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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versión On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.12 no.3 Londrina sep./dic. 2021

http://dx.doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n3p91 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Medida socioeducativa, ambiente escolar e alojamento psíquico

 

Socio-educational measure, school environment and psychic lodging

 

Medida socioeducativa, entorno escolar y alojamiento psíquico

 

 

Rosiane Cristina dos Santos; Ana Archangelo

Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

Este artigo discorre sobre adolescentes que foram alfabetizados em prazos bastante curtos, quando internados para cumprimento de medida socioeducativa, após terem fracassado recorrentemente no curso regular de escolarização. A investigação buscou compreender os sentidos do êxito tardio em ambiente de privação de liberdade. Participaram do estudo 15 adolescentes de quatro unidades da Fundação CASA, que não possuíam competência de leitura e escrita quando de sua internação. Para tanto, os adolescentes foram entrevistados; alguns produziram desenhos, que foram examinados. O trabalho amparou-se na psicanálise, centralmente em Donald W. Winnicott. Conclui-se que há necessidade de o ambiente educativo se apresentar como espaço continente para as dificuldades e para processos identificatórios, podendo apresentar-se como um "alojamento" em que o "paradoxo limite e espaço" e as ressignificações ganham o sentido de amparo psíquico que, dentre outras coisas, interfere na aprendizagem e pode ou não chegar a ser curativo.

Palavras-chave: dificuldade de aprendizagem; comportamento antissocial; ambiente educativo; paradoxo limite-espaço; psicanálise e educação.


ABSTRACT

This article discusses adolescents who were taught to read and write within a very short time when interned in compliance with a socio-educational measure, after recurrent failures on regular school courses. The investigation seeks to understand the meanings of late success in an environment of freedom deprivation. 15 adolescents from four Fundação Casa units participated, who were unable to read and write on their internment. To this end, the adolescents were interviewed and some produced drawings, which were examined. The work was supported by psychoanalysis, especially Donald W. Winnicott. It was concluded that there is a need for the educational environment to present itself as a containing space for difficulties and for identificatory processes, able to show itself as "lodging" where the "limit and space paradox" and resignifications gain the meaning of psychic support which, among other things, affects learning and may or may not be ultimately curative.

Keywords: learning difficulty; anti-social behaviour; educational environment; limit-space paradox; psychoanalysis and education.


RESUMEN

Este artículo discurre sobre los adolescentes que han sido alfabetizados en plazos bastante cortos cuando fueron internados para el cumplimiento de una medida socioeducativa, después de que hubiesen fracasado recurrentemente en el recorrido normal de la escolarización. La investigación trató de comprender los sentidos del éxito tardío en un entorno de privación de la libertad. Participaron del estudio quince adolescentes de cuatro unidades de la Fundação CASA ("Fundación CASA"), los cuales no poseían competencia de lectura y escritura cuando fueron internados. Para ello, se entrevistaron a los adolescentes; algunos produjeron dibujos, los cuales fueron examinados. El trabajo se amparó en el psicoanálisis, sobre todo en Donald W. Winnicott. Se concluyó que hay la necesidad de que el entorno educativo se presente como un espacio continente para las dificultades y para los procesos identificatorios, apareciendo como un "alojamiento" en que la "paradoja límite y espacio" y las resignificaciones ganan el sentido de auxilio psíquico. Eso, entre otras cosas, interfiere en el aprendizaje y puede o no llegar a ser curativo.

Palabras clave: dificultad de aprendizaje; comportamiento antisocial; entorno educativo; paradoja límite-espacio; psicoanálisis y educación.


 

 

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA APRESENTADO

A experiência de uma das pesquisadoras com a Educação Básica permitiu o contato com muitas crianças das regiões vulneráveis de diferentes municípios do estado de São Paulo. Chamadas pela instituição escolar de "indisciplinadas", "agressivas" e "carentes" (Silva, 2019, p. 10), eram, via de regra, estigmatizadas pela nomeação a elas atribuída. Dentre as dificuldades encontradas para a prática pedagógica, estava aquela considerada o maior obstáculo ao trabalho: um número alto de crianças não alfabetizadas, sendo um empecilho à aprendizagem, diante dos materiais e das metodologias disponíveis. Geralmente, tais crianças estavam envolvidas em propostas de reforço escolar com profissionais competentes e dedicados. Apesar disso, a alfabetização ou a progressão, para muitas dessas crianças, não se consolidava.

Posteriormente, a mesma pesquisadora tornou-se profissional do corpo pedagógico em uma unidade da Fundação CASA, função que lhe permitiu acompanhar, dentre outras coisas, o Diagnóstico de Leitura e Escrita realizado imediatamente após a internação do adolescente. Esse diagnóstico objetivava identificar a competência de leitura e escrita do adolescente, bem como avaliar se ele estava apto para acompanhar o ano em que estava matriculado, sabendo que a defasagem idade-ano é uma realidade na vida da maioria dos adolescentes internados. Quando identificado que o adolescente não estava alfabetizado, mesmo matriculado em anos em que já se considerava importante tal competência, o adolescente era direcionado para salas de alfabetização. Esse diagnóstico também funcionava como um norteador para que um Plano Individual de Atendimento (PIA) fosse construído. Esse plano contemplava, dentre outros objetivos de outras áreas da equipe de referência do adolescente, metas pedagógicas construídas para o adolescente, para obter os avanços pedagógicos necessários durante o período de internação.

A pesquisadora acompanhou, ainda, quando funcionária da Fundação CASA, o rendimento escolar dos adolescentes no período da internação. Foram muitos os casos em que o adolescente era internado sem competência de leitura e escrita, ou analfabeto, apesar de ter sido promovido para séries ou anos escolares em que já se suporia tal competência bastante avançada. Quando internados, tais adolescentes eram imediatamente inseridos em salas de alfabetização que funcionavam dentro da instituição em horário concomitante ao Ensino Formal, mantido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, mas supervisionado pelos profissionais do Setor Pedagógico da Fundação. Em outros casos, o trabalho de alfabetização dos adolescentes era realizado pelos profissionais do corpo pedagógico, concursados pela Fundação CASA. Observou-se, então, que, geralmente, em menos de três meses, tais adolescentes eram alfabetizados, o que mobilizava a indagação sobre os determinantes de tal cenário, em uma instituição tão complexa quanto problemática. Estava delineado, assim, o objeto de pesquisa: Como uma instituição estigmatizada como hostil conseguia, em apenas três meses, o que a unidade escolar não conseguia ao longo de vários anos? O que havia para ser descoberto sobre relacionamentos e contribuição para a aprendizagem numa instituição tão famigerada? (Silva, 2019, p. 11)

 

OBJETIVOS E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Entendendo se tratar de uma questão social complexa e que atravessa, mas ultrapassa, a esfera estritamente pedagógica, o trabalho delimitou centralmente a investigação dos determinantes psíquicos envolvidos na experiência citada anteriormente.

O objetivo geral foi analisar os aspectos psíquicos que evidenciavam as sínteses produzidas pelos adolescentes sobre suas experiências educativas passadas e atuais. No presente artigo, são apresentados os achados referentes aos objetivos específicos que analisaram e interpretaram as narrativas orais e gráficas dos adolescentes sobre suas histórias de escolarização anteriores e aquelas vividas na instituição fechada, quando internados.

O subsídio teórico fundamental para a discussão proposta foi a psicanálise de Donald W. Winnicott, autor que profunda e amplamente investigou a dinâmica psíquica de crianças e jovens em situação de deprivação, de delinquência e de comportamento antissocial.

Donald W. Winnicott é um nome muito significativo para a psicanálise. Atuou como pediatra, psiquiatra e psicanalista na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, período em que muitas crianças e adolescentes foram evacuados dos locais de bombardeio e, por isso, separados de seus pais. Muitos deles ficaram sob os cuidados de uma equipe supervisionada por Winnicott (Winnicott, 1987). A delinquência juvenil esteve no centro das temáticas discutidas pelo psicanalista, pois ela é um aspecto da vida daqueles que são privados de convívio familiar (Winnicott, 2005, p. 127). Há razões inconscientes comuns a todos os delinquentes: a falta de um lar que funcione como um quadro de referência que ofereça segurança e estabilidade emocionais (pp. 129-130). Winnicott percebeu que, nas condições mais adversas da evacuação e da guerra, crianças que não tinham tido boas experiências anteriores conseguiam encontrar nos alojamentos um ambiente estruturante. Para o autor (p.131),na delinquência há esperança, e o comportamento antissocial é consequência da negligência a apelos emocionais, isto é, crianças e adolescentes com comportamento antissocial pedem socorro, requerem assistência e proteção de um cuidado presente em um ambiente suficientemente bom.

Em Winnicott (1997), "suficientemente bom" é o ambiente que oferece holding -"'sustentação' (no sentido físico e emocional)" (p. 25). A "mãe suficientemente boa", que oferece holding, seria aquela que proporciona o aparato necessário para a maturação do ego do bebê. O ego, segundo o autor, é a "parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar em uma unidade" (Winnicott, 1983, p. 55). Ele pode ser fortalecido ou enfraquecido pelo cuidado (Winnicott, 1983, p. 56), que é corporal e envolve manejo: rotina e provisão diárias. Tal conjunto "é responsável pela saúde mental do indivíduo" (Abram, 1996, p. 138). Assim, a provisão ambiental está vinculada à provisão emocional. Se à mãe (ou a quem a substitua) cabe o aparato inicial de holding, ao pai (ou a quem desempenhe a função paterna) cabe a função de auxiliar a mãe, contribuindo para um entorno estável, que também oferece cuidados ao bebê (Winnicott, 1982). Winnicott (1982, p. 129) aponta que a presença do pai coadjuvante à mãe oferece a consciência de "segurança social" e estabilidade, e sua ausência é percebida pela criança, que pode manifestar sentir tal ausência em situações em que está "forçando a aparição do pai". Winnicott (1982) utiliza essa expressão para descrever uma interessante situação sobre duas crianças com comportamento antissocial:

Conheço um menino e uma menina que pensaram estar passando um tempo maravilhoso, na última guerra, quando o pai deles estava no exército. Viviam com a mãe numa casa com um belo jardim e tinham tudo o que era preciso, até mais. Por vezes, caíam num estado de organizada atividade antissocial e quase demoliam a casa toda. Agora, quando olham para trás, podem ver que essas explosões periódicas eram tentativas, inconscientes nessa época, para forçarem o pai a aparecer em pessoa. (p. 131)

Na recente obra de Taika Waititi (2019), o menino Jojo Rabbit também reivindica a presença do pai que, supostamente, ainda se encontra nos campos de batalha da Segunda Grande Guerra. Enfrenta a mãe a quem ama profundamente, desafiando-a à mesa do jantar. A mãe, personagem sensível, encena a presença do pai do menino, para alívio do garoto.

Abram (1996) explica que "o ambiente de holding seria a provisão do amparo oferecido pela mãe ao bebê dentro da família; no entanto, apesar de inaugurado pela mãe, expande-se para outros grupos sociais" (p. 136). Marlene Guirado (Guirado, 1986, citando Rutther, 1972, p. 16, em uma referência específica à privação da mãe) aponta para as buscas por relacionamentos substitutivos por crianças e adolescentes na antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor - FEBEM, instituição anterior à Fundação CASA e que, além de atender adolescentes em conflito com a lei, também funcionava como abrigo para crianças abandonadas. Diz ela que as crianças não apresentarão perturbações, se vínculos perdidos na infância forem substituídos e aponta a FEBEM como uma instituição que, para muitos casos, perpetuou convívios negligenciadores e manteve situações de desamparo.

Segundo Winnicott, a criança antissocial está em sofrimento e pede contenção e provimento de cuidado (Winnicott, 2005, p. 147); observamos nela uma revolta pela privação do amor dos pais (p. 137). Ainda de acordo com o mesmo autor, "uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características essenciais da vida familiar" (p.138), e a manifestação de um comportamento antissocial "inclui roubo, mentira, incontinência e, de modo geral, uma conduta desordenada, caótica" (p. 142) e, ainda "avidez... sujeira (defecar, urinar) e destrutividade compulsiva" (p. 144). O autor afirma também que "boa parte da motivação é inconsciente" (p. 142) e que "o tratamento da tendência antissocial não é a psicanálise. É o provimento de cuidados à criança, [...] É a estabilidade do novo suprimento ambiental que dá a terapêutica" (p. 147). E dos profissionais envolvidos com esse público requer-se uma postura facilitadora, em que, no cuidado oferecido às crianças, se encontrem "componentes do holding que se supõe existir em um ambiente suficientemente bom" (Abram, 1996, p. 209). No entanto, Winnicott nos alerta para a complexidade da situação vivida pelos profissionais que atendem os adolescentes. Segundo o autor,

Há na adolescência esta coisa muito curiosa e intrigante: a mistura de rebeldia e dependência [ênfase no original]. (Winnicott, 2001, p.123)

[...] o menino ou a menina adolescentes não querem ser entendidos. Os adultos devem manter entre si aquilo que vêm a compreender a respeito da adolescência. (p.115)

Vemos os jovens buscando um tipo de identificação que não os abandona sozinhos em sua luta: a luta para sentir-se real [ênfase no original]. (p.123)

Esse referencial, portanto, faz eco com a problemática encontrada na Fundação CASA. Como o afastamento social, em uma instituição com inúmeros problemas e com limitações conhecidas, em alguns casos, promove experiências estruturantes que permitem a alfabetização? O que a instituição oferta, que não é visível de imediato e que, por vezes, oferece espaço de desenvolvimento e de aprendizagem? Como a instituição acolhe as necessidades - descritas por Winnicott (2001) - de rebeldia e de dependência desses adolescentes que se alfabetizam após anos de fracasso escolar antes da internação, ou sua luta para sentirem-se reais, a ponto de proporcionar tal experiência de aprendizagem? O que há em comum aos jovens que conseguem se alfabetizar ali, a despeito das condições concretas desfavoráveis, se comparadas com as oferecidas pela escola regular? Uma vez investigado, esse aspecto comum poderia trazer alguma contribuição para a reflexão sobre o repetido fracasso da escola em alfabetizar meninos como esses?

 

METODOLOGIA

METODOLOGIA DE ALFABETIZAÇÃO

Sabemos que um ambiente de holding é condição necessária, mas não suficiente para o processo de alfabetização. Há que se dispor de um trabalho diretivo, metodologicamente consistente, bem como de profissionais competentes para desenvolvê-lo com os adolescentes internados. Embora tenha sido autorizada a observação de algumas situações de ensino, as inúmeras restrições institucionais de acesso ao ambiente e ao trabalho da Fundação CASA não nos permitiram o acompanhamento e a investigação de tais aspectos. Apesar disso, em função dos resultados na alfabetização, obtidos em tão pouco tempo (dois a três meses, em geral), podemos supor que o jovem internado tenha experimentado um "trabalho suficientemente bom", para usar um termo de nosso autor de referência. Também precisamos partir da hipótese - já que este não era objeto direto de nosso estudo - de que, nos muitos anos passados na escola, esses jovens haviam encontrado ao menos alguns professores competentes e capazes de alfabetizar com suas metodologias de preferência. Tal hipótese é reforçada por vários depoimentos que comprovam que aquilo que faltou à experiência escolar era de outra ordem. E era esse o nosso objeto: o que, então, fora ofertado em uma instituição estigmatizada, que parece ter faltado à instituição escolar.

Tal investigação pode ser feita mediante a escuta das narrativas dos jovens, nas quais eles apresentavam suas percepções acerca da (não) aprendizagem escolar e o sentido da experiência de alfabetização na Fundação CASA. Adicionalmente, quando possível, solicitamos a eles desenhos sobre a escola e ouvimos seus educadores. Vale lembrar que essa instituição, muito procurada por pesquisadores, raramente permite investigação em suas unidades. Mais difícil ainda é obter autorização para contato com os adolescentes. Os processos de segurança das unidades são bastante complexos e rígidos, e o ambiente estava longe de lhes proporcionar silêncio e tranquilidade. Nesse cenário procuramos criar um clima de confiabilidade, para que o adolescente sentisse não correr qualquer risco com a entrevista. Apesar da complexidade de acesso, as perguntas norteadoras ganharam vida nos encontros e os adolescentes tomaram a palavra e o traço do desenho para dar curso à conversação sobre o que deixaram de aprender na escola e por que se alfabetizaram na Fundação.

SUJEITOS

O perfil dos adolescentes investigados é bastante comum entre os internados para cumprimento de medida socioeducativa: sem competência de leitura e escrita, promovidos nas diversas escolas que frequentaram para anos ou séries em que tal competência já deveria ter sido alcançada. Não é possível oferecer informações adicionais a respeito dos adolescentes, tanto pelos aspectos éticos de confidencialidade, como pela falta de acesso a prontuários ou a informações específicas sobre a família, moradia, escola de origem. Tais dados compareceram em alguns casos, pelas palavras do próprio adolescente, ao comporem espontaneamente sua narrativa. A informação sobre a série ou o ano em que os adolescentes estavam matriculados antes da internação também só foi fornecida por eles - nunca pela instituição.

Foram realizadas entrevistas com 15 adolescentes internados em 4 unidades da Fundação CASA de diferentes municípios. Os jovens foram escolhidos entre aqueles que atendiam aos critérios a seguir: 1. ingressaram na instituição sem competência de leitura e escrita, apesar de terem frequentado a escola regular por anos e de terem sido promovidos para séries em que se supõe tal competência; 2. no período de internação, foram encaminhados para as salas do Ciclo 1 ou salas de alfabetização; 3. seus responsáveis autorizaram a pesquisa com o jovem na instituição.

As entrevistas e os demais instrumentos utilizados tiveram, entre outros, o intuito de investigar o sentido que tais jovens atribuem à experiência escolar anterior ao ingresso na Fundação e ao processo de aprendizagem durante a internação. Para tanto, as entrevistas semiestruturadas procuraram inicialmente indagar sobre a história de escolarização do jovem, as impressões sobre suas dificuldades, as memórias sobre os antigos professores, bem como as percepções sobre seu processo de alfabetização e a relação com os educadores no período de cumprimento das medidas socioeducativas. Assim, as seguintes perguntas nortearam as entrevistas:

Você gostava da escola fora da Fundação CASA? Por que você acha que não conseguiu ser alfabetizado? O que você mais gostava da escola fora da Fundação? Do que você não gostava? Qual seu professor predileto, por quê? A escola na Fundação é diferente? Por quê? O professor é diferente? Desenhe a sua representação de escola. (Silva, 2019, p. 18)

No entanto,

no decorrer de algumas entrevistas, ... considerando-se a importância do livre curso da argumentação do adolescente e da associação da pesquisadora, outras perguntas foram formuladas. Foram situações que escaparam ao roteiro, em função de percepções surgidas no contato com os adolescentes e a partir da interpretação de algumas falas espontâneas dos meninos sobre sua relação com a escola. (Silva, 2019, p.18)

As informações colhidas foram registradas em um diário. Não foi permitido utilizar gravadores ou filmadoras, e a duração das entrevistas variou em conformidade com a rotina da própria instituição e com a disponibilidade do jovem. Neste artigo são apresentadas vinhetas e materiais pertinentes à temática aqui proposta.

LOCAL DE REALIZAÇÃO DA PESQUISA

A Fundação CASA - Centro de Atendimento Socioeducativo - atende adolescentes em conflito com a lei. Para a escolha das unidades, foram observados os trâmites exigidos pela Fundação CASA e pela Vara da Infância e Juventude. Inicialmente, levando-se em consideração a localização geográfica e a possibilidade de deslocamento da pesquisadora entre elas, algumas unidades foram indicadas ao Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc) da Fundação CASA. As quatro unidades pesquisadas foram selecionadas dentre elas, sem que o critério utilizado para tal seleção fosse comunicado às pesquisadoras. De qualquer forma, não foi autorizada pela Vara da Infância e Juventude e pelo Comitê de Ética a identificação das unidades pesquisadas.

A aqui chamada "CASA A" tem atendimento baseado no Artigo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e Gestão: 122 com Internação - Plena (Lei n.° 8.069, 1990, art. 122, §§1.° e 2.°). O trabalho de alfabetização é realizado pelos profissionais da educação da Secretaria de Educação do Estado.

A aqui chamada "CASA B" tem atendimento baseado no Artigo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e Gestão: 122 com Internação - Plena (Lei n.° 8.069, 1990, art. 122, §§1.° e 2.°). O trabalho de alfabetização é realizado pelos profissionais da educação da Secretaria de Educação do Estado.

A aqui chamada "CASA C" tem atendimento baseado no Artigo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e Gestão: 108 com Internação - Provisória (Lei n.° 8.069, 1990, art. 122, §§1.° e 2.°); e 122 III com Internação - Compartilhada que, segundo Cury (2008), ocorre quando "a Fundação é responsável pela direção e segurança da unidade e a ONG realiza o atendimento sócio-educativo dos internos" (p.01). O trabalho de alfabetização é realizado pelos profissionais da educação da Secretaria de Educação do Estado.

A aqui chamada "CASA D" tem atendimento baseado no Artigo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e Gestão: 108 com Internação - Provisória (Lei n.° 8.069, 1990, art. 122, §§1.° e 2.°); e 122 III com Internação - Compartilhada, conforme explicitado na descrição da CASA C. O trabalho de alfabetização é realizado pelo pedagogo e funcionário da Fundação CASA.

PROCEDIMENTOS E MÉTODOS

O recorte da pesquisa envolveu, de um lado, a tramitação de pedidos de autorização no âmbito da Vara da Infância e da Juventude e da Fundação CASA; de outro, a documentação de consentimento dos familiares para realização de entrevistas com os jovens. Os desafios enfrentados para se garantir o acesso aos jovens consumiram boa parte do tempo da pesquisa e exigiram capacidade de adaptação às condições concretas, nem sempre ideais ou sequer favoráveis. Por exemplo, em algumas unidades, a pesquisadora não pôde entrar com materiais escolares, como papel, lápis de cor etc. Em outras, as entrevistas foram conduzidas na presença de um agente de segurança.

As condições de trabalho dos profissionais também não puderam ser investigadas em profundidade, embora se soubesse da diferença entre a administração e os contratos em cada unidade, bem como de possíveis efeitos de tal diferença sobre a prestação dos serviços aos jovens. As entrevistas com os profissionais da educação se ocuparam da percepção deles a respeito dos adolescentes e do trabalho de alfabetização realizado. Em todos os casos, contudo, o respeito pelos adolescentes e a preocupação com eles ficaram evidentes, assim como a dedicação ao trabalho pedagógico.

Como a autorização para a pesquisa estava condicionada a total anonimato, adolescentes, funcionários, professores e unidades da Fundação CASA não foram identificados. Portanto, os nomes atribuídos a todos eles no presente trabalho são fictícios. Todos os trâmites e as exigências da Fundação CASA e do Comitê de Ética foram seguidos e respeitados (Comitê de Ética: Número do CAAE: 71168317.4.0000.5404. Parecer de aprovação: 2.306.780).

A psicanálise é tomada como subsídio teórico e metodológico. Freud (1922/1996, p. 253) define a psicanálise como "um procedimento para investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por outro modo". No artigo "O objeto da investigação analítica", Herrmann e Lowenkron (2004) afirmam que o norte para uma investigação psicanalítica ocorre pela experiência e pela observação de uma prática. Portanto, a narrativa do sujeito pesquisado, a interpretação processual da pesquisadora, bem como a comunicação inconsciente entre ela e os entrevistados compõem fundamentalmente o objeto pesquisado. Como parte de tal processo, após algumas entrevistas, e a critério dos entrevistados, o desenho passou a compor o repertório narrativo da pesquisa. Eles não foram analisados segundo uma técnica específica, mas como componente gráfico que também comporta elementos narrativos e inconscientes, que se somam às entrevistas e ampliam as possibilidades de sua interpretação. Quando convidados a desenhar, os adolescentes e a pesquisadora já haviam estabelecido um clima de tranquilidade e espontaneidade nos encontros. Não pretendíamos esgotar a interpretação de falas e desenhos, mas acessar a natureza da relação do adolescente com a escola a partir de sua fala e considerar a forma como os desenhos a certificavam, atravessavam, transcendiam ou negavam. Os desenhos são tomados como componente adicional às suas falas. Tal qual Winnicott (1984, p.11) em "O jogo dos rabiscos", não há uma técnica de análise, mas um componente de interpretação adicional ao que o adolescente trouxe em sua narrativa.

 

O QUE OS ADOLESCENTES E SEUS PROFESSORES TRAZEM

O EXISTIR NO AVESSO: ONDE BUSCAR O AMBIENTE SUFICIENTEMENTE BOM NA CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE

Segundo Winnicott, a construção do "eu" ocorre, desde os primórdios da existência, sob os cuidados de uma mãe ou de quem a substitua, que oferece um ambiente de segurança capaz de suprir suas necessidades físicas e emocionais. Profundamente dependente de tais cuidados e vivendo em estado inicial de não integração, o bebê recebe, do ambiente que provê, algum sentido de unidade. O bebê sairia, assim, de um estado de dependência absoluta e de não integração para um estado de dependência relativa, rumo à independência (Winnicott, 2018), mediante a oferta de condições ambientais que Winnicott (1983) nomeou de "suficientemente boas" (pp. 59-60). Tais condições envolvem o manejo cuidadoso do corpo do bebê, o que evita que se sinta em perigo; a sustentação temporária da não integração, bem como da ilusão vivida pelo bebê, vive de que ele é a fonte daquilo de que necessita. Essas seriam, no entender de Winnicott (1983), as forças integradoras que permitiriam o desenvolvimento de uma personalidade integrada.

Para o bebê, o ambiente é, em princípio, a mãe ou seu substituto. Ele é ampliado consideravelmente após os primeiros meses, envolvendo outras figuras parentais, a família estendida, a vizinhança e a escola. No entanto, podemos afirmar que o ambiente mais amplo é essencial desde o início da vida do bebê, pois é ele o responsável por dar sustentação às necessidades da mãe (ou substituto) para que ela se dedique predominantemente às demandas do filho. Isso significa, portanto, que os elementos sociais e culturais também estão na base do desenvolvimento psíquico. Disso se deduz que a realidade histórico-social está implicada na experiência de sofrimento psíquico e em suas manifestações (Silva, 2019, p. 52).

Assim, podemos dizer que o entorno social não apenas confronta o sujeito cotidianamente, mas também dá contornos a seus processos de integração e desenvolvimento, a suas formas de existir, de sofrer e de clamar por ajuda. A vulnerabilidade, aqui entendida como vulnerabilidade social e emocional, é um dos vetores da existência do adolescente em conflito com a lei. Ela sintetiza, em muitos casos, como a esperança do jovem está organizada para buscar no ambiente as condições para o enfrentamento do sofrimento, ou seja, como o jovem reivindica que o ambiente seja suficientemente bom.

O adolescente em conflito com a lei comporta e evidencia a complexidade mencionada. Em uma das visitas à Fundação CASA

passamos por uma apresentação da instituição, sendo que uma das funcionárias nos mostrou uma visão geral do atendimento socioeducativo. Entre uma informação e outra, essa funcionária descreveu situações e histórias dos adolescentes, dentre elas, falou a respeito da suspensão da visita de crianças (filhos e irmãos dos adolescentes) aos finais de semana. Diante de meu questionamento, a funcionária explicou-nos: “Nos dias de visita costumamos servir os familiares com muita comida, as crianças conhecem a unidade e os adolescentes internados contam o que comem, onde dormem, as atividades que fazem. Então começamos a perceber que muitas crianças tinham sonho de vir para a Fundação CASA, para ter as coisas que os adolescentes têm aqui: alimentação, cama, banho, atendimento médico e odontológico, tv, dentre tantas coisas que oferecemos aqui, e que são básicas, mas que o adolescente em conflito com a lei não possui em casa. Tivemos que suspender a vinda de crianças, pois percebemos que muitas delas passaram a ter o ato infracional como meta para desfrutar do que futuramente lhes seria oferecido em cumprimento de medida socioeducativa". (Silva, 2019, pp. 52-53)

Essa descrição aponta para a negligência de direitos e garantias fundamentais a que estão submetidos crianças e adolescentes e para o quanto "o crime, para muitos adolescentes em conflito com a lei, tornou-se uma forma para (SUB)EXISTÊNCIA" [ênfase no original] (Silva, 2019, p. 54). Tal constatação fica evidente na fala de muitos adolescentes entrevistados, como, por exemplo, na história de Marcos (matriculado no 9.° ano do Ensino Fundamental, internado há mais ou menos três meses, sem alfabetização) e de Rodrigo (18 anos, matriculado no 2.° ano do Ensino Fundamental, internado há cinco meses pela primeira vez, lê e escreve um pouco e aprendeu na Fundação) (Silva, 2019). Estes dois excertos de Silva (2019, pp. 46-47) revelam o que nos contam primeiramente Marcos e, a seguir, Rodrigo sobre as negligências a que estão submetidos:

Morava com pai, mãe e cinco irmãos, e todos eles, os irmãos, já passaram pela Fundação CASA. Hoje a família mora em um prédio da prefeitura, os irmãos estão trabalhando e tentando acertar a vida.... O adolescente falou bastante espontaneamente, disse que está com saudades de casa, que a família pegou apartamento da prefeitura e que é muito bom, que estava feliz. Falou do irmão, que lhe disse para ficar mais tempo na Fundação CASA para poder colocar os dentes que a polícia quebrou. Disse ainda que não irá aprontar mais, porque ama a família e onde estão morando agora, pois antes moravam perto do brejo, em um cômodo com sete pessoas, emprestado por um homem, mas chovia tanto dentro, que perderam móveis. Finalizou, dizendo que “toda a família está com a vida sossegada e quando chove a gente não tem mais medo de alagamento" .

Morava com a mãe (faxineira) e três irmãos. O pai morreu quando Rodrigo era pequeno, e o garoto não o conheceu, mas confessou não querer saber do que ele morreu. Disse que vivia numa casa cujo terreno foi invadido, mas agora está legalizado. A família passa por muitas dificuldades financeiras, e Rodrigo revelou que com o dinheiro de roubo, tráfico e receptação ajudava a mãe a comprar comida para a família. Começou a se envolver com coisas ilícitas aos 10 anos, porque usava drogas e começou a vendê-las. Não tinha horário para sair ou voltar para casa.

Tristemente, para muitas crianças e adolescentes, o ato infracional veio a ser uma forma de enfrentamento da pobreza, uma forma de sobreviver à perversa condição de vulnerabilidade social. Para Sposati, Falcão e Fleury (1989), a criminalidade "tornou-se um fenômeno banal no cenário brasileiro" (p.1) e "o rosto da miséria e as estratégias de sobrevivência dos segmentos pobres majoritários em nosso Brasil, é a barbárie" (p.20).

Se não bastasse, as relações sociais de uma sociedade capitalista refletem os interesses do capitalismo: lucro e acumulação de riquezas (Silva, 2019) e, conforme aponta Arruda (1985, p. 37), "no capitalismo se produz para acumular e não para satisfazer as necessidades individuais, mesmo porque estas não são algo dado, mas sim produtos da história, ou melhor são criadas socialmente". No capitalismo há a fantasia de identificação e constituição social pela aquisição de coisas e, segundo Silva (2019), "não poucos indivíduos agem e se movimentam pela expectativa da aceitação pelo consumo, mas, para além disso, desejam subjetivamente acolhimento, compartilhamento, inclusão, integração" (p.57). Assim, "uma primeira carência dos marginalizados", ou seja, a carência de direitos, "que é real, é agravada por uma segunda que é falsa, mas imposta pela sociedade de consumo como real" (p.57). Vejamos a fala de Marcelo, 13 anos, matriculado no 6.° ano do Ensino Fundamental, com severa defasagem para o ano em que está matriculado, internado há 4 meses pela segunda vez. Na primeira internação ficou na instituição por 7 meses. Entre a primeira e a segunda internação ficou apenas 11 dias desinternado. Evidencia-se em sua fala a necessidade de consumo como forma de pertencimento e identificação social:

Na Fundação CASA aprendi porque estou com a cabeça no lugar, não tenho opção, sou obrigado, penso mais na vida que no mundão. Lá fora eu só queria dinheiro, carro, moto, eu era seduzido pelas coisas, me dedico mais, não sou seduzido, me envolvi com o ilícito porque eu queria roupas e tênis de marca e minha mãe não tinha dinheiro. Ela tinha dinheiro somente para coisas simples, mas eu queria coisas caras que minha mãe não podia dar. (Silva, 2019, p. 39)

Ser e sobreviver parecem estar no cerne dos motivos do envolvimento com atos infracionais de muitos adolescentes. Para muitos, eles são a forma encontrada para comer, morar, sobreviver e consumir. Em vários casos, "o consumo tem o poder de fazer com que o outro exista, ou se sinta como se existisse, para além do objeto; o desejo é a experiência de ser aceito, de sentir-se igual" (Silva, 2019, p. 105) e de "sentir-se real" (Winnicott, 2001, p.123) a partir do acesso ao consumo.

ALOJAMENTO PSÍQUICO NAS FALAS DOS ADOLESCENTES

Winnicott (2005) utilizou o termo "alojamento" para reportar-se a um ambiente de atendimento de crianças antissociais. Por alojamento, o psicanalista se referia às buscas inconscientes por auxílio e continência para abrigo e estabilidade emocionais. Para Winnicott (2005), a instituição escolar estabeleceria, pela transferência, uma relação extensiva ou substituta do ambiente familiar - nas palavras dele, um alojamento. Diz ele que

no caso de criança desajustada, "escola" tem o significado de "alojamento". Por essas razões, aqueles que estão envolvidos na administração de crianças antissociais não são professores de escola que acrescentam aqui e ali uma pitada de compreensão humana; são, de fato, psicoterapeutas de grupo que acrescentam uma pitada de ensino. [ênfase no original]. (p. 215)

Em outras palavras,

os alunos buscam pela ajuda do professor, lançando-lhe expectativas inconscientes de suporte e alojamento de suas manifestações psíquicas, e tanto as experiências de êxito quanto as de fracasso comportam, entre outros, determinantes inconscientes. Pela transferência os alunos colocam no profissional pedagógico atribuições de auxílio e continência. (Silva, 2019, p. 19)

Quando ambientes escolares compreendem essa importância, estabelecem-se como espaços compensatórios que permitem, por apresentar condições favoráveis, desenvolvimento psíquico para crianças e adolescentes. Estes se sentem seguros para a "exposição de suas verdades" e a consequente maturação emocional (Silva, 2019, p.108). Para além de um espaço suficientemente bom, a busca é por relações substitutivas, "para se alojar, para se proteger, crescer e aprender" (p. 110). Silva (2019) ainda salienta:

A criança que não encontrou no lar um ambiente estável para seu desenvolvimento necessita receber de uma equipe o holding para as demandas consequentes da angústia emocional. Ela apela a um alojamento, que pode ser a escola e os profissionais que ali estão. Para tanto, todos os funcionários envolvidos no cuidado do adolescente em conflito com a lei, ou todos os profissionais da escola que recebem esse público, bem antes da Fundação CASA, necessitam oferecer ambiente e manejo adequado e constante, sob o risco de colocar a perder a esperança almejada. A intolerância e o preconceito contra o comportamento antissocial não correspondem à esperança almejada pela criança ou pelo adolescente, pois o ódio novamente é suscitado e exteriorizado por comportamentos provocadores. (p. 71)

Os encontros com os adolescentes mobilizaram narrativas com duras histórias de vida. Ainda que as perguntas da entrevista envolvessem mais diretamente as situações de aprendizagem, as respostas evidenciaram que no ambiente escolar as buscas inconscientes por alojamento psíquico tinham precedência em relação a conteúdos. Percebemos que a superação da não aprendizagem escolar não estava no campo propriamente pedagógico, mas em outros sentidos inconscientes, depositados no espaço escolar e em seus atores. Recorramos novamente à história de Rodrigo, de 18 anos (Silva, 2019):

Passou somente por uma escola, em que cursou do 1.° ao 2.° ano, foi reprovado e abandonou, porque era obrigatória a aprovação. Apresentou-se confuso nessas explicações. Disse que o que gostava mais na escola era a comida, que era muito boa, e que as pessoas eram legais - colegas de classe e professores. A professora predileta explicava tudo certinho e não tinha professor de que não gostasse. Deixou-me desnorteada com a declaração: "É uma vergonha, senhora, mas vou falar a verdade, eu gostava mesmo era a comida”.

Na Fundação CASA foi com a professora de reforço que aprendeu a ler e escrever: "Ela dá atenção para ensinar, a escola na Fundação é diferente, as matérias, eu consigo aprender, é mais fácil, os professores são a mesma coisa, Fundação é importante para o estudo, diploma de curso". Disse não gostar da rotina da instituição, mas que não estudaria se não fosse a rotina. "Lá fora no mundo eu não tinha rotina, minha rotina era vender droga e roubar, não tinha tempo pra estudar e nem me preocupava com isso, não era fácil não...eu trampava pra caramba, de manhã eu roubava, à tarde eu traficava, era uma correria, não dava tempo de ir pra escola". Disse ainda que na Fundação é obrigado a estudar, mas, quando sair, vai voltar aos estudos: "tenho uma namorada lá fora mais velha que eu, ela tem 21 anos, vou parar com o corre." [ênfase adicionada] (p. 44)

Rodrigo é o adolescente que cresceu em condições de muita vulnerabilidade social e emocional, perdeu o pai muito cedo e passou a assumir, junto com a mãe, as responsabilidades de sustento do lar. O adolescente salienta que trabalhava muito, ilicitamente, mas trabalhava, e não tinha tempo para estudar. A demanda das necessidades do sustento de si mesmo, da mãe e dos irmãos contribuiu para o envolvimento com o roubo e o tráfico, e também para um descompromisso com a escola. A necessidade de amadurecimento precoce reserva à escola as partes mais primitivas e que não encontraram tempo e espaço para desenvolvimento e amadurecimento apropriados. São as partes mais vulneráveis as que ficam depositadas na escola. Isso pode ser ilustrado pela fala a respeito do que mais gostava na instituição: "É uma vergonha, senhora, mas vou falar a verdade, eu gostava mesmo era a comida”.

O conceito de transferência é importante, aqui, para elucidar o que está depositado, então, sobre o professor. Transferências podem ser compreendidas como "reedições dos impulsos e fantasias despertadas" do passado, que se tornam atuais na relação com outra pessoa. Ganham vida novamente, não mais como passado, mas substituindo uma pessoa de uma experiência anterior por uma atual. Essa substituição é inconsciente, isto é, não é percebida pelo indivíduo. No contexto escolar, o professor, então, é alguém a quem são endereçados os interesses de seu aluno (Kupfer, 2000, citado por Silva, 2019, p. 70).

Pela transferência, o adolescente atribui ao professor um lugar que o ressignifica, num deslocamento de sentidos que lhe convêm ou que foram experimentados e perdidos precocemente, e tem a expectativa de encontrá-los na relação com o professor.

As palavras destacadas de Rodrigo são representativas daquilo que está depositado no professor. Elas revelam a importância desse sujeito capaz de holding (que cuida, ampara e dá atenção), tanto como figura de identificação (alguém que estuda, aprende e usa o que aprendeu, ensinando), quanto como figura que representa aquilo a que se opor (não gosta da rotina, sente-se obrigado a estudar). Expõem, portanto, a necessidade de um alojamento no interior do qual uma mente possa ser gestada, com o qual possa se identificar e, posteriormente, do qual se possa diferenciar.

Sabemos que o ato de ensinar sempre condensa uma demanda que está para além daquilo que se ensina. No entanto, em geral, os vínculos que se estabelecem mais ou menos regularmente na escola dão conta de equilibrar a demanda por ligações humanas significativas e o desejo de aprender.

Entre os jovens estudados, contudo, a demanda por alojamento psíquico é de tal ordem que tais vínculos parecem insuficientes para a envergadura da tarefa, ainda que possam ser imprescindíveis. A percepção frequente do jovem (objetiva ou resultante de processos transferenciais maciços) é de não atendimento, ou atendimento parcial da demanda por alojamento, o que parece interditar o aprendizado.

Embora apresentada como a fala individual de um adolescente, os sentidos profundos das figuras de identificação e de oposição conferidos ao alojamento psíquico na narrativa de Rodrigo podem ser encontrados em várias outras passagens na fala de 11 dos 15 adolescentes entrevistados. Dizem eles sobre os professores preferidos ou diferenciados (Silva, 2019):

... acessibilidade e disponibilidade para que aprendesse. (André)

... os nomes dos professores de que mais gostava, ... os mais atenciosos. (Bernardo)

[sobre a atual professora, de quem disse gostar muito] ... pois ela se preocupa com o que está acontecendo comigo, quando “eu fico dando trabalho”. (Helton)

a professora da Fundação CASA é diferente “porque pega no pé”, é interessada por mim, "na Fundação dobra a atenção, lá fora não”. (Gabriel)

[sobre a escola predileta] ... porque os professores “pegavam no pé, ajudavam bastante e eram atenciosos e tranquilos”. (Irineu)

... aqueles que mais se importavam e se interessavam por mim. (Kleberson)

... porque os professores eram bonzinhos, ajudavam, respeitavam. (Marcos)

ela era atenciosa e se importava comigo. Da primeira escola citada diz que não gostava porque os professores não se importavam com ele, eram grosseiros e chatos. (Marcelo) [sobre a professora predileta]... aquela que me ajudava e dava conselhos. (Nei)

[sobre os professores prediletos] ... eram atenciosos, cuidadosos. (Pedro) [ênfases adicionadas]. (pp. 73-74)

Winnicott (2005) utiliza o conceito de holding para referir-se à provisão ambiental necessária, quando profissionais estão envolvidos com o atendimento de crianças e adolescentes antissociais. O ambiente de holding envolve profissionais que compreendem as transferências existentes, que suportam o lugar que lhes é atribuído e conferem liberdade a crianças e adolescentes, até que possam experimentar suficientemente aquilo de que necessitam. Ao fazê-lo, meninos e meninas encontram alojamento psíquico e suporte para suas angústias. Pouco a pouco, então, vão se tornando capazes de lidar com outros aspectos da vida mental, e outros interesses começam a ter lugar, como, por exemplo, aquele pela aprendizagem. Os professores, nesses casos, são promessa de relações substitutivas fundamentais para que sintomas decorrentes de experiências de desamparo encontrem formas de sustentação e de elaboração psíquica. A atenção requerida por jovens em situações como a de Rodrigo é de uma ordem distinta daquela a que o professor está habituado, pois não se trata de atenção voltada exclusivamente a suas necessidades cognitivas.

As falas supracitadas de adolescentes em conflito com a lei apontam para expectativas de convívio substitutivo que antecedem conteúdos pedagógicos e que precisam, inclusive, estabelecer alguma resistência à destrutividade dos jovens, de modo que sua agressividade possa encontrar sustentação e espaço de elaboração. Todos os adolescentes entrevistados revelavam sérias dificuldades na trajetória de escolaridade: defasagem de aprendizagem (não alfabetização) que os levou à não aquisição de leitura e escrita, apesar de matriculados em anos escolares em que já se devia verificar tal aquisição. No entanto, suas respostas apontam para expectativas que não estavam no campo pedagógico.

ESCOLA, ESPAÇO DE BUSCA POR ALOJAMENTO: RESSIGNIFICAÇÃO E REELABORAÇÃO DE HISTÓRIAS DE SOFRIMENTO

Todos os adolescentes internados na Fundação CASA e entrevistados na pesquisa aqui referida foram um dia alunos de uma unidade escolar e com esta estabeleceram uma relação que não foi bem-sucedida o que, consequentemente, culminou em uma deficiente aprendizagem. Segundo Silva (2019), a escola seria um espaço para "reviver histórias e reelaborar sintomas", isto é, o sofrimento advindo de conflitos emocionais é demonstrado em sintomas, numa forma de defesa involuntária e inconsciente, em busca de amparo. A busca pelo aplacamento do sofrimento seria um sinal de esperança, pois ainda é possível assimilar compensação, e o indivíduo almeja pela disponibilidade de outros que suportem um lugar e ofereçam holding.

A escola é um espaço em que constantemente crianças e adolescentes estão a nos falar sobre seus conflitos emocionais. Por vezes essa fala não é explícita, e a criança pede ajuda em "ações de agitação, indisciplina - comportamento antissocial -, dificuldade de aprendizagem e falta de interesse pelos estudos". Outras vezes, a criança fala de forma objetiva e pede ajuda, expondo claramente sua situação de sofrimento. De qualquer forma, há crianças e adolescentes na escola buscando por amparo e proteção de forma consciente ou inconsciente. Muitas das dificuldades de aprendizagem são manifestações em busca da disponibilidade de outros que ocupem o lugar de quem suporta e sustenta o trabalho psíquico envolvido na elaboração de suas angústias.

Se Winnicott (2005) descreve a conduta antissocial como busca por esperança e socorro, crianças e adolescentes que se manifestam dessa forma estão pedindo um suprimento ambiental em que seja possível cura em tempo oportuno. Assim, a criança ou adolescente com comportamento antissocial está clamando por pessoas que sejam amorosas, fortes e de confiança (p. 147).

Analisando o comportamento antissocial descrito por Winnicott (2005), chegamos à evidência de um perfil que é constante em sala de aula - o de crianças e adolescentes que manifestam a "destrutividade compulsiva, incontinência, conduta desordenada e caótica, avidez exacerbada e violência" (p.147) - histórias de muitos Rodrigos, Marcelos, Neis, Klebersons. Por vezes, crianças e adolescentes parecem invocar instintos primitivos, e tais instintos, para Winnicott, são buscas por um ambiente indestrutível que não se desfaça diante da destrutividade. Fazem-se necessários, à constituição psíquica, limitadores suficientemente indestrutíveis, fortes e amorosos.

O relato de uma das professoras da Fundação traduz as dificuldades vividas pelos jovens e as possibilidades de oferta de um ambiente propício à ressignificação e à reelaboração de sua história (Silva, 2019, pp. 50-51):

É necessário que as crianças sejam cuidadas de forma que não encontrem na criminalidade o acolhimento que não tiveram, é necessário um olhar à infância para que o adolescente não chegue na Fundação CASA, há uma ferida no adolescente, uma necessidade, uma frustração que levou o adolescente ao crime e ao abandono escolar.

Descobriu que o ódio inicial que muitos adolescentes possuem do pai - não gostarem de falar nele - é, na verdade, ódio pela falta que sentem dele, "eles descrevem a mãe muito oprimida, sofrendo violência e que não conseguia ser mãe devido ao ambiente de conflito vivido, a mãe não consegue se estabelecer como mãe, há um buraco na história deles". Muito ética, Cristina destacou o caso de um adolescente, sem identificá-lo:

Sempre que eu entrava na sala de aula ele estava chupando o dedo e com a outra mão alisava a ponta do pé, dormia nas aulas de leitura e todas as vezes que sentia sono agia assim; a mãe e o padrasto desse adolescente eram usuários de drogas e a mãe acabou presa por asfixiar um dos irmãos ainda bebê porque ele chorava muito. Esse adolescente permaneceu pelas ruas até infracionar e ser internado na Fundação CASA devido a um furto. Constantemente esse adolescente pedia-me para adotá-lo, pois quando saísse não tinha para onde ir, dizia que ia ficar bonzinho; um dia os profissionais da Fundação CASA conseguiram que ele fosse visitar a mãe presa e ele conseguiu apenas tocá-la com as pontas dos dedos, devido à tela existente no local. Quando voltou da visita o adolescente lamentava muito não ter podido abraçá-la, parecia-me que ele queria o colo da mãe, fazia peraltices e, quando chamávamos sua atenção, ele gostava, se sentia feliz.

Essa história de tanta violência relatada pela professora Cristina é a história de violência a que muitas crianças são submetidas diariamente no Brasil. Histórias de crianças que estão em nossas escolas. Histórias de gente pequena, que, sem alojamento para reelaborar sintomas, não encontra espaço mental para alojar os conteúdos pedagógicos.

AMBIENTE ESCOLAR: ESTABILIDADE E PROTEÇÃO - O PARADOXO LIMITE E ESPAÇO

Para Davis e Wallbridge (1982), "o ambiente é central para o desenvolvimento e a maturação emocional" (p.163). Os limitadores presentes nesse ambiente oferecem-se firmes e inabaláveis diante dos instintos de crianças e adolescentes. Os limitadores seriam como aparatos necessários a um ambiente que ofereça segurança para maturação e integração, até que o indivíduo se reconheça autônomo e possa organizar-se em seus próprios limites, desenvolvendo o autocontrole necessário, quando inserido em grupos sociais maiores. No limite, há segurança, controle e proteção para que, quando crianças e adolescentes estiverem inseridos em uma realidade compartilhada maior (sociedade), consigam um "próprio sistema de limite e controle e, portanto, segurança" (p.165).

As representações de escola oferecidas pelos jovens entrevistados em seus desenhos trazem aspectos relevantes para a análise do paradoxo limite-espaço. É importante lembrar que, na narrativa dos adolescentes, a ausência de regras e limites na vida aparece como marca distintiva, tanto quanto a associação de que os limites da Fundação CASA foram parte da condição necessária para a aprendizagem ali dentro.

Quando da solicitação dos desenhos sobre a escola, não houve qualquer orientação por parte da pesquisadora. Havia apenas os limites do papel. Como a entrada de material na instituição era limitada, as folhas utilizadas eram pautadas, retiradas do caderno de anotações da pesquisadora. Havia, portanto, linhas, que a maioria dos adolescentes ignorou. Todos quiseram estabelecer seus próprios limites, suas próprias linhas demarcatórias entre limite e espaço na representação de escola. É o que se pode verificar nos desenhos e excertos (que fazem referência à imagem que se segue a ele) a seguir - paredes, maçanetas, cadeados estão evidentes e por toda parte.

Os limites protetores da escola de Helton. Linhas representando paredes verticais e horizontais. Maçanetas em todas as portas, todas fechadas. O adolescente, desde os 12 anos, sai de casa sozinho para, dentre outras coisas, vender drogas. Descreve a relação do padrasto como boa, porque ele não lhe dava ordens. Descreve-se como um aluno agitado e incontido e que, se encontrasse as regras rígidas da Fundação CASA "lá fora", iria para a escola. O paradoxo na fala de Helton: liberdade para tomar decisões sobre sua vida desde muito jovem, a referência sobre não gostar de ordens, a indisciplina na escola em contrapartida, diz que iria para a escola quando desinternado, se encontrasse rígidas regras. (Silva, 2019, p. 100-101)

 

 

Os limites protetores da escola de Irineu. Desenha um campo de futebol muito bem delimitado. Faz referência aos professores preferidos como aqueles que "pegavam em seu pé", numa referência aos profissionais que estabeleciam regras para sua conduta como aluno. (Silva, 2019, p. 101)

 

 

Os limites protetores da escola de Kleberson: paredes laterais e, acima, um espaço delimitado pelo adolescente que frequentou diversas escolas. Descreve a Fundação CASA, apesar dos limites e da privação de liberdade, como uma escola, e não "cadeia" [ênfase no original]. (Silva, 2019, pp. 101-102)

 

 

Os limites protetores da escola de Lauro. Ele também desenha a escola "enquadrada" em espaços limitadores em redor e faz questão de desenhar um cadeado no portão. Passou por diversas unidades escolares, esquece o nome da escola em que disse ter recebido um prêmio. Descreve os professores da Fundação CASA como os da escola preferida e os daquela cujo nome esqueceu. O adolescente disse que tinha medo de ficar trancado na Fundação CASA e que estudaria "lá fora", se a escola fosse como na instituição [ênfase no original]. (Silva, 2019, p.102)

 

 

Os limites protetores da escola de Marcelo, que representa limites que estão em todos os lados. Ele não utiliza as linhas do caderno, estabelece o enquadramento de sua própria representação. O adolescente fez interessantes oposições a respeito de sua internação: disse que aprendeu na Fundação CASA porque foi obrigado, mas que pensa mais sobre sua vida na instituição. Há uma outra oposição em seguida, quando diz que a instituição "está estragando sua vida, porque está perdendo a infância", mas depois diz que foi na Fundação CASA que aprendeu a refletir sobre objetivos e outras escolhas. O adolescente novamente faz uma interessante oposição, dizendo que não gosta de estar preso, trancado, mas quando não estava internado ficava na rua fumando maconha e tomando whisky. (Silva, 2019, p. 102-103)

 

 

Os limites protetores da escola de Nei: ele estabelece um enquadramento em torno da escola e da quadra, também delimitando o espaço. O adolescente descreve-se como alguém que "sempre fez tudo o que quis", mas que diz que foi alfabetizado na "marra" na Fundação CASA em apenas 45 dias (quando nos limites das grades). (Silva, 2019, p. 103)

 

 

Os limites protetores da escola de Pedro. Desenha professor e aluno dentro de um espaço delimitado, inclusive na vertical, sem utilizar as linhas do caderno também. Diz que na Fundação CASA estuda porque é obrigado, mas que, se fosse assim antes da internação, se comprometeria com a escola e não bagunçaria. (Silva, 2019, p. 104)

 

 

Os limites protetores da escola de Rodrigo. Desenha uma escola sem pessoas, mas desenha as limitações. Em sua fala aponta para a precocidade de seu envolvimento com atos infracionais, drogas e falta de limites. Há também uma oposição em sua fala: não gosta da rotina da Fundação CASA, mas reconhece que é devido a essa rotina que estuda. (Silva, 2019, p. 104)

 

 

As falas dos adolescentes, conjuntamente com os desenhos, oferecem uma interpretação de reivindicações inconscientes, por contenção, solicitação de que o espaço em que estão inseridos não se desintegre diante de suas manifestações destrutivas. Em todas as falas sobre os desenhos, os jovens se valem de oposições entre ausência e presença de regras, o gosto por poder fazer o que se quer e o reconhecimento da necessidade de contenção. Segundo Winnicott (1983), nas oposições há "a necessidade urgente de se comunicar e a necessidade ainda mais urgente de não ser decifrado" (p. 168). Numa espécie de jogo de esconde-esconde, como preservação da própria identidade, o adolescente em conflito com a lei deseja, como diz Winnicott, "fortalecimento das defesas contra o fato de ser descoberto, isto é, ser encontrado antes de estar lá para ser encontrado" (p. 173).

Limites de segurança são o tempo todo atacados por crianças e adolescentes procurando por adultos suficientemente fortes e seguros para proteção. O ataque aos limitadores não é busca pela ausência deles, pois já a têm; é a busca pela indestrutividade dos limites como forma de sentir-se seguros. No comportamento antissocial, crianças e adolescentes não encontraram círculos de proteção que proporcionassem contenção de seus instintos primitivos, instintos esses que, de alguma forma, remontam a uma relação com um ambiente que não se apresentou como suficientemente bom. Winnicott (2005) aponta que

a criança cujo lar não lhe ofereceu um sentimento de segurança busca fora de casa as quatro paredes; ainda tem esperança e recorre aos avós, tios e tias, amigos da família, escola. Procura uma estabilidade, sem a qual poderá enlouquecer. Fornecida em tempo oportuno, essa estabilidade poderá ter crescido na criança como ossos em seu corpo, de modo que, gradualmente, no decorrer dos primeiros meses e anos de vida, terá avançado da dependência à independência. É frequente a criança obter em suas relações e na escola o que lhe faltou no próprio lar. (p. 130)

No entanto, por vezes, será a instituição que prolongará a incontenção e a instabilidade de uma sociedade estruturalmente desigual e injusta. Ela contribuirá para a permissividade e para uma falsa sensação de liberdade (Davis & Wallbridge, 1982, p. 170), pois não se apresenta como o círculo protetor que faz recuar crianças e adolescentes, clamando pela indestrutividade do ambiente. Silva (2019) aponta que "o ambiente educacional, por vezes, ... se desintegra diante dos ímpetos destrutivos das crianças e perpetua ainda a instabilidade, a violência, a permissividade e a destruição" (p. 100).

Inseguras, assim como no lar e nos círculos de relacionamento mais amplos, as crianças não confiam no ambiente que não as proteja e no qual não encontram alojamento para seus medos e angústias. Predominam, assim, objetos internos maus, violentos e perseguidores (Klein, 1991),ou seja, objetos dotados de maldade, e não dotados de autoridade e capacidade amorosa (Meltzer, 1989).

Embora não se constitua como experiência desejável, e longe de ser a melhor alternativa para os problemas que se apresentam na escola, as falas e os desenhos dos adolescentes evidenciam que a internação acabou por oferecer o círculo estabilizador e protetor que funcionou como provisão ambiental que, dentre outras coisas, possibilita a aprendizagem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises das entrevistas, dos desenhos e relatos nos apontam para um ambiente escolar buscado pelos adolescentes como um alojamento psíquico, mas que, para assim funcionar, necessita disponibilizar-se como tal. O manejo, ou provisão de cuidados, é necessário quando as experiências de vida descritas apontam para a negligência e para a subtração de direitos fundamentais a que estiveram ou estão submetidos os adolescentes. Em Winnicott temos o apontamento de que todo indivíduo está em busca de SER e, para SER, busca continuamente espaços ambientais que proporcionem facilitação para crescimento. Tal crescimento identifica crianças e adolescentes como sujeitos individuais e coletivos (Davis & Wallbridge, 1982, p. 19). Em Winnicott, também, é possível acreditar que os seres humanos não estão condenados à destruição, pois, mesmo quando inicialmente se encontram num ambiente perturbador, há no indivíduo a esperança de busca de outros favoráveis, sempre à procura do outro solidário, para ambientação e holding. A justificativa para a suspensão de visitas de crianças na Fundação CASA, citada por uma das educadoras de uma das unidades, além de revelar mais uma interdição de vínculos significativos vivida pelo adolescente internado, é também impactante, por evidenciar como a busca por ambiente confiável, que provê comida, cama, banho e consequente aprendizagem, pode ser encontrada em atitudes consideradas irresponsáveis e antissociais.

Nesse caso, voltando às questões inicialmente propostas sobre "como uma instituição estigmatizada como hostil conseguia, em apenas três meses, o que a unidade escolar não conseguia ao longo de vários anos?" e "o que havia para ser descoberto sobre relacionamentos e contribuição para a aprendizagem numa instituição tão famigerada?", como abordá-las à guisa de conclusão?

O ambiente escolar e os profissionais capazes de reconhecer a esperança contida em atitudes antissociais têm condições de se oferecer como alojamento psíquico a crianças e jovens. Nesse alojamento, a oferta de segurança, indestrutibilidade e confiabilidade pode tornar possível a ressignificação e a reelaboração de sintomas, a vivência de estabilidade e de proteção, condições essenciais ao crescimento e à aprendizagem.

Há de se instalar no ambiente escolar uma disposição para comprometer-se em SER ambiente facilitador, e eis aqui a maior dificuldade: dispor-se a SER ambiente favorável, a SER holding, a compreender as transferências existentes nas relações, sem, contudo, invadir a criança ou o jovem com tal compreensão; e a compreender as benesses sociais de indivíduos integrados. Suportar relações transferenciais, por vezes, é um inferno, enlouquecedor, e, sem uma equipe que também sirva de apoio, podemos duvidar de que realmente seja possível sobreviver à experiência de ser o que crianças e adolescentes necessitam que os profissionais da educação sejam.

A escola, desde muito cedo, compõe o cenário de vida de todas as crianças. Cada adolescente da Fundação CASA já foi a criança de uma escola e lá, na escola, é que se deram as buscas esperançosas por espaços compensatórios, espaços esses que precisam se oferecer à criança a tempo, como explica Winnicott em "Some psychological aspects", citada por Abram (1996, p. 45):

Uma criança anti-social pode apresentar melhoras sob um manejo firme, mas se lhe é conferida liberdade não demorará em sentir a ameaça da loucura. Volta, então, a atacar a sociedade (sem saber o que faz) a fim de restabelecer o controle exterior ... através de pulsões inconscientes, compele as pessoas a lhe prestar assistência.

Tais ideias nos permitem refletir sobre o papel da Fundação CASA. Para muitos, a instituição se apresenta como um espaço compensatório que oferta controle e algum manejo dos desajustes ambientais sofridos. Porém se trata de compensação tardia. O adolescente, portanto, permanece controlado, adquire alguma competência de leitura e escrita, mas a terapêutica não se dá, pois está fora do tempo de assimilar compensação. A Fundação CASA é, em tese, espaço para o manejo, mas fora do tempo (Winnicott, 1983, p.188); por isso, aplaca algumas dificuldades - inclusive escolares -, mas dificilmente cura. É na escola que a criança tem busca esperançosa - em tempo oportuno e de forma, portanto, que a compensação seja assimilada e, consequentemente, a terapêutica e a aprendizagem floresçam como consequência de processos de integração.

 

REFERÊNCIAS

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Silva, R. C. dos S. S. (2019). Relações substitutivas no ambiente educacional socioeducativo (paradoxos entre limite e espaço). (Dissertação de Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.

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Recebido em: 22/06/2020
1ª revisão em: 29/07/2021
Aceito em: 02/11/2021

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Os autores declaram não existir conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Rosiane Cristina dos Santos é Doutoranda em Educação. Mestra em Educação. Psicologia e Educação. Professora e Coordenadora Pedagógica.
E-mail: l rosianesantos0509@yahoo.com
https://orcid.org/0000-0002-8403-0375
Ana Archangelo é Livre docente pela Universidade Estadual de Campinas (2019). Professora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação.
E-mail: ana.archangelo@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0023-0503

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