo vivenciado a fim de manter a integridade psíquica, utilizando-se de mecanismos de defesa como negação ou identificação com o agressor. Já no caso do efeito apresentado como "dilaceramento psíquico", a vivência de racismo se apresenta como devastadora para a psique (CFP, 2017; Costa, 2012). Associado aos dois últimos efeitos citados, pode-se identificar aspectos do construto da opressão racial internalizada, objeto principal deste estudo.

Entende-se por opressão racial internalizada o processo de internalização de estereótipos raciais negativos por parte de pessoas negras em relação à sua própria raça, muitas vezes sem a consciência do indivíduo, considerando, assim, estereótipos brancos como mais adequados. Esses estereótipos podem estar ligados a valores, crenças, história e até características físicas. Pode, assim, ser compreendido como um fenômeno onde estão envolvidos aspectos relacionados a estruturas de dominação, pelo qual grupos dominantes ditam a normalidade e o que é "correto", ignorando outro tipo de cultura, classificando-a como inferior. Essas representações dominantes podem ser observadas através de imagens da mídia, da linguagem ou nas experiências de desvalorização pessoal no dia a dia que podem ser introjetadas, fazendo com que não se sintam tão bons, tão inteligentes ou tão dignos. Sendo assim, comportamentos como realização de cirurgias estéticas, alisamentos dos cabelos ou clareamento da pele podem se caracterizar como meios para sua aparência se tornar mais parecida com a aparência branca (Bailey, Chung, Williams, Singh, & Terrell, 2011; Gale et al., 2020; Pyke, 2010; Speight, 2007).

Por meio dessa opressão, acredita-se que negros podem replicá-la a indivíduos da mesma classificação racial, além da possibilidade de se perpetuar nas famílias, gerando um ciclo de opressão internalizada. Mesmo atuando na esfera pessoal, este fenômeno não deve ser analisado como uma problemática das pessoas negras, de forma a patologizá-las ou culpabilizá-las, mas sim, como um elemento que é diretamente ligado ao aspecto estrutural do racismo. Acredita-se que a vivência em um contexto de hostilidade e de desigualdade racial pode impactar negativamente no processo de identificação com o próprio grupo racial (Bailey et al., 2011; Gale et al., 2020; La Mar, 2018; Varela, 2014).

Para alguns autores a opressão racial internalizada é a expressão mais comum de racismo, porém, a menos estudada. Também a consideram como uma das lesões psicológicas mais prejudiciais, uma vez que não possui nenhum agressor identificado, sendo atribuída pelo próprio indivíduo. Trata-se de um mecanismo de opressão que possibilita perpetuar a dominação não apenas de forma externa, mas, também, internamente (Bailey et al., 2011; Gale et al., 2020; Pyke, 2010; Speight, 2007).

É importante ressaltar, ainda, que a revisão sistemática realizada por Goto, Couto e Bastos (2013) apontou correlações positivas entre a vivência de discriminação racial e condições adversas à saúde mental, especialmente depressão e transtornos associados ao uso de álcool e outras substâncias psicoativas. Mais especificamente em relação à opressão racial internalizada, a metanálise realizada nos Estados Unidos por Gale et al. (2020) encontrou correlações positivas entre o construto e prejuízos na saúde mental de pessoas negras, relacionadas, principalmente, à depressão e à ansiedade. Além disso, de acordo com dados do Ministério da Saúde, jovens negros têm 45% mais chances de cometerem suicídio, e um dos fatores pode estar relacionado ao racismo (Ministério da Saúde, 2018). Esse ponto reforça a importância em possibilitar que o fenômeno possa ser medido também no Brasil.

A fim de ampliar a discussão e as pesquisas deste construto no contexto brasileiro, foram realizadas buscas de estudos nacionais e estrangeiros que se propusessem a avaliar opressão racial internalizada. A realização destas buscas resultou na identificação de um instrumento de avaliação psicológica desse fenômeno, porém ainda sem tradução ao contexto brasileiro. Dessa forma, o presente estudo consistiu em realizar a tradução do instrumento Internalized Racial Oppression Scale for Black Individual (IROS) proposto por Bailey et al. (2011) e identificar a pertinência do construto ao contexto brasileiro, uma vez que foi elaborada e aplicada nos Estados Unidos.

A escala possui 28 itens e propõe mensurar aspectos relacionados à opressão racial internalizada em pessoas negras a partir da análise de quatro dimensões: a Internalização de Estereótipos Negativos (INS), que está relacionada à aceitação de características negativas pelo próprio indivíduo negro, a partir da visão do branco como superior; a Crença na Representação Distorcida da História (BRH), que corresponde ao não acesso a fatos históricos de contribuições e realizações do povo negro; a Alteração da Aparência Física (APA), que se relaciona ao desejo de aproximar-se à aparência física dos brancos; a Mudança de Cabelo (HC), que compreende um desejo de mudança dos cabelos para se assemelhar aos padrões de beleza brancos (Bailey et al., 2011).

Além dos aspectos psicométricos relacionados ao instrumento, cabe ressaltar as diferenças específicas no que diz respeito às relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil. A história dos Estados Unidos também é marcada por escravização de negros. No entanto, diferente do Brasil, a miscigenação da população se constituiu de forma menos expressiva, levando a uma segregação racial marcada pela divisão clara entre negros e brancos. Em 1896, a Suprema Corte Americana institucionalizou a separação entre raças, à medida que considerou constitucional que houvesse espaços separados para brancos e negros. Esse contexto impactou a forma em que se percebia e se classificava a raça das pessoas, como observado na conhecida expressão one drop rule, ou seja, uma gota de sangue negro. Tal afirmação indicava que uma pessoa seria considerada negra se tivesse, em sua família, ancestrais negros sem, necessariamente, apresentar características físicas associadas a essa raça (Higginbottom, 2014; Oliven, 2007). Para alguns autores, essa forma de segregação foi associada à ideia do preconceito racial de origem, em que é considerada diretamente a origem parental do indivíduo, ficando em segundo plano a aparência física (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2003; Nogueira, 1985).

No Brasil, no período pós-abolicionista, a população negra foi submetida a um processo de embranquecimento, já mencionado anteriormente. Tal artifício resultou no contexto miscigenado que existe atualmente, que gera a falsa ideia de que se vive uma espécie de democracia racial (Lima & Vala, 2004). Diferentemente de como ocorre nos Estados Unidos, para alguns autores, no Brasil temos o chamado preconceito de marca, ou seja, a característica física dos indivíduos (marca), é o que é relevante para classificar sua raça, e suficiente para sofrer racismo quando essa marca apresenta características negras (IPEA, 2003; Nogueira, 1985; Oliven, 2007). Tais questões impactam diretamente na forma em que ocorrem as classificações de raça dos brasileiros, que vão além do preto e do branco. Nesse sentido, o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) traz como classificações oficiais as categorias: preto, pardo, branco, amarelo e indígena. Mesmo com a adoção de preto e pardo, ao realizar as análises estatísticas, as duas são agrupadas em uma única, denominada negros (IBGE, 2013).

Tal método é justificado pelo objetivo do agrupamento se voltar mais à caracterização sociocultural dos grupos, do que aspectos relacionados ao contexto biológico destes (IBGE, 2013; IPEA, 2003). Além disso, outro fator está associado ao fato de as análises estatísticas apontarem que as populações preta e parda apresentam condições socioeconômicas e de desigualdades bastante semelhantes, em comparação aos brancos (Hasenbalg, 1979; IBGE, 2013; IPEA, 2003, Silva & de Souza Leão, 2012).

No entanto, cabe salientar que a diversidade de tonalidades de cor de pele presentes no Brasil, geradas a partir do esforço pelo embranquecimento da população, pode ser relevante para a discussão acerca da opressão racial internalizada, por estar associada ao conceito conhecido como colorismo. O colorismo ou pigmentocracia refere-se, justamente, a uma faceta da discriminação racial que associa a tonalidade da pele à possibilidade de exclusão social, sendo que, quanto mais escuro for o tom de pele do indivíduo, maior a chance de sofrer discriminação. Nesse ponto, é importante considerar que pretos e pardos poderão experienciar ou ter diferentes percepções acerca do racismo. Para alguns autores, essa situação pode ser considerada como um dos efeitos da miscigenação iniciada no período pós-abolicionista que, visando extinguir a negritude, instigava a hierarquização que surgia pelo tratamento já diferenciado entre negros com a pele retinta e os miscigenados. No entanto, nessa configuração social, os miscigenados não estavam em condição de igualdade com os brancos, porém, existiam privilégios à medida que a pele fosse mais clara. Dessa forma, estimulava-se o distanciamento de sua ancestralidade africana e a negação da negritude (Cruz, Carmo, Conceição, & Leite, 2019; Silva, 2018; Silva, 2017). Esse processo pode influenciar a identificação atual dos autodeclarados pardos (Munanga, 2019; Reis, 1997; Silva, 2018).

Considerar tais diferenças entre os países é essencial para a realização deste estudo que visa traduzir um instrumento construído no contexto americano para o ambiente brasileiro. O processo histórico do racismo, que difere entre as nações, pode impactar diretamente na percepção da temática da opressão racial internalizada pelo público alvo. Além disso, para Pyke (2010) estudar e identificar essa forma de opressão pode colaborar para compreender os impactos de sua reprodução à saúde mental, na sociedade como um todo. Sendo assim a realização deste estudo poderá contribuir para que possam ser analisados aspectos mais específicos do fenômeno, diretamente relacionados à saúde psíquica de pessoas negras, antes não identificados de forma particular.

 

MÉTODO

A pesquisa foi concretizada através de duas etapas: Etapa 1 - Tradução e Etapa 2 - Discussão com grupo focal.

ETAPA 1 - TRADUÇÃO

Após ser aprovado pelo Comitê de Ética sob o parecer n° 431475 aprovado em três de março de dois mil e quinze, a pesquisa iniciou com a tradução da escala Internalized Racial Oppression Scale for Black Individual (IROS), da língua inglesa para a língua portuguesa. O instrumento elaborado por Bailey et al. (2011),é composto por 28 itens, com escala de respostas Likert de 1 a 5 pontos, variando de 1 (discordo plenamente) a 5 (concordo plenamente). Propõe-se mensurar aspectos relacionados à opressão racial internalizada em pessoas negras a partir da análise de quatro dimensões: a Internalização de Estereótipos Negativos (INS), com total de sete itens; a Crença na Representação Distorcida da História (BRH), contendo oito itens; a Alteração da Aparência Física (APA), com oito itens; e Mudança de Cabelo (HC), com total de cinco itens. No estudo inicial dos autores, a consistência interna (alfa de Cronbach) de cada item foi (INS) 0,79, (BRH) 0,83; (APA) 0,77; e (HC) 0,77, e o coeficiente alfa de Cronbach para a escala total foi de 0,90, dados que se mostraram adequados, de acordo com a pesquisa.

Neste estudo, inicialmente, dois tradutores bilíngues com experiência em língua inglesa e nas áreas de Psicologia e Pedagogia, geraram duas versões traduzidas da escala, respectivamente. Após serem analisadas pelos pesquisadores, resultaram em apenas uma versão-síntese. Posteriormente, essa versão foi submetida a um novo tradutor bilíngue para tradução reversa (backtranslation) da escala, ou seja, tradução dos itens, agora na língua portuguesa, novamente para a língua de origem (inglês). Logo após os pesquisadores contataram o autor do instrumento e solicitaram sua colaboração na análise da escala, a fim de avaliar se estava mantida a fidelidade dos itens desenvolvidos por ele. O autor realizou a análise e solicitou alteração em 2 dos 28 itens apresentados. Esses itens foram, então, alterados pelos pesquisadores e a escala foi finalizada para a segunda etapa.

ETAPA 2 - DISCUSSÃO COM GRUPO FOCAL

PARTICIPANTES

Na segunda etapa da pesquisa participaram 15 pessoas pretas e pardas. Cabe ressaltar que, diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a classificação de raça "parda" é inexistente, e as pessoas são alocadas em uma classificação geral "black". Desta forma, seguindo a classificação proposta pelo IBGE, esta pesquisa contou com essa aplicação em sua composição, portanto, as pessoas pretas e pardas foram agrupadas em uma única categoria (negras) para as análises posteriores.

Dos 15 participantes da pesquisa, 5 foram homens e 10 mulheres, com idade média de 30,9 anos, todos moradores de uma cidade do interior de São Paulo. Em relação à escolaridade, 5 concluíram o ensino médio, 5 o ensino superior e 5 indicaram ter ensino superior incompleto. Sobre a renda mensal familiar, 12 participantes afirmaram ser entre 1 a 5 salários mínimos enquanto 3 afirmaram ser entre 6 a 10 salários mínimos. Em relação ao status de relacionamento, 5 participantes afirmaram estar solteiros, 2 namorando, 7 casados e 1 separado.

INSTRUMENTOS

ESCALA DE OPRESSÃO RACIAL INTERNALIZADA (IROS)

Nessa etapa o instrumento aplicado foi a síntese resultante da tradução e avaliação do profissional de Psicologia.

QUESTIONÁRIO SÓCIO DEMOGRÁFICO

Junto à escala, foi aplicado um questionário sociodemográfico com perguntas sobre faixa etária, sexo, escolaridade, raça, renda familiar e profissão, com o objetivo de identificar o perfil do público participante do estudo.

QUESTIONÁRIO DE AVALIAÇÃO DA ESCALA

Por fim, o questionário de avaliação da escala, composto por questões abertas, foi aplicado a fim de possibilitar que os participantes descrevessem suas dificuldades na compreensão de palavras e termos contidos no instrumento, identificassem itens que julgassem como não adequados ao contexto brasileiro, além de terem a possibilidade de sugerir temas que considerassem não contemplados nos itens existentes.

PROCEDIMENTOS

A pesquisa foi divulgada a partir de redes sociais, com intuito de convidar o público alvo. Os indivíduos interessados entraram em contato com a pesquisadora, que informou o horário e o local da coleta. As coletas de dados foram realizadas em dois dias que contou com 9 participantes na primeira aplicação e 6 na segunda. As coletas se iniciaram através da explanação da pesquisadora sobre o construto a ser avaliado e o processo de tradução da escala. Posteriormente, os participantes preencheram o termo de consentimento livre e esclarecido, o questionário sociodemográfico, leram todos os 28 itens da escala e, por fim, responderam o questionário de avaliação da mesma. Ao finalizarem o preenchimento desses formulários, a pesquisadora estimulou os participantes a expressarem suas opiniões sobre os itens do instrumento, os termos utilizados e sugestões de melhorias. Em seguida, foi realizada discussão grupal sobre os temas levantados. Por fim, a pesquisadora registrou as informações trazidas pelo grupo.

 

RESULTADOS

ETAPA 1 - TRADUÇÃO

São apresentadas tabelas demonstrativas dos itens que necessitaram revisões (Tabela 1),do processo de tradução (Tabela 2) e do processo de tradução reversa e considerações do autor sobre alguns itens (Tabela 3).

A primeira etapa foi realizada inicialmente por dois tradutores bilíngues que traduziram os itens da escala respectivamente. Ambos apresentaram dificuldades em algumas palavras ou expressões específicas. Um dos tradutores demonstrou dúvida na tradução relacionada ao item 7: "Black women are confrontational", pois identificou que o sentido da expressão se relacionava às mulheres negras serem vistas como "barraqueiras", porém, não encontrou uma palavra adequada, em português, que mantivesse o sentido, sugerindo então a palavra "conflituosas".

Em relação ao item 23 "I texturize my hair" não houve consenso entre os tradutores, sendo que um deles sugeriu a palavra "texturizo", mesmo considerando-a incomum para o Brasil. O segundo tradutor sugeriu a palavra "pinto (pintar)".

Após o processo de tradução inicial, a tradução reversa (backtranslation) foi realizada por um novo tradutor bilíngue e encaminhada ao autor da escala que realizou alguns apontamentos em relação aos itens 7 e 15, respectivamente: "Black women are trouble makers" e "There has never been higher education institutions in Africa.".

Sobre o item 7 "Black women are trouble makers", o autor do instrumento considerou que a tradução não manteve o sentido do item original sugerido por ele, relacionado a um estereótipo presente nos Estados Unidos de que mulheres negras costumam realizar confrontos verbais. Sendo assim, ele sugeriu que fosse avaliado qual seria o estereótipo semelhante no Brasil. Após análise dos pesquisadores, a frase foi definida como: "Black women are constantly getting into arguments with other people" e traduzida para: "Mulheres negras estão sempre causando discussões (fazendo "barraco")".

Em relação ao item 15 "There has never been higher education institutions in Africa", o apontamento do autor destacou a falta de um vocábulo que considerasse o período antigo da África (o passado), portanto sugeriu incluir a palavra "antiga" na sentença. Sendo assim, a frase foi definida como: "There were no institutions of higher learning in Africa" e traduzida como: "Nunca houve instituições de ensino superior na África antiga".

ETAPA 2 - DISCUSSÃO COM GRUPO FOCAL

Nessa etapa, a versão final da escala foi apresentada ao público alvo da pesquisa, pretos e pardos, os quais foram responsáveis por avaliar os termos e expressões utilizadas e incluir sugestões que julgassem pertinentes ao tema.

PALAVRAS

Foram indicadas algumas palavras consideradas incomuns no presente instrumento, conforme apresentado pela Tabela 4.

A palavra "Arábicos", presente no item 13, foi apontada por 33,3% dos participantes que realizaram indicações de palavras incomuns, porém, em discussão grupal, grande parte da amostra considerou como uma palavra não usada no Brasil, no entanto, não foi apresentada nenhuma sugestão para substituição.

A palavra "Texturizo", apresentada no item 23, foi a mais indicada como inadequada (50%), sendo apontada como ambígua por não ficar claro o tipo de texturização realizada, uma vez que existem vários tipos. Desse modo, os participantes sugeriram que as expressões "Mudanças químicas na textura" ou "Alisamento/relaxamento" seriam mais adequadas. As palavras "branco ou branca", apresentadas no item 1 da escala, foram consideradas por 16,7% dos participantes que indicaram palavras incomuns, sendo sugeridas as palavras "claro ou clara" para substituição.

Dessa forma, a versão final do instrumento foi alterada considerando as sugestões do público alvo que não mudariam o sentido das afirmações e poderiam melhorar a compreensão dos leitores. A versão alterada é apresentada na Tabela 5.

ITENS INCOMUNS AO CONTEXTO BRASILEIRO

Foi solicitado ao público alvo da pesquisa que, individualmente, realizasse a leitura e a análise da escala e indicasse os itens que considerasse incomuns ao contexto brasileiro. A relação deles são apresentados na Tabela 5, em ordem decrescente, de acordo com as indicações, como incomuns, pelo público-alvo da pesquisa.

Os itens da dimensão "Internalização de Estereótipos Negativos" se destacaram pois apresentaram pontuações altas como sendo inadequados ou incomuns, além de terem causado incômodo entre os participantes, considerando as afirmações apresentadas. Em discussão focal os participantes avaliaram que algumas afirmações como "Mulheres negras estão sempre causando discussões (fazendo "barraco")" e "Os homens negros são irresponsáveis" não são restritas apenas às pessoas negras. O item "As mulheres negras são controladoras" também foi apontado como algo não restrito apenas às mulheres negras, mas como incomum e contraditório ao contexto brasileiro de uma forma geral, considerando a realidade machista do país.

Em relação ao item "As pessoas negras são preguiçosas" os participantes afirmaram que, no Brasil, tal estereótipo está relacionado às pessoas advindas de um dos estados do país (Bahia), e não necessariamente às pessoas negras, ou seja, seria um estereótipo regional, no contexto brasileiro. Sobre o item "A maioria dos criminosos são homens negros", que recebeu duas indicações, os participantes se demonstraram incomodados com a afirmação, entretanto afirmaram que é condizente com um estereótipo existente no contexto brasileiro.

Os itens "Administrar dinheiro é algo que pessoas negras não sabem fazer" e "A maioria das pessoas negras recebe benefícios do governo" causaram incômodo aos participantes e foram considerados como inadequados e incomuns no contexto brasileiro.

No que diz respeito à dimensão da "Crença na Representação Distorcida da História", o que se destaca é que todos os itens foram indicados pelo menos uma vez, além de outros receberem até sete indicações (maior pontuação de indicação). Em discussão focal, de acordo com os participantes, essas afirmações não poderiam ser respondidas por desconhecimento histórico, portanto, foram considerados como itens inadequados para o instrumento no Brasil. Já em relação à dimensão "Mudança de Cabelo", não houve indicações dos participantes a nenhum dos itens, ou seja, nenhum deles foi considerado inadequado ou incomum ao contexto brasileiro.

Sobre a dimensão "Alteração da Aparência Física", de seus oito itens, três não obtiveram nenhuma indicação, e dois pontuaram apenas uma vez. Em relação aos itens que receberam maiores indicações como "Tudo bem as pessoas negras mudarem sua aparência por meio de cirurgia (4 indicações)" e "Tudo bem usar produtos de pele para clarear a cor da pele (5 indicações)", os participantes afirmaram que essas estratégias de alteração da aparência física não são comuns no país. O item "Pele mais clara é mais atraente (3 indicações)" apresentou opiniões contrárias entre os dois grupos participantes da pesquisa, sendo que, em discussão verbal, o primeiro grupo considerou que, no Brasil, a pele "bronzeada", ou seja, mais escura, é a mais atraente, e o segundo grupo discutiu o quanto as pessoas negras consideram pessoas com a pele, cabelos e olhos claros mais bonitas e atraentes.

Por fim, foi solicitado aos participantes que avaliassem e informassem situações do contexto brasileiro e de suas realidades que estivessem relacionadas à opressão racial internalizada, mas que não tivessem sido contempladas nos itens apresentados inicialmente. Houve participação ativa do público, que realizou discussão de diversos temas relacionados às questões de racismo contra negros, além de indicação de novos temas que, segundo eles, deveriam ser inclusos na escala.

 

DISCUSSÃO

TRADUÇÃO E DISCUSSÃO COM GRUPO FOCAL

A presente pesquisa teve por objetivo traduzir, ao contexto brasileiro, a escala Internalized Racial Oppression Scale for Black Individual (IROS). O processo ocorreu em duas etapas, sendo que, na primeira, foi realizada a tradução dos itens da língua inglesa para a língua portuguesa e, na segunda, a discussão com grupo focal para avaliação dos itens no contexto brasileiro.

O procedimento de tradução foi bem sucedido, resultando em uma versão aceitável dos itens para a língua portuguesa. A participação dos colaboradores bilíngues possibilitou identificação adequada de palavras de difícil tradução, assim como a busca por palavras correspondentes na língua portuguesa que fossem fiéis ao conteúdo, permitindo, dessa forma, a equivalência semântica. A colaboração participativa do autor da escala, por meio de avaliação da tradução reversa (backtranslation), permitiu que a tradução fosse fidedigna aos itens originais. Por fim, a análise e sugestões de palavras mais adequadas pelo público alvo da escala, possibilitou uma versão de melhor compreensão para o público brasileiro.

Sobre a identificação da pertinência da temática no Brasil, de acordo com os resultados da pesquisa, pode-se dizer que alguns conteúdos foram indicados como incompatíveis ao contexto cultural brasileiro. Devido às diferenças sociais e históricas dos países em questão (Brasil e Estados Unidos), onze itens originais da escala, das dimensões "Crença na Representação Distorcida da História", "Alteração da Aparência Física", e "Internalização de Estereótipos Negativos", foram considerados condizentes, especificamente, ao contexto social e histórico de negros nos Estados Unidos.

No entanto, cabe ressaltar que os itens da dimensão "Crença na Representação Distorcida da História" tratam justamente do desconhecimento do público em relação à história africana. Portanto, na discussão com o grupo focal, tal aspecto foi salientado pelos participantes ao considerarem que existe um desconhecimento histórico sobre os pontos levantados nos itens que apresentam informações relacionadas, principalmente, à história da África. Com base nessas afirmações, a dimensão que considera a falta de acesso a dados precisos da história do povo negro, se faz condizente.

Outro fator pertinente observado pelas considerações dos participantes se trata da identificação de outro estereótipo presente para além da questão racial: a xenofobia, identificada no item "As pessoas negras são preguiçosas" da dimensão "Internalização de Estereótipos Negativos". Nesse sentido, cabe salientar que racismo e xenofobia se relacionam, considerando o contexto brasileiro. Se considerarmos a história do Brasil no início do século XX, a população europeia que imigrou para o país no período pós-abolição, se deslocou, principalmente, para as regiões sul e sudeste do país, estando a população negra escravizada mais concentrada no norte e nordeste (Hasenbalg, 1979; Nóbrega & Daflon, 2009). Posteriormente, a necessidade de mão-de-obra na região sul e sudeste levou à migração da população nordestina que sempre foi marcada por preconceitos e estereótipos de que são indivíduos pobres, perigosos, responsáveis por miséria e violência. Considerando o contexto histórico da descendência negra da população nordestina no Brasil, logo verifica-se que racismo e xenofobia possuem relação, no país (Nóbrega & Daflon, 2009), podendo, inclusive, compartilhar estereótipos. Desse modo, as afirmações dos participantes do estudo, que atribuíram outra forma de opressão ao item, expõe tal característica brasileira, que se difere da americana.

Também considerando as divergências de opiniões que surgiram, referentes ao item "Pele mais clara é mais atraente", é importante discutir as questões relacionadas ao contexto de cor no Brasil. Apenas no início do século XX a pele bronzeada ou denominada pele "morena", foi considerada como de um tipo físico desejado e ideal à população brasileira. No entanto, se trata de um atributo que pode ser conquistado pelo contato com o sol, diferente de uma marca racial específica da pele negra. Ou seja, mesmo uma pessoa branca poderia se bronzear. Isto é, não se trata da valoração de uma característica intrínseca ao fenótipo negro como um todo. Nesse sentido, identificar-se com a pele "morena" poderia representar, ao indivíduo negro, a possibilidade de se aproximar da branquitude, reforçando uma expressão também associada ao racismo (Munanga, 2019; IPEA, 2003; Reis, 1997).

Penna (2010), em seu estudo sobre a coluna carioca "As Garotas de Alceu (19381964)", que apresentava, por meio de representação gráfica, as características das mulheres desse período, salienta a distinção clara que a coluna trazia entre a valoração do corpo bronzeado em detrimento ao corpo miscigenado. Em colunas de jornal, mulheres brancas se apresentavam com corpos bronzeados nas praias fluminenses, porém, se desassociando das demais características raciais negras. Dessa forma, considerar a idealização do corpo bronzeado, não necessariamente exclui a desvalorização estética de características do corpo negro.

No que se refere à dimensão "Mudança de Cabelo", nenhum dos itens foi indicado como incomum ao contexto brasileiro, demonstrando que os participantes do estudo avaliaram que, sim, são comuns ou típicos à realidade brasileira. No processo de construção da identidade, também está presente a estética corporal, que é uma espécie de símbolo ou forma de linguagem das relações intergrupais. O cabelo é um dos elementos dessa estética, podendo ser considerado símbolo de identificação do negro, de como é visto pelos outros e por ele mesmo. Dessa forma, o cabelo crespo, quando classificado como "ruim" ou "fora do padrão de beleza", pode induzir a pessoa negra a buscar a alteração do formato do próprio cabelo como uma maneira de amenizar o conflito por estar em uma posição identitária considerada inferior (Gomes, 2003; Miranda, 2011; Schucman, 2014).

Assim sendo, o consenso dos participantes em não indicar como incomum nenhum dos itens da dimensão "Mudança de Cabelo" pode demonstrar o quanto essa prática é presente e socialmente aceita no Brasil. Tal fenômeno pode ser associado ao conceito de aprendizagem social, onde normas e comportamentos são aprendidos e difundidos como adequados culturalmente, através das instituições, da arte ou da mídia, e determinam as práticas consideradas corretas e aceitáveis. Através desse processo, condutas que, em alguns contextos, podem ser consideradas opressoras, em outros, são naturalizadas (Rodrigues, Assmar & Jablonski, 2009), assim como o fenômeno da alteração dos cabelos crespos, no Brasil.

De maneira geral, segundo os participantes, seria necessário incluir à escala, outros itens, que não estão contemplados, relacionados à opressão racial internalizada existente no Brasil. Assim sendo, alguns desses fenômenos foram levantados junto ao público alvo da pesquisa, sendo eles: 1) Associação entre condição econômica baixa e raça negra; 2) O negro em constante posição defensiva; 3) Associação de negros ao tráfico de drogas e violência na mídia; 4) Expressões linguísticas e cômicas com conteúdos racistas 5) As divergentes classificações da cor negra; 6) Associação da mulher negra à vulgaridade.; 7) A admiração da beleza branca por pessoas negras; 8) Educação sobre a história dos negros restrita à escravidão;9) Ausência de valorização e divulgação de lideranças negras.

As temáticas apresentadas pelos participantes, em uma análise preliminar, poderiam ser associadas às dimensões já propostas pela escala IROS, principalmente relacionadas à "Internalização de Estereótipos Negativos", como apresentadas nas sugestões de números 1, 3 e 6; "Crença na Representação Distorcida da História", nos números 8 e 9; e "Alteração da Aparência Física", a de número 7.

Sobre aos temas apresentados nos itens 4 e 5, podemos associar a aspectos mais específicos do contexto brasileiro. Em relação ao item 4, "Expressões linguísticas e cômicas com conteúdo racistas", há no Brasil o mito da democracia racial, ou seja, a ideia de que existe uma harmonia entre as relações raciais devido à miscigenação. Essa ideia foi difundida por autores como Gilberto Freire, na década de 40, e impactou na manifestação de uma forma de racismo conhecido como "racismo cordial". Tal expressão se caracteriza por ser sutil, mais velada, de difícil identificação, minimizando, assim, a percepção de seus impactos. Sua manifestação se caracteriza por trazer um caráter de piada, brincadeira ou de ditos populares, porém, são termos carregados de conteúdos discriminatórios, mais comumente observado em países miscigenados, como o Brasil (Lima & Vala, 2004).

O item 5, "As divergentes classificações da cor negra", pode ser analisado a partir da complexidade do processo de identificação racial, também gerado pela miscigenação existente no país, como consequência do embranquecimento. O próprio sistema oficial brasileiro de classificação de raças passou por diversas mudanças ao longo do tempo, justamente por conta da complexidade da temática, da dinâmica na forma em que se estabelecem as auto declarações, bem como o caráter político que o conceito raça pode absorver. Além disso, os efeitos relacionados à ideia do colorismo podem estar diretamente ligados à temática da opressão racial internalizada, que considera que os indivíduos podem buscar distanciamento da negritude a fim de afastar-se, assim, da exclusão social (Cruz et al., 2019; Silva, 2018; Silva, 2017).

Portanto, é possível avaliar que mesmo que os apontamentos relativos aos itens da escala não estejam compatíveis ao contexto brasileiro, o que já era esperado, considerando as diferenças sociais dos países em questão, pode-se dizer que a temática da opressão racial internalizada diz respeito ao contexto do Brasil, entretanto, apresenta especificidades que necessitam maior investimento para serem contempladas.

 

LIMITAÇÕES E IMPLICAÇÕES PARA NOVOS ESTUDOS

Com base nos procedimentos descritos, é considerada como limitação deste estudo a porcentagem de público masculino da amostra total de participantes (33,33%). A prevalência de mulheres na pesquisa pode ter limitado a identificação de temas relacionados à opressão racial internalizada, específicos aos homens.

Apesar disso, a realização deste estudo permitiu iniciar a disponibilização de um instrumento, adequado ao contexto brasileiro, que avalie a opressão racial internalizada em pessoas negras, podendo, assim, por meio de um instrumento psicométrico, possibilitar a ampliação da discussão sobre opressão racial internalizada e sobre o próprio racismo no Brasil e suas consequências à saúde mental dos indivíduos. No entanto, sugere-se que estudos futuros, que busquem realizar a adaptação ao contexto cultural brasileiro, investigar as propriedades psicométricas do instrumento e, consequentemente, o funcionamento diferencial dos itens para validação da escala, possam fazer uso das especificidades identificadas nesta pesquisa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação ao processo de tradução da escala Internalized Racial Oppression Scale for Black Individual (IROS) no contexto brasileiro, pode-se dizer que foi possível identificar e alterar alguns termos que apresentaram dificuldade para compreensão do público alvo e, assim, oferecer uma versão da escala traduzida para a língua local. Além disso, foi verificado que a opressão racial internalizada é pertinente ao contexto do Brasil, e que alguns itens, já construídos, também são condizentes. Porém, para que a escala possa ser aplicada, será necessário adaptar e incluir itens que contemplem aspectos específicos relacionados à expressão da opressão racial internalizada que fazem parte das experiências e vivências do país.

 

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Recebido em: 13/06/2019
1ª revisão em: 27/08/2020
Aceito em: 25/01/2021

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Aline Gomes da Silva Pimentel é psicóloga pela Universidade São Francisco (USF) e Mestre em Psicologia também pela USF. Atua como psicóloga em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
E-mail: alinesilvapsico@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2998-5216
Nelson Hauck é Doutor em Psicologia (UFRGS) e Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Possui como temáticas de interesse vieses de resposta a instrumentos de autorrelato, psicopatia, transtornos da personalidade e competências socioemocionais.
E-mail: hauck.nf@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0121-7079

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