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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência

 

Storytelling, populate the world: academic writing and the feminine in science

Contar historias, poblar el mundo: la escrita académica y lo femenino en la ciência

   

 

Marcia MoraesI e Alexandra C. TsallisII

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

II Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo problematiza a escrita do trabalho acadêmico. Toma por base o argumento de que a escrita é parte inerente à investigação e, a partir das considerações de Haraway (2008, 1995), Mol (2008) e outras autoras, afirma a escrita como prática situada e marcada. Com a diretriz de método pesquisarCOM, argumenta que contar histórias é uma das formas de relatar a pesquisa. No campo da deficiência visual narrar histórias encarnadas de ver e não ver permite colocar em xeque versões únicas e desencarnadas da deficiência como falta ou deficit. O artigo propõe  outras gramáticas para o trabalho acadêmico e afirma o feminino na ciência como um modo de marcar o conhecimento, isto é, de tornar explícitas as mediações que fazem possível o conhecer.

Palavras-chave: Escrita Acadêmica; PesquisarCOM; Contar Histórias; Deficiência Visual.


ABSTRACT

This paper problematizes academic writing by arguing that writing is an inherent part of research. Based on considerations of Haraway (2008, 1995), Mol (2008) and others, we posit that writing is a sited and marked practice. In agreement with embodied perspective researchWITH methodology guidelines, we postulate that storytelling is one way of relating research. In the field of visual disability, to narrate embodied stories of seeing and non-seeing allows the researcher to question disembodied versions of disability as lack or deficiency. We propose other grammars for academic work and affirm that the ‘female’ take on science is a way of marking knowledge, of rendering explicit the mediations that make knowledge possible.

Keywords: Academic Writing; ResearchWITH; Storytelling; Visual Disability.


RESUMEN

Este artículo problematiza la escrita del trabajo académico. Tomando por base el argumento de que la escrita es parte inherente de la investigación. Con base en las consideraciones de Haraway  (2008, 1995), Mol (2008) y otras se afirma la escrita como práctica marcada y situada. A partir de la directriz del método pesquisarCON se argumenta que contar historias es una de las tantas formas de relatar una investigación. En el campo de la deficiencia visual narrar historias de ver y no ver permite colocar en cuestión versiones únicas de la deficiencia como falta. Dicho artículo finaliza proponiendo otras gramáticas para el trabajo académico, afirmando lo femenino en las ciencia como un modo de dejar huellas en el campo del conocimiento, esto es, tornar explicitas las mediaciones que hacen posible el conocer.

Palabras-clave: Escrita Académica; PesquisarCON; Contar Historias; Discapacidad Visual.


 

 

Da porta da cozinha minúscula, espio a empregada escutando a novela de rádio em pranto soluçado. (...) Pergunto a ela por que chora tanto, e ela me conta, fungando, as desventuras de uma mulher linda, doce e loira que é amada por um homem belo, forte e corajoso. Alguém bem malvado tenta separá-los. E por isso ela chora. (…) Aquela moça, que tinha uma vida tão dura (…) soluçava por uma mulher que morava dentro do rádio. Pressenti ali o que só racionalizaria muitos anos depois: o poder da história contada. (Brum, 2014, ebook, posição 195).

As palavras rastejaram para dentro de minhas orelhas com suas unhas compridas, raramente limpas, e me contaminaram para sempre. Foi ali que comecei a me tornar uma escutadeira que conta. E conta. Para contar. (Brum, 2014, ebook, posição 257)


Questões iniciais

Escrever é parte inequívoca da vida de pesquisadores. A pesquisa se tece com muitos elementos, entre os quais destacam-se os escritos: são artigos científicos, rascunhos, cadernos de campo, teses, dissertações, memoriais, relatórios, comunicações, painéis, uma infinidade de textos e mais textos, sem os quais a investigação não se espraia, não alcança interlocutores, não recebe críticas, não faz laços e nem divulga seus resultados. Não temos dúvida de que a ação de escrever, no cenário da pesquisa, não é tarefa simples. O que inserir no texto? O que deixar de fora? De que modo escrever, com que elementos, com que estilo? São questões que atravessam o cotidiano de todos nós, pesquisadores e pesquisadoras que já há algum tempo suspeitamos de que não há relação especular, linear, entre o que se escreve e o que se experimenta na pesquisa. O que se passa pois entre esses momentos? São mesmo dois momentos?

Situamos a escrita desse artigo no conjunto de tais questões, circunscrevendo um problema específico: que gramáticas para a escrita acadêmica? Colocamos o substantivo “gramáticas” no plural justamente porque  afirmamos que não há uma só gramática a definir o que é uma “escrita acadêmica e científica”.  São gramáticas, cujas regras são desenhadas na imanência de cada pesquisa, em função das singularidades dos métodos e objetos de investigação.

Donna Haraway (1995)1 sublinha que a escrita acadêmica é, muitas vezes, marcada por um certo “olhar de deus”, isto é, um estilo de pensamento que se apresenta como um olhar desencarnado, deslocalizado. Olhar que, de longe, de sobrevoo, se lança sobre o outro, colocado no lugar do seu objeto. Olhar que se pretende não mediado. Olhar que opera pela distância e pela separação: aqui o sujeito que conhece, com suas razões, lá o objeto a ser conhecido, ele próprio, na ignorância. A separação e o corte são as metáforas por excelência deste modo de conhecer, é preciso separar sujeito de objeto, razão de sensibilidade, ciência de política, conhecimento científico de literatura. Para a autora, a ferramenta por excelência deste conhecimento é a navalha, afiada num cientificismo que se faz presente em muitos momentos do nosso cotidiano de pesquisa: quando da submissão de um projeto de pesquisa a uma agência de fomento, quando do envio de um artigo a uma revista científica, quando das inúmeras exigências de revisão do texto para torná-lo mais e mais objetivo, quando das exigências de que o texto necessariamente se divida em partes como a introdução e depois, só depois, o método. Neste cenário, é esperado que o relato acadêmico seja o produto de tais cortes e separações e o que se escreve não é senão o efeito dos mais diversos processos de purificação e de separação entre, de um lado, o dado objetivo e, de outro, o que fica no lugar da sobra, do resto, do que não faz texto.

Lembramo-nos da escrita de um texto, assinado por uma de nós, tempos atrás. Nele eram narrados alguns mal entendidos que marcaram os encontros com as pessoas com quem pesquisamos, pessoas cegas e com baixa visão2. Para tanto, lançávamos mão de algumas narrativas. O parecer que recebemos logo classificava o texto: era um estudo de caso e como tal deveria ser organizado por partes predefinidas. Introdução. Método. Amostra, dividida em caso 1 e caso 2. Resultados. Conclusões. Bibliografias. Pronto! Era preciso revisar o texto todo porque ele havia sido escrito em outro estilo, que como dizia o parecer em tom de objeção, era muito literário.

A pesquisadora Josselem Conti (2014) salientou que a imposição de um estilo universal de escrita para os trabalhos acadêmicos corre o risco de produzir uma única história: no afã de purificar seu relato das impurezas do mundo, o pesquisador acaba por produzir relatos repetitivos, frios e desinteressantes (Despret, 2004), sempre relatos com a introdução, método, amostra, caso 1, caso 2, resultados, conclusões, bibliografia. O estilo da escrita, mais do que estar em consonância com as exigências próprias ao método da pesquisa, passa a estar submetido a uma única concepção de escrita, aquela que recebe a insígnia de científica. Curioso notar que as discussões acerca da dispersão de método e objeto na Psicologia não são recentes. Ora, se muitos autores, entre os quais nos incluímos, defendem como positiva tal dispersão, por que não considerarmos como positiva e necessária a dispersão dos estilos de escrita para o trabalho acadêmico?

Ao problematizar este assunto, Conti (2015, 2014) acompanha a nigeriana Chimamanda Adichie (2009) e nos alerta para os perigos das únicas histórias3. Tais histórias guardam de antemão os lugares nos quais os outros devem se encaixar. São únicas no sentido que se dá ao “tamanho único” como unidade de medida supostamente universal, adequada a todos os tipos de corpos. São formas de classificar e de categorizar os outros que não lhes oferecem oportunidades de se reinventarem. As únicas histórias, por serem repetitivas, empobrecem o mundo. Adichie (2009) nos faz ver, com delicadeza e precisão, como somos herdeiros das únicas histórias. Filha de uma família de classe média, Adichie convivia com Fide, oriundo de família pobre. Sua mãe sempre a advertia que Fide era bem pobre, não tinha o que comer. Era tudo que ela conhecia de Fide. Sua pobreza extrema. Era uma única história. Um dia, ao visitar a casa do menino, Adichie fica surpresa de ver um lindo cesto feito por sua família. Eles eram criativos, habilidosos! Isso ela não podia esperar, nem sabia que era possível. As únicas histórias apagam mundos, fazem desaparecer possibilidades de vida, de existências. Elas povoam o mundo com repetições do mesmo.  Assim como os “tamanhos únicos” das roupas apagam as especificidades e modulações dos corpos, as únicas histórias apagam a singularidade de cada história, sua diferença.

A convocação que nos faz Adichie (2009) é interessante porque  sinaliza que a única história é uma forma de pensar, uma forma de povoar o mundo com a qual vamos sendo feitos, seja na filosofia, na literatura, na vida cotidiana, na ciência. Tal convocação não é diferente da que nos faz Haraway (1995) quando pergunta, provocativamente, dirigindo-se aos cientistas: com o sangue de quem foram feitos os teus olhos? A pergunta de Haraway (1995), forte e desestabilizadora, sinaliza que na ciência todo olhar é situado, tecido a partir de conexões e mediações que fazem certos mundos visíveis e deixam outros na sombra. Assim, para a autora, só é possível conhecer a partir de algum lugar e a concepção de uma objetividade descorporificada não é senão uma falácia, uma falácia nada inocente. Que mundos puderam existir quando as narrativas viraram amostra? Quando alguém virou o caso 1? E o outro alguém, o caso 2?

Assim, enquanto o texto acadêmico for escrito na gramática do “olhar de deus” ele não cessará de reinstalar a única história na ciência, a história da separação, do corte, da purificação. E mais do que isso, a história de uma certa forma de poder que impõe ao outro uma única existência. Adichie (2009) lança mão de uma palavra de sua língua para indicar este poder sobre o outro: nkali. É um substantivo traduzido por: “ser maior do que o outro”. Nkali está presente nas histórias que narramos sobre os outros, no modo como elas são contadas, nos lugares, nas cenas, nas pessoas que elas descrevem, no direito de fala dado a uns e não a outros, no quando e onde contar uma história, em tudo isso há relações nkali. “Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa” (Adichie, 2009, p.3).

No percurso de pesquisa que temos trilhado assumimos, justamente, o compromisso de fazer pequisa COM o outro e não SOBRE o outro (Moraes, 2010). E uma das formas de prolongar e levar adiante o que a preposição COM coloca em cena na pesquisa é seguirmos as convocações de Conti (2014, 2015), Adichie (2009) e Haraway (1995), isto é, fazermos incidir a preposição COM na própria escrita acadêmica. É parte deste processo a busca por outras gramáticas, elas próprias corporificadas, mediadas, não puras. A escrita na ciência está longe de ser o simples relato dos resultados de uma pesquisa. Ela é antes, uma forma de povoar o mundo. Uma forma de fazer mundo.

Que outras gramáticas para o texto acadêmico?

No campo das pesquisas na área da deficiência visual o escreverCOM abre desafios interessantes e necessários. No encontro com as vidas das pessoas que passam pela experiência de não ver não foram poucas as vezes que ouvimos4 relatos de uma narrativa que faz da deficiência uma tragédia pessoal, um deficit. As concepções piedosas e misericordiosas da deficiência se inscrevem nas vidas das pessoas que não veem, marcando sulcos oriundos de uma opressão que exclui e marginaliza com o gesto da compaixão.

Maria5, era o nome dela. Chegava para os encontros da pesquisa sempre falante, subia as escadas já falando, comentando o seu dia anterior e mais tantas e tantas coisas acontecidas, que nos perdíamos com ela pelas palavras. Contou-nos que ao cegar, há dois anos atrás, perdeu mais do que a visão. Perdeu amigos e o marido que se foi para não ficar com uma cega. Era difícil, ela dizia, bem difícil. (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

Ah, eu fico com raiva quando alguém fala “coitadinho do ceguinho”. Ou quando estou com minha mãe e as pessoas falam com ela e não comigo. Eu sou cego, ora bolas! Falo, penso, me comunico como todo mundo. As pessoas acham que só porque sou cego não tenho cérebro! Nos disse um jovem que tinha por volta de 18 anos e havia cegado há pouco mais de um ano quando nos encontramos.  (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

Diadorim nos disse uma vez que queria morar no IBC6. Ele tinha baixa visão, estava com 13 anos quando nos encontramos. Contou-nos que no IBC ele era “o cara”, todo mundo perguntava para ele onde fica isso, onde fica aquilo e ele sabia informar tudo. Mas lá onde ele morava, na Rocinha, as pessoas ficavam zoando dele, dando cascudo, dizendo: olha lá o ceguinho!  (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

Não são raros os autores que tecem a história desta narrativa da tragédia pessoal, assim como não o são aqueles que se levantam contra ela e com eles, fazemos coro (Franco, 2013; Manso, 2010; Rodrigues, 2013, Moraes e Kastrup, 2010). E justamente uma das formas de se levantar contra esta narrativa hegemônica da deficiência como falta, como tragédia, é operar sobre a escrita dos trabalhos acadêmicos acerca da deficiência. FazerCOM os outros a escrita do texto envolve algumas formas de manejo da preposição COM e uma delas é o contar histórias, muitas histórias.

E era a Maria que no meio das suas muitas falas, nos contava das conquistas que fazia, dia após dia. Numa bela manhã saiu de casa com sua bengala na mão. Toc toc toc, tinha medo ainda de andar sozinha, sabia no entanto que era preciso seguir a linha guia, era preciso ficar atenta ao que se passava na rua. E saiu à rua. Porque se não sair, vai fazer o que? Ficar em casa? E ela foi na casa da filha, que morava em outro bairro. Aqui e ali uma pergunta. Chegou bem, as aulas de bengala até que tinham sido boas.  (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

No encontro com a deficiência visual pudemos escutar histórias do cegar, múltiplas e heterogêneas. Histórias de pessoas que reinventam suas vidas a partir de um doloroso acontecimento que lhes chega de forma muitas vezes lenta e gradativa, outras vezes, de supetão. Se tomamos como certa e definitiva a narrativa da falta e do déficit, ficamos surdos às densas histórias que escutamos, de pessoas que aprendem a serem afetadas pelo mundo com muitos outros sentidos, que interrogam a centralidade de nossa visão com mundos táteis, sonoros, cheios de sombras e clarões, mundos odoríferos, mundos densos de sensorialidades. Nas narrativas que colhemos sabemos de pessoas que todos os dias se levantam contra um mundo que as exclui porque excessivamente visual, porque excessivamente enredado com uma única história da deficiência: aquela que a vincula a uma falta e logo a uma vida empobrecida. “Não tenho visão, tenho orientação, nos disse uma vez um senhor. Pelas curvas da rua, mais um quebra molas, já sei: desço do ônibus no próximo ponto!” (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

Maria nos ensinou com cuidado como raspar as pernas sem ver: com uma mão segura a lâmina, com os dois dedos da outra mão (os dedos médio e indicador) vai sentido se o pelo da perna está grande ou não. Uma mão vai raspando a perna enquanto a outra vai sentido onde está o pelo e vai guiando a direção para onde a lâmina tem que ir.(Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

E logo depois de sua fala, o contágio: alguém de longe diz que isso aí é bom também para fazer a barba sem ver. “Antes, quando eu enxergava eu tinha uma teoria, agora tenho que fazer outra teoria, resumiu um senhor ao falar sobre o cegar.” (Notas a partir dos diários de campo da Pesquisa Perceber sem Ver, 2004-2014).

Fazer outras teorias é que nos tem sido demandado pelo campo de pesquisa. E por isso mesmo seguimos a pista de Annemarie Mol (2008) quando salienta que os bons encontros empíricos inspiram teorias, isto é, inspiram modos de narrar afeitos ao que se passa no campo de pesquisa. Modos de narrar que possam, de algum modo, acolher e proliferar os encontros únicos que tivemos com a cegueira. Únicos tomados não no sentido de uma medida universal, mas no sentido de ímpar, singular, raro (Conti, 2015). E esses encontros se espraiam em nossas vidas uma vez que passamos a ser afetadas pelo cegar, por suas derivas, declinações, variações. É por isso que nos vem à lembrança uma cena vivida por uma de nós em um encontro com as muitas formas de ver e não ver. De braços dados com uma colega de trabalho, cega, nos perdemos pelos corredores do prédio onde estávamos para participarmos de um evento sobre inclusão, fora do Rio de Janeiro. “Ih, eu disse, não sei onde está a porta não, me perdi... E ela: deve ser de lá, e aponta uma direção. Ah é? Por que?, perguntei. Porque vem um vento daquela direção”.


Contar histórias

Contar histórias das vidas marcadas pela cegueira – contar muitas histórias – é uma das formas que o escreverCOM pode assumir. Porque neste caso o COM se faz no compromisso político e epistemológico que assumimos com os outros com quem pesquisamos. Compromisso de que faremos jus ao nosso encontro, de que lutaremos com eles para minar e colocar em xeque as narrativas não marcadas acerca da deficiência. O escreverCOM, neste caso, opera pelo laço, pelo vínculo, pela conexão tanto com as vidas marcadas pelas cegueiras, quanto com o compromisso que nos faz afirmar que narramos a partir de algum lugar, narramos com certos elementos e não com outros. Multiplicar as versões de ver e não ver é parte do escreverCOM. É que as muitas histórias do ver e do não ver povoam o mundo com outras sensorialidades e com narrativas de resistência contra o game over (Stengers, 2014) da única história.

Multiplicar as histórias do ver e do não ver, povoar o mundo, resistir ao game over: nada disso é fácil, nem isento de riscos. Pois se de um lado nos espreita o perigo da única história da deficiência como falta, por outro nos espreita o perigo de outra única história, aquela que romantiza a deficiência, que a enaltece como se ela fosse uma grandeza a mais, um dom superior. Tanto uma quanto a outra insultam precisamente porque apagam as singularidades do cegar, tanto uma quanto outra apazíguam porque nos dão um sentido de deficiência com o qual não precisamos nos importar, são eles, os deficientes, não nós.

Assim, escreverCOM, no sentido que aqui apresentamos, é uma forma de resistir à qualquer pacificação (Tibola, 2014) da questão da deficiência, é uma forma de ficar com o problema (Haraway, 2014): o problema de encontrar uma gramática mais larga, mais generosa, uma gramática que jamais esqueça a dor da perda da visão e que jamais apague as múltiplas reinvenções de si que, dia após dia, as pessoas cegas tecem para lidar com o cotidiano de suas vidas.

Este modo de manejar a escrita acadêmica se faz na contramão do olhar de deus, aquele que Haraway (1995) tantas vezes identificou como o olhar não marcado: olhar de ninguém sobre qualquer um. O fazerCOM, ao contrário, opera no sentido da localização do conhecimento, entendendo que dizer localização do conhecimento é afirmar que jamais se está sozinho no campo de pesquisa. Localização tem o sentido de afirmar a conexão com o outro, sejam eles humanos ou não humanos, é afirmar que para conhecer é preciso “compartilhar o pão” (Haraway, 2008). Afirmar este modo de conhecer tem sido por nós7 tematizado como um fazer feminino na ciência. Feminino porque segue na esteira de caminhos abertos por feministas que antes de nós, clamaram pelas marcas, não permitiram que elas fossem apagadas por um cientificismo opressor. E nós recebemos, acolhemos e levamos adiante este clamor quando afirmamos que escreverCOM é aceitar o desafio de fiar com os outros um dedinho de prosa (Knijnik, 2009).

Sabemos bem que corremos riscos quando lançamos mão do feminino na ciência. Riscos de que nossas ponderações sejam tragadas pelos dualismos que, sem tréguas, incidem sobre as questões de gênero. Insistimos, porém, na discussão sobre o feminino na ciência, afirmando-o longe de qualquer dualismo. O feminino que tematizamos diz respeito a marcar o conhecer, no sentido proposto por Haraway (1995, 2008) e Mol (2008). Marília Silveira (2015)8 salienta que no português a voz do neutro, retomada na escrita científica, é redigida no masculino. E, segundo a autora, este é um nó a ser desatado se afirmamos que o conhecer é uma prática situada, local, marcada. Afirmar o feminino na ciência é uma forma de convocar as marcas que fazem um olho ver o que vê, um cientista dizer o que diz. É uma forma de afirmar que não há conhecimento sem marcas, sem mediações.

O feminino na ciência se faz com a alegoria do laço, do vínculo. Mais do que afirmar a separação entre sujeito e objeto, o que está em cena é o vínculo, a conexão, o afetar e ser afetado no encontro com a alteridade. Neste percurso de “partilha do pão” com o outro o que se tem é, não um processo de fazer/conhecer sobre o outro, mas antes aquilo que Haraway (1995, 2008) chama de tornar-se com, isto é, devir com o outro, transformar-se no e pelo encontro. A escrita, local e situada, se tece a partir deste lugar, desta posição. Que este feminino na ciência não se confunda com o ser mulher, com uma natureza dada de antemão, mas antes com um manejo, com um modo de operar que, também não se pode esquecer, foi levando adiante por mulheres fazendo ciência (Haraway, 1995). Neste tornar-se com o outro as histórias importam. Muitas histórias importam.

Este trabalho é dedicado a todas as pessoas cegas e com baixa visão com quem compartilhamos o pão. Pela força de vida que com elas experimentamos. Porque nossas histórias importam.


Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 

1 Nesse trabalho sempre que mencionamos pela primeira vez a referência a uma autora ou autor, optamos por nomeá-los com os seus primeiros nomes, seguidos pelos sobrenomes. A opção por esta forma de fazer menção às autoras e autores está diretamente ligada à política de pesquisa que defendemos no artigo. Trata-se de uma escrita marcada e situada, assim, os primeiros nomes dos autores fazem diferença.

2 Trabalho submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o número CAEE: 33738414.2.0000.5243.

3 Conti (2014, 2015) salienta que o termo “único” comporta uma interessante ambiguidade: no sentido presente por exemplo em “tamanho único”, ou seja, tamanho universal, indiferente às especificidades de cada corpo. E também no sentido de singular, raro, como quando dizemos que um “encontro com uma pessoa foi único”. Em seu trabalho a autora propõe escrever únicas histórias para marcar o primeiro sentido e histórias únicas, para marcar o segundo sentido do termo. Da mesma forma que Conti (2015) apostamos que a escrita acadêmica se faz também a partir de histórias únicas.

4 No curso dos últimos anos temos realizado pesquisas com pessoas cegas e com baixa visão. Os comentários que virão nas linhas seguintes deste texto foram embasados nos diários de campo da pesquisa Perceber sem Ver, da qual uma de nós é coordenadora. Desse grupo fazem e fizeram parte muitos estudantes de Psicologia, Dança e Antropologia. A presença deles neste grupo merece registro e gratidão: Carolina Manso, Isabela Prince, Luciana Franco, Aline Lima, Josselem Conti, Luara Lima, Júlia Neves, Thadeu Gonçalves, Liz Eliodoraz, Vandré Vittorino, Marisa Avellar, Marisa Gomes, Camila Alves, Marina Morena, Saulo Francisco, Roberto Viana, Thainá Rosa, Larissa Mignon, Jeane de Souza, Lia Paiva, Tayana Valente, Thiago Cavalcanti, Louise Savelli, Thais Amorim, Raffaela Petrini, Juliana Cecchetti, Hugo Correa, Luana Garcia, Beatriz Pizarro.

5 Os nomes das pessoas são fictícios. Para uma discussão sobre o anonimato nas pesquisas acadêmicas ver Despret (2011). Consideramos que este é mais um ponto a ser colocado em discussão quando o tema é o estilo do trabalho acadêmico. No presente texto não abordamos este tema, esperamos faze-lo em outro trabalho.

6 Instituto Benjamin Constant (IBC), situado no Rio de Janeiro, referência nacional no Brasil para as questões relativas à deficiência visual. Local onde realizamos nossa pesquisa. Para conhecer o IBC ver: http://www.ibc.gov.br.

7 Neste ponto registramos a importância do grupo PesquisarCOM, parte integrante da pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, no qual uma de nós auta como coordenadora. Dele fazem parte mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos. Gratidão aos seus integrantes: Cristiane Bremenkamp, Marília Gurgel, Luiza Teles, Josselem Conti, Luciana Franco, Carolina Manso, Raquel Siqueira, Cristiane Moreira, João da Mata, Talita Tibola, Maria Rita Campello Rodrigues, Gustavo Ferraz, Maria de Fátima Queiroz, Eleonora Prestrelo, Marília Silveira, Elis Teles, Alessandra Rotemberg, Nira Kauffman, Gabrielle Chaves, Camila Alves, Alexandra Justino , Maria Aparecida dos Santos, Cristiane Knijnik.

8 Marília Silveira (2015) em comunicação pessoal e em notas partilhadas em um trabalho comum, não publicado.



I Professora Associada do Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Financiamento de pesquisa: Faperj, CNPq. Email: marciamoraes@id.uff.br

II Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Psicologia Social pela UERJ. Email: atsallis@gmail.com

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