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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

A Escrita como Laboratório

 

Writing as Laboratory

La escritura como laboratório

   

 

Ronald João Jacques ArendtI

I Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este texto busca num primeiro momento ressaltar a importância do laboratório no que Bruno Latour chama de "humanidades científicas" e sua vinculação por um lado com a oficina do artesão e por outro com as tecnologias intelectuais. Num segundo momento o foco será a escrita de um trabalho de pós-graduação, sua relação com o trabalho de campo e a necessidade desta escrita bem representar os dados do campo do pesquisador. Entretanto esta escrita somente amadurecerá num laboratório que toma a forma de uma oficina da escrita, de um coletivo de pesquisadores coordenada por um orientador que surge como um mestre artesão padeiro que indica os caminhos possíveis aos alunos para que eles 'ponham a mão na massa'. Será nesta oficina que o texto será lido, relido, revisto, reavaliado, reescrito. Nesta abordagem a teoria e a prática ganham um sentido novo. O ensaio finaliza com considerações sobre a prática da escrita.

Palavras-chave: Laboratório; Escrita; Oficina da Escrita.


ABSTRACT

This paper foregrounds the importance of the laboratory in what Bruno Latour calls 'scientific humanities', linking it on the one hand with the artisan's atelier and on the other with intellectual technologies. The focus will be the production of a post-graduate written work, its relationship with field-work and the need for the text to adequately characterize the researcher's field data. However, a writing practice can only mature in a laboratory setting which takes the form of a workshop. Here, a supervising master-craftsman capable of orienting students through a hands-on approach coordinates a collective of researchers. In the workshop, texts are read, reread, revised, reassessed and rewritten. In this approach, theory and practice gain new meaning. The essay concludes with considerations on writing practice.

Keywords: Laboratory; Writing; Writing Workshop.


RESUMEN

Este texto tiene por objeto en un primer momento enfatizar la importancia del laboratorio en lo que Bruno Latour llama 'humanidades científicas' y que une por un lado con el taller del artesano y el otro con las tecnologías intelectuales. En segundo lugar el foco será el escrito de un trabajo de post-grado, su relación con el trabajo de campo y la necesidad de este escrito bien representar los datos de campo del investigador. Sin embargo este escrito solamente será maduro en un laboratorio que toma la forma de un taller de escritura, un colectivo de investigadores coordinados por un supervisor que aparece como un maestro panadero artesano indicando posibles caminos a los estudiantes para que 'pongan sus manos en la masa'. En este taller el texto será leído, releído, revisado, reevaluado, reescrito. En este enfoque, la teoría y la práctica adquieren un nuevo significado. El ensayo concluye con consideraciones sobre la práctica del escrito.

Palabras-clave: Laboratorio; Taller; Taller del Escrito.


 

 

Ao final da reunião regional do Grupo de Trabalho Tecnologias e Modos de Subjetivação da ANPPEP, ocorrido em meados de outubro de 2014 na UFES, em Vitória, saímos com encomenda de redigir um texto para um novo encontro do grupo em maio de 2015, cujo tema era a escrita, mais precisamente a 'escrita com'. Meu projeto, naquele momento, era aprofundar a discussão que havia iniciado em nosso livro coletivo (Guazzelli, A.,Marchezi,G. & Moraes,M., 2014), no qual, ao propor um olhar barroco na produção científica, questionava a demanda, a meu ver um tanto exagerada, que recai sobre os docentes pesquisadores da produção de um grande número de publicações em revistas especializadas (Arendt, 2014). Influenciado pelas análises de Isabelle Stengers havia decidido focar o meu texto no que ela chama de "desaceleração das ciências" (Stengers, 2013). Em recente entrevista Stengers falava da importância de não apressar as coisas, cada passo sendo por si só importante, cada passo precisando ser cuidado, nunca instrumentalizado tendo em vista o próximo passo. Nunca deveríamos nos esquecer que estamos em movimento, nunca nos apressando neste movimento, em nome do fim a ser atingido, olhando com atenção aos desenvolvimentos muito interessantes presentes em cada passo. (Stengers, 2012, p. 3). Minha ideia era pensar a desaceleração necessária à leitura, releitura, escrita e reescrita de textos acadêmicos.

Ainda que o meu objetivo inicial não se houvesse modificado (continuava interessado em redigir um trabalho que focasse na desaceleração da nossa escrita acadêmica) minha trajetória sofreu um desvio com a leitura de um livro particularmente importante a que tive acesso no decorrer do meu semestre sabático (de janeiro a julho de 2015 usufrui de um semestre sabático na Universidade de Liège, na Bélgica e na Universidade Paris 8, em Paris, França.): o ensaio de Bruno Latour intitulado Cogitamus (Latour, 2014a).

Já havia lido a versão do Cogitamus editada pelo editorial Paidóz em 2012, mas a leitura da edição francesa atualizada (o original é de 2010) permitiu captar ao mesmo tempo o rigor do autor no tratamento dos seus temas e o seu humor, um pouco obscurecido na versão castelhana. O livro é constituído por seis cartas, dirigidas a uma aluna alemã que não pode comparecer a um curso seu sobre 'humanidades científicas'. Este dispositivo de escrita permite a Latour expor e precisar todo um conjunto de argumentos caros aos estudos científicos: o vínculo entre ciência e política, entre ciência e técnica, a importância das controvérsias, "a sinuosidade das ações coletivas" (Latour, 2014a, p. 35) (O título do livro é uma provocação a Descartes: Latour coloca no plural o Cogito cartesiano. Melhor dizendo, eu não penso, logo existo, mas nós pensamos, logo existimos). O que chama entretanto a atenção é o papel central que ele dá ao laboratório em seu ensaio. Na terceira carta ele declara seu amor por eles:

Eu amo os laboratórios! Eu juro que meu coração verdadeiramente palpita quando eu entro, ainda que por um minuto, num laboratório de qualquer disciplina que seja. Não há nada mais apaixonante, mais emocionante. Eu vibro, eu compreendo, eu conheço. É verdade que foi lá que tive minha primeira experiência - não como prático (eu era um deplorável laboratorista...), mas como etnólogo, e foi lá que eu aprendi a amar as ciências. À minha maneira, com certeza, mas um amor verdadeiro. Sim, eu creio que compreendo o que é a libido sciendi. Eu me sinto cada vez como Arquimedes forçado a sair nu de minha banheira gritando: Eureka! Deem-me um laboratório e eu levantarei o mundo" (Latour, 2014a, p. 94, tradução do autor).

O que seria um laboratório? Ele é um amálgama de diferentes tradições, responde ele. Por um lado ele provém da oficina do artesão.

É na oficina, desde o fim do neolítico que se transformam as matérias nas mãos cada vez mais hábeis de artesãos cada vez mais especializados - a argila, os metais, o vidro, a madeira, os tecidos, o couro, os alcoóis. Submetidos ao fogo, à pressão, à mistura, ao estiramento, à fermentação, eis que cada ser do mundo perde sua aparência para tomar uma outra. A lista das qualidades que definiam a areia ou a argila se encontra totalmente transformada: a areia aquecida se torna vidro transparente; a argila se torna cerâmica; o suco de uva se torna bebida forte (Latour, 2014a, p. 125, tradução do autor).

Por outro lado, o laboratório provém também dos locais distantes "onde por milênios se inventaram o que poderíamos chamar de tecnologias intelectuais... capazes de metamorfosear atividades 'concretas' em atividades 'abstratas' e transformar pouco a pouco cérebros ordinários em cérebros de sábios!" (Latour, 2014a, p. 126).

Assim, por exemplo, "à condição de manter arquivos, de conservar no escritório, como na escola a disciplina rigorosa dos escribas, será possível obter do cérebro, sempre no interior da esfera protetora de um local fechado, capacidades de cálculo sem precedentes" (Latour, 2014a, p. 127). Cercado de colegas e arquivos o indivíduo aprende a manipular materiais frágeis cobertos de inscrições. Como definir então o laboratório? "Creio que eu não simplificaria muito dizendo que ele é um 'cadáver requintado', o encontro improvável entre uma oficina e uma tecnologia intelectual" (Latour, 2014a, p. 129). Vale ressaltar que Cadavre exquis, no original, é uma expressão advinda da arte surrealista e que consiste num jogo no qual diversas pessoas compõem uma frase ou desenho sem que nenhuma delas saiba das colaborações precedentes. É neste encontro improvável que se produzem saberes.

Nenhum saber seguro sem se retirar da ágora, sem passar pelo laboratório onde se fecharam cuidadosamente as portas para se ter simplesmente o tempo de pensar e mostrar, às vezes durante muito numerosos anos, as experiências pertinentes até que se tenha acumulado um saber suficientemente fino e especializado. Mas, o mesmo tempo ... impossível permanecer no laboratório.... É preciso sair para convencer outros colegas, interessar financiadores, industriais, ensinar estudantes, satisfazer o apetite de conhecimento do público. De volta à ágora (Latour, 2014a, p. 163, tradução do autor).

Há aqui uma grande proximidade com o texto citado de Stengers (2013) sobre a importância do tempo na atividade científica. Há que desacelerar. "...mergulhados numa contradição é preciso não sair dela muito rápido" (Latour, 2014a, p. 16).

Já ia desenvolver minha temática a partir do laboratório, quando sobreveio o segundo desvio da minha trajetória: a leitura da obra coletiva intitulada "O efeito Latour. Seus modos de existência nos trabalhos doutorais" (Tollis, C., Créton-Cazanave, L. & Aublet, B., 2014). Trata-se de uma edição originalíssima na qual um conjunto de pesquisadores e recém doutores avaliam e analisam o efeito que a obra de Latour exerceu sobre a escrita de suas teses. Não caberia, neste trabalho, comentar os efeitos, aliás muito interessantes, relatados pelos jovens doutores. Vou comentar trechos do posfácio redigido por Bruno Latour para o livro. Entre surpreso e feliz descubro que o seu teor trata especificamente da questão que projetei discutir neste artigo, dirigida à escrita doutoral. Em páginas primorosas Latour descreve os detalhes que envolvem a escrita científica do ponto de vista da teoria do ator-rede.

Latour inicia seu postfácio comentando que nunca considerou muito adequada a expressão dirigir uma tese (a expressão francesa diriger une thèse equivale à nossa orientação de tese) ou a de ser um diretor de tese - ele antes segue as teses feitas por seus alunos num laboratório ou num grupo de pesquisa. Na orientação de teses é a relação de mestre a aprendiz a que Latour prefere, pois além de evitar a doença da dependência, "ela tem o odor da padaria ou da cozinha, em todos os casos, do artesanato" (Latour, 2014b, p. 306). O termo mestre não assinala de forma alguma que ele ou ela tenham o direito de exercer qualquer poder sobre um outro humano, mas que, no seu assunto ele ou ela não cometem os erros de um debutante. (...) . Esta relação de aprendizagem me parece mais sadia que todas as outras: eu fiz uma dúzia de livros e alguns anos de campo, eu creio poder mostrar a vocês como vocês podem redigir os seus e orientar vocês em seus próprios campos. Mas o que vocês farão não depende senão de vocês (Latour, 2014b, p. 306, tradução do autor).

 

Como a teoria entra nesta orientação?

As teorias circulam, com efeito, sem esforço, mas elas não têm, em nossos domínios, nenhum sentido, se elas não conseguem fazer uma diferença na maneira de abordar o campo e, principalmente se elas não conseguem fazer os doutorandos escreverem diferentemente (Latour, 2014b, p. 307, tradução do autor).

A teoria não tem maior sentido se ela não desaparece inteiramente em outra forma de trabalhar a matéria dos dados,qualitativos ou quantitativos. Latour pondera que sempre preferiu os trabalhos que não falam de forma alguma de teoria, "mas que, por utilizar coisas que eu e meus colegas puderam escrever permitem ver o que, com certeza, não  teria jamais aparecido sem a leitura de tais escritos" (Latour, 2014b, p. 307).

Tudo se passa como se o trabalho teórico tivesse necessidade de um "serviço pós venda" para "montar", manter ou reparar o uso dos conceitos em cada oficina doutoral, segue analisando Latour (Latour, 2014b, p. 308).

O que é verdade numa máquina de lavar louça o é ainda mais quanto a um conceito: é necessário ir junto ao comprador e ajustar a máquina no lugar preciso onde ela vai funcionar, na condição de todas as redes estarem no lugar. O que é verdade no trabalho de aquisição de dados, o é ainda mais no trabalho da escritura. Ainda que existam alguns manuais para ajudar os doutorandos de ciências sociais a terminarem suas teses, não é evidentemente com um manual que se pode resolver a questão. Tente obter o certificado de garagista ou padeiro pela leitura de um manual! (Latour, 2014b, p. 308, tradução do autor).

Latour insiste então na importância de uma oficina de escritura de teses (infelizmente totalmente deficiente, segundo ele, na formação em ciências sociais e humanas).

Quando eu digo 'escritura' eu não digo 'discutir' o que seria necessário escrever se mais se tivesse lido, pensado ou passado mais anos no campo; eu não falo também dos 'debates de ideias' a propósito de 'posições teóricas' de uns e de outros; e, ainda menos, desta coisa horrível, infelizmente sempre ensinada, que se chama 'metodologia e epistemologia das ciências sociais... Não, eu falo do equivalente da preparação de uma massa de torta ou a desmontagem de um motor feita por um aprendiz com um mestre às suas costas" (Latour, 2014b,p. 308, tradução do autor).

Supõe-se que a escritura em ciências sociais passa de uma geração a outra pela operação do Espírito Santo, desabafa Latour. Jamais alguém ensina a um aluno o que é uma frase, uma vírgula, um parágrafo, um capítulo, um plano. Jamais alguém mostra a ele por qual lento deslizamento dados ditos 'brutos' tornam-se 'pensamentos' e 'argumentos', isto é, sempre desenvolvimentos de textos. Jamais alguém indica a ele como fazer fichas e tornar a tratar os dados.

Se esta parte é o objeto de inúmeras apresentações em 'métodos quantitativos', ela é totalmente ausente em 'métodos qualitativos'. Cada doutorando deve aprender por si só o que é escrever uma tese, um pouco como cada um, antigamente, era suposto de descobrir por ele mesmo os complicados assuntos do sexo (Latour, 2014b, p. 309, tradução do autor).

Este aprendizado não pode ser feito na teoria ou na imaginação. Só se pode fazê-lo de verdade e, principalmente, coletivamente, conclui Latour.

Escrever, com efeito, em todos os casos escrever "ciência" e não "literatura" ou "arte", supõe que se invente um coletivo de contra-leitores que participem com você à elaboração do trabalho (contra- leitores que simulem com você a futura banca e, eventualmente os futuros leitores). Este trabalho coletivo não se pode fazer senão com a condição de não se estar só em seu quarto olhando a tela do seu computador esperando que os dados vão terminar por entrar no "quadro teórico" do laboratório a que se pertence. É preciso jogar junto nesta espécie de "terreno arenoso" que é a oficina de escritura de teses, remexendo em conjunto os capítulos, planos, parágrafos e dados brutos uns com os outros. O único meio de escapar à doença do doutorando: encontrar-se só diante de seus dados vendo seu orientador uma vez de tempos em tempos e se imaginando que se trata aí de um mundo único e inteiro (Latour, 2014b, p.309, tradução do autor).

Para Latour o trabalho de escritura é importante na medida em que é inútil falar da teoria se não modificamos a maneira pela qual nos damos conta da coisa da qual falamos, isto é, é necessário ser justo com os dados.

Ora, não se é jamais justo ao campo no primeiro lance. Não se faz mais do que aplicar o campo os pressupostos de saída, os clichês, ou pior, os princípios do método que se acredita dever tirar das "posturas teóricas" aprendidas no curso de "metodologia". Graças ao argumento emprestado da epistemologia de que o pesquisador deve "construir seu objeto", todos as desorientações são de avanço justificadas. Daqui que os informantes, as descrições de campo, os documentos diversos, a experiência mesmo da pesquisa consigam se extrair destes magmas de pressupostos, o projeto de pesquisa alocado ter-se-á rapidamente esgotado. Daí, ainda, a importância de trabalhar em comum a massa comum da escritura" (Latour, 2014b, p. 310, tradução do autor).

Em trinta anos de oficina de escritura de tese, observa Latour, ele aprendeu que, em geral, o autor escreve de início um texto sem relação com o que ele quer dizer.

Os autores acreditam todos ter dito alguma coisa que o texto, por uma lenta deriva, transportou para outro lugar completamente... É no fogo do trabalho coletivo sobre o texto (e não sobre as ideias do texto) que o autor se apercebe pouco a pouco desta imensa distância e que o texto pode, em seguida, ser corrigido, reescrito, recuperado. Escrever é, por definição, reescrever. Mas não se pode reescrever se se está só diante do seu texto e só com seu assunto ou só com seu orientador. Para alcançar a verdadeira escritura de tese, isto é, encontrar um dispositivo textual que esteja em adequação exata e única a seu objeto, é necessário um grande tempo de reescritura. De onde a surpresa do autor que se apercebe no fogo da oficina que é defendendo seu texto que ele diz, enfim, mas oralmente, o que o texto 'queria dizer' mas 'não o dizia'. De onde esta sugestão do professor dita em tom suave ou paternal: 'mas, prezada senhorita ou senhor, porque não colocar em seu texto o que você vem de nos dizer tão bem e que não se encontra lá de forma alguma?' Para obter um tal efeito, é preciso uma prova que apenas o trabalho de grupo permite, até mesmo ao objeto do texto. Mas aqui ainda, é bem difícil fazer compartilhar à distância esta mistura coletiva de uma matéria textual na qual se encontra realizada, de fato, a teoria (Latour, 2014b, p. 311, tradução do autor).

O termo que traduzi por "mistura" no original é "malaxage" que também pode ser associado à atividade de amassar a massa do pão.

 

Comentário

Há uma evidente continuidade entre os dois trabalhos citados de Latour. Para além da sua paixão pelos laboratórios, o que chama a atenção nos textos é sua associação a uma oficina onde matérias são transformadas pelas mãos hábeis dos artesãos, onde o mundo vai adquirindo outra aparência e novas qualidades. Essencial é a comparação de Latour do coordenador de um grupo de pesquisa (pensado como um laboratório num coletivo que assume a forma de uma oficina de escrita) com um mestre artesão presente numa oficina na qual se sente odor da padaria ou da cozinha onde, se põe a mão na massa (penso que esta frase exprime melhor, em português, a ideia da preparação da massa): é ali, no trabalho coletivo do grupo de pesquisa, com a presença do orientador (que, por ter mais experiência efetivamente aponta os caminhos, orienta quais seriam os mais fecundos e quais poderiam evitar os erros do debutante) que o trabalho de campo se transforma em textos científicos.

Para alguém como eu, que quando jovem foi artesão e hoje orienta alunos de pós-graduação (e também aprecia cozinhar e fazer pão) a comparação do orientador com o artesão numa oficina é da maior pertinência (e também a identificação com o autor): meus orientandos seguem o trajeto descrito por Latour. Seus projetos são transformados de forma recorrente a partir do sua ida ao campo, no contato comigo e com seus pares, num trabalho sempre coletivo. Sua escrita, na medida em que ela está estreitamente vinculada ao laboratório, à pesquisa empírica, enquanto dispositivo textual em adequação exata e única a seu objeto e sensível às transformações por eles vividas, torna-se uma constante releitura que os obriga a sucessivas reavaliações. É neste processo que seu texto será corrigido, reescrito, recuperado. Escrever será, por definição, reescrever.

O tratamento que Latour dá à teoria (sem dúvida, uma tecnologia intelectual) também me parece também especialmente relevante para a questão da escrita: de nada serviria uma teoria, inserida num projeto, se ela não permitisse ao aluno ver com outros olhos o que ele não veria não fosse a teoria. A escrita do pós-graduando será também a expressão das possibilidades abertas pela teoria. É por isso que é impossível permanecer no laboratório: a escrita será o tornar público de uma inscrição efetuada a partir dele, mas é preciso convencer outros colegas, é preciso voltar à ágora. A questão não é portanto escrever muito ou pouco (de novo a questão da produção do pesquisador), mas a de tornar acessível aos outros um texto que traduza o trabalho de campo efetuado.

Entretanto, esta objetividade, duramente adquirida, para que aconteça, necessita um grande tempo de reescritura (de novo, a questão do tempo).

Procurei, neste artigo, ressaltar a importância da escritura e da reescritura de trabalhos de pós-graduação a partir das considerações de Bruno Latour e que se adéquam perfeitamente ao movimento deste GT de EscreverCom. Não entrei, porém, no problema da prática da escritura, das dificuldades que o autor têm de enfrentar para trazer para o texto sua experiência no campo e no laboratório. Em um dos capítulos do livro organizados por Tollis, Créton-Cazanave & Aublet (2014) um dos autores, Jérémy Damian (Damian, 2014), analisa a dificuldade e a complexidade desta tarefa, o quanto "escrever consiste em transformar, deslocar, traduzir" (Damian, 2014, p. 235) e de como esta escrita "deve produzir uma diferença no mundo" (Damian, 2014, p. 235). Daí seu fascínio por autores como Roland Barthes, Michel Leiris, Donna Haraway e Bruno Latour que, ao se dedicarem a explorar esta prática da escrita se abriram para o plural das escrituras científicas (se afastando da escritura científica) e "fizeram deste plural um dos objetos e desafios da pesquisa" (Damian, 2014, p. 226). Como não há como aprofundar este tema no curto espaço deste ensaio, finalizo com uma citação de Damian que, como aluno de Latour, participou das suas oficinas de escrita, na universidade Sciences-Po, em Paris. O trabalho de campo de Damian foi com a dança contemporânea e o trecho a seguir sintetiza com precisão este movimento plural da escrita:

Num primeiro movimento a escritura traduz, produz, transforma; num segundo ela reúne, coleta e conecta, num mundo comum. Se fosse preciso encontrar uma justificativa à questão colocada 'porque escrever'? uma resposta possível consistiria dizer: para poder tornarmo-nos capazes de 'trazer à cena' um máximo de actantes possível: humanos, não humanos, animais, bactérias, seres invisíveis, djinns, deuses, 14 mortos.... E, no que tange à dança, a lista é longa: solo, ar, órgãos, respiração, líquidos do corpo, sensações, parceiros humanos, música, qualidades atmosféricas do estúdio, sistema nervoso, olhos, pele, peso, gravidade, etc. A escritura é um instrumento de composição para um mundo cosmopolítico (Damian, 2014, p. 242, tradução do autor).



Referências

Arendt, R. J. J. (2014). Aos prezados colegas da Comissão de Avaliação dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia da CAPES. Em: Anita Guazzelli Bernardes; Gilead Marchezi Tavares: Marcia Moraes. (Orgs.). Cartas para pensar Políticas de Pesquisa em Psicologia. 1ªed.Vitória: EDUFES, p. 107-115.         [ Links ]

Damian, J. (2014). La plume sans le masque. L'écriture affectée de Bruno Latour. Sociologie(s) en première personne. Em: Clair Tollis; Laurence Créton-Cazanave; Benoit Aublet (Org.) L'effet Latour. Ses modes d'existence dans les travaux doctoraux. Paris, Éditions Glyphe.         [ Links ]

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Latour, B. (2014b). L'influence est un risque. Postface. Em: Tollis. C, Créton-Cazanave, L.& Aublet, B. (Orgs.) L'effet Latour. Ses modes d'existence dans les travaux doctoraux. Paris, Éditions Glyphe.         [ Links ]

Stengers, I. (2012). Ecosophical Activism - between micropolitics and micropolitics. A converation on responsibility between Henk Oosterling and Isabelle Stengers. Recuperado em 20 de abril de 2014 de: http://www.svtuinen.nl/svt_files/Documents/ddrdamconversationhois.pdf.         [ Links ]

Stengers, I. (2013). ). Une autre science est possible! Manifeste pour le ralentissement des sciences. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, La Découverte.         [ Links ]

Tollis, C, Créton-Cazanave, L. & Aublet, B. (2014) Orgs. L'effet Latour. Ses modes d'existence dans les travaux doctoraux. Paris, Éditions Glyphe.         [ Links ]


 

Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 


I Psicólogo Social. Professor Titular em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UERJ. E-mail: arendt.ronald@gmail.com

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