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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Sobre a morte, sobre a vida: a produção da bíos em adolescentes em conflito com a lei

 

On death and life: the production of bíos in adolescents in conflict with the law

Acerca de la muerte y de la vida: la producción de bíos en adolescentes en conflicto con la ley

   

 

Hebe Signorini GonçalvesI

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este texto se dedica a compreender as razões que fazem com que cidadãos desejem, se ofereçam ou produzam a morte de outros. Ele é movido por episódios vivenciados junto a adolescentes autores de ato infracional, e vale-se dos conceitos de Agamben, Wacquant e Foucault. Trata-se de um ensaio através do qual se indaga a ética do pesquisador.

Palavras-chave: Adolescentes em conflito com a lei; Bíos e Zoé; Ética na Pesquisa.


ABSTRACT

This text seeks to understand the reasons that make citizens wish for, offer themselves to, or cause death in others. Using concepts from Agamben, Wacquant and Foucault, we examine situations experienced with adolescents who have committed an infraction. It is an essay through which the ethics of the researcher are questioned.

Keywords: Adolescents in conflict with the law; Bíos and Zoé; Research Ethics.


RESUMEN

Este texto está dedicado a entender las razones que llevan a los ciudadanos a buscar la propia muerte, a poner en riesgo sus propios cuerpos o producir la muerte de los demás. Él es impulsado por episodios experimentados junto a adolescentes que han cometido delitos, y hace uso de los conceptos de Agamben , Wacquant y Foucault. Es un ensayo sobre la ética en la investigación.

Palabras-clave: Adolescente en conflicto con la ley; Bíos y Zoé; Ética en Investigación.


 

 

Algumas palavras iniciais: situações-problema

Osvaldo nasceu em Boston, filho de mãe brasileira e pai português; vivia na Flórida e trabalhava num restaurante da pequena cidade de Fort Lauderdale. Em outubro de 1993, quando contava 22 anos, armou-se de uma pistola Magnum e executou uma jovem num pequeno hotel local; na semana seguinte e no mesmo local, executou outra jovem e, e em novembro do mesmo ano, matou um comerciante da cidade. Pelos crimes, foi duas vezes condenado à morte e uma vez à prisão perpétua. Através de um recurso judicial de apelação, conseguiu reverter a pena de morte e transformá-la em prisão perpétua, sonho de milhares de detentos que aguardam a execução nos corredores da morte americanos. Em 2015, com 41 anos e depois de passar 21 recluso, Osvaldo tenta reverter o benefício para que possa ser executado. Ele alega que pensava “que a prisão ia ser melhor, vida é melhor que morte, mas eu não sabia como ia ser a vida na prisão. É melhor morrer do que viver uma vida assim miserável”.1

Durante os cinco primeiros meses de 2015, mais de 46 mil pessoas desembarcaram na costa da Itália, e o governo estima que até o final do ano elas somarão 200 mil. Salvo pelas operações de resgate, o eritreu Makone Mare conta:

Eu vim da Eritreia, passando pela Etiópia, Sudão e Líbia. Eu sou eritreu, gosto do meu país, mas tive de ir embora. Eu queria uma vida nova. (...) Eu queria um novo futuro. O barco em que fui colocado estava muito lotado. Eu sou um ser humano, estava com medo porque só tenho uma vida. Essa viagem marítima é muito difícil. Tem crianças e mulheres grávidas que viajam sozinhas. Nós tentamos ajudá-las. Tenho sorte por ter sido salvo. Eu nasci de novo. Eu nasci de novo.2.

Abubaker Jallow, 21 anos, descreve o drama da travessia: “Pessoas começaram a enlouquecer. Alguns pularam na água. Nós jogamos mortos na água, eu não sei quantos. Ficamos à deriva durante dias, quando fomos resgatados e chegamos em Malta”.3

Rio de Janeiro, 2015. Entre janeiro e abril, 10% dos latrocínios registrados no estado foram cometidos por arma branca, segundo estatística do Instituto de Segurança Pública. Os ataques a transeuntes e ciclistas geraram protestos, comoção e espancamentos de suspeitos. A imprensa divulga cada ataque, culminando com a morte do médico Jaime Gold em 19 de abril, tornada emblemática.4

Rio de Janeiro, 06 de março de 2015. Um menor foi torturado e morto dentro de uma unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio. Outros quatro menores são suspeitos do assassinato. O crime ocorreu no alojamento Escola João Luiz Alves, unidade de internação, e as motivações do crime estavam sendo investigadas pela Divisão de Homicídio.5 Rio de Janeiro, 02 de junho de 2015. Mais um adolescente é assassinado por outros menores enquanto cumpria medida socioeducativa na Escola João Luiz Alves. A vítima, de 14 anos, teria sido apreendida por crime análogo a estupro e foi espancada e estrangulada por outros internos.6

As tramas são obviamente diversas, separadas entre si tanto geográfica quanto culturalmente. Algumas ganharam projeção na mídia, outras nem tanto: o pouco destaque conferido à estranha pretensão de Osvaldo contrasta com o alarde da imprensa europeia e brasileira, que falaram dias a fio dos barcos precários que cruzavam o Mediterrâneo carregando corpos esquálidos. Sei que a história de Osvaldo escondeu-se nas páginas internas dos jornais porque a busquei ativamente. Ainda que falasse de uma única vida, ela – assim como os milhares de eritreus - tinham algo de um homo sacer contemporâneo: vidas destituídas de sentido, por isso vidas matáveis.

Em meio a esse cenário, estrangeiro, os acontecimentos locais: ataques a transeuntes e ciclistas nas ruas do Rio de Janeiro multiplicam-se na mídia, ancorando a demanda punitiva. As notícias chegam ao clímax quando a morte ceifa um homem de bem, evidenciando o contrate entre a vida matável e a vida não matável. Os menores – alvos da última onda da sanha punitiva – estão evidentemente entre os primeiros: neles, a contiguidade da morte serve sempre e apenas para comprovar uma agressividade apresentada e lida como imanente, incontornável, intratável. Meu trabalho de campo, que há alguns anos me coloca frente a esses mesmos adolescentes, impõe o desafio de lidar com eles e colar-lhes significado ao mesmo tempo em que a cena social lhes nega a condição de sujeitos; sou lançada à pergunta sobre o sentido de suas ações, mesmo quando eles próprios, tratados como matáveis, recusam a vida ao outro.

Algo mais, então, se impõe: adolescentes que cumprem medida de internação, e vivem portanto em privação de liberdade, matam um companheiro. E mais outro, três meses depois. Não se trata mais de virar o jogo e impor a morte àqueles que os tratam como matáveis? Matáveis são todos, mesmo os que convivem em espaços de privação de liberdade? Os mundos prisional e socioeducativo viram cair mais uma barreira? Que significa pesquisar-com esses sujeitos, sem nos rendermos à fácil e por isso tentadora dicotomia entre os que morrem e os que matam, cujas vidas valem ou não a pena?

Nesse esforço, vou fazer uma aposta num conhecimento situado e corporificado, que possa produzir teorias críticas “não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro”. (Haraway, 1995, p. 16).

Precisamos aprender em nossos corpos, dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear. Assim, de modo não muito perverso, a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. (Haraway, 1995, p. 21).

Não se trata de morte, trata-se de vida

Quando Agamben (2002) trata da distinção entre zoé e bíos, tal como proposta pelos gregos, ele salienta que a zoé se refere ao simples fato de viver, enquanto que a bíos diz respeito à forma de vida de um indivíduo ou grupo, à vida qualificada. O simples fato dos gregos usarem vocábulos diversos para tratar da vida sugere uma atribuição diferente de valor para uma e outra. A compreensão do inteiro significado dessa distinção é que abre caminho para entender a peculiar figura do homo sacer: “uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (Agamben, 2002, p. 16). A democracia moderna, defende o autor, buscou incessantemente a liberação da zoé, tentando transformá-la em forma de vida para “encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé” (Agamben, 2002, p. 17).

Por trás do longo processo antagonístico que leva ao reconhecimento dos direitos e das liberdades formais está, ainda uma vez, o corpo do homem sacro com o seu duplo soberano, sua vida insacrificável e, porém matável. Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja liberação e felicidade havia dedicado todos seus esforços. (Agamben, 2002, p. 17).

Na obra de Agamben (2002), zoé e bíos se contraem; seus sentidos guardam entre si uma relação dialógica que permite pensar os estados de exceção como “estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão” (Agamben, 2002, p. 35). A essa tese, segundo a qual toda política não apenas contém a exceção como se funda nela, assentando na exceção o “núcleo mais íntimo do sistema político” (Agamben, 2002, p. 42), sucede a necessidade de mergulhar nessa lógica para, só então, encontrar modos de uma política digna desse nome.

No caso do brasileiro que reivindica a própria execução, não é da mera morte que se trata, essa que ele poderia afinal buscar por seus próprios meios: a morte que ele almeja é a morte autorizada, consentida, oficial, a única que lhe parece capaz de imprimir sentido à vida na prisão, nomeada como miserável: ele quer encarnar a morte matável. É na execução que ele, paradoxalmente, entrevê o lugar social que a prisão lhe nega. Entre os imigrantes africanos de muitas origens, que se lançam ao mar cientes do risco da travessia, é do mesmo modo a esperança de sentido que os move: eles buscam a vida nova que, uma vez encontrada, equivale a nascer de novo. Lançando-se à morte, eles parecem encarnar a afirmação de Agamben (2002, p. 62): “à lei que se indetermina em vida contrapõe-se, em vez disso, uma vida que, com um gesto simétrico mas inverso, se transforma integralmente em lei”. Guardo, por ora, a hipótese de que Osvaldo, assim como os imigrantes africanos, tenham ofertado seus corpos, pura zoé, na esperança de imprimir-lhes sentido.


Por que a morte e a vida como questões

A tarefa de pesquisar-com configura-se como um desafio particular quando produz o encontro entre quadros de valores conflitantes ou antagônicos. Habituada a transitar pelas ruelas das favelas cariocas7, debrucei-me por longos anos sobre as tentativas de desvendar as linguagens e os modos de ver o mundo de seus moradores, no esforço de identificar as linhas e os processos de exclusão que produzem territórios apartados e na intenção de produzir vias de diálogo capazes de uma nova política de pesquisa, e de uma nova política tout court. Em anos mais recentes, ao adentrar as unidades de internação do sistema socioeducativo, a tarefa trouxe novos desafios.

Ali, defrontei-me com grupos de adolescentes que, por força do vínculo com o tráfico de drogas nas suas favelas de origem, envolviam-se em atos delitivos os mais diversos. A organização do tráfico, aprendi com eles, opera como qualquer conglomerado econômico: longe de limitar-se ao comércio de drogas, abriga outros delitos como o roubo, à mão armada ou não, e o comércio de bens roubados; requer apropriação de bens necessários à própria atividade do tráfico, tais como os veículos imprescindíveis ao transporte e à distribuição da droga. Envolve, portanto, uma gama diversificada de atividades, permitindo que as cadeias de relação se entrecruzem e que grupos de pessoas diferentes se organizem conforme a atividade-fim. Parece evidente então que todo esse conjunto, para que possa operar de modo articulado, organize seu próprio universo normativo. Essas normas não acompanham, e frequentemente contrastam, aquelas que são reconhecidas e circulam no asfalto.

Foram necessárias muitas décadas para que esse conjunto normativo se organizasse, ganhasse penetração e passasse a ser efetivamente respeitado. Foi necessário também conjugar uma ampla gama de condicionantes para que todo um universo de significados se erigisse à sombra do ordenamento oficial. Os trabalhos de Boaventura de Sousa Santos, realizados em 1970 e publicados em 1974, mostraram que desde então estava em processo a construção de uma capitis diminutio geral (uma ilegalidade quase existencial), derivada da lógica segundo a qual a força policial servia a interesses contrários aos locais, razão pela qual não era convocada para resolver qualquer ilegalidade, o que terminava por bloquear também o acesso aos tribunais, e à lei. Desde então, o processo se aprofundou.

Se o conjunto legal e normativo produz formas específicas de subjetivação, como quer Foucault (1988), é imperativo pensar que esses territórios sejam habitados por sujeitos que diferem, em alguma medida, daqueles que circulam nos espaços oficiais da cidade. Com efeito, muitos estudos têm mostrado que, nos espaços das favelas, os jovens vivenciam “um processo orgânico e cotidiano de convivência territorial” (Rocha, 2015, p.288) que edifica uma organização moral própria dos grupos e chega a diferenciar os vários grupos que competem pelo domínio do território:

A facilidade com a qual as gangues qualificam os rivais como errados, folgados, invejosos ou covardes é inversa a sua compreensão do fato de que um ponto de vista semelhante, mas em sentido oposto, também é mantido por todos os outros participantes da guerra em relação a seus respectivos rivais. A produção desse discurso, que seleciona arbitrariamente determinados episódios para construir uma narrativa de superioridade moral do próprio grupo enquanto simultaneamente ressalta as falhas dos rivais, é uma constante entre as gangues estudadas e gera um terreno fértil para justificativas acerca das rivalidades e homicídios delas decorrentes. (Rocha, 2015, p. 296).

O que muitas análises têm sugerido é que a violência, nas suas formas mais extremas e por efeito da edificação de uma moral estreitamente relacionada ao domínio territorial, tem-se tornado característica dessas áreas que denominamos favelas:

Quando examinada a distância entre a residência do ofensor, a da vítima e o local do homicídio verificou-se que os eventos ocorriam em um raio menor que 400 metros. Isto significava que a distância percorrida pelos ofensores para encontrar suas vítimas era bastante pequena. Na verdade, os homicídios ocorrem entre pessoas conhecidas, que nasceram e cresceram a pouca distância, cuja vítima é uma, mas poderia ter sido outra conforme as circunstâncias. Neste sentido, é equivocado referir-se ao fenômeno da explosão da criminalidade em grandes centros urbanos. Mais correto seria falar de uma implosão, pois ela ocorre no interior de comunidades específicas onde vítimas e agressores são originários e coabitam o mesmo espaço. (Beato Filho e col., 2007, pp. 59-60).

Não se pode dizer, no entanto, que a favela seja privilégio nacional. A considerar os argumentos de Wacquant (2007), a constituição desses territórios se adensou em todo o mundo, premida na França pela intensificação da migração, nos Estados Unidos pelos conflitos raciais e no Brasil pelas crises da moradia e dos transportes. Aos olhos da administração das cidades, foram tomados como instrumentos da biopolítica sobre o pressuposto de que ali teriam origem os episódios que justificam a explosão da violência, ao contrário do que constatam Beato Filho e col. (2007). A biopolítica posta em exercício a partir desse pressuposto entende que ali se concentram os pobres, que eles constituem a principal ameaça à ordem, e portanto vale eleger esses territórios como alvos preferenciais da vigilância.

O que esse argumento elide é o fato de que – no caso brasileiro – as favelas se transformaram em territórios de estigmatização social sobre o solo da “desorganização” social originada da retirada do Estado, constituindo-se por isso como áreas de isolamento social e desertificação organizacional - expressões de Wacquant (2007). Para não deixar prevalecer interpretações vagas acerca do que representa a ausência do Estado, e na intenção de tornar mais claros os efeitos de subjetivação que ela produz, convoco o conhecimento corporificado (Haraway, 1995) com o qual quero ilustrar o inteiro sentido dessa ausência:

Pesquisador: Na próxima semana é Natal, vamos fazer uma festa?
Adolescente: Vai ter Natal?
P: Sim, estamos em dezembro...
A: Então tem Natal todo ano?
P (já perplexo): Sim, todo ano tem Natal, todo mês de dezembro...
A: Quem te ensinou isso?
P: (absolutamente perplexo) ....
(Diários de campo, dezembro de 2012)

Como se pode observar, a organização do cotidiano, naquilo que parece mais elementar ao cidadão de bem, se esvai na lógica daqueles cujas vidas estão constrangidas ao território desertificado das favelas. Acostumados que estamos à denúncia da ausência de equipamentos e serviços públicos – escolas, postos de saúde, transporte, entrega de correspondência – talvez tenhamos perdido a dimensão do vácuo que se instalou entre a ordem oficial e os espaços abandonados pelo estado. Não se trata de ler – no sentido estrito do letramento – mas da capacidade de compartilhamento de códigos culturais elementares a partir dos quais se constrói a possibilidade de diálogo.

Assim colocado, o empreendimento do pesquisar-com precisa ser reindagado, vez que ele demanda um esforço de decodificação de algo que não pode ser dado por sabido: ele requer do pesquisador o abandono efetivo do suposto saber, no plano mesmo da comunicação mais elementar. Mas a questão não se esgota aí.

Se a organização requerida pelo tráfico de drogas encontra os territórios desertificados das favelas, suas demandas se realimentam. Não é possível supor que a capitis diminutio induza à ausência absoluta de qualquer regramento, e o próprio Sousa Santos (1974) já sinalizava a coexistência entre os dois direitos, num complexo pluralismo jurídico. Revisitando o texto para examinar episódios de execução de seis crianças pelo tráfico, na favela de Nova Jerusalém, no Rio de Janeiro, Junqueira e Rodrigues (1992) explicam:

Ao contrário dos esquadrões da morte – cuja formação tem origem na década de cinquenta, por policiais inconformados com a necessidade de se aterem aos estritos limites da legalidade no combate ao crime – que só conseguem gerar terror e repúdio entre a população de baixos rendimentos, e das “polícias mineiras” (denominadas de justiceiros, em São Paulo), percebidas como um recurso dos “ricos” (dos comerciantes das áreas periféricas) que têm dinheiro para contratar uma segurança privada, o crime organizado, em virtude do “poder de polícia” exercido pelos traficantes contra criminosos que porventura se arrisquem a agir em suas bases territoriais, tem-se tornado uma força de “ordem jurídica” para a população de baixos rendimentos. (p.10)

Somos informados, assim, que o tráfico detém poder de julgamento – e poder de vida e morte – sobre aqueles que cometem crimes condenáveis em seu território. Não nos iludamos a ponto de achar que se trata de uma reserva territorial de bens. Como nos mostra Santiago (2015), em plena vigência da Lei Maria da Penha, que visa enfrentar a violência de gênero, os conflitos domésticos de casal são igualmente enfrentados por essa lógica:

Una de las estrategias usadas por los moradores de estos territorios para resolver sus problemas es conocida como desenrolo (...). La expresión desenrollar, em el vocabulario de la favela, se refiere a una forma de negociación de conflictos entre diferentes agentes sociales, funcionando como un mecanismo alternativo de hacer justicia. (...) Las mujeres moradoras de favelas también hacen uso de este recurso para resolver sus conflitos conyugales, basándose em uno de los mandamientos del tráfico (...) que prohíbe pegarles o violentar las mujeres dentro de los limites de la favela. (Santiago, 2015, p. 190-1)

Somos informados agora que as relações privadas submetem-se igualmente a um ordenamento outro, diverso, apresentando-se como mandamentos que organizam a vida coletiva e interditam certas atitudes como bater na mulher – vale dizer, se ela for honesta, como explica Santiago (2015) – e estuprar. Ao primeiro “crime”, aplicam-se castigos físicos; o segundo é punido com o castigo físico, ou com a morte do autor.

Transcorridos 45 anos entre a investigação original de Souza Santos e as demais, a organização normativa tornou-se ao que tudo indica mais sofisticada, tornando-se capaz de definir delitos e penas, e organizar o juízo moral no espaço público e no espaço privado. No que diz respeito aos adolescentes com os quais convivo mais proximamente, essa organização normativa é anunciada como mandamento e tratada como guia incontestável da conduta. Entre eles, a máxima “o certo é o certo” é a resposta que finaliza qualquer tentativa de diálogo sempre que essas premissas são indagadas. Não surpreende por isso – embora produza estranhamento – que no universo prisional, assim como no sistema socioeducativo, o autor de estupro seja destinado a uma cela ou alojamento significativamente nomeado como o seguro: o lugar que protege o corpo do condenado, posto sob custódia do Estado.

O que é surpreendente é que as mortes no DEGASE – noticiadas na imprensa e reproduzidas aqui – tiveram lugar justamente no seguro. Traduzindo a cena, um pequeno número de adolescentes, todos em alguma medida ameaçados pelos próprios companheiros de infortúnio, submeteram um outro ao espancamento até a morte, em razão dele ser (supostamente) autor do crime de estupro.

Enfrentando a cena

Era uma tarde quente de abril. Deslocamo-nos, eu e os estagiários do projeto, ao encontro dos adolescentes, sabedores de uma primeira morte ocorrida no interior da instituição, provocada pelos próprios internos. Havia algo de novo na cena: desta feita, iríamos ao encontro não das vítimas da violência institucional, mas de seus algozes. Os episódios que os conduzem ao sistema socioeducativo são estudados, tratados em livros e artigos sem fim, textos que oferecem alguma chave de leitura que, se não permite romper os obstáculos ao diálogo, ao menos levanta alguma sinalização. A violência institucional nos sistemas prisional e socioeducativo, seja nas formas surdas ou nas ruidosas, é razoavelmente tratada, sejam quais forem seus autores. Mas que dizer desse episódio? Era o primeiro encontro com esses adolescentes em particular, e a ausência de vínculos afetivos – ou seria a ausência do que dizer? – não produziu ecos.

Numa fria tarde de junho, a cena se repetia: como tragédia, não como farsa. Desta feita, havia laços, embora ainda fosse possível duvidar de que houvesse algo a dizer. Mas houve. Nos discursos, eu e os estagiários que me acompanhavam anunciávamos a incompreensão: como entender que suas próprias vidas fossem entendidas como desprovidas de valor? Como dialogar com a possibilidade de que aqueles que conhecíamos, e por quem nutríamos afetos, fossem capazes de atos ignóbeis contra os companheiros? A primeira resposta – “não foi nenhum de nós” – não era suficiente porque a palavra não visava ninguém em específico, mas queria se tornar denúncia de uma violência lida como gratuita, e voltada contra um igual. Uma voz dentre eles se ergueu e para denunciar: como acatar as normas e como pertencer a uma sociedade que o rejeita?: “Eu sou lixo!”

Ouvir de um adolescente que perante a sociedade ele é um lixo. Ouvi-lo denunciar quantas barreiras ele enfrenta dentro da "prisão" e fora nas ruas. Vê-lo articular como o sistema penal tem sido falho. Vê-lo banalizar a vida, a sua própria, mais que todas as outras. Eu nunca vou esquecer toda a angústia estampada no rosto desse menino que já é grande porque o privaram de viver o lado doce de sua infância e juventude. E não, não se trata de vitimização, de ingenuidade. Trata-se de se deparar com os jogos de poder em toda sua magnitude. Não após absorvermos alguns textos acadêmicos célebres. Mas antes de mais nada, por ver essa denúncia eclodir numa só fala, sem mediações. De quem a vivencia, no imediato, cotidianamente. (Diário de campo, junho de 2015)

... talvez o mais difícil para eles seja conceber a ideia de que alguém possa vir a se importar com um deles, mesmo um estuprador. Talvez para H. não haja sentido, pois o território que ele habita não torna concebível a compreensão de tal afeto. São outros signos, outras expressões, outras leis. Seja como for, esse afeto existe e ele se tornou explícito. Nós não precisamos viver o que cada um daqueles adolescentes viveu para nos importarmos. Esse tipo de afeto não pede esse tipo de autorização, ele veio à tona e fez do signo o próprio corpo quando muitos da equipe choraram. O choro mobiliza de uma forma direta. As palavras podem caminhar até um determinado ponto, depois dele a expressão se dá apenas pelo afeto cru impresso no corpo, nos gestos, nos olhares. As palavras podem às vezes dissimular ou mentir, mas o significado, quando se dá sobre a superfície do corpo, aponta para uma verdade nua: se muitos choraram é porque nos importamos. (Diário de campo, junho de 2015)

Conhecimento corporificado

Trabalhar as perspectivas da pesquisa-com requer uma indagação insistente do outro. Muito já se disse acerca das modalidades de pesquisa que – na pretensão de produzir o saber objetivo e encontrar os universais – negam ao objeto o lugar de produtor de sentido. Enfrentar a suposta objetividade da ciência é, por isso, admitir que o objeto porta a razão, e o lugar de pesquisador demanda certo grau de renúncia, ou de humildade, diante desse objeto. Para usar as palavras de Veyne,

… o homem se encontra nele em todo o humano, sabe a priori que os comportamentos do passado se situam no mesmo horizonte que os seus, mesmo se ignora o que significava precisamente um comportamento dado: pelo menos ele sabe antecipadamente que esse comportamento tinha um sentido. (…) Mas, se sabemos a priori que os homens têm objetivos, em compensação não podemos adivinhar quais. Quando os conhecemos, podemos nos colocar em seu lugar, compreender o que quiseram fazer (…). Supondo, entretanto, que suas máximas tenham sido racionais ou pelo menos que conheçamos sua maneira de ser irracionais… Por outro lado, se ignorarmos seus fins, a introspecção não no-los dará nunca ou nos dará falsos. (…) A única virtude da compreensão é, pois, mostrar-nos o ângulo, segundo o qual toda a conduta nos parecerá explicável e banal; mas ela não nos permite dizer, entre várias explicações mais ou menos banais, qual é a certa. (…) compreender é o explicar de uma ação a partir do que se sabe dos valores alheios (…), ou então compreender é informar-se sobre os fins de outrem, seja por retrodicção e reconstrução (Veyne, 1998: 147-8).

Do mesmo modo, Haraway (1995) argumenta

... a favor de uma doutrina e de uma prática da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver. Mas não é qualquer perspectiva parcial que serve; devemos ser hostis aos relativismos e holismos fáceis, feitos de adição e subsunção das partes. O “distanciamento apaixonado” (Kuhn, 198211) requer mais do que parcialidade reconhecida e auto-crítica. Precisamos também buscar a perspectiva daqueles pontos de vista, que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometam alguma coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação. De tal ponto de vista, a categoria não marcada realmente desapareceria - enorme diferença da simples repetição de um ato de desaparição. (Haraway, 1995, p. 24)

Evidentemente, o movimento na direção de uma apreensão de sentido requer a suspensão da organização normativa do próprio pesquisador. Em situações limite, como a que me proponho a enfrentar neste texto, valores centrais terminam indagados. A morte ofertada, morrida ou matada, inquire a própria bíos sobre a qual repousa todo nosso conjunto normativo. A pesquisa-com encontra então, no limite do pesquisador, e não só de seu objeto, o nó górdio da produção de uma ciência implicada e corporificada. Não será mais fácil, afinal, encontrar o conhecimento situado nos estritos limites de meu próprio conjunto valorativo? Quais os limites éticos dessa renúncia quando se trata de produzir entendimento acerca do ato conjurado em discordância com os compromissos da vida? É possível, e ético, desvendar a racionalidade (Veyne, 1998) ali mesmo onde a ação admite a produção da morte e o cerceamento da vida? No limite: existe aí qualquer forma de racionalidade?

Numa de suas primeiras obras, Foucault (2000, p. 10) afirmou que “a Psicologia retira sua positividade das experiências negativas que o homem faz de si mesmo”. Aquilo que o autor colocou como crítica à produção do saber psicológico, tomo como licença para uma digressão sobre essa forma de fazer ciência. Desde então um crítico de práticas sociais de controle e vigilância, Foucault (2000) enfatizava o quanto as formas de poder e dominação se tornaram mais eficazes, anunciando que o surgimento da psicologia coincide com a invenção do político, na medida em que fez emergir o homem psicológico. Reconhecendo, mas radicalizando essa crítica, seria possível então admitir o político no interior da psicologia, ali mesmo onde se dá a negatividade da experiência, agora não para domesticá-la, mas para liberá-la. A racionalidade a que se refere Veyne (1998) repousa então naquilo que se submete ao controle, tanto quanto no que o nega e contradiz. Oferecer-se a essa aventura na produção do conhecimento é enveredar na solidão, único modo de produzir o encontro.

Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer encontro. (Deleuze e Parnet, 1998, p. 14)

Quando Agamben (2002) traz a ideia de que o poder soberano, e todas as formas de poder, retiram sua força política dos estados de exceção, ele lembra que a participação na vida política requer a sujeição incondicional ao poder de morte: a vida entra na cidade somente na dupla exceção da matabilidade e da insacrificabilidade; vida matável e vida insacrificável estão ambas, em conexão, articuladas. A vida matável, a vida nua, é política na plena acepção do termo porque só se constitui em relação direta e perene com o poder que a institui: “como o sabem os exilados e os banidos, nenhuma vida é mais ‘política’ do que a sua”. (Agamben, 2002, p. 189). Assim é que a morte, no limite, contrai zoé e bíos tornando-as, vida natural e cultura, ambas políticas porque igualmente submetidas ao poder.

Reivindicar o direito à própria morte seria, nessa linha de raciocínio, a forma mais extrema de destituição do poder soberano: pois se este se assenta sobre a morte, o direito à [própria] morte é em contrapartida o direito originário. Pensar a reivindicação de Osvaldo – o ex-condenado à morte que clama a aplicação da pena máxima – implica por isso admitir que seu desejo fala da retomada do poder sobre si, numa cena em que a vida nua já nada significa. Sua zoé clama pela bíos, ainda que pela negação da própria vida, e a demanda de morte anuncia que a bíos lhe importa mais que tudo. Do mesmo modo os imigrantes africanos, que lançam a zoé à sorte porque a vida vivida na terra natal já não lhes aporta nada, e toda a aventura vale em nome da busca de sentido. Eles recusam a vida indigna de ser vivida.

Agambem (2002) afirma que, para alcançarmos a democracia, será preciso reconhecer que ela comporta, contém e se ampara nos estados de exceção. No limite, eles é que são capazes de revelar os desvãos da opressão e da barbárie; longe de representarem a barbárie, eles podem conter, e por isso são capazes de revelar, a natureza mesma da opressão, contribuindo para combatê-la.

Quando Wacquant (2007) anuncia que os territórios desertificados o são não por inércia ou incapacidade do estado, mas como produto de uma biopolítica que assim os produz ativamente, ele os aproxima da noção de estados de exceção desenhados por Agamben (2002). A biopolítica, segundo Foucault (2008), envolve um sofisticado cálculo daquilo que vale a pena fazer viver e do que é preciso deixar morrer. Privilegiar a população, objeto maior da biopolítica, requer certa aquiescência cínica acerca do que vale a pena, de onde investir e do que abandonar.

Os banlieue franceses, os guetos americanos e as favelas brasileiras constituem-se no interior desse cálculo cínico. Ali, a vida é matável: elas são nosso homo sacer contemporâneo e coletivo. A questão é que o homo sacer do direito romano arcaico era figura solitária, banido da vida comum e condenado a vagar fora dos espaços coletivos. A soberania extraía sua força do ato do banimento, mas também da solidão a que o homo sacer era condenado, cuja vida se resumia à zoé justamente porque a bíos, a vida cultural e coletiva, lhe era negada. Coletivizado, ele retoma a cultura, porque constitui no território do banimento seu próprio bando. Conforme dados compilados por Santiago (2015), há hoje mais de 760 favelas no estado do Rio de Janeiro, 590 das quais na capital do estado. Cerca de 20% da população metropolitana vive nesses territórios. Acompanhando os trabalhos de Sousa Santos, vemos como a cultura nas favelas progressivamente se reorganizou, porque banida do acesso à ordem formal e ao desenho hegemônico do direito.

Wacquant (2007) enumera seis propriedades do que chama novo regime de marginalidade: o assalariado como vetor da instabilidade e da insegurança social; a desconexão funcional das tendências macroeconômicas; a fixação e a estigmatização territoriais; a alienação espacial e a dissolução do “lugar”; a perda do país interno; a fragmentação social e a ruptura simbólica. Trata-se de processos que aprofundam rupturas e fortalecem os limites entre inclusão e exclusão, não apenas porque segmentam ricos e pobres, mas porque produzem a ausência de um idioma comum por meio do qual esses grupos poderiam voltar a se articular: “o precariado é uma espécie de grupo nascido morto” (Wacquant, 2007, p. 285).

Pois os mortos se organizam, e ressurgem, gritando as próprias regras e os próprios mandamentos. Não deveria surpreender, embora afronte as consciências, que essas regras se organizem tomando como parâmetro o poder soberano, e exercendo-se como poder de vida e de morte. O crime é punido com a morte, a condenação é anunciada em tribunais auto-proclamados. O anúncio daquilo que ofende, diz Agamben (2007), é da natureza do poder soberano, e aqui se anuncia também o mesmo parâmetro: o estupro é definido como o maior dos delitos, e a pena que lhe corresponde é a morte. Não importa se o autor é morador da favela, membro da facção ou companheiro do seguro: o estado de exceção se afirma transversalizando essas linhas e impondo-se a despeito da filiação do autor, da vinculação à facção, do endereço ou da cor.

Palavras finais

Ainda Agambem (2007):

O ‘direito’ à vida – escreveu Foucault (Foucault, 1976, p. 128) para explicar a importância assumida pelo sexo como tema de debate político -, “ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’ de resgatar, além de todas as opressões ou ‘alienações’, aquilo que se é e tudo o que se pode ser, este ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos estes novos procedimentos do poder”. O fato é que uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades individuais sobre os deveres coletivos e torna-se, ao contrário, nos Estados totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões soberanas. (...) No mesmo passo em que se afirma a biopolítica, assiste-se, de fato, a um deslocamento e a um progressivo alargamento, para além dos limites do estado de exceção, da decisão sobre a vida nua na qual consistia a soberania. (Agambem, 2007, pp. 127-8)

Esse progressivo alargamento parece comportar também outros atores. A hipótese, ainda ensaística, incipiente, que trabalhamos neste texto fala de uma divisão – usurpação? subversão? – do poder soberano, capturado em territórios de exclusão, produzidos por sujeitos banidos que se recusam a sê-lo. A tarefa do texto é lançar linhas de exame sobre o lugar do pesquisador no processo de pesquisar-com, fazendo emergir algumas das dificuldades que é preciso acolher, e com as quais é preciso poder angustiar-se, sempre que o objeto de pesquisa afronta o pesquisador. Uma afronta que não é deliberada, nem mesmo pressentida, mas que se apresenta simplesmente porque o outro, esse com o qual quero ser –com, é diverso e regido por códigos de conduta que me são contrários, mas justamente por isso capazes de ressignificar o campo e a questão que me proponho a examinar. Se o –com é encontro, ele é necessariamente diferença e pode ser, também, confronto. Problematizar o lugar do pesquisador na pesquisa-com é admitir essa dificuldade e esse limite, é lutar e resistir na escrita.

No percurso do texto, levantei ensaios a partir de enfrentamentos provocados no campo. Eles me conduziram à discussão política, na tentativa de encontrar uma via possível de inteligibilidade nos sujeitos com os quais caminhei, que ao mesmo tempo carregam suas próprias questões éticas. Cabe dizer então que a ética a que me refiro não reside no mero reconhecimento de uma ética outra, estranha ao pensamento ainda que também conjure a subjetividade do pesquisador. Menos que de relativismos ingênuos, falo de uma ética que está posta no horizonte, tal como em certa medida desenhada por Agamben, autor que inspirou o texto: se a revisão da proposta democrática do ocidente requer examinar os estados de exceção e reconhecer que neles reside o limite daquilo que propomos democrático, a sociedade contemporânea no limiar do milênio não é menos bárbara que qualquer dos grupos que a antecederam. A ética exige, portanto, o esforço de decifrar os enigmas que produzimos e enfrentar a barbárie do presente, por exemplo a morte que se apresenta clamando pela vida. Quais vidas seguiremos produzindo? – é a questão que segue. Ou, para repetir a pergunta de Haraway (1995, p. 25), “com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”.

A resposta é devida aos espaços micropolíticos – aos adolescentes com os quais dialogo, aos discentes que me acompanham nesses encontros – porque a eles é dado o devir. A resposta é devida à psicologia, a uma psicologia que acredito capaz de produzir conhecimento corporificado, mas que [ainda?] não logrou levar esse mesmo conhecimento aos territórios de exceção que há cerca de seis décadas ajudou a produzir.

Por ora, agradeço a um adolescente irreverente que ao denunciar – “Eu sou lixo!” foi capaz, na sua linguagem nua, de anunciar com eloquência os estados de exceção, movendo o incômodo que tento decodificar e compreender não para aquietar, não para domar, mas para produzir tentativas de entendimento e encontro, os –com.



Referências

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Foucault, M. (2000) Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro (6ª. ed.         [ Links ])

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_________. (1988) Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes (6a. edição).         [ Links ]

Haraway, D. (1995) Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), pp. 07-41.         [ Links ]

Junqueira, E.B. & Rodrigues, J.A. de S. (1992). Pasárgada revisitada. Sociologia – Problemas e Práticas, 12, pp. 09-17.

Rocha, R. L. S. (2015) A guerra como forma de relação: Uma análise das rivalidades violentas entre gangues em um aglomerado de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8 (2), pp. 277-301.         [ Links ]

Santiago, M. A. (2015) Una marea de historias: releer la violencia de género em una favela carioca. Tesis Doctoral (Investigación y Intervención Social y Comunitaria). Universidad de Málaga.         [ Links ]

Sousa Santos, B. de (1974). The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Pasargada. Law and Society Review, 12, pp. 5-126.         [ Links ]

Veyne, P. (1998). Como se escreve a história. Brasília: UnB. (4a. edição)        [ Links ]

Wacquant, L. (2007). Los condenados de la ciudad: gueto, periferias y Estado. Buenos Aires, Siglo XXI.         [ Links ]

 

Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 

1 http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/05/brasileiro-se-arrepende-de-ter-revertido-pena-de-morte-para-prisao-perpetua.html; http://www.brazilianvoice.com/bv_noticias/filho-de-brasileira-se-arrepende-de-alteracao-da-pena-de-morte-para-prisao-perpetua.html; http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/05/brasileiro-se-arrepende-de-ter-revertido-pena-de-morte-para-prisao-perpetua.html

2 http://www.msf.org.br/noticias/mar-mediterraneo-depoimento-de-imigrante-resgatado-por-msf-e-moas.

3  http://m.jc.ne10.uol.com.br/canal/mundo/internacional/noticia/2015/04/25/tratados-como-lixo-imigrantes-morrem-tentando-chegar-a-europa-pelo-mediterraneo-178372.php.

4 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/05/de-janeiro-abril-10-dos-latrocinios-do-rj-foram-com-arma-branca-diz-isp.html.

5 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/menor-e-torturado-ate-morte-em-unidade-do-degase-no-rio.html.

6 http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-06-03/menor-infrator-e-morto-por-colegas-em-escola-do-degase-na-ilha-do-governador.html.

7 Adoto neste texto a expressão favela no sentido que lhe foi atribuído por Licia Valladares (2000, p.7): “aglomerações pobres, de ocupação ilegal e irregular, geralmente localizadas em encostas”. Consultar: Valladares, L. (2000). A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15(44), pp. 5-34.

Agradeço a todos os estagiários que me acompanham desde 2010, mas em particular a Giuliana Volfzon Mordente, Julia Robaina de Almeida, Marcela López Medeiros Machado, Matheus Antoniêto Moraes, Polyana Alves e Raphael Thomas Ferreira Mendes Pegden, e à mestranda Adriana Guerra Abreu Lemos, presentes nas atividades de 2015 aqui descritas.

I Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre a Infância e Adolescência Contemporâneas. Publicou Infância e Adolescência no Brasil e Psicologia Jurídica no Brasil, além de artigos no campo da Psicologia Jurídica. Email: hebe@globo.com

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