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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre dez. 2015

 

RESENHAS

 

A condição humana em perversão: uma leitura sobre A Parte Obscura de Nós Mesmos

 

The human condition within perversion: a reading of A Parte Obscura de Nós Mesmos (the dark part of ourselves)

La condición humana en la perversíon: uma lectura de A Parte Obscura de Nós Mesmos (la parte obscura de nosotros mismos)

 

Roudinesco, E. (2008).  A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar.

 

Rodrigo Diaz de Vivar y SolerI, Caroline SochaII e Silvia Maria CarvalhoIII

I Estácio de Sá, São José, SC, Brasil.

II Estácio de Sá, São José, SC, Brasil.

III Estácio de Sá, São José, SC, Brasil.

 

 

Uma leitura crítica sobre o conceito de perversão e o tratamento dado à questão pela religião, pela filosofia e pela política na sociedade ocidental. Eis o procedimento histórico empregado pela intelectual francesa Elisabeth Roudinesco no seu livro A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma história dos perversos (ROUDINESCO, 2008). Enveredando-se pelas entranhas da história com ousadia, Roudinesco (2008) revisita as biografias de personagens emblemáticos como Gilles de Rais, Sade e Rudolf Höss para estabelecer uma desconstrução das noções habituais conferidas a perversão seja pela ciência, seja pela religião afastando-a de tal maneira do campo da moralidade – a eterna batalha entre bem e mal que infelizmente insiste em perpetuar-se sobre nossa civilização – para afirmar provocativamente que “os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos (ROUDINESCO, 2008, p.19).” Deste modo, o conceito  de perversão passa a ser apurado por meio de uma crítica corrosiva que remetem aos domínios do sublime e do abjeto; como se os atos perversos ao mesmo tempo em que nos produzissem encantamento, exercessem um fascínio sobre nós, sem deixar de serem responsáveis por produzir inúmeras monstruosidade e anormalidade cometidas por alguns personagens infames e sedutores.

Essa constatação implica direcionar um novo olhar sobre as condições de possibilidade do desdobramento da perversão, pensando-a conforme aponta Roudinesco (2008), como algo que migra no campo do sagrado, da mitologia, para transformar-se com a emergência da modernidade, num problema posto a conduta humana. É certo que na Grécia Antiga, por exemplo, nem homens nem deuses eram perversos. No entanto, ao realizarmos uma leitura um olhar sobre as tragédias gregas pode-se visualizar na companhia de Roudinesco (2008), que o medo de perder o poder elevaria a iminência da produção dos mais diversos atos de punição por parte dos deuses aos humanos. Neste sentido, é correto afirmar que as tragédias são um importante exemplo para Roudinesco (2008) da formação de uma espécie de contradição entre a vontade divina e a vontade humana, pois seja nas entrelinhas, seja de modo explícito, toda visceralidade do trágico potencializava aspectos como a lado sombrio da justiça concebida por intermédio de pequenas falhas que convergiam para a própria dilaceração do corpo do sujeito. Em seu livro Roudinesco (2008) cita o ocaso de Édipo como uma ilustração de uma trama ao mesmo tempo dicotômica e complexa por meio da qual desdobrasse o que Foucault (2008) em A Verdade e as Formas Jurídicas chama de inquérito orientado pelo medo de Édipo – concebido como sujeito do saber - em perder o poder flagelando o próprio corpo ao ser destituído da sua condição de tirano.

Já na Idade Média, o flagelo do corpo ganha um novo significado passando a ser concebido num primeiro momento como uma possibilidade de salvação e num segundo momento ser considerado um ato condenável pela Igreja. Já que nessa época Deus era o único juiz, o sujeito do cristianismo estava como que condenado a sofrer não somente pelos seus atos, mas também por suas intenções.1 Tal característica nos permite pensar, de acordo com Roudinesco (2008), na existência de um sujeito concebido como uma criatura dividida de um lado pela tentação oferecida pelo Diabo e de outro lado, pela oferta da graça divina concedida pela degradação e destruição do próprio corpo considerado como objeto passivo a todas as formas de pecado, extravagâncias e luxúrias. Portanto, a aniquilação seria o único caminho possível para a salvação. O sujeito do cristianismo deveria assimilar a seu próprio corpo, a trajetória de Jesus cujo emblema da tortura fora responsável para a educação e sujeição a uma ordem divina tal qual lembra Roudinesco (2008, p.2526)

Numa época em que a medicina não tratava nem curava, e em que a vida e a morte pertenciam a Deus, as práticas de emporcalhamento, autodestruição, flagelação ou ascetismo – que mais tarde serão identificadas como perversões – não eram senão diferentes maneiras de os místicos identificarem-se com a paixão de Cristo. Tratava-se, para aqueles que queriam alcançar a verdadeira santidade, de se metamorfosear em vítimas que consentissem nos tormentos da carne: viver sem comida, sem evacuação, sem sono, ver o corpo sexuado como um amontoado de imundícies, mutilá-lo, cobri-lo de excrementos etc. Todas essas práticas levavam aquele que as adotava a exercer sobre si mesmo a soberania de um gozo que ele destinava a Deus.

Contudo, no final do século XIV segundo Roudinesco (2008), o teólogo João Charlie de Gerson passa a condenar, de maneira militante, a flagelação do corpo através de uma nova hermenêutica da palavra cristã orientada basicamente pelos pressupostos do amor e da confissão como maneira de expiação dos pecados. É nesse momento que a flagelação deixa de ser uma prova de obediência intrínseca a Deus, para converter-se em uma prática socialmente condenável pela Igreja, o que abre caminho para a punição daqueles que imprimiam a si mesmo e aos outros alguma forma de crueldade. Nesta mesma época surge Gilles de Rais, indivíduo responsável pela morte de mais de 300 crianças no território francês durante o século XV. Ao ser julgado por seus crimes Gilles de Rais, assumira de acordo com Roudinesco (2008),  toda a culpa pelos seus atos sendo primeiramente excomungado pela Igreja e, posteriormente, fora enforcado e queimado. A perversidade de Gilles acentuou o debate sobre a natureza da perversão: seria ela obra do Diabo ou o resultado da educação e da cultura oferecidas pela sociedade aos indivíduos?

No século XVIII, com a emergência do Iluminismo e o enfraquecimento da hegemonia da Igreja, começam a proliferar uma série de discursos que deslocavam à discussão sobre a perversão como condição espiritual, para uma questão de natureza bárbara “... o homem pode libertar-se das antigas tutelas da fé, da religião, da crença, do sobrenatural e da monarquia absoluta e, portanto, também das práticas escusas a elas associadas com vistas à salvação da alma: flagelação, suplícios, castigos, penitências, etc. (ROUDINESCO. 2008, p.42).”.

Deste modo, tal qual destaca Roudinesco (2008) é possível perceber uma elipse do emblema religioso, para o campo da moral. Doravante, às figuras do perverso, do flagelador e do libertino outrora associada ao mal, tornam-se com o século das luzes, uma ameaça aos valores impostos por instituições como o Estado e a família, por exemplo.

É nesse panorama que surge a escrita de Sade considerada pelas autoridades da época, a própria encarnação do mal absoluto, pois em todos os seus textos, Sade trata de mostrar que a lei e as convenções sociais servem a um único propósito: frear a vontade de potência do sujeito, sobrepondo a moral em detrimento do instinto e da necessidade. Operando por meio de uma espécie de dialética às avessas, Sade compunha uma sinfonia do horror revirando a filosofia iluminista, na medida em que sujeitava os pressupostos da Razão à potência do ato criminoso, conferindo visibilidade à corrupção presente na religião e na política através de seus personagens infames. Em suma, destaca-se que a importância de Sade consiste no fato de que para ele tudo deveria ser mostrado pelo lado mais brutal através de representações ligadas às práticas sexuais como a sodomia ou a coprofagía, por exemplo. Entretanto, deve-se reconhecer nas entrelinhas da composição sadeana que os atos sexuais fazem parte de uma prática instintiva diretamente relacionada ao crime e é justamente por conta deste aspecto que a literatura de Sade nos mostra que, por mais absoluta que seja, nenhuma moral poderá colocar freios sobre o sexo e, consequentemente, sobre a perversão como tal. A originalidade de Sade consiste em promover um abalo das estruturas presentes em toda e qualquer forma de aparato institucional confrontando-as initerruptamente a partir da denúncia de toda decadência moral seja da religião, seja da política. Este é o caso do emblemático texto Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos, incluído como apêndice no livro Filosofia na Alcova (SADE, 2009) um explícito ataque em favor da ruptura total do novo regime com o cristianismo. Tais questões levantadas por Roudinesco (2008) nos levam a concluir que a perversão proferida por Sade está intrínseca à civilização, não podendo ser encarcerada por mais sofisticadas que sejam as normas de controle ou seus dispositivos de regulação.

Seria então a voz de Sade um elemento capaz de potencializar a perversão como um elemento, uma estratégia política? Ou ainda como bem sugeriu Bataille (1989) em seu ensaio A Literatura e o Mal: “Por que é que o tempo duma revolução daria brilho às artes e as letras?”. Deleuze (2009) nos lembra que esses preceitos produzidos pela literatura sadeana equivale à constatação crítica sobre os valores e a moral, inscrevendo desta maneira, a condição de possibilidade para a emergência de uma nova ética sobre a perversão tomada como atitude de liberdade que um século mais tarde será silenciada pelos saberes como a psiquiatria e a criminologia, por exemplo.

Lembra-nos Roudinesco (2008) que no século XIX a perversão sofre um deslocamento deixando de ser um problema posto pela filosofia moral, para adentrar no campo das ciências da época. Desta maneira, psiquiatras, pedagogos e criminólogos passam a instituir uma série de discursos sobre os atos sexuais relacionando à maioria de práticas excêntricas como problemas de ordem mental, a ponto de podermos afirmar que o século XIX foi à época de ouro para a criação de toda uma catalogação epistemológica cuja finalidade era produzir uma literatura higienista de todos os comportamentos possivelmente perigosos e desviantes. Segundo aponta Roudinesco (2008,p.78

Como consequência, as singularidades sexuais julgadas mais perversas – bestialidade, sodomia, inversão, fetichismo, felação, flagelação, masturbação, violência consentida, etc.- não constituem mais objeto de nenhuma condenação, uma vez que a lei não se intromete mais na maneira como os cidadãos tencionam alcançar o orgasmo na intimidade de suas vidas. Esvaziadas de seu furor pornográfico, são então rebatizadas ao sabor de uma terminologia sofisticada. Na literatura médica do século XIX, não se fala mais de foder, de cu, de xoxota, nem das diferentes maneiras de tocar punheta, fornicar, enrabar, comer merda, chupar, mijar, cagar, etc. Inventa-se, para descrever uma sexualidade dita “patológica”, uma lista impressionante de termos eruditos derivados do grego. E, inclusive com frequência, para dissimular a eventual crueza da qualificação de um ato, fala-se latim.

Emerge destes conjuntos de disciplinas toda uma categorização que procurava desvendar a obscuridade da conduta humana. Contudo, tal intento representava mais uma tentativa de fazer silenciar à vontade de potência sujeitando-a perante as convenções sociais e ao uso da razão concebida aqui como controle e manutenção da ordem. Conforme pode-se ressaltar, segundo afirma Roudinesco (2008), o debate em torno da origem do mal relacionando as práticas sexuais com questões como a criminalidade e a loucura iria compor a normalização dentro dos critérios daquilo que seria socialmente aceito e o que seria moralmente condenável. Talvez o ápice dessa separação seja o fenômeno do nazismo e seus respectivos campos de concentração em que ocorreu a cristalização da lei racionalizada e convertida em Estado de exceção.

Eis que, conforme lembra Roudinesco (2008), a relação existente entre os crimes cometidos nos campos de concentração e os discursos sobre a perversão provenientes das ciências médicas e jurídicas do século XIX operaram como uma espécie de dispositivo de segregação e aniquilamento dos socialmente indesejáveis. Pode-se aqui aproximar a análise empreendida por Roudinesco (2008) com o documentário, Arquitetura da Destruição (COHEN, 1992), no qual o regime nazista organizara, pelas mãos do seu ministro de propaganda Goebbels, a exposição arte degenerada, na qual obras de arte das ditas vanguardas modernistas foram expostas de maneira arbitrária ao lado de imagens de pacientes psiquiátricos, na tentativa do regime hitlerista provar que a arte modernista e a degenerescência estavam intimamente relacionados podendo, deste modo, ser objeto de análise pelas mãos da ciência do III Reich.

Especificamente no capítulo As Confissões de Auschwitz Roudinesco (2008), apresenta a brilhante constatação de que o nazismo não representou uma espécie de (des)humanização, mas que tratava-se de um acontecimento proveniente da razão instrumental. Recuperando a leitura empreendida por Adorno e Horkheimer (1985) em torno da tese freudiana de que toda civilização engendra a barbárie Roudinesco (2008, p.125) afirma que

Foi de seu exílio norte-americano que Theodor Adorno e Max Horkheimer promoveram, em 1947,  num livro célebre, Dialética do Esclarecimento, uma longa digressão sobre os limites da razão e dos ideais do progresso. Pensadores do Iluminismo sombrio, ambos haviam assimilado a idéia (sic) freudiana segundo a qual a pulsão de morte – sob a forma do gozo do mal – só poderia encontrar seus limites com a sublimação, única maneira de se ter acesso à civilização.

O quadro de associação entre a razão instrumental e os valores de progresso desdobrasse na prática política do genocídio, cujo maior expoente na produção dos socialmente indesejáveis e perversos talvez tenha sido Rudolf Höss. Este, segundo Roudinesco (2008), ao assumir o posto de comandante de Auschwitz levou à morte milhares de pessoas e recorreu a sua defesa diante do tribunal supremo polonês alegando que seus atos possuíam relação direta com o cumprimento inalienável de seu dever enquanto soldado. Conforme ele mesmo argumenta no seu livro de memórias, conforme aponta Roudinesco (2008), os judeus eram os próprios responsáveis pela violência que sofriam, clamando por uma espécie de desejo pela própria destruição por pertencerem a uma cultura perversa. Segundo adverte Roudinesco (2008, p. 150) “convinha exterminá-lo – o judeu – porque o desejo de extermínio provinha dele e não do carrasco.”

Como destaca Roudinesco (2008) os carrascos dos campos de concentração eram, segundo a óptica de Höss, apenas os executores de vontades autopunitivas. Na realidade, o mais macabro dessas afirmações circunscreve-se no fato de que Höss considerava-se um benfeitor não só da Alemanha, mas da humanidade inteira ao delegar para si mesmo a tarefa de expurgar todas as criaturas perversas da face da terra. Höss descrevia os judeus como (sub)humanos que poderiam ter fugido da Alemanha, mas preferiram, por vontade própria ser eliminados pelos soldados do Reich.

Conforme pode-se perceber, todo o percurso histórico empreendido Roudinesco (2008) atesta para uma necessidade imediata de se desconstruir as habituais visões sobre a problemática da perversão na busca da quebra de paradigmas e ideias pré-estabelecidas. Isso significa que o desafio posto aos intelectuais que se debruçam em torno da investigação sobre a perversão remete a desconstrução sobre a relação entre perversão e sexualidade caminhando, desta maneira, em direção a um posicionamento crítico que não mais exclua tais práticas, mas sim estabeleça uma problematização sobre os limites e a compreensão em torno dos desdobramentos sobre a condição humana. Justamente, por conta deste aspecto, pensar a quebra da categorização e definição desses comportamentos abre à alegoria de novas visões sobre a conduta ética do sujeito para além das habituais cisões provocadas por saberes como a religião, a ciência e a política por exemplo. Em suma, trata-se de empreender um olhar mais analítico e menos moralizador sobre as ações impactantes promovidas por personagens que circulam como lembra Roudinesco (2008) entre os campos do sublime e do abjeto.


Referências

Adorno, T. W. Horkheimer, M. (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Agostinho, S. (2011). Confissões. Petrópolis. Vozes.         [ Links ]

Bataille, G. (1989). A Literatura e o Mal. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Cohen, P. (1992). Arquitetura da Destruição. Alemanha: Versatil Home Vídeo.         [ Links ]

Deleuze, G. (2009). Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2008).  A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Sade, M. (2009). Filosofia na Alcova. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]


Data de recebimento: 17/03/2015
Data de aceitação: 20/04/2015


1 Talvez o maior exemplo desta constatação entre a agônica relação do corpo compreendido como templo das impurezas e do pecado e da alma como domínio do sagrado fosse anto Agostinho, figura emblemática do cristianismo que em sua autobiografia intitulada Confissões aponta a proeminência da confissão dos pecados como estratégia de adoração a Deus.

Bacharel em Psicologia pela UNESC. Mestre em Psicologia pela UFSC. E-mail: diazsoler@gmail.com

II Graduanda em Psicologia pela Estácio de Sá/SC. E-mail: caroliine_socha@hotmail.com

III Graduada em Psicologia pela Estácio de Sá/SC. E-mail: silviamariacarvalho@yahoo.com. br

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