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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre dez. 2015

 

ARTIGOS

 

O trabalho comum através do aprendizado dos afetos na Rede de Atenção Psicossocial

 

Learning about affects through common-work in Psychosocial Attention Networks

El trabajo común a través del aprendizaje de los afectos en la Red de Atención psicosocial

   

 

Adriana Barin de AzevedoI

I Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe pensar o trabalho das Redes de Atenção Psicossocial a partir da perspectiva de Baruch de Espinosa e de Fernand Deligny. A proposta é mostrar o quanto a questão do aprendizado dos afetos, apresentado por Spinoza é determinante em um trabalho comum entre profissionais de saúde e usuários da Rede. Os profissionais de saúde, ao aprenderem a respeito da capacidade de pensar e agir dos usuários, descobrem do que eles próprios são capazes. A rede se constitui através da conexão entre diferentes serviços de saúde e entre profissionais de diferentes áreas. Trata-se da construção de uma maneira de agir e viver junto, o que diz respeito a uma ideia de rede que vamos encontrar na obra de Fernand Deligny.

Palavras-chave: RAPS; Trabalho Comum; Afetos; Espinosa; Deligny.


ABSTRACT

This article proposes to understand the Psychosocial Attention Network from the points of view of Baruch Spinoza and Fernand Deligny where the network is understood as a composition of relations between various health services and professionals from different fields. We seek to show how the learning of affects, as outlined by Spinoza, is key to common-work between health professionals and network users. Once health professionals recognise network users’ ability to think and act for themselves, professionals can come to appreciate what users can actually do on their own. What emerges as most relevant is the constitution of modes of acting and living together and how these relate to the idea of network as elaborated in the works of Deligny.

Keywords: RAPS; Common Work; Affects; Spinoza; Deligny.


RESUMEN

El artículo propone pensar el trabajo de las Redes de Atención Psicosocial desde la perspectiva de Baruch Spinoza y Fernand Deligny. La propuesta es mostrar cómo el tema de la aprendizaje de los afectos, presentado por Spinoza es crucial en un trabajo común entre profesionales de la salud y miembros de la red. Los profesionales de la salud, al aprender acerca de la capacidad de pensar y actuar de los usuários, descubren lo que ellos mismos son capaces de realizar. La red está constituida por la conexión entre los diferentes servicios de salud y entre profesionales de diferentes campos. Se trata de la construcción de una forma de actuar y de vivir juntos, lo que se refiere a una idea de red que encontramos en las obras de Fernand Deligny.

Palabras-clave: RAPs; Trabajo Común; Afectos; Espinosa; Deligny.


 

 

Introdução

Em 2011, o Ministério da Saúde regulamenta a Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro que institui “a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Este marco que se ocupa do funcionamento dos serviços, do trabalho conjunto entre estes serviços e das diversas possibilidades de cuidado em saúde, convida-nos a pensar no desafio contínuo que é tecer uma rede que conta com profissionais de diferentes áreas, usuários e familiares. Há uma aposta na tarefa de conhecer e cuidar a diversidade de modos de existência de uma sociedade, marcados por situações de adoecimento e mesmo de exclusão, os quais são fruto de contínuas mudanças políticas, econômicas e históricas.

Trabalhar no campo da saúde implica levar em conta este cenário e mapear os modos de adoecer e de produzir saúde, mais presentes nos dias de hoje. Neste texto1 proponho pensar como os profissionais de saúde através de um trabalho comum em rede produzem cuidado para cada vida singular que acompanham. Um grande aliado que pode trazer contribuições para tratar deste tema é o filósofo do século XVII, Baruch de Espinosa. Este filósofo defende haver uma diversidade nas maneiras de viver. Tal ideia coloca em questão as práticas de exclusão, discriminação, abandono daqueles que não respondem as demandas de uma sociedade competitiva, daqueles que não cumprem uma função na dinâmica produtiva desta sociedade, mas ao invés disso, dependem dos cuidados dela.

Espinosa defende em sua Ética que, cada indivíduo tem uma grande capacidade de ser afetado por outros indivíduos, ao mesmo tempo em que os afeta. É assim que vamos pensar a experiência de encontro dos profissionais de saúde com os usuários, através do trabalho de cuidado de um corpo enfraquecido. O trabalho de um profissional de saúde é o de cuidar, entendendo este verbo no sentido de ajudar um usuário a sair de sua condição de tristeza, estabelecendo com ele um encontro alegre. A alegria, segundo Espinosa, é o aumento da potência de um corpo, ou seja, da sua capacidade de afetar e ser afetado2. Trata-se de um tipo de encontro de composição entre dois corpos que convêm entre si, o que quer dizer que um corpo fortalece o outro.

Vemos esta experiência de cuidado construída em um trabalho de consultório de rua3 (Ministério da Saúde...), por exemplo. A criação de vínculo com pessoas em situação de rua, a capacidade de ouvi-los, a ação de leva-los para uma unidade de acolhimento transitório quando necessitam de maiores cuidados são estratégias que aumentam a potência destes indivíduos que, algumas vezes, vivem em sofrimento grave. Neste processo, os profissionais experimentam as mais diferentes demandas de cuidado, ao mesmo tempo que descobrem a capacidade que têm. Cada caso tratado faz com que eles entrem em contato com sua própria força, sua potência de agir e pensar.

Dizemos que quando os profissionais são afetados de alegria em seu trabalho esse afeto se irradia pela RAPS, podendo produzir, entre os serviços, um aumento na capacidade de criar estratégias de trabalhos em saúde. Os profissionais aprendem do que são capazes ao ajudarem os usuários. Eles aprendem a respeito dos afetos, que os preenchem a cada momento, e assim passam a compreender quais situações aumentam e quais diminuem a sua força na realização de um cuidado em saúde.

Em todos os âmbitos das experiências de saúde a camada afetiva nos ajuda a ver de que modo se desenrola uma experiência. Desde a discussão das políticas públicas, às questões jurídicas que envolvem o trabalho com portadores de transtornos mentais e usuários de álcool, crack e outras drogas, às questões administrativas e organizacionais das equipes de saúde, há relações entre corpos e mentes que afetam e são afetados uns pelos outros.

Seguindo a pista que Espinosa nos oferece para observar os afetos, veremos que para cuidar do outro é preciso compreender que ele é também alguém capaz de muitas ações que ainda desconhecemos. O que podemos saber de antemão é que ele tem uma força4 e que apenas por viver em condições que lhes são destrutivas, tal força se apresenta como uma fraqueza. Portanto, dizemos que cuidamos de alguém que é, por definição, capaz de viver bem, de inventar diferentes modos de saúde e que pode sair de uma situação de tristeza quando ajudado.

A partir desta concepção dizemos que este cuidado é um processo que permite ao usuário se aproximar cada vez mais de sua própria força. Trata-se de uma descoberta da sua capacidade de vida, até então desconhecida ou que esteve por um bom tempo impedida de se manifestar. É importante ressaltar que esta prática de cuidado não é uma ação unilateral. O profissional que cuida do usuário também desimpede sua própria força de vida pela ação em saúde mental e no trabalho com usuários de álcool, crack e outras drogas. Através da experiência de cuidar e ser cuidado, os indivíduos aprendem do que seus corpos e mentes são capazes, saindo mais fortes desta experiência. Isto se explica porque é um trabalho comum que é ali realizado.


O trabalho comum pelo aprendizado dos afetos

Com Espinosa, seguimos o caminho da atenção aos afetos presentes nos encontros entre usuários e profissionais para perceber de que maneira um trabalho comum se efetua. E é através deste trabalho comum, que entendemos que uma rede é tecida. As RAPS tornam-se mais efetivas quando um trabalho conjunto entre diferentes serviços, equipes e profissionais de saúde consegue se transformar em um trabalho comum.

Este trabalho comum, de que falamos, aparece quando diferentes profissionais, com as mais variadas posições ideológicas, modos de pensar e agir distintos, com experiências singulares na área da saúde são capazes de inventar cada vez mais estratégias, ampliar as propostas de cuidado e fortalecer tanto os usuários quanto a própria rede.

Produzir o comum é o grande desafio de uma equipe. Não se trata apenas da boa vontade dos profissionais em decidirem entre si qual tarefa cabe a cada um realizar. Também não se trata apenas de fazerem juntos determinada atividade. O comum diz respeito a criação de um território existencial, de um plano afetivo de composição entre os corpos e mentes. Fernand Deligny é um autor que nos ajuda a compreender isto que estamos chamando de comum através do conceito de rede. Ele que viveu uma experiência de convivência e acolhimento de crianças autistas mostra de que maneira é possível estar próximo do outro tecendo com ele trajetórias que ele não consegue fazer sozinho.

Uma das primeiras ações de Deligny, em seu trabalho com autistas que viviam em vacância de linguagem e eram a-conscientes, ou seja, não tinham consciência de si nem do outro, era de não impor a interpretação daqueles que são atravessados pela linguagem sobre estas vidas. Deligny tinha o primoroso cuidado de não tentar compreender a experiência dos autistas a partir da experiência daqueles que não vivem nesta condição5.

O trabalho de Deligny ensina a sair de um hábito de cuidar do outro a partir daquilo que é melhor para nós. A relação de composição que Deligny criava com os autistas, assim como a relação de composição entre profissionais de saúde e usuários da Rede diz respeito a aprender com uma vida que precisa de cuidados, o que é melhor para ela. Na verdade, são aqueles que cuidam que precisam se deslocar do seu lugar de saber, das suas preconcepções de saúde e autonomia.

O esforço dos profissionais de saúde está em construir continuamente a rede, que facilmente pode se desmanchar na primeira intervenção que impõe um tratamento sem levar em conta os trajetos e afetos vividos pelo usuário. Quando percorremos os territórios, seguimos o itinerário de pessoas em situação de rua, ou de usuários de crack, nós precisamos seguir os trajetos para descobrir que rede eles sustentam, porque cada um de nós trama e é tramado nesta rede.

Neste trabalho comum a ação isolada, de autoria de um indivíduo, sai um pouco de cena. Não é o médico, o psicólogo, o enfermeiro de uma equipe que é o responsável pelo tratamento de um usuário, mas um profissional de saúde que, por compartilhar deste trabalho com outras áreas, age preenchido por saberes construídos junto a elas.6

Esta proposta, ao invés de esvaziar o lugar da identidade profissional, na verdade, garante a sua singularidade, já que amplia seu leque de atuação. Cada área da saúde é forçada a pensar junto as outras, assim como é forçada a pensar pelo próprio encontro com o usuário. Isto significa ampliar o campo afetivo de um indivíduo e mesmo de uma profissão. Trata-se de uma mudança de perspectiva que, ao invés de ver as incapacidades deste indivíduo, permite descobrir que ele é sim capaz de muitas coisas.

O trabalho comum aparece através deste cuidado daqueles que sozinhos e em forte sofrimento, não conseguiriam mudar sua situação, assim como no cuidado daqueles profissionais que nunca tiveram a oportunidade de se perguntar pela força do usuário. O trabalho comum implica em um modo de reaprender a respeito de uma prática profissional através da atenção ao mínimo gesto, a cada encontro vivido com os usuários. Trata-se de conhecer os afetos aprendendo a traçar, o que chamamos com Deligny, de um mapa. Este mapa é delineado quando percorremos as diferentes camadas de uma existência, observando os corpos que a circundam, acompanhando a sua rotina; aprendendo com ela o que lhe faz bem e mal. É neste traçado do mapa dos afetos e trajetos presentes em uma vida que Deligny criava uma rede de cuidado e convivência com crianças autistas.

Quando uma equipe de consultório de rua consegue estabelecer um vínculo com uma pessoa em situação de rua, criando uma rotina de visitas, de atenção as suas necessidades mais urgentes, fazendo um curativo, conseguindo um prato de comida, garantindo um momento de conversa, ele estabelece um espaço de convivência, que é plano comum de existência, no qual o usuário aprende junto aos profissionais a respeito dos seus desejos, das atividades que conseguem realizar. Neste traçado é que se descobre um gesto até então interditado.

O que se percebe a partir desta experiência é que a condição de interditado, impotente não diz respeito ao usuário, mas às relações em que ele está imerso. São os afetos de tristeza, vividos em seus encontros, que preenchem a maior parte da sua potência de vida.

Podemos dizer que uma das ações importantes da RAPS é a tentativa de criação de um território comum de convivência com as diferenças em meio a uma sociedade competitiva, que exige resultados, que julga o que é bom e ruim e por isso tende a varrer para fora de seus muros invisíveis, através da discriminação e exclusão, aqueles que não respondem a tais exigências.

Em um trabalho do qual venho participando7 com usuários de serviços de saúde mental, através de uma proposta de oficinas desenvolvidas junto a alunos de graduação de seis cursos da área da saúde da UNIFESP, com o intuito de primar por uma formação interdisciplinar, tenho percebido que à medida que ouvimos com cuidado estes usuários nos deparamos com uma vida marcada pelo isolamento, pela impossibilidade de participar de uma existência comum.

Estas pessoas, enquanto isoladas, não conseguem criar novos laços e por isso vivem desligadas do convívio social. Mas é importante lembrar que a RAPS não luta para incluir indivíduos dentro da lógica de aceitação desta sociedade. Quando os profissionais de saúde acolhem os usuários, eles produzem uma contaminação, uma variação nos modos de pensar e agir desta mesma sociedade que sustenta relações de exclusão. O que estamos chamando aqui de excluir é o mesmo que indicamos por isolar, viver fora de uma existência comum, a qual é decisiva para que uma vida alegre, digna seja garantida.

Assistimos a uma história de práticas de saúde em uma sociedade que desiste rapidamente de seus cidadãos, quando estes reagem de maneiras diferentes e não se adequam as normas coletivas, sendo considerados privados de uma capacidade de viver junto aos outros. Pautada nesta ideia de que falta8 a estas pessoas condições físicas e psíquicas para viver socialmente, são criadas políticas de internação compulsória, instituições de confinamento, e outros modos de segregação. Estas práticas se explicam pela hegemonia de um modo de pensar pautado na lógica social das relações de competição e comparação entre os indivíduos, que seleciona aqueles que são mais aptos. Trata-se de um tipo de violência, uma maneira de punir vidas que se organizam de outro modo. É desta forma que um profissional perde o gesto de um usuário, porque age isoladamente.

Esta atitude isolada ignora algo que Espinosa nos fala com muita convicção: que o corpo humano e a mente humana ultrapassam o conhecimento que deles temos9. Isso significa que há diversas maneiras de existência que não conseguem ganhar espaço, porque se institui um único caminho como sendo o normal. É nesse sentido que algumas pessoas se fragilizam, sofrem e são por isso excluídas da participação social. Isto mostra o quão pouco este modo hegemônico de viver, de pensar, de trabalhar em saúde, é capaz de compreendê-las.

Nos Cadernos de Atenção Básica do Ministério da Saúde se ensina que o cuidado acontece “no cotidiano dos encontros entre profissionais e usuários, em que ambos criam novas ferramentas e estratégias para compartilhar e construir juntos o cuidado em saúde.” Este olhar atento às múltiplas dimensões da vida não é pautado por um projeto pensado, por um cuidado baseado em interpretações prévias, mas sim por aquilo que acontece no encontro com o usuário.

É deste modo que podemos mudar uma história de confinamento, de relações unilaterais de tratamento dos pacientes, de descaso, de trabalho isolado dos profissionais. Podemos dizer que Espinosa ensina a olhar para o trabalho que realizamos em saúde para percebermos que, a cada momento, estamos preenchidos de uma maneira diferente por diferentes afetos. Ora são mais alegrias, ora são mais tristezas que guiam as nossas práticas. As tensões entre as equipes de saúde da RAPS mostram claramente este processo. Não é difícil encontrar relações de cobrança entre profissionais ou de descrença frente a experiências frustradas de tratamento dos usuários, especialmente quando se trata de saúde mental. No anseio de buscar uma cura, o que mais aparece é uma sensação de medo: “os profissionais alegam não saber o que falar ou perguntar, tem receios de piorar o quadro dos pacientes de saúde mental, ou entendem que este campo do saber não lhes é acessível.” Este pode ser um dos motivos que levam colegas de trabalho a julgarem uns aos outros como incompetentes ou verem o usuário como alguém que não colabora no tratamento. Em experiências como estas as equipes de saúde agem com menos força. São os afetos de tristeza que se sobrepõem a construção de um trabalho comum, o qual sempre valoriza a capacidade de cada profissional.

Mas o grande desafio é o de afastar estas situações que desmontam a Rede. Este é um trabalho contínuo, porque estamos sempre à mercê destas situações de tristeza. Há profissionais que se sentem impotentes em realizar um trabalho em saúde ou são vistos como incapazes. O que diz Espinosa, como vimos, é que ninguém, nenhum ator deste processo pode ser dito incapaz, ninguém é impotente. A questão em pauta é a de compreender que existe sim uma diversidade de capacidades de acolhimento, de acordo com os encontros vividos por cada indivíduo.

Não há impotência, mas há fragilidade. E é esta situação que precisa ser mudada. Se em um determinado momento não se conseguiu construir uma relação de confiança e atenção devida a um caso acompanhado há sempre uma chance de mudar este cenário, este mal encontro. Como estamos partindo da ideia de que há diferentes maneiras de sermos afetados por uma mesma pessoa10, o desafio é o de aprender a mudar este afeto de tristeza. Sempre há alguma possibilidade dos profissionais estabelecerem uma nova composição com o usuário. Às vezes é preciso tempo, é preciso novas abordagens, ou outras pessoas participando do processo.

O cuidado em saúde propõe justamente aumentar os afetos alegres. E aumentar a capacidade de agir e pensar de um usuário da RAPS pode surgir através da diminuição da dor, quando este usuário segue um tratamento medicamentoso; através da recuperação de vínculos com pessoas de quem ele estava afastado, através da conquista de uma autonomia para escolher trabalhos, para conseguir cuidar um pouco mais de si mesmo.

É importante ressaltar que esta concepção de autonomia, a que nos referimos aqui, não diz respeito apenas a capacidade que tem um indivíduo de gerir suas necessidades, sua rotina. Pode ser que sozinho, este indivíduo não possa administrar a sua vida, que ele dependa da decisão de um profissional que sabe avaliar o momento que ele precisa ser cuidado em uma unidade de acolhimento transitório, por exemplo. No entanto, se o seu saber, seus desejos, seus gestos forem respeitados, é uma condição de autonomia que está sendo garantida, já que este indivíduo aprende a respeito da própria capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo.

As maneiras de cuidar podem expressar as forças hegemônicas de uma sociedade que se sustenta através da desigualdade social, ou pode expressar as forças de resistência que lutam contra todas as formas de discriminação. É nesse sentido que “a ideia fundamental aqui é que somente uma organização em rede, e não apenas um serviço ou equipamento, é capaz de fazer face à complexidade das demandas de inclusão de pessoas secularmente estigmatizadas.”11

 Uma rede é capaz de ajudar a expulsar de um corpo os afetos tristes que o preenchem. Uma rede é formada de alianças, de composições de ideias, de ações. Esta rede vem mostrar que o que devem ser expulsas de uma sociedade são as relações de enfraquecimento dos indivíduos e não os indivíduos enfraquecidos.

Todo o indivíduo, por mais que viva no mínimo daquilo que pode, nunca deixa de ter uma capacidade de agir e pensar que pode ser aumentada, quando se cria condições propícias de saúde. Por isso o trabalho da RAPS é o de desimpedir a força de um corpo, afastar os obstáculos, retirando o indivíduo do lugar institucionalizado em que viveu ou ainda vive. Portanto desimpedir é o que costumamos chamar de desinstitucionalizar. Trata-se de romper as grades das instituições asilares que podem continuar funcionando em novas práticas de exclusão.


Considerações finais: A RAPS e a rede deligniana

O que esta experiência da RAPS parece nos indicar, enquanto se efetua através de um trabalho comum de aprendizado dos afetos de profissionais e usuários é a produção de uma rede refratária a todo modo de existência que exclui, que discrimina, que produz desigualdades.

Nesse sentido, dizemos que a história dos profissionais de saúde com os usuários é a história da construção de uma rede de cuidados, que pode ser considerada uma rede capaz de produzir indivíduos mais fortes. Ousamos dizer que o objetivo de acolher aqueles que vivem em grave sofrimento e são discriminados pela sua condição, é apenas um dos aspectos de algo maior que é a própria proposta de sustentação de uma rede, de um modo de viver em rede.

Fernand Deligny nos faz refletir a respeito deste modo de viver em rede. Ele, que é um educador, um terapeuta, um escritor inveterado, é também alguém que apresenta uma proposta muito singular de tratar da questão do autismo. O que é importante ressaltar de sua experiência é que na convivência com crianças autistas em um ambiente rural, Deligny era capaz de respeitar o jeito próprio destas crianças de não participarem da linguagem e da vida consciente das ditas pessoas normais.

Este autor, que aprendeu a construir um território existência junto com aquelas crianças, mostra o quanto ter uma vida comum, compartilhar de tarefas diárias de sobrevivência, de trocas afetivas é uma maneira de cada um se tornar mais fortalecido, já que sai de sua condição inicial de isolamento. Nesse sentido há uma ressonância com o que dissemos a respeito do aprendizado dos afetos com Espinosa. Através de uma postura ética de aprender o que é o melhor para o outro, enquanto se convive com ele, nós o ajudamos a encontrar sua própria força.

Há uma cena narrada pelo autor em um de seus livros12, na qual havia um menino, que já habitava com ele há algum tempo esta vida no campo. Deligny era alguém que escrevia muito e que em um dos cômodos da casa tinha uma mesa na qual costumava ficar horas trabalhando. Certo dia o menino traz a sua mesa de trabalho um punhado de terra úmida misturada a cinzas de cigarro, colocando-o num lugar bem próximo de onde Deligny costumava deixar o cinzeiro de argila, no qual fazia cair às cinzas de seu cigarro.

Entretanto, havia já quatro anos que este cinzeiro de argila se quebrara. Naquele momento, os cacos do cinzeiro foram jogados em um cesto, no qual haviam papéis empilhados, os quais teriam o destino de ser a matéria-prima de um fogo que, posteriormente, cozinharia o pão. Conta Deligny que depois que se cozinha o pão, com o forno já frio, retira-se as cinzas, jogando-as em um balde para serem reutilizadas na preparação do jardim.

Em todo este trajeto por onde um autista existe, o gesto de levar este punhado de terra até a mesa, poderia ser pensado, segundo Deligny, como uma grande descoberta arqueológica, já que o menino faz ressurgir com este ato não apenas os restos de um cinzeiro, mas de todo um trajeto que por ali se fez. O menino participa como que de raspão. Ele refaz este trajeto por onde várias pessoas seguiram, envolvidas com o cigarro, o cinzeiro, os papéis, o fogo, o jardim. O menino participa desta experiência sem dar qualquer atenção à finalidade destas ações. No entanto, dizemos que ele participa, pertence a este ambiente comum, compartilha das atividades, não está sozinho, isolado, excluído.

Deligny dizia que era preciso que ele escrevesse ao mesmo tempo que batia as cinzas do cigarro no cinzeiro, era preciso que alguém trabalhasse a argila, fazendo um cinzeiro que em algum momento se quebraria, era preciso que se utilizasse os papéis para fazer o fogo que cozinharia o pão, era preciso que alguém reaproveitasse as cinzas deste fogo para preparar o jardim. Enfim, era preciso tramar uma rede com pessoas capazes de agir juntas, de produzir um trabalho comum, para que aqueles que se encontram em uma condição de vulnerabilidade, de isolamento, de sofrimento, sejam acolhidos e participem desta vida em rede.

Esta experiência da rede de que fala Deligny nos convida a pensar qual a verdadeira questão quando nos ocupamos em preparar profissionais, em aprender a cuidar, em mudar a situação de exclusão. A verdadeira questão é a de que não é possível viver fora da rede, ou seja, a experiência do cuidado é a própria experiência de invenção de uma vida, de uma maneira de estar no mundo compondo com outros que não só acolhemos, mas que também tem muito a nos ensinar. Em uma relação de afetar e ser afetado pelo outro, aprendendo a respeito das alegrias dos encontros tecemos uma rede de existência comum como o caminho de uma saúde.



Referências

Azevedo, AB. A intuição clínica – entre Espinosa e Deleuze. [tese]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2013.         [ Links ]

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Data de submissão: 08/08/2014
Data de aceite: 04/02/2015

 

1 Uma parte do tema deste artigo foi apresentada em uma mesa denominada: “Conversas Espinosanas” no Encontro Nacional da RAPs em dezembro de 2013.

2 SPINOZA, Ética, III, Definição 2 dos afetos.

3 Este trecho encontra-se na parte que trata de consultórios de rua no texto “Saúde Mental em Dados” 10 – Ano VII, Nº 10.

4 Estou utilizando a ideia de força no mesmo sentido de “potência”. Espinosa define o indivíduo como um grau de potência da natureza, sendo esta uma potência de pensar e de agir.

5 Ver, por exemplo, as obras em que Deligny trata demoradamente destas questões: “Les enfants et le silence” e “L’arachnéen et autres textes”.

6 O trabalho comum entre diferentes áreas profissionais é também tratado por um grupo de professores da UNIFESP – Baixada Santista, que realizou uma pesquisa sobre este tema cunhando o termo “clínica comum” para apresentar esta experiência. O resultado desta pesquisa pode ser encontrado no livro: “Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde”. Trabalhei também em minha tese de doutorado a respeito da experiência de trabalho clínico deste grupo.

7 Trata-se de um módulo, do qual participo como professor, chamado “Clínica integrada: atuação em grupos populacionados” presente no curriculo de formação dos cursos de Educação Física, Psicologia, Terapia Ocupacional, Nutrição, Fisioterapia e Seviço Social da UNIFESP – Baixada Santista.

8 Espinosa trata da questão da privação, da falta ao longo de sua correspondência com Willem van Blyenbergh (sigo a edição francesa das correspondências, sendo que tais cartas estão numeradas de 18 a 27, com exceção do número 25). Este foi um dos temas que mais tratei em minha tese de doutorado mostrando que o trabalho de uma clínica é o de se ocupar do que um indivíduo é capaz e não daquilo que lhe falta, já que ele é sempre potência, embora, no percurso de sua vida, esta potência possa diminuir de grau.

9 “[...] O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode um corpo [...]” (Ética, Parte III, Proposição 2, escólio)

10 Ética, Parte III, Proposição 51.

11 Este trecho faz parte do Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas.

12 Deligny, « Les enfants et le silence », p.97.



I Tem formação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria, mestrado em Psicologia Clínica pela PUCSP, doutorado em Psicologia Clínica pela PUCSP, tendo feito, ao longo deste, um doutorado sanduíche na Université de Paris X – Nanterre. Foi professora na Faculdade de Filosofia do Mosteiro de São Bento e atualmente é professora substituta da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista. E-mail: adribarin@hotmail.com

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