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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

A pesquisa em instituições de preservação da ordem

 

The research in preserving order institutions

La investigación en instituciones de conservación de la orden

   

 

Pedro Paulo Gastalho de BicalhoI , Bruno Giovanni de Paula Pereira RossottiII e Jefferson Cruz ReishofferIII

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

II Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

III Departamento Penitenciário Nacional, Brasília, DF, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva colocar em análise os desafios da pesquisa em instituições de preservação da ordem, tomando como vetor analítico a questão da (des)confiança. A sensação de insegurança é fortalecida por processos de subjetivação que potencializam a incerteza como principal vetor do controle social e pela repressão a determinados grupos sociais entendidos como “classes perigosas”, objetivo último de tais instituições. Teoria e prática, pesquisa e intervenção, pesquisador e pesquisado: elementos de um território de dicotomias clássicas da pesquisa científica. Discute-se, neste texto, as questões que emergem da prática do pesquisarCOM em instituições em que as relações estão determinadas por um desequilíbrio no exercício do poder. Conclui-se que tal perspectiva de pesquisa não é apenas possível, mas necessária.

Palavras-chave: Pesquisa Científica; Poder; Instituições Correcionais.


ABSTRACT

This article aims to analyze the challenges of research in correctional institutions using the question of (dis)trust as an analytical vector. The production of a pervasive feeling of insecurity is the ultimate objective of such institutions. It is entrenched by processes of subjection that use the spread of uncertainty as the principal vector of social control and the repression of specific social groups classified as “dangerous”. Theory and practice, research and intervention, knower and known: components of a territory of traditional dichotomies in scientific research. We examine the questions that emerge from a ResearchWITH practice in institutions where relationships are determined by an imbalance of power. Such research perspective is not only possible but necessary.

Keywords: Scientific Research; Power; Correctional Institutions.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar los retos de la investigación en las instituciones de preservación de la orden, teniendo como vector de análisis la cuestión de la (des)confianza. La sensación de inseguridad se ve reforzada por procesos subjetivos que aprovechan la incertidumbre como el principal vector de control social y de represión a ciertos grupos sociales que se perciben como "clases peligrosas", el objetivo final de este tipo de instituciones. La teoría y la práctica, la investigación y la intervención, el investigador y el investigado: elementos de un territorio de dicotomías clásicas de la investigación científica. Se analiza en este trabajo, las preguntas que surgen de la práctica de investigarCON en las instituciones en que las relaciones son determinadas por un desequilibrio en el poder. Se concluye que tal perspectiva de  investigación no sólo es posible, sino necesario.

Palabras-clave: Investigación Científica; Poder; Instituciones Correccionales.


 

 

Para início de conversa: uma questão de ordem

A busca por uma definição do que seria “A Ordem” produz, necessariamente, a concepção de desordem – articulada à constituição do medo como um operador político – e que faz existir instituições capazes de preservá-la. Porque o medo opera a ordem. Não necessariamente, a desordem. O caos, em um determinado momento, constitui-se como uma semiótica de risco1, como se representasse, em essência, a institucionalização da possibilidade de manutenção da vida. Operar, mais que pela desordem, mas meramente pela preservação desta ordem, produz efeitos: supostamente necessários à existência de uma sociedade “civilizada”.

A Ordem, demandada como necessária, como um fim em si mesma, é vista enquanto solução única para o perigo e desestruturação que a ideia de caos porta. Em nome d’ “A Ordem”, que se confunde com uma entidade necessária à proteção social, mata-se e, também, obriga-se a viver de maneiras muito específicas (Bicalho, 2014).

Eles têm endereço, cor, escolaridade, uma determinada maneira de ocupar o espaço urbano, estes “desordeiros”. Os que devem ser presos, vigiados, controlados ou exterminados são facilmente definíveis, aqueles que não se encaixam na lógica de trabalho-produção-consumo. São a “sujeira” da cidade, a “matéria fora do lugar” no sistema neoliberal vigente. Sim: porque lixo, em uma sociedade como a nossa, nada mais é do que matéria fora do lugar. Nada mais são do que aqueles “sem lugar” no sistema de produção. A eles, um lugar: junto aos “guardiões de ordem”.

E, logo após a curva da esquina, são reservadas uma série de políticas públicas a esses indesejáveis, as quais serão aqui denominadas por “políticas de ordem”. Receberão este nome ao longo do texto pela aposta de que o substrato sobre o qual se fundam em termos de subjetivação2, seja justamente a noção de um caminho comum entre a produção d’ “A Ordem” e a “conquista” de uma sociedade pacífica, bela e justa.

E nesse “choque” entre a vida e as “políticas de ordem” se enuncia a pergunta. Seria “A Ordem” um valor maior que a vida? Resistirão, as vidas, aos discursos e desígnios dos “agentes da ordem”? Resistirão às intervenções produzidas para expurgar da cidade toda sua “sujeira”?

São muitos questionamentos, entendemos. A maioria deles permanecerá absolutamente submerso em uma mar de insolubilidade, sem qualquer resposta. Este texto não se pretende a dar conta de qualquer uma destas questões. Sem mais delongas, convidamos o leitor a caminhar junto a nós nesse percurso, pensando “A Ordem” em sua relação com a vida. A vida que pesquisa e que, por isso, intervem. A vida que é pesquisada e que, também por isso, intervem.

No princípio era o caos...

“A Ordem”, como hegemonicamente é entendida atualmente, é uma invenção recente enquanto estratégia de governo. O caos permeando o Estado e seus cidadãos passa a ser uma questão a partir do século XIX, junto ao nascimento de uma ciência vinculada à física.

A termodinâmica, partindo de estudos sobre a entropia e sua influência no equilíbrio das partículas faz emergir o ordenamento do universo enquanto uma questão. Haveria, para todo corpo, segundo a segunda Lei da Termodinâmica, um aumento de “desordem” – ali representada pela entropia – nos sistemas livres (Atkins, 1999). Fora das condições controladas, as partículas tendiam a um caos geral, capaz apenas de aumentar e impossibilitar. Uma necessidade de controle das condições laboratoriais surge: para cada corpo, um lugar, para cada técnica, um protocolo capaz de eliminar os desvios produzidos pelo caos, pelas informações cruzadas, pela sobredeterminação do mundo.

Não se trata aqui de levantar uma cientificidade para a emergência da noção de ordem. A Lei da Termodinâmica em questão não traz uma inovação, mas dá visibilidade à construção da dualidade entre ordem e caos. Essa concepção está carregada da concepção positivista de ciência, na qual a dimensão caótica seria, em si, produtora da falta de ordem – como um exato simétrico, o qual além de impedir o avanço da civilização, poderia representar um risco (Rolnik, 1995).

Essa mesma perspectiva de ordenamento científico, advinda do positivismo comteano, é extrapolada para o campo social. O próprio Comte viria a invadir a temática social defendendo uma posição na qual, apenas através da filosofia positivista, o caos gerado pelos conhecimentos regionais e divergentes poderia ser superado, em nome de uma “reorganização social” (Comte, 1830/ 1978).

A diversidade do pensamento não poderia ser tolerada em uma sociedade que aspirasse a uma integração ordenada. Apenas uma forma integrada de produção do conhecimento poderia criar a ordem social. No entanto, essa integração não poderia ser levada às vias de fato utilizando quaisquer arcabouços filosóficos. A verdade e a ordem, para Comte (1830/ 1978), deveriam ser alcançadas através da filosofia positiva, única capaz de levantar críticas fundamentadas aos outros modelos filosóficos vigentes, tanto metafísicos quanto teológicos. Nesse sentido, mesmo o estudo das sociedades deveria obedecer a um método.

Evidentemente, seria ingênuo alocar o nascimento das ciências humanas na busca pela verdade proposta pelo positivismo comteano. Foucault (1975/ 2005) nos traz a noção da emergência das ciências humanas enquanto um aparato de poder3 sobre a vida – o qual já daria sinais de articulação a partir do século XVII – operando ora pelo poder disciplinar (Foucault, 1975/ 2003), ora por um regime biopolítico (Foucault, 1975/ 2005), não sendo quaisquer uma destas práticas de poder mutuamente excludentes.

Este regime disciplinar foi categorizado por Foucault (1976/ 2003a) através da centralização das práticas de poder “[...] no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade [...]” (p. 131). Ou seja, essa estratégia de poder está vinculada a uma anátomo-política, uma subjetivação atrelada ao controle dos corpos e produzida em nível de análise “individual”.

Em um nível de regulação das populações, atua o biopoder, um poder que se exercerá pelo jogo político com a idéia de homeostase, equilíbrio, médias estatísticas, em suma, de uma ordem ao nível da própria gestão da vida, enquanto corpo-espécie (Foucault, 1975/ 2005). Alongar a vida, fazê-la durar, em estreito compromisso com a ordem desenvolvimentista do capitalismo, positivando-o. O biopoder atua, nas palavras do próprio Foucault (1975/ 2005, p.133): “[...] garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, à articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro [...]” .

Quando a vida emerge como uma questão política para o capitalismo eficiente, tanto pela administração concomitante dos corpos, acompanhada de uma gestão calculada da vida, “A Ordem” parece um discurso de saber-poder interessante.


Cidadania, produção do medo e psicologia

“Sem limites não há cidadania. Sem polícia não há limites.” (Placa afixada no 22º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, localizado na entrada do Complexo de Favelas da Maré).

Cidadania é uma palavra consagrada, tomada como um “direito” inalienável da condição de humano, orbitando entre dois modelos mais gerais. Em um deles, ela é suposta como uma cidadania a ser conquistada, nos momentos em que “direitos” do “cidadão” parecem ter sido postos ao esquecimento. De outra maneira, pode-se pensar em uma cidadania consentida, na medida em que os “direitos” já garantidos sejam mantidos pelo seu próprio exercício.

Aos que fogem aos modelos pré-constituídos de cidadania, a condição de cidadão parece não se fazer valer. Uma vida que, a exemplo do homo sacer de Agamben (2004) nada vale, ou vale muito pouco, ou vale mais aprisionada, pois movimenta a indústria de segurança, com maior segurança que estando liberta; a essa vida não é merecida a proteção integral, mas uma coerção e controle em nome d’ “A Ordem”.

E os indesejados, de algum modo, serão geridos ou exterminados – ainda que em vida, através da supressão de seus modos singulares de existência.

[...] tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitoria sobre os adversários políticos, mas à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização (Foucault, 1975/ 2005, p. 306).

Atualmente, dentro do proclamado contexto de incerteza e insegurança pública, cada vez mais o psicólogo é convocado a atuar nas agências oficiais de manutenção da ordem e de promoção da segurança. Nada para se estranhar. A própria constituição da regulamentação da Psicologia no Brasil, através da lei 4.119 de 1962, aponta como uma das funções do psicólogo a “solução de problemas de ajustamento”. Complementar as engrenagens de vigilância e disciplinarização com técnicos competentes, supostamente capazes de produzir disciplina, com vistas à tarefa de “defender a sociedade” de seus refugos parece ser, neste contexto, uma boa ideia. A atuação do saber-fazer psicológico vai sendo convocada pelas instâncias da Ordem e, paripasso ao desafio imposto pela ampliação do mercado psi, ampliam-se também as possibilidades de realização de pesquisas nessas instituições.

Possibilidade ou utopia? Que desafios para o PesquisarCOM as instituições de preservação da ordem nos impõem? Há possibilidade de construção de um comum – capaz de promover relações de confiança – em instituições cuja proposta é de produzir uma sociedade “coesa” (leia-se assujeitada)?

Talvez seja preciso inventar novas formas de produzir interferências nas práticas institucionalizadas que cristalizam certos modos-de-ser-sujeito, bem como se propõem a anular qualquer possibilidade de singularização. Se não há singularidade não há sujeito e, se não há sujeito, com o que o COM vai se ligar? PesquisarCOM. Mas… com quem? A pesquisa, aqui, necessita de um traçado de linhas de ruptura com estes terrenos instituídos, criando possibilidades para um novo emergir. Possibilidade onde a clássica diferenciação entre pesquisa e intervenção, teoria e prática, perdem o sentido ao construir como aposta o traçado de um plano comum em composição com o território pequisado. Mas… como fazer operar tamanha ruptura nas instituições ditas totais?

O pesquisarCOM em instituições totais: utopia?

Seguimos inspirados em metodologias processuais, fabricadas no decorrer da pesquisa, produzindo assim campos de saber e objetos a pesquisar, dependendo sempre dos domínios a serem estudados.

(...) não tenho um método que se aplicaria, do mesmo modo, a domínios diferentes. Ao contrário, diria que é um mesmo campo de objetos que procuro isolar, utilizando instrumentos encontrados ou forjados por mim, no exato momento em que faço minha pesquisa, mas sem privilegiar de modo algum o problema do método... Não tenho teoria geral e tampouco tenho um instrumento certo. Eu tateio, fabrico, como posso, instrumentos que são destinados a fazer aparecer objetos (Foucault, 1975/ 2003, p. 229).

Foucault (1984/ 1998) cria o caminho da investigação ao mesmo tempo em que cria os objetos a serem conhecidos, bem como “julga necessária outra concepção de sujeito, constituído por práticas historicamente localizáveis” (Ferreira Neto, 2004, p. 69). Assim, se a elaboração do projeto cartesiano busca a localização de verdades através de um caminho traçado pelo sujeito neutro e universal, Foucault (1984/ 1998) se coloca no extremo oposto não garantindo a integridade do pesquisador ou até mesmo sua própria modificação durante o percurso: “de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” (p.13)

A aposta metodológica de um pesquisarCOM objetiva instigar os processos de produção de subjetividade enquanto um método de pesquisa-intervenção que se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras fixas a serem aplicadas durante a pesquisa. Assim, não se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim, uma meta pré-determinada antes da investigação, sendo este, “sempre um método ad hoc” (Passos; Kastrup & Escóssia, 2010, p.32). Nesta aposta, “sujeito e objeto, pesquisador e campo de pesquisa, teoria e prática se conectam para a composição de um campo problemático” (Passos e cols., 2010, p.137). E nestas conexões, a possibilidade de emergência de um COM.

Em princípio, teoria e prática, pesquisar e atuar (intervir), pesquisador e pesquisados compõem elementos de um território de dicotomias clássicas da pesquisa científica. Em uma conversa de Gilles Deleuze com Michel Foucault (1979/ 2007), intitulada “Os intelectuais e o Poder”, será debatida a separação totalizadora que se estabelece nas relações entre teoria e prática. Por vezes, a prática é entendida como aplicação de uma teoria ou como inspiração para a mesma, enquanto a teoria como expressão, tradução de uma prática qualquer. Para os autores, as relações entre teoria e prática não são totalizadoras, mas são regionais e locais. A própria teoria já é uma prática sempre endereçada a um domínio específico e com funções delimitadas. Assim, irão propor que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. (...) é preciso que sirva, que funcione” (Foucault, 1979/ 2007, p.71). Deste modo, importante será utilizar esta caixa de ferramentas como proposta metodológica e teórica visando acompanhar um campo em construção, em seu processo de produção (intervenção) simultaneamente ao processo de pesquisar.

Assim, a pesquisaCOM apresenta a potencialidade de não opor teoria e prática, pesquisa e intervenção, produção de conhecimento e produção de realidade, sendo um importante recurso para estudarmos subjetividades institucionalizadas de forma que estes não sejam supostamente pré-determinados ou não apreendidas através dos estigmas e estereótipos. O objetivo é colocar em funcionamento uma concepção de conhecimento que implica comprometer-se com a própria produção do mundo institucional, em seus movimentos instituintes, em seus movimentos de produção da subjetividade de internados e profissionais, das relações interpessoais, da relação entre Psicologia e sua clientela. Diferentemente de apenas teorizar sobre uma realidade que estaria sendo investigada, o trabalho do pesquisador “é sempre pelo compartilhamento de um território existencial que sujeito e objeto da pesquisa se relacionam e se codeterminam” (Passos e cols., 2010, p.131). E para habitar tal território existencial, necessitamos retirar o psicólogo-pesquisador da posição de protagonista que descreve categorias psicológicas ou psicologizantes de um determinado local para provocá-lo a estar engajado como mais um elemento que irá compor e conjugar forças em um plano comum. Nesta atitude, é preciso estar disponível à experiência do novo, do não conhecimento, do não saber o que está por vir, se eximindo de iniciar com um problema fechado, já sabendo de antemão o que se procura.

Torna-se também primordial entender que na produção de uma pesquisa, os próprios pesquisados devem trabalhar junto ao pesquisador, tornando-se tão protagonistas quanto os que assinam a pesquisa, pensando formas de cuidado capazes de incluí-los como parte atuante do processo. Neste princípio, é estar atento a uma importante pista metodológica: o ethos da pesquisa, uma atitude de “pôr-se ao lado”, de modo lateral e em composição com o campo. É o momento em que a pesquisa-intervenção propõe a implicação do pesquisador, para posicioná-lo ao lado da experiência e do suposto pesquisado, evitando o perigo das pesquisas tradicionais de “saber sobre”, apostando no “saber com”.

O “saber sobre” das pesquisas tradicionais irão afirmar um paradigma epistemológico que busca controlar variáveis, antecipar o futuro, determinando a regularidade dos fenômenos subjetivos/objetivos, num entendimento asséptico da ciência enquanto produtora de verdades, visando a neutralidade do conhecimento, a distância entre o sujeito do conhecimento e o objeto, valendo de modo explicativos para apostar numa repetição futura de tais fenômenos determinada por regras gerais. De forma diferente, o “saber com”, estuda os eventos à medida que os acompanha em seus processos de produção, reconhecendo e valorizando sua singularidade. O trabalho do pesquisador é agir com os diferentes acontecimentos, atentos às suas singularidades, “(…) ao invés de ir a campo atento ao que se propôs procurar, guiado por toda uma estrutura de perguntas e questões prévias” (Passos e cols., 2010, p.144). Estando atento às experiências na medida em que elas se realizam, em suas singularidades, sem pré-condições ou fórmulas dadas, o pesquisador habita/conhece/intervém no território a partir de sua disposição de compor um plano comum, sem estar submisso ou dominado por seu campo de pesquisa.

Em consonância com tal aposta metodológica, adota-se como concepção teórica de subjetividade a proposta já apresentada de Deleuze e Guattari que tem “como característica distintiva sua indissociabilidade da ideia de produção. (...) como produção de formas de viver, de sentir, de conhecer” (Kastrup, 2000, p. 20). Para tais autores, tanto a subjetividade como a objetividade4 são produzidas em um campo coletivo de forças/fluxos dispersos, múltiplos e heterogêneos que se agenciam produzindo sujeitos e objetos em um contínuo processo de produção, bem como nossa postura de pesquisar/atuar em tal campo problemático. Desta forma, entende-se as subjetividades como processo, em incessante produção por todo corpo social a partir de elementos heterogêneos, e não como estrutura identitária ou interioridade. Nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos não são produtos de uma interioridade psíquica e nem preexistem no mundo em si, eles são fundamentalmente produzidos a partir de práticas historicamente localizáveis (Bicalho & Reishoffer, 2009).

Entendemos, no entanto, que produzir novas maneiras de conceber a subjetividade não seja, aqui, o nosso maior desafio, mas o de criar estratégias de penetração nos diferentes espaços institucionais. “Espaços onde possamos produzir a vida, afirmando-a enquanto devir, tornando-a mais potente e alegre” (Figueiró, 2015, p. 233). Seria o pesquisarCOM uma estratégia possível?

Uma questão que pode ser colocada é: será que em uma instituição total, onde constatamos que as relações estão determinadas por um desequilíbrio no exercício do poder, que separam o grupo dirigente e internados, é possível adotar a postura de pesquisa-intervenção que busca “saber com” e não “saber sobre”? Seria uma ingenuidade propor relações laterais e não hierarquizadas, em lugares que são constituídos pela hierarquia?

A aposta é que se pode criar as possibilidades para que as forças instituintes e de singularização emerjam, objetivando produzir novos agenciamentos, novas composições e arranjos subjetivos. Bifurcar a totalização para extrair, dela, vida. Porque “os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver” (Deleuze, 1962/ 2007, p.18).

Como postura estratégica, é importante habitar o campo com mais perguntas do que respostas, com mais dúvidas do que certezas. Produzir sujeitos da pesquisa para, com eles, construir o comum. E, do comum, a confiança. Sem garantias a serem cobradas a posteriori. Romper as lógicas pautadas nos pagamentos de fiança para, talvez por aí, construir a confiança. Porque, sem ela, não é possível o pesquisar. Nem escrever sobre o que pesquisa. Con-fiança, mas sem a fiança. Aposta, portanto. Mas sem garantias. Porque importa, sobretudo, o processo.

A escrita, que não se configura como “mais uma etapa da pesquisa”, mas como experiência de encontro com o outro; sob censura, não acontece. Ou, se acontece, é mediada por subtextos, que promovem uma escrita parcial e, muitas vezes, ininteligível.

Escrita como experiência de si e com o outro que produz novas formas de pensar, e de pesquisar. É preciso apostar na escrita e nos desafios que ela nos impõe, sobretudo quando esta relata a produção de conhecimento que advém de um processo do pesquisar em instituições de preservação da ordem.

Fácil? Escrever nunca é fácil. Sobretudo quando a escrita ocorre sob o “fio da navalha” que pode fechar as portas para o pesquisador, transformando-o em mais um elemento que compõe as ditas classes perigosas. Situação ainda mais dificultada quando o local de pesquisa é, também, o local de trabalho: quando o pesquisador é um trabalhador de instituições de preservação da ordem.

Pesquisar é um risco. Não exatamente aquele que fundamenta a atuação dos Comitês de Ética em Pesquisa, descrito pela resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Aquele é o risco que deve ser evitado, a qualquer custo. Risco que não pode ser maior que os previamente medidos benefícios da pesquisa, assegurado pela indelização do pesquisador ao pesquisado tal como afirmado nos modelos de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Não é deste risco que tratamos aqui, caro leitor. Mas do risco inerente à vida. Inerente, portanto, ao ato de pesquisar. Porque se toda pesquisa é intervenção (Passos e cols., 2010), toda pesquisa produz riscos: de produçãoo do novo, de produção de vida. Risco que pode (e deve) ser potencializado.

Concordando com Leite (2014), consideramos que o manejo das pesquisas processuais em instituições totalizantes não é apenas possível, mas necessário, sobretudo pela possibilidade de inventar “modos de subjetivação mais solidários” (p.210). Com as instituições, com os institucionalizados, com a pesquisa, com a escrita.



Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 

1 E o risco, na perspectiva da preservação da ordem, exige fiança. Garantia, pois, para que a “proteção da vida” seja efetiva. Proteger a vida… da vida! 

2 A subjetivação, ou produção de subjetividade, configura-se como a modelagem, construção e trabalho de determinados aparatos de modelização social em torno da produção de determinadas maneiras de perceber, estar, sentir. Sua importância é central, visto que "...a produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção. As forças sociais que administram o capitalismo hoje entendem que a produção de subjetividades talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto produzirem esquemas dominantes de percepção do mundo." (Guattari & Rolnik, 1986/ 2005, p. 40).

3 Deleuze (1986/ 2008), realiza valiosa análise acerca da concepção de poder foucaultiano, para soar um alerta. Esse poder não é um objeto essencial, transcendente; tanto quanto não é localizável no Estado ou totalizável em – ou posse de – uma estrutura. E acima de tudo, não é lei repressora, ou fundamento natural jurídico. Foucault – nas palavras de Deleuze – trata de um poder dialógico, conflitivo; “[...] é a própria guerra e a estratégia dessa guerra em ato” (p. 40). É positivo antes de tudo, produz verdades, domestica corpos, molda subjetividades, sem a necessidade do uso da força.

4 Não temos aqui a intenção de dicotomizá-las, mas de afirmar que a subjetividade produz efeitos muito “objetivos”. E, assim, a objetividade também se constitui como efeito de fluxos heterogêneos.

I Doutor em Psicologia, Psicólogo. Professor Associado do Instituto de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq) e Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). E-mail: ppbicalho@ufrj.br 

II Mestre em Psicologia, Psicólogo. Discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: rossotti.bruno@gmail.com 

III Mestre em Psicologia, Psicólogo do Sistema Penitenciário Federal, vinculado ao Departamento Penitenciário Nacional. E-mail: jeffersoncr@gmail.com

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