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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais

 

Axiomatic of capital and institutions: abstracts, concretes and immaterials

Axiomática del capital e instituciones: abstractas, concretas e inmateriales

   

 

Domenico Uhng HurI

I Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil.

 

 


RESUMO

A emergência das sociedades de controle trouxe um novo agenciamento que reformulou as formações sociais. O objetivo deste artigo é refletir sobre as novas configurações das instituições a partir da intensificação da axiomática do capital e do surgimento do diagrama de controle. Realizamos uma revisão bibliográfica sobre a obra de Gilles Deleuze e de pensadores contemporâneos. Diferenciamos as instituições abstratas e as instituições concretas para nos referir ao complexo fenômeno das instituições. Discutimos a troca do código pela axiomática do capital enquanto mecanismo predominante de operação social. Esta substituição fez que as instituições tradicionais entrassem num processo de transição a uma nova forma social que denominamos de instituições imateriais. Ao mesmo tempo em que os códigos são descodificados, são reterritorializados a partir da axiomática do capital.

Palavras-chave: Análise Institucional; Esquizoanálise; Psicologia Política; Deleuze, Gilles, 1925-1995.


ABSTRACT

The emergence of societies of control has brought a new type of assemblage that is reformulating social formations. The purpose of this paper is to reflect on new institutional configurations from the point of view of the intensification of the axiomatics of capital and the emergence of the diagram of control. Through a literature review on the work of Gilles Deleuze and other contemporary thinkers, we differentiate between abstract and concrete institutions to express to the complex phenomenon of institutions. We discuss the replacement of the code by the axiomatics of capital as the predominant mechanism of social operation. This substitution has required traditional institutions to embark on a transitional process towards a new social form which we call immaterial institutions. At the same time that codes are decoded, they are reterritorialized through the axiomatics of capital.

Keywords: Institutional Analysis; Schizoanalysis; Political Psychology; Deleuze, Gilles.


RESUMEN

La emergencia de las sociedades de control trajo un nuevo agenciamiento que ha reformulado las formaciones sociales. El objetivo de este artículo es reflexionar sobre las nuevas configuraciones de las instituciones desde la intensificación de la axiomática del capital y del surgimiento del diagrama de control. Realizamos una revisión bibliográfica sobre el trabajo de Gilles Deleuze y de pensadores contemporáneos. Diferenciamos las instituciones abstractas de las concretas para nos referir al complejo fenómeno de las instituciones. Discutimos el cambio del código por la axiomática del capital mientras mecanismo predominante de operación social. Esta sustitución hizo que las instituciones tradicionales entrasen en un proceso de transición a una nueva forma social que llamamos de instituciones inmateriales. Al mismo tiempo en que los códigos son descodificados, son reterritorializados desde la axiomática del capital.

Palabras-clave: Análisis institucional; Esquizoanálisis; Psicología Política; Deleuze, Gilles, 1925-1995.


 

 

O modelo das instituições atingiu seu ápice enquanto mecanismo de governo do social e do indivíduo nas sociedades disciplinares. Imperava a lógica da disciplina, da gestão via normas e de se encerrar corpos num espaço e vigiá-los, esquadrinhá-los, numa anatomopolítica em que se distinguia o normal do patológico, no clássico par diagnosticar e corrigir, ou vigiar e punir (Foucault, 1975/1984). Entretanto, na atualidade, com a emergência de uma nova mecânica social, as sociedades de controle (Deleuze, 1990/1992), há uma espécie de ruptura deste modelo, em que as instituições assumem uma configuração diversa. Essa transição se inicia “pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o fora” (Hardt, 2000, p. 358). Muitos compreenderam esta transição de um modelo a outro como a “crise das instituições”, seja a crise da família, da educação, do trabalho, etc. Há uma configuração mais plástica, descentralizada e mutante, que redefine as fronteiras das instituições, pois hoje são distintas em relação ao passado e não se encerram mais na fixidez de suas antigas espacialidades.

Muitos estudos tratam por discutir a transição das sociedades disciplinares para as sociedades de controle (cf. Hardt, 2000; Lazzarato, 2006; Tirado & Domènech, 2006), expressando as diferenças de funcionamento de cada diagrama. Mas consideramos que tratam por retomar a discussão empreendida por Deleuze (1990/1992), discutindo de forma geral o caráter fluido que as instituições assumem, sem muito detalhar seu funcionamento, ou a articulação das sociedades de controle com outros conceitos fundamentais, como a axiomática do capital. Entretanto, mesmo que Deleuze (1986/1988, 1985/2013, 1986/2014) tenha partido das reflexões foucaultianas para desenvolver a idéia de um diagrama de controle, defendemos que este é diretamente resultante da proposição anterior da axiomática do capital (Deleuze & Guattari, 1972/1976). Foi a intensificação desta axiomática que fomentou a transição do diagrama disciplinar ao de controle. Consideramos assim que o controle não é a atividade principal do diagrama atual, mas sim a amplificação desta axiomática.  

Neste ensaio nosso objetivo é refletir sobre as novas configurações das instituições a partir da intensificação da axiomática do Capital e emergência do diagrama do controle. Utilizamos a perspectiva da esquizoanálise para compreender o funcionamento das instituições. O método utilizado foi uma revisão bibliográfica (Creswell, 2011). Mapeamos, de modo convergente a uma cartografia (Passos, Kastrup & Escossia, 2010), conceitos e passagens da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari que possam contribuir para a compreensão das instituições. Os inúmeros conceitos elaborados pelos autores possibilitam múltiplos caminhos, por isso privilegiamos o de diagrama e da axiomática do capital para discutir o processo de reconfiguração das instituições. Ao longo do texto também nos referimos a autores pós-estruturalistas que apresentam uma convergência, ou são referenciados pelo pensamento deleuzeano e que trataram de discutir as sociedades de controle.

Instituições abstratas e concretas

Todas as instituições são criações sociais-históricas (Castoriadis, 1982), pois são construções coletivas que portam significações relacionadas à sua temporalidade histórica e à sua espacialidade geográfica e cultural. Diferente da negatividade da lei, há um modelo positivo da ação nas instituições (Deleuze, 1955/2006), provendo a ligação e a associação entre indivíduos (Deleuze, 1953/2001), que visa potencializar suas ações e realizações. As instituições remetem a um ser consolidado, mas também em movimento, num devir em transformação, ou seja, seus traços instituídos e instituintes (Lourau, 1975). As instituições podem ser muitas coisas, conforme exemplifica Virno:

Las instituciones son el modo en que nuestra especie se protege del peligro y se da reglas para potenciar la propia práxis. Institución es, por lo tanto, también un colectivo de piqueteros. Institución es la lengua materna. Instituciones son los ritos con los que tratamos de aliviar y resolver la crisis de una comunidad (2006, p. 12).

A partir desta citação constata-se que instituição refere-se a uma diversidade de fenômenos. Instituição pode ser algo que nos protege, um conjunto de regras, algo que potencializa a prática, um grupo de ativistas, a língua materna, rituais que regulam a sociedade, etc. Por tal razão a definição de instituição é bastante polissêmica, recebendo múltiplos significados. No senso comum é sinônimo de estabelecimento concreto, de um lugar onde pessoas trabalham. Mas Baremblitt traz uma definição mais ampla, considerando que as instituições são “árvores de composições lógicas” que têm distintos graus de formalização (1986/2002, p.25). Tomando como referência esta definição, Hur (2012) considera que as instituições são estruturas heterogêneas conectivas “de significações lógicas que objetivam dar sentido e ordenação à experiência coletiva e partilhada, podendo ter distintos graus de formalização, desde a estratificação e a rigidez de uma lei à esfera quase imperceptível de um hábito” (p.53).

Na diferenciação entre os distintos graus de formalização, compreendemos que há um gradiente entre o grau de materialização e estratificação de uma Instituição, entre seu grau de abstração e atualização. Por exemplo, desde a imaterialidade da ideia de um ser supremo e cósmico, Instituição-Deus, até sua materialização na Instituição-Igreja. Ambas são instituições, mas com materialidades distintas. Para dar conta dessa variação, Baremblitt (1986/2002) realiza uma definição precisa entre as distintas instâncias institucionais: Instituição, Organização, Estabelecimento, Equipamentos, Dispositivos, Agentes e Práticas. Mesmo concordando que no processo institucional todas essas instâncias estão em regime de coexistência, não trabalhamos com tal diferenciação. Preferimos postular que o fenômeno institucional se dá num campo de dispersão entre dois pólos, de um lado as Instituições abstratas e no outro pólo as Instituições concretas, que são a materialização-concretização-atualização daquilo que se apresenta próximo de sua virtualidade, conforme esquematizado na Figura 1.

Figura 1: Os dois pólos das instituições

 

 

Neste modelo sobre os dois pólos das instituições referenciamo-nos na discussão que Deleuze (1986/1988) faz sobre o diagrama e as instituições. Para o filósofo o diagrama é a máquina abstrata, o mapa das relações de forças, movediças, dinâmicas e instáveis. É “a apresentação das relações de força que caracterizam uma formação; é a repartição dos poderes de afetar e dos poderes de ser afetada; é a mistura das puras funções não-formalizadas e das puras matérias não-formadas” (Deleuze, 1986/1988, p.80). Operam no diagrama os vetores de forças em movimento, fluidos e não estratificados. Entretanto, o diagrama sempre tem como correlatas formações sociais estratificadas: “um diagrama de forças está sempre em relação com a formação estratificada que deriva dele. Ou se preferem, o mapa estratégico está sempre em relação com os arquivos que derivam dele” (Deleuze, 1986/2014, p.204, tradução nossa1). Então o diagrama disciplinar tem como decorrência as sociedades disciplinares, como o diagrama de controle as sociedades de controle. Para cada diferente momento histórico há um diagrama distinto, como por exemplo, o diagrama da rivalidade da antiga cidade grega, o diagrama das redes de alianças das sociedades primitivas, o diagrama do poder pastoral, que precedeu o disciplinar, etc.

No processo de constituição da matéria, e, por conseguinte, das instituições, é como se houvesse um movimento do virtual ao atual (Deleuze, 1966/1999), como se houvesse um grande espaço liso que passa a ser estriado, segmentado (Deleuze & Guattari, 1980/1997). Figuramos esse movimento a partir da lógica magmática: dos fluxos irrompendo do vulcão, inicialmente corroendo tudo, uma desterritorialização total e inevitável, mas que no processo de sua dissipação energética, pouco a pouco diminuem sua velocidade e potência, passando a se precipitar, sedimentar e cristalizar em linhas e estratos. No processo de estratificação as linhas de segmentaridade rígida passam a organizar o campo e a experiência, pois “as formas alinham, homogeneízam, integram as relações de forças ou de poder” (Deleuze, 1986/2014, p.175). As linhas e formas passam a dar materialidade ao imaterial, concretude ao abstrato, canalização aos fluxos. “As relações de forças ou de poder se atualizam por integração, integram-se em instituições e é assim que adquirem uma estabilidade e uma fixidez que não têm por si mesmas” (Deleuze, 1986/2014, p. 146).

Então, no processo de atualização da máquina abstrata (Deleuze & Guattari, 1980/1995), consideramos que as instituições abstratas apresentam-se no meio deste processo e as instituições concretas são o ápice da estratificação. Se colocássemos o diagrama em nosso esquema dos dois pólos das instituições, estaria situado à esquerda das instituições abstratas. Propomos assim que as instituições abstratas são as formações sociais-históricas mais próximas da máquina abstrata, do plano diagramático, abstrato, virtual, do agenciamento de idéias, símbolos e forças moleculares. Mesmo não possuindo uma estruturação consolidada, concretude e muitas vezes não sendo explícitas e manifestas, são instituições sociais que norteiam e significam a vida social. Semelhante ao diagrama, “é a apresentação de forças em um momento dado” (Deleuze, 1986/2014, p.393). Operam num regime híbrido entre a molecularidade e a molaridade, numa microfísica das relações de forças e disseminadas no campo social. Já têm certo grau de formalização, pois as “instituições são formas que integram micro-relações de poder” (Deleuze, 1986/2014, p.118), podendo ser formas mais ou menos organizadas.

Para Deleuze (1985/2013, 1986/2014) as instituições são como um enunciado, uma espécie de integração das diferenças. Operam como uma curva integral que passa pela região de vizinhança das singularidades, traçando uma linha comum aos diferentes elementos. “Em nossa leitura de Foucault, as instituições são exatamente instâncias molares que atualizam, que integram relações de forças moleculares” (Deleuze, 1986/2014, p.120). Portanto, é o que molariza o molecular, é o que regulariza as diferenças, o que conjuntiza os elementos separados. “A integração como processo institucional se faz em função de uma grande instância molar” (Deleuze, 1986/2014, p.120).

Deleuze entende que: “As formas sociais são as integrais das relações de poder. As formas sociais são as integrações da microfísica. É a passagem da microfísica às instituições estáveis, ou seja, a uma macrofísica do campo social” (1986/2014, p.148). Então as instituições são resultantes de relações de forças e poder: a sua cristalização e estratificação. O conjunto é resultante das relações entre as partes, e não as partes do conjunto. As instituições são a formalização do comum entre diferentes elementos. Deste modo,

Não é a instituição que explica o poder, é o poder que explica a instituição, na medida em que as relações de poder se integram em instituições. Desde então, qual é o papel da instituição? Não é em absoluto produzir poder, é dar ao poder o meio de reproduzir-se. Na instituição o poder se reproduz, ou seja, estratifica-se, devém estável e fixo (Deleuze, 1986/2014, p.142).

Compreendemos assim que as instituições são a precipitação, sedimentação, cristalização e estratificação dos agenciamentos de forças em uma configuração fixa e estável, seguindo o movimento das multiplicidades de fluxos à estrutura. A instituição é a resultante das relações de forças e não contrário. Da mesma forma que não é o Estado que precede as formas de governo; é o governo que precede o Estado. E o mais correto não seria atribuir o poder a uma instância única, o Estado, mas sim aos processos de estatização (Deleuze, 1986/2014).

As instituições concretas são a atualização, a máquina concreta, das instituições abstratas. É a efetuação material, concreta, estratificada e codificada, que por consequência de sua atualização, passa a possuir uma espacialidade, estratos fixos e linhas de segmentaridade rígida que definem sua identidade e modos de funcionamento. As instituições concretas são as formações molares que atualizam as distintas forças moleculares. E “as relações de forças se atualizam nas formações estratificadas que são o objeto do saber (...), apenas se atualizam criando precisamente as duas vias divergentes, ou seja, diferenciando-se” (Deleuze, 1986/2014, p.160). As Instituições concretas são o grau máximo da integração e regulação. Para Deleuze, integrar é institucionalizar, finalizar, tecnologizar e racionalizar (1986/2014, p.176). Vale ressaltar que por Instituições concretas não entendemos o mesmo, por mais que haja convergências, que Guilhon de Albuquerque (1986) enuncia sobre os processos de repetição de práticas, de reconhecimento e sua decorrente legitimação.

Tal como a instituição concreta Escola é a máquina atualizada da instituição abstrata Educação, o Hospital é em relação à Saúde, a Fábrica em relação ao Trabalho e a Grande Mídia em relação ao Lazer. Nota-se que no processo de atualização da instituição concreta a partir da instituição abstrata já há um processo de diferenciação entre uma e outra, pois as instituições abstratas extrapolam e excedem a sua atualização nas instituições concretas. A extensão do concreto se diferencia da intensão do abstrato. Assim, a educação vai muito além da escola. O lazer vai muito além do que a grande mídia nos oferece como práticas de entretenimento. A aliança vai além do casamento e etc.

As instituições concretas têm um centro de atração que opera uma força centrípeta, são lócus molares de gravitação que tendem a atrair as partículas em sua volta, tal como um buraco negro (Deleuze & Guattari, 1980/1996), ou como um aparelho de captura (Deleuze & Guattari, 1980/1997). É dentro dela que seu poder é exercido sobre os corpos. As instituições concretas são eminentemente formadas por linhas de segmentaridade rígida (Deleuze & Guattari, 1980/1996), assumindo características identitárias e de normalização. Já as instituições abstratas possuem um caráter mais etéreo, incorporal, fluido e disperso, embora com certo grau de organização: um esprit de corps. Entretanto com a substituição do código pela axiomática do capital como principal mecanismo de funcionamento social, constata-se uma transformação no modelo de instituição, como veremos nos tópicos seguintes.

Do código à axiomática: uma História Universal

Para compreender o funcionamento das instituições na atualidade, nas sociedades de controle, é fundamental apreender os maquinismos sociais. Deleuze traça essa discussão a partir de duas modalidades diferentes, de uma História Universal (Deleuze & Guattari, 1972/1976) e da lógica do diagrama (Deleuze, 1986/1988, 1986/2014). Neste tópico articularemos aspectos de ambos funcionamentos, dando primazia à axiomática do capital.

O que é a sociedade, como funciona? Para Deleuze (2007), a sociedade comporta-se como um gás, propagando-se a partir de vetores centrífugos, direcionados para o fora, movimentando-se e traçando linhas que se dispersam além das fronteiras, não ficando contidas nas estruturas instituídas e pressupostas. Já o socius e as instituições têm como função a captura desses fluxos, a sua ligação a partir da codificação (Deleuze, 1971/2011). Nos processos de codificação busca-se ligar e canalizar estes fluxos, formatando-os em moldes normatizados. O código é um molde, pois busca associar um elemento a um conjunto de caracteres, uma determinada conduta a um significante, a um indicador. Codificar é dar uma etiqueta, um nome, um número de registro, uma medida, uma senha, uma cifra, como o código de barras é o registro de um produto. Do processo de codificação resultam estratos e linhas de segmentaridade rígida (Deleuze & Guattari, 1980/1996), assim o código constitui-se como um molde estratificado e fixo. Então os códigos sociais são as regras e normas de civilidade que se estabelecem em diferentes culturas e sociedades, em que a norma social é um código institucional, tal como o Código de Hamurábi, que era um rígido código de punição a infrações na Mesopotâmia antiga. O pensamento, a existência e o mundo passam assim a ser operados através de códigos. E o conjunto destes códigos forma as instituições, que por sua vez operam por códigos, por normas. As engrenagens das instituições procedem eminentemente por processos de codificação.

A história universal de Deleuze e Guattari (1972/1976) explica o funcionamento social a partir destes processos de codificação e descodificação. Não corresponde a uma história de fatos, datas, ou personagens históricos, mas sim de movimentos e deslocamentos. Refere-se antes às contingências do que à necessidade, aos cortes e rupturas do que à continuidade. Trata-se de uma mecânica do funcionamento das engrenagens e fluxos sociais. Nela, os processos de codificação são determinantes, pois majoritariamente o pensamento e o social são operados através de códigos, em que por um lado o socius codifica, mas por outro os fluxos desejantes traçam linhas de fuga. É formada por três momentos principais, representada pela tríade selvagens-bárbaros-civilizados. Os selvagens estão relacionados à máquina territorial primitiva, os bárbaros à formação imperial despótica e os civilizados, à formação capitalista integrada. Os três momentos correspondem respectivamente a estes três modos de funcionamento: codificação, sobrecodificação e axiomática do capital. Em síntese a história universal traça a troca do código pela axiomática, como funcionamento predominante do social.

O momento inicial, a máquina territorial primitiva, é o das tribos, agricultores, pastores e caçadores nômades, dos coletivos sem Estado. A unidade primitiva do desejo e da produção é a terra, que é o corpo pleno que codifica os fluxos sociais. A terra adquire sua centralidade e sacralidade para os coletivos humanos e tudo é feito em referência a ela: deve-se codificar os fluxos e corpos tendo por alusão a terra. A principal tarefa do socius é o processo de inscrição no corpo, marcá-lo, codificá-lo, “(...) marcar os corpos que são da terra (...) tatuar, excitar, incisar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar” (Deleuze & Guattari, 1972/1976, p.183), inscrever os fluxos que transbordam. Daí a importância dos rituais tribais que celebram a natureza, nos quais os membros da tribo passam por uma série de iniciações. Nestes rituais a operação de inscrição gráfica na carne de seus membros é um processo psicossocial que visa a territorializar o corpo, simbolizá-lo. Marcar o corpo, talhar os órgãos, é função primeira, é uma forma da constituição de um registro, da constituição de símbolos, de uma memória social; é a crueldade de inscrever marcas na própria carne e corpo dos homens para prover uma memória e códigos ao coletivo.

O segundo momento refere-se à formação despótica-imperial. A transição de uma máquina a outra é marcada pelas invasões bárbaras, a escravização de povos e a constituição de um Estado-Império: “é essencialmente um vetor de algo muito diferente da troca: é o vetor de dominação. O bárbaro, diferentemente do selvagem, se apodera, se apropria; pratica não a ocupação primitiva do solo, mas a rapina” (Foucault, 1999, p.233-234). O corpo pleno, o corpo de referência não é mais a terra e sim o corpo do soberano, que se põe numa ligação direta com “Deus” e passa a sobrecodificar os códigos do antigo sistema, sobrepondo um código sobre o outro. O código do déspota se torna o único regime de códigos legitimado, enquanto os antigos códigos dos dominados não têm mais valor nessa nova formação social. As relações de poder do déspota e do Estado procedem por captura, descodificando os fluxos sociais primitivos e instaurando novos códigos a partir de sua territorialidade imperial; uma sobrecodificação dos fluxos. A máquina imperial despótica operava por extrema centralização, evitando a descodificação dos fluxos sociais. O Estado mantinha rígidos procedimentos de domínio (Wittfogel, 1966), tanto que Balazs (1964) descreve como a China evitou o surgimento do capitalismo no século XIII, momento em que havia as condições necessárias para sua emergência. Houve uma luta, tal como na máquina territorial primitiva, contra os fluxos descodificados. O Estado procurava sobrecodificar tudo para não deixar escapar os fluxos, configurando-se como um grande aparelho de captura.

O terceiro momento da história universal é quando o capitalismo torna-se o elemento determinante da maquinaria social, substituindo os processos de codificação. Seu advento foi possível por uma tripla conjunção, devido à descodificação da propriedade territorial, dos fluxos monetários e dos fluxos de trabalhadores (Deleuze & Guattari, 1972/1976), ou dito de outra forma, com o advento da propriedade privada, do dinheiro como moeda de troca e da mão de obra livre remunerada e não mais escrava. Estes fluxos descodificados se conectaram e fizeram ruir os antigos códigos estratificados, em que os novos imperativos foram obter propriedade privada e produzir e acumular bens a partir da moeda. Na formação capitalista integrada houve uma descodificação dos fluxos sobre o corpo pleno do capital dinheiro.

A complexidade da máquina capitalista refere-se não apenas à operação da descodificação dos códigos sociais instituídos. Mas, concomitante a esse movimento de desterritorialização, passa a reterritorializar os fluxos descodificados em sua lógica (Deleuze & Guattari, 1972/1976). Então o engenho da máquina capitalista é operar por um duplo movimento quase paradoxal: desterritorialização e reterritorialização dos fluxos sociais. Ataca os códigos, mas não constrói novos códigos; substitui-os por sua lógica, uma axiomática.

Enquanto as instituições (e o socius) operam por codificação, por inscrição e normatização de procedimentos e comportamentos, o capitalismo prescinde dessa lógica, operando através de um axioma, uma máxima, uma matriz, uma “fórmula” do funcionamento capitalista, que substitui o código. A axiomática do capital opera a partir da lógica de funcionamento do capitalismo, que consiste na incitação à produtividade, competitividade, livre iniciativa e atualização da lógica privada e do acúmulo. Atua por um tipo de funcionamento e não por códigos ou significantes (Hur, 2013, p.205).

A axiomática do capital não produz códigos ou moldes que formatam as condutas e o ser, mas uma “fórmula” que modula as condutas e o ser, numa instabilidade perpétua. Não há mais um código que se refere a uma conduta, mas um modo de funcionamento, um esquema imaterial, uma combinatória, que ressoa, reverbera e deve ser multiplicada e multiplicada em todas as instâncias da vida; não apenas nos processos econômicos, mas também políticos, relacionais, afetivos, cognitivos, resultando numa subjetividade capitalística. A axiomática do capital atua no material e no imaterial, modulando as condutas na mesma marcha incessante da lógica da produtividade, por mais que elas possam adquirir as mais distintas roupagens.

Axiomática do capital e instituições imateriais

A axiomática do capital opera em todas instituições e formas de ser dos indivíduos. Se as instituições tradicionais pautavam-se pela codificação e normatização social, a axiomática do capital passa a descodificar as próprias instituições, mas modulando-as em novas configurações a partir de sua lógica de funcionamento. As instituições passam por uma descodificação que é provocada pelo mesmo processo que leva a transição do diagrama disciplinar ao diagrama de controle: a axiomática do capital. Dessa forma, sob a axiomática do capital e o advento do diagrama do controle as instituições concretas passam a se desterritorializar, com fronteiras mais porosas e limites difíceis de definir. As instituições passam a adquirir uma configuração fluida e a ser regidas aparentemente por linhas de segmentaridade maleável. A fábrica passa a não ser mais o lócus privilegiado de trabalho e produção, bem como a escola e a faculdade não são mais os únicos lócus do ensino-aprendizagem, ou mesmo os serviços de saúde, que se desterritorializam do Hospital para os hospitais-dia, centros de atendimento psicossociais e centros de convivência. Tais processos denotam como os tradicionais lugares de saber e poder se modificaram. As instituições tornam-se de certa forma mais imateriais, sendo internalizadas e subjetivadas pelos indivíduos no cotidiano. São interiorizadas, em que os indivíduos e coletivos passam a se subjetivar pelas lógicas institucionais e suas operações imateriais.

Entretanto a configuração das instituições nas sociedades de controle não se torna tão fluida e instável como Hardt (2000), Lazzarato (2006) e Tirado e Domènech (2006) afirmam, não se instaura um processo rizomático. Não há apenas processos de desterritorialização na axiomática do capital. Ao mesmo tempo em que as instituições se desterritorializam, são reterritorializadas no funcionamento da axiomática do capital, então, suas linhas maleabilizadas, obviamente, passam a ser moduladas pela mesma axiomática. Não se constitui uma rede livre e de propagação rizomática, mas sim uma reverberação de uma forma de funcionamento que segue a gramática capitalista. Os fluxos não são canalizados no molde disciplinar, mas entram num regime de reverberação com a axiomática do capital. Nem árvore, nem rizoma, mas uma rede de ressonância no espaço aberto. Decorre-se assim um novo modelo de Instituição, híbrido. Mas seus processos de codificação não são abolidos, as normas e códigos passam a ocupar lugar secundário, sendo substituídos e determinados pela axiomática do capital. A matriz capitalista produz um regime de códigos institucionais temporários, que funciona sob sua lógica, estando a serviço da regulação e incitação à maior produção. Os códigos se tornam o meio para justificar os fins, por isso sempre estão em regime de mutação, para aumentar a própria eficácia e produtividade da instituição. São substituídos por outros códigos e assim incessantemente, ou melhor, são substituídos por “softwares” institucionais, meios racionalizados de gestão e operação, que sempre estão em modificação, para adquirir maior eficácia. O formato é substituído pelo funcionamento; as formas mudam, mas a axiomática do capital permanece a mesma. Por isso que por mais que pareça que nos tornamos livres dos muros das instituições, estes permanecem, não da forma concreta, mas imateriais. Não mais pela forma aprisionante dos códigos, senão pela axiomática do capitalismo. Há assim uma substituição do código pelo esquema, da forma pelo funcionamento, do molde pela modulação (Deleuze, 1990/1992).  

Esta nova modalidade de instituições, decorrente da axiomática do Capital e do diagrama de controle, denominamos de Instituições imateriais. Utilizamos o termo imaterial por influência da produção intelectual de pensadores da Autonomia italiana, como Lazzarato e Negri (2001) que desenvolvem a proposição de trabalho imaterial para se referirem às transformações no trabalho. Com as mutações trazidas no trabalho pela intensificação do capitalismo, não se centra apenas na produção dos bens materiais, mas principalmente dos bens imateriais, efêmeros e não duráveis, como a subjetividade, as relações sociais, as formas de ser e pensar, “um serviço, um produto cultural, conhecimento ou comunicação” (Hardt & Negri, 2005, p. 314). Estes produtos imateriais passam a ser fundamentais ao mercado: “A produção de subjetividade cessa, então, de ser somente um instrumento de controle social (pela reprodução das relações mercantis) e torna-se diretamente produtiva, porque em nossa sociedade pós-industrial o seu objetivo é construir o consumidor/comunicador. E construí-lo ativo” (Lazzarato & Negri, 2001, p.46-47).

Lazzarato e Negri afirmam que a produção de subjetividade no capitalismo não foca apenas no controle ideológico do trabalhador e dos coletivos sociais, para manter a perpetuação e reprodução das relações de trabalho. Há agora uma produção de subjetividade do próprio consumidor, enquanto ser ativo e co-partícipe dessa lógica, em que deve ser produto e protagonista. Ao mesmo tempo em que a empresa cria um produto, ou um serviço, cria um mundo e uma forma de subjetivação (Lazzarato, 2006, p.108). Nessa produção imaterial, busca-se a articulação entre fluxos econômicos e subjetivos:

O capitalismo “lança modelos (subjetivos) do mesmo modo como a indústria automobilística lança uma nova linha de carros”. Portanto, o projeto central da política do capitalismo consiste na articulação dos fluxos econômicos, tecnológicos e sociais com a produção de subjetividade de tal maneira que a economia política se mostre idêntica à “economia subjetiva” (Lazzarato, 2014, p. 14).

A transição do trabalho clássico ao trabalho imaterial corresponde ao mesmo mecanismo da transição das instituições tradicionais às imateriais, em que a axiomática do capital ocupa lugar determinante. Passam a funcionar de modo convergente, na produção, regulação e modulação subjetiva; por isso optamos por denominá-las de instituições imateriais. Poderíamos seguir Serres (1994) e Tirado e Domènech (2006) que denominaram estas novas instituições por extituições. Apresentam processos convergentes ao que desenvolvemos aqui, mas suas definições estão muito centradas nas sociedades de controle, sem discutir a axiomática do capital. Deste modo intensificam o caráter de fluidez e de exterioridade que as instituições assumem, deixando de lado a reterritorialização dos fluxos sociais pela máquina capitalista.  

As instituições imateriais não se organizam a partir do encerramento em um espaço fechado, mas pelo modelo de rede no espaço aberto, numa superfície que conjuga internalidade e externalidade. Se as instituições concretas tradicionais pautavam-se pela fixação dos lugares e das normas, as instituições imateriais articulam-se pela variação das posições dos diferentes elos na rede, programada pela axiomática do capital. Seu funcionamento primordial não se dá mais através da codificação a partir das normas, mas sim pelo aumento da produção a partir do aumento das conexões, assim o antigo modelo normativo é substituído pelo sistema conectivo, ou como Tirado e Domènech (2006) afirmam, a tradução e a inscrição são substituídas pela conexão.  

Deve-se reforçar que nesta nova configuração não há processos de desinstitucionalização, mas de imaterialização da instituição, em que se reterritorializa em outros modos, dos espaços concretos às configurações das relações sociais e à produção subjetiva. A instituição não é negada, mas eterealizada, volatilizada, transversalizando interno e externo. As instituições imateriais investem diretamente o indivíduo “livre”, o produzem. Não há mais necessidade dos muros de uma instituição se o governo das condutas passa a ser operado em campo aberto. O indivíduo terá acesso à informação, saberá que condutas deve assumir no âmbito da saúde, passará a ser empreendedor da própria carreira: o indivíduo torna-se sua própria empresa. Mas sempre tomando a lógica capitalista como parâmetro de conduta em suas distintas esferas de existência, até onde a princípio parecia que a axiomática capitalista não incidiria: nos relacionamentos afetivos e na relação com o corpo. O sexo e o corpo também passam a ser capitalizados, em que as experiências intensivas e qualitativas importam menos que as quantitativas.

Se as instituições imateriais têm um centro, elas não operam pela força de gravitação, pela força centrípeta, tal como as instituições concretas tradicionais. Não há panóptico, nem satélites orbitando seu centro, mas células de trabalho dispersas que operam a partir de sua lógica. O vetor direcional da força é inverso. Não exerce uma força centrípeta, mas centrífuga. Não opera pela gravitação, mas sim pela transmissão, ressonância, como ondas de rádio. Toma importância não mais o alcance do olhar, mas o raio da transmissão para ressoar e reverberar, a propagação de diretrizes para a maior produção e para o funcionamento do ser. “Ya no hay centros y periferias, sino multitud de centros que en su movimiento tejen la globalidad” (Tirado & Domènech, 2006, p.15). As instituições imateriais são fórmulas programáticas que se disseminam e se dispersam na coletividade fomentando a tessitura de redes com distintas configurações, tal como teias de aranha. Sabe-se que teias de aranhas de determinadas espécies têm um determinado padrão em sua configuração. E é dessa mesma forma que pensamos as distintas instituições imateriais. Traçam redes de distintas configurações como se fossem teias de diferentes espécies de aranhas. Entretanto, como estão moduladas pela axiomática do Capital, pode-se dizer que as redes formadas por nossos coletivos sociais tendem a ser mais homogêneos que as das aranhas, pois seguem a mesma matriz capitalista. Uma das diferenças é que as redes das aranhas objetivam capturar suas presas, enquanto as nossas redes tratam de capturar a nós próprios nesta mesma lógica capitalista. Construímos este espaço estriado imaterial para nós mesmos nos capturarmos. As instituições imateriais constituem redes hiperprodutivas que funcionam por associativismo, em que cada ponto conectivo busca extrair mais valia de cada relação de troca e produção. Assumem a lógica da empresa, com todos seus imperativos de maximizar os lucros, reduzir os custos, organizar células autônomas de trabalho, eliminar os gargalos de produção e o potencial insurgente dos trabalhadores. Se as instituições tradicionais podiam sofrer a crise de seus códigos, as redes das instituições imateriais podem sofrer o curto circuito e as desconexões, e não a corrupção, conforme defende Hardt (2000). Estes curtos-circuitos podem ser resultantes da introdução de vírus, ou da ação de hackers, ou quando os elos da rede não se articulam e entram em regime de repulsão e antiprodução. Um problema para a axiomática do capital é a dissipação de energia não trabalhada.

Todas as instituições concretas, sejam as privadas, públicas e do terceiro setor (Organizações não governamentais – ONGs e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP) são axiomatizadas pelo Capital e adotam a lógica de empresa. As mudanças que se efetuam nas instituições não são por acaso, ou por uma questão de direitos humanos, mas sim a partir da adoção de mecanismos mais “racionalizados”, rentáveis, eficazes e menos custosos de gestão da vida, considerando o aumento das populações que não cabem mais dentro dos muros. Do hospício aos hospitais-dia, da prisão às penas alternativas, da educação formal à educação à distância, da segurança pública à segurança privada. Em tempos de instituições imateriais há o declínio do Estado e do público mediante o mercado. Toda a estrutura pública deve ser enxugada para minimizar os gastos, então os processos de privatização são os mais correntes. Desde a venda de indústrias e bens públicos, como estradas, aeroportos, companhias energéticas, bem como a própria privatização subjetiva das relações sociais e do indivíduo. A terceirização dos serviços também é uma prática que denota a descodificação do antigo cargo do servidor público, que gozava de estabilidade e benefícios empregatícios. Hoje, trabalhadores de base e profissionais de saúde, e num futuro próximo os professores, já são administrados por organizações sociais – OS, podendo ser demitidos a qualquer momento, mesmo por motivos de saúde ou de organização trabalhista contra más condições de trabalho.

As instituições de saúde e de ensino passam a ser mensuradas através de seus índices de produtividade: quantos pacientes atenderam, quantos alunos se formaram, nível de titulação de seu corpo profissional, etc., e não mais pela qualidade de saúde ou de formação incitados. E elas se imaterializam, pois tanto a educação e a saúde não devem ser praticadas apenas nesses locais, mas deve haver uma atenção e trabalho permanente, seja a formação e capacitação continuada, ou os cuidados com a dieta, a pressão arterial e os exercícios físicos. Nesta emergente configuração institucional há um fenômeno novo em que o consumidor adquire uma “expertise” médica e adota processos de automedicalização (Rose, 2013), que são assumidos cotidianamente e até prescindem da opinião do profissional de saúde.

As instituições imateriais paradigmáticas de nosso tempo são a rede constituída entre mídia, marketing e opinião pública (Lazzarato, 2006). Ao mesmo tempo conjugam entretenimento, formação humana, modulação do desejo e opinião do público, produzindo bens imateriais. São instituições noopolíticas, ou seja, atuam diretamente sobre o pensamento, os afetos e a memória (Lazzarato, 2006). Constituem uma rede que se retroalimenta e se legitima: o marketing, através da mídia, modula o desejo e a opinião do público, que por sua vez, passa a legitimar os produtos do marketing que a mídia apresenta. Dessa forma, a política é substituída pela publicidade, os cidadãos pelo público, e a verdade pela mídia. O antigo debate político perde espaço para a encenação da política na mídia.

Na Figura 2 esquematizamos a emergência das instituições imateriais no modelo anterior das instituições abstratas e concretas. De acordo com ela as instituições imateriais constituem-se como uma instância autônoma frente às instituições concretas e abstratas. Discordamos que com a descodificação das instituições, elas tenham adquirido uma identidade híbrida e maleável (Hardt & Negri, 2005). Elas se desterritorializam, imaterializam-se, mas assumem o mesmo tipo de funcionamento, da axiomática do capital, tornando-se assim bastante homogêneas, mesmo que tenham aparências e escopos de atuação diferentes. Nunca se foi tão diferente e homogêneo ao mesmo tempo.

Figura 2: Os três vértices das instituições

 

 

Este movimento das instituições concretas às imateriais não fazem com que retornem ao pólo das abstratas. Cria-se um terceiro vértice, pois até mesmo as instituições abstratas passam a ser significadas pela axiomática do Capital. Portanto, até a pluralidade e dispersão de significações das instituições abstratas passam a ser homogeneizadas por esse tipo de funcionamento. Por exemplo, no âmbito religioso, Deus passa a ser significado em convergência com a gramática neoliberal. O crescimento vertiginoso da religião evangélica, que articula credo religioso ao capitalismo (Dantas, 2014) denota esse aspecto. A imaterialidade da crença é conjugada pela fórmula capitalista de ser. Então neste processo não há pluralidade das instituições, mas homogeneidade no funcionamento delas. As instituições imateriais passam a predominar sobre as outras duas, então a descodificação que parecia abertura à pluralidade, converteu-se numa dispersão à homogeneidade. Por isso que, neste ponto, consideramos mais correto dizer que a intensificação da axiomática do capital não constituiu um diagrama de controle, mas sim um diagrama de empresa. Os agenciamentos das relações de forças do diagrama obedecem muito mais os imperativos do hiperproduzir, da subjetividade empreendedora e da mais valia da circulação, do que efetivamente o controle e o governo do social. O controle é secundário em relação ao produzir.

É disseminado assim um modelo subjetivo da máxima eficácia, em que o indivíduo sempre poderá e deverá se superar. Ao invés de uma subjetividade normalizada, constitui-se uma subjetividade empreendedora. Nela, incita-se uma hipertrofia do ser, em que se tem como utopia sempre evoluir, superar-se, tornar-se sempre mais X (rico, independente, inteligente, forte, livre, etc.), enquanto antes a utopia era tornar-se normal, adaptar-se à norma. Não é à toa que os esportes da moda são modalidades individuais como a musculação, numa hipertrofia corporal incessante; a corrida, em que sempre se busca superar novas marcas, e as lutas, em que se deve superar o outro.  Os saberes psi, que se referem aos estudos da cognição, afetos e conduta social, tornam-se uma indústria da gestão social e política guiada pela axiomática do capital. Se visam uma mudança de conduta, não é mais para disciplinarizar, normatizar e adaptar, mas sim para regular e fomentar a maior produtividade, pois deve administrar e incitar indivíduos independentes e empreendedores a produzir mais. As condutas inadequadas não mais se referem ao que está fora da norma, mas ao que não produz, recebendo assim um juízo de “falência”.

Entretanto, mesmo hegemônico, o modelo da axiomática do capital sofre um duplo desgaste. Do ponto de vista econômico, a crise financeira global agora é inevitável, pois elevar os índices de crescimento apenas será possível se consumirmos mais e mais. O capitalismo, com seus curto-circuitos, mostra que não é possível manter o mesmo ritmo de crescimento da produção e de consumo, no que resulta numa economia planetária marcada por recessões e crises financeiras. E do ponto de vista subjetivo, há o esgotamento do seu modelo. Não há nenhuma nova produção subjetiva que dê conta às frustrações da subjetividade capitalista, que se constitui hoje como sujeito endividado (Lazzarato, 2014). Consideramos que as promessas de realização subjetiva do capitalismo a partir do enriquecimento e do consumo desenfreado não foram exitosas, apenas constituiu este “ideal de felicidade”, inalcançável. Devido à inatingibilidade deste ideal, os indivíduos vivem sob a experiência ontológica de falta, de uma dívida infinita, caindo numa autoculpabilização, na frustração de não terem chegado “lá”. Já estamos obesos de tanto consumir, cheios de quinquilharia eletrônica, endividados de tanto comprar, mas não se alcançou a “felicidade” prometida. O “inimigo” não é externo, mas sim interno (a dívida com o ideal), muito mais duro e mordaz. Mas mesmo assim a axiomática do capital fomenta que aumentemos ainda mais o consumo, o que apenas constitui sujeitos endividados e esgotados e o que Byung-Chul (2012) chama de sociedade do cansaço. Não há apenas a crise financeira, como também há a crise da subjetividade capitalista. Haverá nova reconfiguração das instituições?

Considerações finais

Neste ensaio buscamos discutir características da reconfiguração das instituições a partir da intensificação da axiomática do capital, e consequentemente, da emergência do diagrama de controle. Primeiramente, realizamos uma diferenciação entre as instituições abstratas e as instituições concretas para referir-nos ao complexo e multifacetado fenômeno das instituições. Em seguida discutimos a substituição do código pela axiomática do capital enquanto mecanismo predominante de operação do socius, o que fez com que as instituições tradicionais entrassem num processo de transição ao que denominamos de instituições imateriais. Ressaltamos que diferentemente de pensadores como Hardt (2000), Lazzarato (2006) e Tirado e Domènech (2006), a nova configuração das instituições não é tão fluida e mutante como defendem, pois elas também são alvo do duplo movimento da axiomática do capital. Ao mesmo tempo em que seus códigos são descodificados, são reterritorializados a partir da axiomática do capital, ou seja, o fluxo social não é tornado livre, mas é modulado num tipo de funcionamento, que é o da gramática capitalista. Emancipa-se da forma do código, mas enreda-se no funcionamento da axiomática do capital.

Portanto na transição das instituições concretas às imateriais temos a substituição do homem confinado, que vivia sob a primazia do código e da norma, para o homem “livre” e endividado, que vive sob a primazia da axiomática do capital. Estimulava-se uma subjetividade normatizada e adaptada e hoje uma subjetividade hiperprodutiva, hipertrofiada e empreendedora, mas que se sente endividada. Os saberes psi antes buscavam diagnosticar, compreender, corrigir ou aprisionar. Hoje buscam incitar, estimular, transformar, intervir e aprimorar. Consideramos também que a axiomática do capital, mais que constituir um diagrama de controle, constitui o diagrama da empresa.

Com tal quadro aparenta-se que com a axiomática do capital a história universal chega a um fim, o “fim da história” (Fukuyama, 1992). Mas os curtos-circuitos que o capitalismo vêm sofrendo, a crise no modelo subjetivo produtivo e a própria deterioração do planeta pela sua hiper-exploração nos trazem pistas de que este diagrama está se colapsando. No entanto, qual será o novo diagrama de forças? Não há como saber ou prever. Mas certamente não chegamos na última formação social da história. No âmbito teórico, o próprio Deleuze, quatorze anos depois, refuta a idéia de uma história universal, ao discutir os agenciamentos de forças vetorizados em distintos diagramas. Para ele tornou-se mais interessante pensar nas recomposições dos diagramas nos distintos momentos históricos, ao invés de uma “totalização” de uma história universal: “Portanto, ao mesmo tempo há que se dizer que não, que isso não é história universal porque apela constantemente a novas mutações, a novas saídas. Tudo torna a sair, constantemente tudo volta a sair” (Deleuze, 1986/2014, p.114).



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Data de submissão: 11/09/2015
Data de aceite: 05/12/2015

 

1 Todas as citações diretas à obra de Deleuze (1986/2014) foram traduzidas por nós do castelhano ao português.

I Professor da graduação e do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás.  Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona/Catalunya. Membro do CRISE – núcleo de estudos e pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação. Coordenador da graduação em Psicologia da UFG. E-mail: domenico@ufg.br

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