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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Sobre crianças, sexopolítica e escrita de si

 

Children, sexual politics and the writing of the self

Acerca de los niños, sexopolitica y escritura de si

   

 

Marcelo Santana FerreiraI

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma reflexão sobre a invenção da infância como um artefato biopolítico, como pensa Paul Beatriz Preciado, e esforços contemporâneos de romper com o primado do controle exercido sobre nós por intermédio do dispositivo de sexualidade. A partir do uso de fragmentos de textos literários de Caio Fernando Abreu e Márcio El-Jaick, escritores brasileiros contemporâneos, busca-se compreender algumas operações institucionais que exigem coerência e unidade na experiência infantil, principalmente no tocante ao tema da sexualidade. Nos textos de Abreu e El-Jaick em análise, encontramos uma abordagem renovada e crítica da experiência de si na infância, rompendo com a idealização da infância e a patologização compulsória de afetos minoritários. Por intermédio do artigo, estabelece-se um diálogo com o pensamento de Walter Benjamin e Michel Foucault na tentativa de defender que outros modos de ser criança tornam a arena política em que nos encontramos mais densa e aberta para novos regimes de si.

Palavras-chave: Escrita de Si; Infância; Literatura.


ABSTRACT

This article is a reflection on the invention of childhood as a bio-political artifact as conceived by Paul Beatriz Preciado, and an examination of contemporary efforts to break away from the primacy of control exerted on us by means of the dispositif of sexuality. Using fragments from literary texts by contemporary Brazilian writers such as Caio Fernando Abreu and Marcio El-Jaick, we seek to understand institutional operations that dictate consistency and unity in the experience of childhood, especially with regard to sexuality. In the texts by Abreu and El-Jaick, we find a renewed approach and a critique of the experience of self in childhood which breaks with the idealization of childhood and the compulsory pathologization of minor affects. We engage in dialogue with the thought of Walter Benjamin and Michel Foucault to argue that other ways of being-child have been making the political arena denser and more open to new regimes of self.

Keywords: Writing of the Self; Childhood; Literature.


RESUMEN

Este artículo es una reflexión sobre la invención de la infancia como un artefacto bio-político, como Paul Beatriz Preciado piensa, y los esfuerzos contemporáneos para romper con la primacía ejercida sobre nosotros por el despliegue de la sexualidad. Partimos del uso de fragmentos literarios de Caio Fernando Abreu y Marcio El-Jaick, escritores contemporáneos brasileños, que buscan comprender algunas operaciones institucionales que requieren coherencia y unidad en la experiencia de la infancia, especialmente en relación con el tema de la sexualidad. En el textos de Abreu e El-Jaick objeto de examen, nos encontramos con un enfoque renovado y crítica de la experiencia del yo en la infancia, rompiendo con la idealización de la infancia y la patologizacion de las minorias. A través del artículo, establece un diálogo con el pensamiento de Walter Benjamin y Michel Foucault en tratar de argumentar que otras formas de ser niño hacen que el escenario político en el que estamos más denso y abierto a nuevos regímenes de sí mismos.

Palabras-clave: Escritura de Si; Infância; Literatura.


 

 

Introdução: sobre crianças

As crianças não são seres incompletos ou carentes de atenção e condução. As crianças interpelam algumas instituições, antes de serem por elas silenciadas. Quietas ou travessas, não se coadunam com um mundo já dado, pois o mundo é menos o que está pronto, do que algo a inventar. Walter Benjamin escreveu sobre a infância em textos críticos sobre a pedagogia iluminista e sobre a moderna indústria de brinquedos que, ao fetichizar o objeto, dilui o vínculo entre adultos e pequenos.

Não é apenas em textos para serem lidos por adultos que Benjamin tematiza a infância. Ele fala no rádio para crianças. Nas transmissões radiofônicas feitas na Alemanha de 1929 a 1932, Benjamin não é só educador que formula um sistema, é também camarada de brincadeiras. Berlim do século XIX e das primeiras décadas do século XX é o cenário do encontro entre o pensador e os seus ouvintes. O pensador apresenta às crianças temas ousados, com a perspicácia de quem não procura impor a sua experiência de vida como uma máscara. Ele lembra seus próprios passeios por Berlim e dos dialetos usados por distintos grupos, como os estudantes. Os dialetos usados pelos grupos se subsidiam em formas de falar que não cindem o que é dito do modo como se diz. Piadas e interjeições identificam o modo como os estudantes falam, bem como os vendedores de flores e os operários (Benjamin, 2015). A língua não é sistema abstrato que tolhe as expressões dos falantes, mas matéria a ser mobilizada para a luta e para a transformação do estado de coisas. Uma das grandes preocupações teóricas e éticas de Walter Benjamin se situava, exatamente, na problematização da linguagem instrumentalizada, chamada pelo pensador de burguesa, em que há uma cisão entre a mesma e os conteúdos mentais.

Walter Benjamin será o primeiro interlocutor do presente texto, pois a infância surge em suas considerações recoberta de um sentido político, por intermédio de uma crítica aos modelos psicológicos e pedagógicos do fim do século XIX e das primeiras décadas do século XX. O brinquedo, por exemplo, só se torna digno do nome quando os miúdos resistem aos objetos que são ofertados pelos adultos. Trata-se de um diálogo marcado pela resistência à colonização. Uma visada política sobre a infância a retira dos limiares da incompletude ou da teleologia. Infância e experiência se coadunam na resposta às ruínas da tradição. Pela ausência de uma palavra transmissível de geração a geração, pela crise do lado épico da verdade (a sabedoria) no mundo moderno, a infância requer que as coisas se repitam, para que se viva como se fosse a primeira vez. Como seria fácil se pudéssemos viver as coisas, pelo menos, mais uma vez. O erro não seria a marca definitiva de uma incompetência, mas a abertura para sentir, mais uma vez, o calor da lareira em que se assava uma maçã ou a duplicidade de ondas que fustigava o espírito na tensão entre a violação de um dia santo e a emergência de pulsões sexuais. Esta imagem refere-se à vivência de Benjamin em Berlim do século XIX, dividido, como infante, entre a ida a sinagoga e a escuta de um convite por uma prostituta (Benjamin, 1993).

Considerando a validade teórica da noção de limiar, Walter Benjamin sugere uma crítica aos dualismos que imperam no pensamento ocidental, indicando a importância de zonas de passagem que permitem a singela compreensão do que não se separa em termos definitivos ou essenciais. Ao criticar a pedagogia iluminista, o pensador defende a necessidade de uma concepção política de infância, diagnosticando o uso dogmático feito da noção de ingenuidade ou de incompletude por mestres e pedagogos. Ao tematizar a experiência erótica, percebe-se que a concepção de infância em Walter Benjamin alinha-se à crítica ao evolucionismo presente na ciência psicológica do início do século XX. As crianças lançam um olhar de curiosidade sobre o mundo compartimentalizado das sociedades modernas e não se divertem apenas com os objetos que os adultos consideram como brinquedos. Pode-se considerar que esta reflexão se sustenta, também, na tematização dos limiares e das experiências liminares, cada vez mais raras nas sociedades ocidentais e nas racionalidades desenvolvidas em torno da vida em sociedade, uma vez que estamos marcados por binarismos e tentativas de oposições rígidas como aquelas articuladas entre infância e vida adulta. Para Gagnebin (2010), por exemplo, tal problematização se liga ao esforço de Benjamin em articular uma teoria da modernidade. Para Gagnebin (2010),

Se o tempo na modernidade – em particular no capitalismo – encolheu, ficou mais curto, reduzindo-se a uma sucessão de momentos iguais sob o véu da novidade (como no fluxo incessante de produção de novas mercadorias), então decorre daí uma diminuição drástica da percepção sensorial por ritmos diferenciados de transição, tanto na experiência sensorial quanto na espiritual e intelectual. As transições devem ser encurtadas ao máximo para não se “perder tempo”. (p.15)

A linearidade do tempo social é uma ficção que soterra as experiências liminares. A infância assume a função articulada pela instrumentalização da relação entre as gerações, como reflexo da necessidade de estabelecimento de fronteiras intransponíveis entre supostas fases da existência individual e coletiva. Sob o jugo da dominação burguesa e psicologizante do século XX e seu recrudescimento no século atual, a infância se torna uma idealidade e, ao mesmo tempo, um imperativo. Habituamo-nos a buscar nossa própria imagem do que é inesquecível na idealização da infância, ao mesmo tempo em que expurgamos as crianças de espaços de decisão política e maldizemos todos os esforços de autodeterminação ou de produção imagética dissidente em relação à experiência infantil. Interpreta-se e silencia-se a infância.

O pensador judeu alemão, morto em 1940, sugere uma concepção política do passado e da infância, de modo a opor-se aos continuísmos vulgares e à pedagogização da relação entre miúdos e adultos. Como a infância se encaminha a uma consideração de seu estatuto como povo, as feições do mundo, quando crianças, nos lembram os apelos dos objetos e os limiares em que as virtualidades acenavam como uma relação não instrumentalizada com o tempo. Um brinquedo oferecido por um adulto serve para indicar o quanto os adultos precisam governar, controlar e silenciar. Codificar e interpretar os atos de miúdos. No entanto, alguns lugares se configuram como canteiros de obras, em que as conexões entre as coisas não se sustentam em seu valor de troca. Uma pena, uma pedra, uma borboleta, um pedaço de pau e um vidro de tinta não possuem relações intrínsecas, mas sua contiguidade no canteiro de obras das crianças as salva da condição de mercadorias.

A política benjaminiana em relação ao passado também aponta para a defesa de uma perspectiva viril sobre o tempo histórico. Apoderar-se de uma reminiscência em momentos de perigo pessoal e individual requer uma nova atitude ética em relação ao tempo. As vozes dos amigos que já não estão entre nós, o sentido como moeda que quebra o valor da finalidade das coisas e a indecidibilidade do desejo, além da abertura temporal por intermédio da descontinuidade da brincadeira nos confrontam  ao apelo da infância em relação aos ditames da sexopolítica, tal como a compreende Preciado (2014), pensador espanhol que, ao se deparar com a manifestação de mais de mil franceses requerendo proteção à infância diante dos apelos contemporâneos de reconfiguração das famílias, se pergunta: e quem defende a criança queer ? Quem se importa com a incongruência entre erotismo e identidade sexual, quem se importa com a intensidade de práticas que não buscam a coerência da identidade? A sexopolítica é um conjunto de dispositivos, enunciados, textos e práticas que pré-concebem o campo das expressões de si, incidindo sobre o modo como cuidamos dos miúdos, forçando-os, cotidianamente e ruidosamente, a se tornarem a imagem que nos tranquiliza e nos reflete. Preciado (2014), como já dito anteriormente, se baseia nos estudos histórico-genealógicos de Michel Foucault para ampliar a analítica do processo de elaboração das dicotomias que presidem a operação dos regimes sexuais. Além disso, abandona a dicotomia entre essencialismo e construtivismo ao considerar que sexo e gênero sejam tecnologias. Para Preciado (2014):

Compreender o sexo e o gênero como tecnologias permite remover a falsa contradição entre essencialismo e construtivismo. Não é possível isolar os corpos (como materiais passivos ou resistentes) das forças sociais de construção da diferença sexual (...) Foucault, no último período de sua vida, chamou de “biopolítica” exatamente essa nova fase das sociedades contemporâneas na qual o objetivo é a produção e o controle da própria vida. (pp. 157-158)

Ao nos voltarmos aos estudos de Preciado (2014), defendemos que a dicotomia entre natureza e cultura é uma das expressões mais claras do ocultamento moral das tecnologias que forjam modelos interpretativos e fontes referenciais para a produção de infâncias, mulheres e homens. Não pensar o caráter ficcional – e efetivo – das tecnologias é garantia da expulsão das minorias do amplo campo de invenção de si e de suas correlatas visibilidades. Quando a infância é enunciada no conjunto de procedimentos da sexopolítica, se reitera seu estatuto “natural”, incorrendo no silenciamento e nas tentativas de condução de existência de crianças. Crianças estranhas, meninos que se travestem, meninas que preferem contatos com outras meninas, crianças que interrogam a sexopolítica ao interrogarem a suposta evidência de suas identidades de gênero são empurradas para o espectro de anormais, que requerem correção e conversão, de acordo com a racionalidade moral e científica que estrutura a grande preocupação com a infância em sociedades ocidentais. No entanto, a sexopolítica já alcança o corpo das crianças garantindo a permanência da oposição entre normalidade e anormalidade. Os moralistas podem dizer que estão preocupados com as crianças, mas, na verdade, preocupam-se com a manutenção do regime sexual vigente ao exigir coerência e unidade à experiência infantil.

Mas a infância também nos refrata. A infância indica a ruína e a saúde do dispositivo de sexualidade, que faz falar o perverso sexual para enquadrá-lo numa linearidade e numa biografia espessa, em que coincidem práticas sexuais e identidades. As crianças não são apenas o alvo do dispositivo, elas o fazem falhar. Mas não estamos ali para ouvi-las.


Parte I: sobre crianças: sexopolítica

As crianças são fustigadas a se tornarem heterossexuais, submetidas a um conjunto de normas que as acompanham desde o berço. A sexopolítica produz meninos, meninas, coerência entre práticas sexuais e identidade de gênero, além de identidade sexual. Ao se voltar a interpretar uma manifestação na França em 2013 contra a adoção de crianças por casais homossexuais ou transgêneros, Preciado (2013) articula um diagnóstico das normas sexuais vigentes na quase totalidade de países ocidentais:

A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço daqueles que estão para nascer para transforma-los em crianças heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno de corpos frágeis. Se você não for heterossexual, é a morte que o espera. A polícia de gênero exige características diferentes para o garotinho e para a garotinha. Ela molda os corpos para desenhar órgãos sexuais complementares [tradução nossa]. (online)

Ao questionar “quem defende” a criança queer, Preciado (2013) considera que os adultos manifestantes em Paris consolidam a própria biopolítca que forja meninos e meninas heterossexuais, expurgando as crianças que não se adequem à norma do campo da elaboração de experiências de si consideradas legítimas e, mesmo, inteligíveis.  A sexopolítica – uma aplicação dos estudos histórico-genealógicos de Foucault (1997) sobre a sexualidade ao contexto de supremacia das normas sexuais heterossexistas vigentes em nossas sociedades – naturaliza os corpos e as identidades, justificando a eliminação de minorias e de práticas de si dissidentes em relação às mesmas normas. Os adultos querem proteger as próprias normas que os ensejaram, ocultando as violências em que as mulheres são objetificadas, os gays são ridicularizados, os transexuais e as travestis são silenciados e mortos. Uma política de morte, instituída a partir de primados morais, pseudo-científicos e religiosos. A infância, mais uma vez, se torna objeto de uma cruzada aparentemente preocupada com a integridade das próprias crianças.

Preciado (2013) afirma que foi uma criança queer e que teve negada a possibilidade de ter um pai e uma mãe, desde os 7 anos de idade, por ter feito um desenho em que se projetava no tempo em uma família composta por ela e sua suposta esposa, três filhos e muitos cachorros. Desde cedo, aprende-se a sonhar o pesadelo forjado pelo dispositivo de sexualidade. A autodeterminação e a dissidência não são toleradas, sequer concebíveis de forma positiva. Mais uma vez, todos os artefatos pedagógicos e psicológicos ofertados às crianças indicam o que é aceitavel e o que é inaceitável. Não seria espantoso considerar que, neste cenário, as experiências de si tenham que corresponder ao ideário da sexopolítica. As escritas dissidentes e as fabulações que não se assentam na clareza das normas sexuais tenderão a ser silenciadas, patologizadas e administradas. Já em seu volume inicial de História da Sexualidade, Michel Foucault (1997) apontava a preocupação exaustiva do dispositivo de sexualidade com a fixação da identidade de mulheres, perversos e crianças, indicando que um dos domínios onde se exercem os poderes difusos do século XVIII em torno da redefinição do estatuto político da vida é, exatamente, a “pedagogização do sexo da criança” (p. 99), indicada, explicitamente, na guerra contra a masturbação por dois séculos no Ocidente. Por portar uma sexualidade latente, não atual, as crianças devem se tornar objeto de administração e inquirição. Vínculos rompidos com os adultos, as crianças devem ser protegidas de si próprias e dos outros. Não existiriam memórias dissidentes da vivência da infância? Não recordariam os adultos de processos de elaboração de si em que o confronto às normas sexuais foi vivido como parte inalienável da constituição de si mesmo? Talvez se encontre na literatura algumas possibilidades de encaminhamento desta problemática ética e política.

Parte II. Sobre crianças: sexopolítica e escrita de si

A escrita de si é uma técnica discutida por Michel Foucault (2014) em suas incursões pelos dois primeiros séculos da nossa Era. Homens escrevem a homens para dar a ver processos de invenção de ethos, de modos de vida. A técnica baseia-se em reiteração, em acercar-se de instrumentos que garantam um posicionamento em relação ao acontecimento, mesmo à morte. A escrita de si não revela uma substância ética pré-concebida, mas constitui um campo de onde se podem erigir princípios que se se encarnam em um modo de vida. Também se configuram por intermédio de correspondências, em que não apenas o destinatário se beneficia do que está escrito, mas o próprio remetente permite uma abertura em si para o outro. A presença do outro institui uma prática de cuidado que é acompanhada não somente pelo processo de memorização.

A fim de estudar de maneira mais pormenorizada a cultura de si na continuidade de sua pesquisa sobre a contingência da sexualidade ocidental, Michel Foucault (2014) se volta à análise de procedimentos de elaboração de si mesmo em curso nos dois primeiros séculos de nossa Era, que indicam a importância do destinatário na conformação do conteúdo das correspondências entre homens proeminentes no contexto estudado. As correspondências entre Sêneca e Lucilius, por exemplo, se configuram como expressão de uma prática de si, em que tanto quem escreve quanto quem recebe a correspondência se exercitam, garantindo o estatuto de inquietude em jogo nesta prática. Tendo estudado diferentes sentidos políticos do “ si mesmo”, neste momento Michel Foucault (2014) se dedica a compreender a correlação entre cultura de si e arte de viver. Ao estudar as cartas de Sêneca, Michel Foucault (2014) faz uma importante consideração referente ao contexto que estuda:

A carta que é enviada para ajudar seu correspondente – aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo – constitui para aquele que escreve uma espécie de treino: um pouco como os soldados em tempos de paz se exercitam no manejo das armas, os conselhos que são dados aos outros na urgência de sua situação são uma forma de preparar a si próprio para uma eventualidade semelhante (p. 154).

Ao estudar esta forma de narrativa de si, o objetivo do pensador é defender um modo de relação consigo mesmo que se tornou possível a partir da valorização de um modo de ser. Nada deve deslocar aquele que escreve ou que lê uma correspondência de ocupar-se consigo mesmo. Este procedimento foi um daqueles estudados por Foucault (2014) na genealogia da subjetividade ocidental, em que a introspecção se configura menos como uma decifração de si do que como uma abertura em si para o outro.

A escrita de si não institui a mesma relação que está em jogo na literatura, forma de relação com a linguagem que se autonomiza de exigências puramente instrumentais. A linguagem também foi objeto de inquietação, por parte de Michel Foucault. E garante uma forma de aproximação com a importância política da mesma, em relação ao tema que se elegeu para trabalhar no presente texto. De modo peremptório, pode-se considerar que há uma pergunta sobre o que é a literatura em parte do percurso de Michel Foucault (2003), que dedicou alguns textos, como “A vida dos homens infames”, a problematização de formas históricas de enunciação de vidas consideradas inessenciais no limiar de crise do poder da soberania na França no século XVIII e a composição de uma forma moderna de governo da vida dos homens e mulheres infames. Neste texto, Foucault (2003) se volta, brevemente, a uma caracterização da moral em jogo na experiência literária:

A literatura, (...) faz parte desse grande sistema de coação através do qual o Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em discurso; mas ela ocupa um lugar particular: obstinada em procurar o cotidiano por baixo dele mesmo, em ultrapassar os limites, em levantar brutal ou insidiosamente os segredos, em deslocar as regras e os códigos, em fazer dizer o inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr fora da lei ou, ao menos, a ocupar-se do escândalo, da transgressão ou da revolta. (p. 221)

Evidentemente, não se busca retirar uma compreensão definitiva do pensador francês acerca da literatura, mas no contexto de escritura do texto – os anos 1970 – o pensador varia, sutilmente, de sua consideração ontológica a respeito da literatura articulada nos anos 1960 para a problematização das coações que experimentamos ao sermos confrontados aos procedimentos de veridicção de práticas e saberes. A escrita de si, curiosamente localizada no campo das técnicas de si que foram estudadas na interpretação dos primeiros séculos da nossa Era instituída ao final da obra do pensador, converge com a moral moderna que se expressa, no texto citado, como referência mais importante na relação com o cotidiano e na elaboração de novas personagens malditas e temas correlatos. A sexualidade e as chaves de interpretação da mesma, além da infância e suas características governáveis, se forjam em um novo regime de visibilidade e de dizibilidade. A literatura, que possui forte relação com o diagnóstico que o pensador faz sobre a modernidade, aparece de diferentes formas nos quadros de problematização histórica empreendidos no exercício foucaultiano. Defende-se um cruzamento destas temporalidades e problemáticas, no intuito de não idealizarmos a literatura e a compreendermos, na contemporaneidade, como um esforço de invenção de novas liberdades em relação às coações institucionais e às evidências científicas que nos ligam, essencialmente, à natureza ou à tradição. Questionando a íntima relação entre psicanálise e literatura no século XX, podemos considerar que não há uma tradição ou expectativa de uma palavra primeira a qual a experiência literária faça miseráveis menções. Defendemos que alguns exercícios literários contemporâneos apresentem esforços consideráveis de invenção de si no tocante à problematização da infância. Para pensar deste modo, é necessário reconhecer que alguns textos literários se chocam com a imagem evolucionista ou essencialista da infância, servindo-nos como provas raras de que a escrita coloca em curso processos de interpelação da subjetividade auto-centrada.

A literatura contemporânea nos oferece oportunidades para o enfrentamento da colonização em curso em relação à infância, já que se questiona, em algumas de suas produções, o caráter compulsório do processo de individualização em nossas sociedades. Caio Fernando Abreu, escritor gaúcho morto nos anos 1990, apresenta uma quantidade considerável de personagens malditos que não somente nos servem para compreender um diálogo fecundo com os limiares institucionais que enfrentamos com a emergência da AIDS e suas correlatas epidemiologias, como também a proposição de vivências renovadas de si mesmo, tendo como protagonistas aquelas fases da vida já incluídas nos mecanismos institucionais de governo da diversidade e da infância. Um dos seus mais belos contos apresenta o encontro de um adolescente com seu primo, no calor das tardes de verão em um balneário. As cenas são narradas com riqueza de detalhes, deslocando-nos da desqualificação da personagem principal até o seu encontro com o primo, que se prepara para fazer o curso de medicina e ajudar as pessoas a serem felizes, independente do que elas sejam. O adolescente se via como pequeno monstro e o encontro com o primo o ajudou a dar destino àquela onda indiscernível que se avolumava em seu corpo. No conto de Caio Fernando Abreu (2014), encontramos as seguintes cenas:

Meu coração batia batia, ele podia ouvir. O suor da gente se misturava. O coração dele batia batia, escutei quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha me ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar melado da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na curva do meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pelos crespos na cintura dele. (pp. 202-203).

Caio Fernando Abreu (2014) sugere um erotismo juvenil maldito, ampliando as possibilidades de encaminhamento de afetos não totalmente reguláveis pelas normas sexuais vigentes. Loucos, viados, adolescentes que buscam autodeterminações se multiplicam em seus textos, evocando, implicitamente, aquelas personagens que Giorgio Agamben (2007) chamou de ajudantes, seres incompletos que socorrem crianças em contos, mas podem ser citados no processo de confronto permanente com o aquilo que jaz, esquecido, em nós, embora configure o que se define como inesquecível. De acordo com Agamben (2007),

O ajudante é a figura daquilo que se se perde, ou melhor, da relação com o perdido. Esta se refere a tudo que, na vida coletiva e na vida individual, acaba sendo esquecido em todo instante, à massa interminável do que acaba irrevogavelmente perdido. Em cada instante, a medida de esquecimento e de ruína, o desperdício ontológico que trazemos em nós mesmos excede em grande medida a piedade de nossas lembranças e de nossa consciência. (p. 35)

O ajudante no conto de Caio Fernando Abreu (2014) é alguém que transita pela casa de praia do adolescente que se sente um monstro. A falta de pudor do ajudante é correlata de seu convite a explorar um novo caminho que talvez leve o menino direto à África, ou mesmo, direto à intensidade da onda que se avoluma em seu corpo. Sem nenhum estereótipo, o ajudante-viajante não julga o adolescente, apenas o atiça a passar o tempo de um modo inteiramente novo, sob a proteção precária de um cômodo quente nos fundos da casa. Abreu (2014), desta forma, sugere, de acordo com nossa compreensão, uma crítica importante aos modelos usuais de narrativa da infância e da adolescência, interrompendo a obviedade da teleologia heterossexista. Tal narrativa abala algumas das instituições que se voltaram – e se voltam – para a defesa de uma imagem progressiva e evidente dos afetos juvenis e da constituição de si.

Além da estética de Caio Fernando Abreu (2014), encontramos em escritos de Márcio El-Jaick (2008), jovem escritor da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, esforços consideráveis no abandono de uma visão simplista sobre a infância e a adolescência. Sem nos preocuparmos em definir o estatuto da literatura de El-Jaick, encontramos em seu romance No presente, as inquietações vividas por um menino ao se deparar com um mundo de instituições que desqualificam práticas e existências individuais remetidas, em parte, ao desejo por pessoas do mesmo sexo. A personagem principal apresenta-nos, na variedade de suas sensações e preocupações, a curiosidade pelo corpo do amigo Mateus. Determinado a repetir o que a família parece esperar dele, determinado a assumir uma performance de gênero que garantisse que ele sobrevivesse às brincadeiras dos outros meninos no colégio, a personagem principal não se esquiva da curiosidade por Mateus, amigo que tantas vezes fora à sua casa. Mesmo tendo aprendido que não era natural ou bonito querer beijar um menino – sendo um menino – a personagem insiste em experenciar a mansidão das sensações que surgiam ao vislumbrar o corpo e, especialmente, o pênis de Mateus. O lirismo de El-Jaick (2008) dispensa-nos de apenas comentá-lo:

(…) a minha vontade não estava com paciência de me esperar pensar em nada, de modo que eu precisava cumprir a ordem naquele instante e botei a mão no pinto do Mateus por baixo da cueca. (...) a minha garganta secou de uma maneira que era como se eu não bebesse água desde que tinha nascido, e senti uma coisa que era o contrário do coração de um beija-flor, porque era um tipo de calma, como se eu tivesse um coração de baleia, ao mesmo tempo em que o meu corpo ainda parecia que estava num campo magnético e ainda era como se eu estivesse flutuando. (pp.101-102)

A personagem principal procura conversar com as pessoas mais próximas, inquirindo sobre o mundo que lhe parecia tão evidente e, diante da oportunidade de ceder à sua vontade, confronta-se aos limites dos próprios amigos de quem gosta. O lirismo da adolescência não deixa de transitar pelas agruras de um desejo minoritário. Poderíamos pensar: mas se trata de um adulto escrevendo sobre a infância. Se trata de ficção. Mas a produção do artefato criança está impregnada das instituições que, reiteradamente, nos forjam. O pesadelo das sociedades em que temos nossas vidas administradas impõe um modo instituído de ser criança. A ficção literária sugere um novo limiar em contexto de governo da infância. Não que se defenda que destino se deverá tomar, mas pela necessidade de que nos dediquemos à compreensão da beleza e do horror dos anos vividos sob o jugo quase imediato e objetivo das instituições que nos cobram coerência, unidade, formas definidas. Vivendo em sociedades que desqualificam minorias, não seríamos coniventes com o próprio esgotamento da infância como fase da vida em direção ao modelo de indivíduo e de sujeito que subjaz ao esquecimento do processo em que nos inventamos, junto aos fragmentos de mundo que se imiscuíram ao nosso processo de subjetivação?


Conclusão

O tema da escrita de si não assume exatamente o mesmo sentido que possui nas reflexões de Michel Foucault (2003), já que consideramos que a escrita, na abertura permitida pela literatura, não está assentada em um exercício de constituição de si como se tratava nos séculos iniciais de nossa Era. A escrita de si, na problematização que se finda, se realiza na perspectiva de exercícios literários em que a infância não é representada dentro das fronteiras estritas da linearidade da formação do sujeito. Em Foucault (2003), a escrita é parte de um processo de elaboração de si como sujeito ético. Propusemos que, nos fragmentos dos textos literários de Caio Fernando Abreu (2014) e Márcio El-Jaick (2008), encontramos imagens dissidentes da experiência da infância, se tomarmos como central o chamado dispositivo de sexualidade, que é nominalista e opera na inclusão do que difere da idealidade, desde que o processo de inclusão se dê como desqualificação moral e patologização. Sem querer anular as diferenças entre as experiências literárias citadas encontramos, em parte das duas, inquietações que concernem ao confronto de existências comuns com o peso dos regimes sexuais instituídos em sociedades ocidentais. A composição das personagens não representa um processo que se dá fora do campo literário, mas nos auxilia a avançar na composição estética e ética da experiência infantil, interrogando regimes sexuais, soprando lirismo no cenário de administração da infância. Permitindo que, em certa medida, possamos dialogar com uma experiência histórica que também se faz a partir de um espaço de tensão imanente em relação aquilo que somos e a emergência de novas possibilidades de forjar a si próprio. Sendo assim, os autores da literatura citados também nos ajudam a forjar espaços de enunciação para o que, comumente, só encontraria lugar no controle infinitesimal das condutas individuais. Sem prescrever uma direção, garantem espessura histórica à arena dialógica entre crianças e adultos, teimando em indicar que não somos pálidas expressões de uma natureza sexual pré-concebida.




Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015


I Professor Associado do Instituto de Psicologia da UFF/Niterói e do Programa de pós-graduação em Psicologia: Estudos da Subjetividade da UFF. Mestre e Doutor em Psicologia pela PUC/RJ. Email: mars.ferreira@yahoo.com.br

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