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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre Jan. 2016

 

EDITORIAL

 

 

Este dossiê da Revista apresenta uma coletânea de artigos produzidos pelo GT da ANPEPP “Tecnologias e Modos de subjetivação”. Esses textos são resultado de uma trajetória do GT que vem se articulando desde 2012. O GT é um espaço que se consolida por diferentes estratégias de encontros voltadas para um exercício reflexivo que tem como linha de problematização as políticas de pesquisa na Psicologia. Essa linha de discussões e produções se constitui de diferentes modos a partir de algumas ferramentas críticas importantes para o GT, entre elas o exercício permanente de colocar em análise o que, como, para quem, com quem produzimos nossas pesquisas. Isso significa para o GT partir de um ponto em que a Psicologia e a pesquisa em Psicologia são consideradas práticas políticas e, portanto, tecnologias que também compõem o mundo no qual vivemos. Desde nossos primeiros encontros colocamos em análise o desafio do “pesquisar com”, pensado como uma política de pesquisa que se faz com o outro e não sobre o outro e que nos coloca em uma relação de diálogo com nossos interlocutores, sejam eles acadêmicos ou não, humanos ou não. Nos deparamos assim, com questões não apenas de ordem política, mas também com a necessidade de refletir sobre as estratégias teóricas e metodológicas que viabilizem o pesquisarCom e o escreverCom.
Dando continuidade a esse debate, os textos aqui reunidos são efeitos das questões as quais nos propusemos a discutir no último encontro do GT realizado em Maceió no ano de 2015 “III Encontro de Pesquisa Interinstitucional: Tecnologias e Políticas de Subjetivação”. Neste Encontro tínhamos como proposta a discussão sobre políticas de pesquisa a partir de algumas considerações voltadas para estratégias que não apenas criticassem certas modalidades de produção, mas que também propusessem outras formas de produção. Tomamos como balizador dessa discussão as políticas de escrita como parte do processo da pesquisa, e não como seu ponto final, nos interrogando sobre nossas relações com os diferentes interlocutores que a compõem, considerando outros atores, outros autores, outras experiências, outras linguagens, outros saberes. Nos convocamos a trazer questões sobre as práticas em pesquisa, mas com exercícios que pudessem indicar outras formas de escrever, de investigar, de interrogar, indicando nestas tecnologias possibilidades de, ao articular pesquisa com política, compor também novos territórios éticos e estéticos, que buscamos aqui compartilhar.
A aproximação da Pesquisa em Psicologia com a política, mas, sobretudo, com o mundo e com a vida, faz com que o GT considere a importância de um exercício de análise permanente sobre os mundos que estamos constituindo com nossas ideias. Neste sentido, o GT tem aprofundado estratégias que permitam a reflexão sobre a pesquisa em Psicologia para a produção de um espaço politicamente engajado com as práticas e lutas sociais e, como tal, amplie seus interlocutores tanto pela multiplicidade de vozes presentes na pesquisa e na escrita, como pelo alcance dessa produção, para além dos espaços acadêmicos, nos espaços de vida e luta.
As articulações teóricas que se sustentam em autores como Bruno Latour, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Donna Haraway, Giorgio Agamben, Mikhail Bakhtin, entre outros, têm permitido ao GT a sistematização de um espaço no qual as ferramentas conceituais tornam-se personagens conceituais que não nos servem como algo sobre o qual desenvolvemos nossas reflexões, mas algo com o qual inventamos coordenadas analíticas que se compõem com outros coletivos, como aqueles com quem pesquisamos nos nossos cotidianos: pessoas, literatura, música, instituições, agências, entre outros. Esses personagens que passam a habitar e a compor com nossas reflexões vão surgindo a partir de uma rede que se produz pelos encontros às vezes antecipados, às vezes inéditos, às vezes harmoniosos e outras vezes bélicos.  São nessas tramas que também nos tecemos como pesquisadores implicados com a pesquisa como afirmação da vida.
Afirmação da vida porque, ao aproximar a pesquisa de uma prática política, a investigação deixa de ser sobre o mundo e passa a ser com o ele, para compor outros mundos, outros modos de viver e habitá-lo. Desse modo, o GT torna-se um laboratório onde, ao afirmar a vida, inventamos outros modos de compor a pesquisa com a vida. E nessas composições tudo passa a contar: escritas, métodos, teorias, pessoas, instituições. A afirmação da vida se faz pela composição de um campo de experiências e experimentações em que se constituem políticas ontológicas que nos permitem certos compassos, cadências, movimentos.
E são esses compassos, cadências, movimentos que animam os textos desta edição da Revista. O dossiê abre com o artigo “Imagens do escuro: reflexões sobre subjetividades invisíveis” de Andrea Cristina Coelho Scisleski e Simone Maria Hüning, que nos propõe uma reflexão sobre o modelo epistemológico das luzes como racionalidade hegemônica na ciência, de modo a indicar os efeitos políticos do mesmo. Esses efeitos políticos recaem sobre aquelas zonas que acabam por se tornarem invisíveis ao olhar, ao mesmo tempo que participam da organização e da iluminação de outras. A aposta política do texto seria em uma potência de se pensar nas sombras como estratégia para pesquisar e escrever com aqueles e aquilo que habita os espaços sombrios e invisíveis das cidades. Essa discussão permite ao GT marcar como os autores e atores com quem pesquisamos nos permitem borrar as fronteiras de racionalidades impostas e, a partir disso, produzir deslocamentos nos arranjos que constituímos com nossas investigações.
Com isso, o artigo de Ronald Arendt “A Escrita como Laboratório” abre para uma reflexão sobre a relação entre escrita e laboratório, a partir da atividade do artesão e das tecnologias científicas. O texto aponta o exercício da escrita científica como um campo de produção artesanal que se utiliza de diferentes ferramentas e personagens. Toma como provocação as produções de Latour e sobre Latour para migrar para seu próprio grupo de pesquisa. Este exercício coloca a escrita a partir de outros modos de pensar a relação entre teoria e prática. Portanto, qualifica a escrita como um laboratório de práticas, onde se experimentam diferentes composições, misturas, texturas em que os coletivos de pesquisadores “colocam a mão na massa”.  Da escrita como laboratório, se parte para a leitura do texto de Marcia Moraes e Alexandra Tsallis “Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência”, em que a escrita científica encontra-se com outra dimensão que seria o contar histórias. Neste caso, o contar histórias, como aquilo que torna possível uma escrita, permite situar a produção científica como prática localizada, por isso política, ética e estética. Além disso, o encontro do escrever com o contar, como prática localizada, aponta para a multiplicidade de gramáticas que habitam os textos. Essas diferentes gramáticas, ao figurarem na escrita, reforçam o caráter político de um escrevercom, de um engajamento com o outro.  Ambos os textos, a partir das discussões sobre a escritacom, compartilham da potência de pensar e escrever nas sombras, seja pelas gramáticas, seja pelo trabalho dos artesões.
Nessa esteira das diferentes gramáticas e das sombras, Marcelo Santana Ferreira nos apresenta em seu texto “Sobre crianças, sexopolítica e escrita de si” um exercício de reflexão e escrita a partir da literatura para questionar a invenção da infância como artefato biopolítico. Defendendo outros modos de ser criança, confronta o moralismo e o imperativo de uma infância idealizada e normalizada por discursos psicologizantes com possibilidades outras de produção e governo da infância expressas em diferentes produções literárias que trazem imagens dissidentes da experiência da infância e adolescência.
O texto “Sobre a morte, sobre a vida: a produção da bíos em adolescentes em conflito com a lei” de Hebe Signorini Gonçalves também toma como fio condutor as sombras das cidades e outras gramáticas a partir daquilo que faz e produz um desejo de morte de “certos” outros. As sombras aqui apontam para as vidas destituídas de valor, para a vida de jovens que, nos encontros com a cidade, marcam a sua saída, sua exclusão, já que se trata de vidas matáveis. O texto conta a história dos encontros com essas vidas e como a partir delas torna-se possível pensar certas políticas de pesquisa. O artigo de Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Bruno Giovanni de Paula Pereira Rossotti e Jefferson Cruz Reishoffer, “A pesquisa em instituições de preservação da ordem”, acrescenta às gramáticas e sombras os desafios das investigações feitas em Instituições de Preservação da Ordem. Aqui, as vidas matáveis são retomadas pela reflexão sobre certos analisadores que trazem a questão da (des)confiança. A (des)confiança aponta para o caráter de produção da insegurança que justifica e apoia processos de subjetivação que têm como vetor principal o controle social. Indica com isso a importância das pesquisas migrarem para o interior dessas instituições, como estratégia política, na medida em que se conforma como espaços de dissimetrias de poder e de relações de violência. A discussão, neste caso, provoca a pesquisa a pensar sobre os processos de negociação nesses espaços: negociação de lugares, de efeitos teóricos, de metodologias, de encontros, de políticas, portanto, uma negociação com um vetor ético.
Solange Jobim e Souza e Cíntia de Sousa Carvalho na discussão sobre “Ética e pesquisa: o compromisso com o discurso do outro” afirmam o compromisso ético com o interlocutor da pesquisa, a partir do escrever com o outro e do pesquisar com, processos compreendidos como uma experiência compartilhada e consentida entre pesquisador e interlocutores. Trazendo os conceitos de dialogismo e alteridade de Bakhtin, as autoras refletem sobre o encontro do pesquisador com o outro no campo e com o posterior desafio de trazer para a escrita o caráter polifônico do campo numa autoria compartilhada. É também a partir das múltiplas vozes que compõem a escrita que o artigo “EscritaCom: heterotopias”, de Anita Guazzelli Bernades e Jefferson Camargo Taborda, toma o conceito de heterodoxia para pensar a escrita como um processo que possibilita a criação de um espaço outro. Nessa produção, os autores enfatizam o encontro da pesquisa com a vida a partir de políticas e afetos. A escritaCom expressa assim um encontro, sempre provisório, que permite deslocamentos, mudanças de posições, outros espaços e outros modos de subjetivação. Deslocamentos no próprio sujeito que não mais escreve solitariamente, mas pensaCom, compondo um texto atravessado por outras vidas. A escritaCom, assim como a heterotopia, constitui-se como espaço de invenção de si e do mundo e, como política de pesquisa, estaria aberto a novas experimentações e à criação de novas conexões com o que está fora, com os outros, com as incertezas, as inseguranças. Um “viajar acompanhado” que nos convida a uma nova experiência estética-política que se afasta da busca da neutralidade.
A ideia de produção e transformação de si no processo de pesquisa e escrita a partir do encontro com a diferença, também é abordada por Carolina dos Reis e Neuza Maria de Fátima Guareschi no artigo “Veias Abertas na Produção em Pesquisa”. Nesse artigo, a partir de sua própria experiência de escritaCom, as autoras refletem sobre uma trajetória de pesquisa conjunta, colocando em análise a vida que se faz na pesquisa. Mais uma vez, o encontro com o outro e com a diferença é pensado como potência para a desestabilização de práticas e de formas de produção de conhecimento instituídas na Psicologia. Nesse sentido, problematizam os modos como trilharam diferentes percursos teóricos e metodológicos, abordando os desconfortos ao deparar-se com seus limites e afirmando a pesquisa como uma relação ética de colocar-se em relação a outros atores e autores, que deve estar aberta ao encontro com o inesperado.
A perspectiva de que, a partir de uma crítica à ilusória condição de um pesquisador autoritário e solitário, a escrita acadêmica se encaminha, eticamente, a um encontro com a escrita de si, faz parte das indagações do artigo de  Gilead Tavares, intitulado “Pesquisa como Acontecimento: Exercícios de EscreverCOM”. O artigo retoma, criticamente, a perspetiva mecanicista de conhecimento que preside a compreensão da escrita no campo científico, sugerindo que a escrita pressuponha o próprio campo de pesquisa, dialogando com o que se chama de uma vivência institucional e a ferramenta da análise de implicações. Um novo desafio se coloca ao campo cientifico, não mais protegido em seu lugar de neutralidade e distanciamento em relação ao que se vivenciou na pesquisa. No artigo, critica-se a prematura unificação que se costuma operar sobre campos heterogêneos e complexos, dialogando-se com a categoria da transdução. A partir da artesania de diários de campo, no artigo se compreende a indissociabilidade entre a escrita e a própria realização da pesquisa.
Passando ao artigo de Irme Bonamigo intitulado “O texto científico como  laboratório de fabricação de mundo”, encontramos reflexões sobre a consequência de se considerar o texto científico como um  laboratório, inquietando-se com a suposta estática de textos que apenas informam, friamente, sobre dados preexistentes. Ao contrário, o artigo de Irme Bonamigo nos convida a compreender parte dos meandros em curso na composição de pesquisa sobre tecnologias de vigilância em Chapecó, Santa Catarina. O esforço da discussão se encaminha a analisar o quanto textos supostamente neutros sobre as tecnologias de vigilância naquele município deixam de considerar a produção de silenciamento e de neutralização dos vínculos vicinais entre moradores, por intermédio de uma busca angustiada pela supressão da violência e pela produção ininterrupta de imagens sobre o cotidiano de moradores. O propósito do artigo é acompanhar os processos em que se perfomam as posições de vigilantes e vigiados e a análise das visibilidades e invisibilidades que se elaboram por intermédio de tecnologias de escrita e de vigilância. No artigo, o próprio texto se torna campo de indagação.
Finalmente, chegamos ao artigo de Luciana Miranda e Lorrana Caliope Castelo Branco Mourão intitulado “ESCREVER COM: o que isso (re) significa?”, oportunidade para compreendermos que a escrita da pesquisa se encontra inserida na própria política da pesquisa. O artigo se encontra subsidiado em diferentes aspectos de pesquisa realizada pelas autoras, em que a arena de encontro entre pesquisadores, jovens, máquinas e escolas se traduz em um esforço ético e de escritura que permita acompanhar os sentidos e afetos que emergem na articulação de um campo. Defende-se a proximidade da escrita com o ensaio e o próprio inacabamento do texto, ao se recorrer a ferramentas da Análise Institucional e da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Ferramentas conceituais como exotopia e análise de implicações garantem um lugar privilegiado ao próprio ato de escrever, não reduzido à função de transmitir material que já estaria formatado, antes da composição de arenas, diálogos, lugares enunciativos e políticas que incidem diretamente na própria relação do pesquisador com a vida e com o mundo.
A heterogeneidade de temas dialoga, no presente dossiê e na própria sustentação  do grupo de trabalho, com apostas teórico-metodológicas e a defesa de um lugar enunciativo que não está, de modo algum, apartado da política de produção de conhecimento. A diversidade se submete a um exercício reflexivo de grande importância para o grupo, já que os modos de escrever convergem com a concepção de objetos de estudo e os próprios processos de subjetivação em que pesquisadores e pesquisados se encontram e se constituem. Como já apontado anteriormente, nos textos ora apresentados, afetos, textualidades, epistemologias, estéticas e éticas nos ajudam a tecer pragmáticas de escrita que revelam esforços coletivos para a composição de práticas de pesquisa atentas ao seu próprio tempo.

Anita Guazzelli Bernardes
Marcelo Santana Ferreira
Simone Maria Hüning

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