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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre Jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Ética e pesquisa: o compromisso com o discurso do outro

 

Ethics and Research: the commitment with the other’s discourse

Investigación y ética: el compromiso con el otro

   

 

Solange Jobim e SouzaI e Cíntia de Sousa CarvalhoII

I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir o ato de pesquisar em ciências humanas, tendo como foco a produção escrita. Assim sendo, buscamos definir o que entendemos por escrever com o outro, a partir do pesquisar com. O que está em pauta é uma postura metodológica, que tem como referência a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, cujo fundamento é assumir o interlocutor da pesquisa como parceiro e coautor. O compromisso ético com o discurso do outro tem como premissa os conceitos de dialogismo e alteridade para iluminar o encontro com o outro no campo e, posteriormente, na escrita do texto. Esse modo de atuar instaura alguns questionamentos éticos, tal como a exigência do anonimato, e problematiza a forma como o consentimento livre e esclarecido é tratado na pesquisa. Em síntese, narrar uma pesquisa não é só registrar os acontecimentos, mas consiste em um trabalho político de afirmação de algumas verdades em detrimento de outras.

Palavras-chave: Ética; Dialogismo; Alteridade; Escrever com; Pesquisar com.


ABSTRACT

This article discusses the act of research in Human Sciences which focuses on the production of writing. Thus, starting from the conceptual foundation of researching with, we seek to define what we mean by writing with the other. What is at stake is a methodological approach which accepts the interlocutor of research as partner and co-author, an approach based on Mikhail Bakhtin’s philosophy of language. The ethical commitment to the other’s discourse is premised on the concepts of dialogism and alterity to illuminate the encounter with the other in the field and, subsequently, in the written text. This way of working poses ethical questions—such as conditions of anonymity—and problematizes the way in which consent is accorded and treated in the research. In short, relating research findings is not just about recording events. It consists in the affirmation of certain truths at the expense of others as political activity.

Keywords: Ethics; Dialogism; Alterity; Writing with, Researching with.


RESUMEN

El propósito de este artículo es discutir el acto de investigar en Humanidades, enfocándose en la producción escrita. Por lo tanto, tratamos de definir qué entendemos por escribir con el otro, a partir del  investigar con el. Lo que está en juego es una postura metodológica, que tiene referencia a la filosofía del lenguaje de Mikhail Bakhtin, que se fundamenta en asumir el interlocutor de la investigación como socio y coautor. El compromiso ético con el discurso del otro tiene como premisa los conceptos de dialogismo y de otredad para iluminar el encuentro con el otro en el campo y, posteriormente, en la escritura del texto. Este modo de actuar introduce algunas cuestiones éticas, tales como el requisito del anonimato, y discute la manera cómo se trata el consentimiento libre e informado en la encuesta. Así, narrar una búsqueda no es tan sólo el registro los acontecimientos, pero consiste en un trabajo político de la afirmación de algunas verdades, a costa de comprometer otras.

Palabras-clave: Ética; Dialogismo; Otredad; Escribir con; Investigar con.


 

 

Introdução

Nos domínios de que tratamos aqui, o conhecimento existe apenas em lampejos. O texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo. Walter Benjamin

Quando o pesquisador das ciências humanas se propõe a conhecer outro indivíduo, ele se depara, de imediato, com a duplicidade de sua tarefa – ser sujeito do conhecimento e, ao mesmo tempo, “matéria” de conhecimento. Abrir-se para o outro, neste caso, é permanecer também voltado para si. Nesta duplicidade está a origem da especificidade das ciências humanas e, portanto, da sua difícil tarefa de construir seus métodos próprios de investigação. Dar conta desta singularidade científica causa um impacto direto no modo como se dá a relação eu-outro no âmbito da pesquisa em psicologia. Isto significa dizer que, nesta perspectiva, o psicólogo-pesquisador se insere no campo de investigação ocupando a posição de estar “dentro da cena sem possibilidade de estar fora”, ou seja, qualquer neutralidade que o pesquisador-psicólogo almeje atingir, buscando um distanciamento de seu interlocutor, é absolutamente artificial.  A categoria básica que define a produção de conhecimento em nossa área de investigação é o seu caráter dialógico. O texto é o ponto de partida de qualquer produção de conhecimento. Onde não há texto, não há objeto de pesquisa. (Bakhtin, 2003).  

Com estes argumentos, que têm como referência a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, é que nos propomos a definir a base teórico-metodológica do que significa pesquisar com, para, então, explicitar como se estrutura o escrever com no âmbito das pesquisas em Psicologia, ou, melhor dizendo, como definir o que entendemos por escrever com a partir do pesquisar com?


Discurso na vida e discurso na teoria

Na vida cotidiana, a palavra é, sem dúvida, o material privilegiado da interação entre pessoas. Segundo Mikhail Bakhtin, não há um único ser humano cuja condição de humanidade não advenha de sua interlocução com os demais, dado que seu nascimento é dotado de significados antecipadamente atribuídos e que toda a sua existência será marcada pelo modo como dará continuidade a essa interlocução.

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc), com sua entonação, em sua tonalidade valorativa emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo. (Bakhtin, 2003:373-374).

Assim, como o conhecimento de si próprio acontece no cotidiano das relações que se estabelecem entre pessoas, também o ato de pesquisar configura-se como um acontecimento na vida, que se efetiva entre o pesquisador e seus interlocutores. O conhecimento construído no ato de pesquisar, mais do que uma reflexão sobre a realidade investigada, remete a uma reflexão situada no contexto em que o pesquisador está inserido, e no qual participam diversas vozes. Portanto, produzir conhecimento com base nesta abordagem implica em negociar com os interlocutores todo o processo de investigação, de modo que o resultado da pesquisa seja produzido e alcançado no diálogo entre uns e outros.

Assim, deixando-se afetar pelas circunstâncias e pelo contexto em que a cena da pesquisa se desenrola é que o pesquisador rompe com a pretensa neutralidade na produção do conhecimento em ciências humanas. Na medida em que este fato é inevitável, a questão para o pesquisador não é mais controlar o seu desempenho para minimizar ao máximo as consequências de suas atitudes no campo.  Ao contrário, trata-se aqui de tornar explícito, reconhecendo no ato de pesquisar e, posteriormente, na escrita do texto, o modo como as circunstâncias afetaram tanto o pesquisador como os sujeitos da pesquisa. Em outras palavras, pesquisar com implica, necessariamente, na revelação da atitude do pesquisador que se indaga sobre a especificidade do conhecimento que é produzido de forma compartilhada, por meio de uma cumplicidade consentida entre ele e seus interlocutores.

Nesta abordagem, vale sublinhar que dialogismo e alteridade são conceitos que não podem ser pensados separadamente. Alteridade, no contexto de uma pesquisa de campo ou no momento da escrita do texto científico, não se limita à consciência da existência do interlocutor, nem tampouco se reduz ao que é simplesmente diferente, mas comporta também o estranhamento e o pertencimento mútuos. Isto significa dizer que o interlocutor, que se revela em confronto com o pesquisador, provoca a busca pela compreensão, mas também, simultaneamente, instaura o lugar da incompletude e da provisoriedade de qualquer conhecimento. Esta perspectiva de análise se, ao mesmo tempo, sustenta a condição de inacabamento do conhecimento, também acaba por denunciar a precária condição de certas teorias que têm a pretensão de representar, de forma abstrata, a totalidade da experiência do homem no mundo. Ora, o mundo conhecido teoricamente não é o mundo inteiro, mas apenas um fragmento provisório da realidade que se pretende conhecer (Bakhtin, 2010). 

O discurso na vida é atravessado por julgamentos de valor e a compreensão de qualquer ato de fala não pode descartar as avaliações que inevitavelmente estão presentes nas interações sociais. Ora, pensar a pesquisa em ciências humanas como um modo especial de acontecimento na vida implica levar em consideração que a compreensão dos temas que se quer investigar se dá a partir de confrontos de ideias e negociação de sentidos possíveis, atravessados por julgamentos de valor, entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Deste modo, se o pesquisador busca compreender uma dada realidade, seu modo de compreender não se separa do seu modo de avaliar, pois ambos, compreensão e avaliação, se constituem como momentos simultâneos de um ato integral único. Assim sendo, como o pesquisador não esta só na cena da pesquisa, o grande desafio diz respeito à sua disponibilidade de se deixar surpreender pelo encontro/confronto que acontece no campo com os sujeitos da pesquisa.

Os discursos na vida se apresentam em sua forma ordinária, ininterrupta e única. Os discursos nas teorias promovem pausas e ganham mais estabilidade com a manifesta pretensão de alcançar generalizações e elaborar “verdades universais” (teorias filosóficas, teorias estéticas ou teorias no âmbito das ciências humanas), ainda que estas sejam sempre provisórias.  Portanto, o lugar ocupado pelo pesquisador é marcado pela experiência singular e única do encontro do pesquisador e seu outro, na busca de produzir textos (falados ou escritos) que revelem compreensões, ainda que provisórias, para dar sentido aos acontecimentos na vida.

Em termos metodológicos, vale sublinhar que o foco da pesquisa não está na fala do interlocutor tomada isoladamente, mas na cena dialógica que se estabelece entre o pesquisador e seu outro, produzindo sentidos, acordos e negociações sobre o que pensam sobre um determinado assunto, em um contexto definido por atos de falas recíprocas. A busca da verdade não se encontra no interior de uma única pessoa, mas está na interação dialógica entre pessoas que a procuram coletivamente. O mundo em que vivemos se revela de diversas maneiras nos diálogos da vida. Essas vozes formam o cenário onde contracenam a ambiguidade e a contradição, certezas e incertezas, verdades e mentiras. Somente a tensão entre as múltiplas vozes que participam do diálogo da vida pode dar conta da integridade e da complexidade das questões humanas.

Assim, entendemos, com base nesta abordagem, que qualquer pesquisa que envolve um encontro entre pessoas se dá em um contexto marcado por um processo de alteridade mútua, em que o pesquisador e seus outros negociam modos como cada um define, por assim dizer, suas experiências, para dar sentido às suas existências.

Considerações sobre a ética na pesquisa

Nesta abordagem metodológica, o que normalmente se considera os bastidores da pesquisa são incorporados como elementos importantes para o relato, ou seja, narrar estranhamentos, desencontros e afetos que acontecem entre o pesquisador e seu outro fazem parte do roteiro de uma investigação que se pretende compartilhada. Mesmo porque aquilo que de imediato não faz parte da cena em si, na verdade pertence ao cenário que cria as condições de possibilidade da pesquisa. Melhor dizendo, o que muitas vezes é descartado, ou considerado “sobra”, é aqui percebido, como elemento que compõe a cena da pesquisa, ainda que a compreensão mais ampla acerca da contribuição desse elemento possa se dar apenas posteriormente. Walter Benjamin, em uma breve citação no livro Passagens, sintetiza o que acabamos de dizer da seguinte maneira: “O que são desvios para os outros, são para mim os dados que determinam minha rota. - Construo meus cálculos sobre os diferenciais de tempo – que, para outros, perturbam as ‘grandes linhas’ da pesquisa.” (Walter Benjamin, 2006, p. 499).

Contudo, este tipo de atitude, que coloca em destaque a responsabilidade do pesquisador frente aos sujeitos que compartilham da cena da pesquisa, requer um modo desinteressado de estar no campo. O que isto significa?

De acordo com Mikhail Bakhtin, o conceito de des-interesse coloca o pesquisador em uma situação de compromisso ilimitado, de responsabilidade absoluta como indivíduo. Isto significa dizer que o pesquisador, assim como os sujeitos da pesquisa, não pode ser substituído por outra pessoa em sua responsabilidade, entendida como absoluta, como “sem álibis”. O que organiza o conhecimento gerado no contexto da pesquisa em ciências humanas não se encontra na relação instrumental e mecânica entre sujeito-objeto, mas na individualidade da responsabilidade mútua e do compromisso ético, tanto do pesquisador como dos sujeitos da pesquisa, com o conhecimento gerado a partir deste encontro específico. Esta postura metodológica nos permite avançar na discussão da ética na pesquisa. Tomando como exemplo a questão do anonimato dos sujeitos da pesquisa, como problematizar esta exigência institucional dos comitês de ética?  

Compreendemos que não exista uma ética universal, que caiba a todos os contextos e relações de pesquisa. Neste sentido é que a criação de nomes fictícios ou omissão de dados que possam servir de reconhecimento das identidades são questões que devem ser negociadas com os interlocutores. Nossa intenção, quando assim procedemos, é evitar omitir visibilidades que podem ser bem vindas. O anonimato, com a intenção de proteger o sujeito da pesquisa, pode também sugerir uma desautorização do discurso alheio, desprestigiando o singular de cada história, tornando nosso interlocutor invisível. Sobre este aspecto, Vinciane Despret (2011) afirma que estaríamos produzindo uma espécie de “efeito sem nome”, que, pela via do segredo, despotencializa determinadas narrativas. Garantir o anonimato dos sujeitos da pesquisa pode, por vezes, ferir este sujeito naquilo que diz respeito à sua singularidade. Portanto, a questão da pertinência do anonimato deve ser discutida com o interlocutor da pesquisa, partindo da premissa de que é uma decisão negociada que, se por um lado, deve ser tomada tendo em consideração a proteção do sujeito, por outro, não deve servir a uma postura paternalista.

A mesma reflexão se estende ao consentimento dos interlocutores na participação das pesquisas. Não deveríamos tratar do consentimento como uma questão que atravessa toda a relação da pesquisa? O que observamos é que o consentimento é tratado apenas como um documento que deve ser assinado, muitas vezes, antes mesmo das pesquisas acontecerem. Além disso, a assinatura destes termos se dá, em alguns casos, para cumprirmos protocolos de comitês de ética e exigências de revistas científicas. Isso se apresenta como um paradoxo: como consentir sobre algo ainda não dito, ainda por ocorrer? Apostamos que fazer pesquisa com o outro implica em verificarmos a disponibilidade de nosso interlocutor em participar efetivamente de nossa pesquisa, discutindo os impactos de seu discurso, de modo que o consentimento não se torne meramente uma questão burocrática. A questão do consentimento da pesquisa desemboca também no que diz respeito à escrita. Como consentir a produção de um texto acadêmico que será gerado a partir da análise dos discursos de nossos interlocutores que, ainda que seja apoiado no compromisso e na ética do pesquisador, será escrito à revelia do interlocutor da pesquisa? Vejamos como temos enfrentado este desafio.

No texto o compromisso com o discurso do outro

Encerrada a atividade de campo propriamente dita, ainda há um extenso exercício a ser feito, pois um bom trabalho de campo não se resume a seguir as pistas e as conexões que entremeiam as práticas, mas refere-se também ao modo como estas conexões são posteriormente apresentadas na escrita do texto, relatando os percursos da pesquisa realizada.

A escrita requer um tempo de reflexão e de investimento laborioso para dar conta do registro, em forma de texto, daquilo que revela a intensidade da experiência vivida no campo pelo pesquisador e seus outros.  Como caracterizar a especificidade deste momento em que o pesquisador se retira do campo, onde se deu o diálogo vivo com o sujeito da pesquisa, para o momento do relato escrito deste acontecimento? Em outras palavras, estamos nos interrogando sobre as consequências epistemológicas da pesquisa em ciências humanas, em seus dois momentos constitutivos: o encontro do pesquisador e seu outro no campo, e o posterior encontro do pesquisador com a tarefa de produzir o texto escrito que dará forma e conteúdo ao acontecimento vivido no campo. Em cada um destes momentos o que se coloca em destaque é o compromisso ético de construir o sólido entendimento humano da experiência vivida.   

Não é simples a tarefa de escrever um texto que dê conta dos acontecimentos, visto que as exigências dos crivos científicos podem se tornar um espartilho. No texto acadêmico, o referente do acontecimento vivido é o manancial de onde brota nossas palavras, um acontecimento que nos teve simultaneamente como espectador e como ator e que, agora, nos requer uma determinada autoria. Como enfrentar o desafio de transpor para a escrita do texto acadêmico a experiência do que foi vivido na pesquisa de campo?

Marília Amorim (2002), amparada na obra de Mikhail Bakhtin, possui um interesse epistemológico no texto, uma vez que o compreende como lugar de circulação de conhecimentos e que, por isso, merece ser problematizado. A autora, então, não busca valorar a qualidade do texto propriamente dita, mas, ao tratar do registro escrito da pesquisa, se empenha em compreender como a alteridade é materializada e desemboca em vozes e silêncios. Para Amorim (2002), a teoria das vozes de Bakhtin nos emancipa de um dos principais problemas na escrita da pesquisa: como recuperar a polifonia do ocorrido no campo? Para a autora, a questão da restituição ou da citação literal do sentido do que foi dito no campo para o texto é um falso problema, devido ao fato de que todo o texto torna-se outro em outro (con)texto, afinal “na escrita, o diálogo, enquanto interlocução real e vivida em campo, não poderá nunca ser restituído.” (2001, p. 202). O texto seria então o lugar de apresentação do vivido, mas também de descoberta e invenção.

De que modo é possível investir, na escrita do texto, em aspectos que revelem a descoberta e a invenção?  De acordo com a autora nossa atenção deve se voltar para o movimento que o pesquisador faz ao realizar a seleção do que deve ser apresentado no texto. Nas ciências humanas o registro escrito deve evidenciar o aspecto polifônico do campo, bem como trazer a alteridade como seu fundamento, apresentando conflitos e desencaixes. É através da alteridade que é possível fazer falar o interlocutor da pesquisa no texto – o que não corresponde a dar a voz, mas a dar espaço para a voz –, naquilo que ele enuncia a partir do seu lugar. Amorim (2001) enfatiza a tensão que se apresenta quando o pesquisador busca inscrever o outro em seu universo de questões, buscando garantir a presença de sua voz no texto.

No entanto, qual seria o caminho para apresentar a polifonia vivida no campo? Como fazer as diversas vozes se agenciarem na forma escrita? De acordo com Janice Caiafa (2007), a simples utilização e aproximação das vozes não garante que a polifonia se inscreva no texto, pois: “Parece que o uso do discurso direto, embora seja um ingrediente importante na escrita etnográfica, não basta para garantir a polifonia, o relato da enunciação coletiva que poderia ressoar a experiência de campo.” (p. 163).

Trocando em miúdos, a justaposição ou o paralelismo entre as vozes não instauraria, em si, o aspecto polifônico. A autora entende que é preciso, em primeiro lugar, atentar para o modo como a voz do pesquisador interage com as vozes dos seus interlocutores na escritura. Aquele que narra não deve eclipsar-se do texto buscando uma neutralidade absoluta, mas também não deve ficar num lugar de autoridade que analisa, prescreve, moraliza à distância. Antes, a voz do pesquisador deve ser companheira da voz dos outros personagens, se colocar ao lado e se comunicar com eles, estar aberto a interferir e ser por eles interferido, trocar entoações:

Acredito que, na etnografia, são essas interferências que podem suavizar a objetividade do texto narrativo e, portanto, a autoridade do etnógrafo. É assim que se conseguiria fazer passar a multiplicidade, a escritura. Os agenciamentos de campo deveriam se expressar também num agenciamento de vozes no texto etnográfico, em agenciamentos coletivos de enunciação. Seria preciso lançar mão das variantes mais flexíveis do discurso direto, mas também do discurso indireto. O importante é a despreocupação com as fronteiras entre o discurso citado e o narrativo – mesmo que elas em alguma medida e inevitavelmente permaneçam, o que inclusive pode ser desejável e necessário em alguns momentos. (Caiafa, 2007, p. 165)

Mas, se a voz do narrador deve estar ao lado e não acima da do interlocutor, é também importante que suas vozes se distingam entre si, pois a lógica não é a da fusão, mas a da aproximação: “Chegar perto, expor-se, falar junto e não acima são práticas que se distinguem da mistura.” (Caiafa, 2007, p. 168). Neste caso, tanto o discurso citado (de outrem), quanto o discurso narrativo (do pesquisador) andam juntos, de modo que a singularidade dos discursos não seja perdida e a alteridade se presentifique na escrita.

Quando o discurso narrativo se despe do lugar de autoridade para acompanhar o discurso citado, temos uma inversão onde a autoria clássica cede espaço para um tipo de coautoria ou autoria compartilhada, que é provocada pelo pesquisador no momento em que faz dialogar as vozes no texto. O outro se torna coautor porque efetivamente fala, visto que os efeitos do encontro foram assumidos na escrita – ainda que o pesquisador seja aquele que incontestavelmente se responsabiliza pelo acabamento da produção escrita. Deste modo, o texto não fala para o outro ou sobre ele, mas dialoga com ele, e esta conversa se faz ouvir pelo leitor em potencial. Além da coautoria do interlocutor no texto, também o leitor em potencial a quem se destina a escrita participa de dentro da produção da narrativa, como uma força que interfere no quê e no modo como os conteúdos são tramados. Assim, podemos pensar numa coautoria tripla que inclui o narrador, seu interlocutor e o leitor.

No que diz respeito à forma, Amorim (2002) convida-nos ainda a pensar em modos de compartilhar o vivido que transgridam os códigos de uma escrita acadêmica já estabelecidos. Ou seja, na academia, desde muito cedo aprendemos uma forma considerada legítima de apresentação de nossos textos científicos. Entretanto, para recuperar a dimensão de autoria no texto científico, o pesquisador se vê frente ao desafio de aliar forma e conteúdo. Podemos afirmar que esta abordagem teórica e metodológica, construída tendo como base o pensamento de Mikhail Bakhtin, respalda o abandono das formas instituídas de apresentação de saber, possibilitando a produção de uma escrita transgressora e que, portanto, elabora a apresentação do acontecimento vivido no campo se permitindo dar forma às suas afetações, sentimentos e razões. Daí Amorim (2003) considerar que o texto em ciências humanas deve priorizar “uma escrita que presentifique e não apenas que represente” (Amorim, 2003 , p. 78). Apresentar o acontecimento vivido significa elaborar um trabalho de registro que contempla na forma da escrita a dimensão própria do encontro, daquilo que se revela especificamente por considerar o que está entre uns e outros. O que se pretende é revelar uma forma de escrita que faça justiça ao acontecimento vivido, porém consciente de que todo texto se torna outro em outro contexto.

A ética neste tipo de relação se explicita na consciência do fato de que, se o pesquisador oferece contorno à experiência do seu interlocutor e vice-versa, o diálogo neste contexto é um modo de ambos se deixarem surpreender, sem criar estereótipos ou aprisionamentos em expectativas que não lhes dizem respeito. Falar do outro na pesquisa é também convidá-lo a se olhar por outra lente, a da investigação, para com ele negociar o que foi apresentado. Deste modo, na perspectiva do pesquisar com, compreendemos que cada campo de pesquisa pode oferecer um modo de responder esta questão. Entretanto, entendemos que seja importante considerar como possibilidade nossos interlocutores serem convidados a ter contato com nossas produções escritas e sobre elas opinar. Mesmo porque, se o interlocutor é aquele a quem imediatamente a pesquisa se refere, partimos da ideia de que faz parte da ética do pesquisador incluí-lo como leitor privilegiado, visto que é dele que se fala, melhor dizendo, é com ele que se fala. Aqui, a autoria de nosso interlocutor desdobra-se: ele é incluído como personagem que efetivamente fala no texto e como leitor que interfere e constrange o texto que é escrito. 

Deste modo, se imporá um duplo exercício: da parte do pesquisador, o de produzir um texto que seja legível para seu interlocutor (tanto do ponto de vista da linguagem utilizada, mas também da forma como questões delicadas são apresentadas, como, por exemplo, no levantamento de determinadas críticas); e, após a leitura e a apresentação das possíveis sugestões de nosso interlocutor, buscar um modo de incorporá-las ao texto1. É necessário ainda afirmar que fazer nosso texto incluindo o outro não nos desautoriza enquanto pesquisadores de expormos nossos pontos de vista sobre o campo. Mas, se a percepção de nosso interlocutor não corresponde à nossa, compreendemos que incluir tal dissonância no texto enriquece nossas reflexões. Portanto, escrever com o outro, nasce da tensão entre a restrição imposta por tal leitura e a responsabilidade do pesquisador de narrar os acontecimentos a partir do seu ponto de vista. 

Em suma, entendemos que narrar uma pesquisa não é só registrar os acontecimentos, mas consiste em um trabalho político de afirmação de algumas verdades em detrimento de outras. A política da escrita de que lançamos mão aposta no dialogismo e na alteridade (Bakhtin, 2003) como marcas que devem iluminar o texto, marcas que se traduzem através dos seguintes movimentos:

• Apresentar ao invés de representar as múltiplas vozes;
• Dar espaço para a presentificação dos dissensos produzidos no encontro entre essas vozes;
• Narrar as condições de possibilidade das cenas, ou seja, as cenas da pesquisa de campo não são bastidores, mas fazem parte da pesquisa em si;
• Permitir que a voz do narrador esteja ao lado da voz do interlocutor e que os discursos tenham espaço para se interferirem mutuamente;
• Consentir que o interlocutor entre em contato com o texto e dialogue com ele, sendo incorporados seus posicionamentos e sugestões, contudo o pesquisador não deve abrir mão da responsabilidade por aquilo que pensa em um dado momento, ou seja, a autoria do seu ato de pensar.

Sobre a responsabilidade, o pensamento de Hannah Arendt converge com as ideias de Mikhail Bakhtin, pois ambos advogam que não há álibi para a ação dos homens no mundo, ou seja, cada qual é responsável pelo modo como transforma seu pensamento em ação. Arendt afirma que a ação e o nascimento estão estreitamente ligados. Para cada nascimento uma nova história se projeta para o futuro. Cada pessoa é artífice da materialidade e da cultura, expressão de sua existência na construção do futuro. Viver é um permanente risco, mas a confiança no que há de mais humano nos homens é fundamental para o enfrentamento dos riscos.

Em toda ação a pessoa se exprime de uma maneira que não existe em outra atividade. Daí a palavra é também uma forma de ação. Eis então o primeiro risco. O segundo é o seguinte: nós começamos alguma coisa, jogamos nossas redes em uma trama de relações, e nunca sabemos qual será o resultado... Isso vale para qualquer ação e é simplesmente por isso que a ação se concretiza – ela escapa às previsões. É um risco. E agora acrescentaria que esse risco só é possível se confiarmos nos homens, isto é, se lhe dermos nossa confiança – isto é o mais difícil de entender – no que há de mais humano no homem; de outro modo seria impossível. (Arendt, 1993, p. 143)

O que se coloca em destaque nas palavras de Arendt é a imprevisibilidade das ações, a singularidade de cada existência e a confiança dos homens entre si. A pluralidade do agir no mundo está no cerne da condição humana. No ato de pesquisar também enfrentamos as mesmas questões. O discurso é a efetivação da pluralidade, do viver como ser singular entre iguais, posto que: “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.” (Arendt, 2004 / 1958, p. 16).

Assim, de acordo com estes argumentos, pode-se afirmar que é na ação e no discurso que os homens mostram quem são, revelam suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo, respondendo a pergunta que recebem ao nascer: “Quem és?”  

Por este viés retomamos a questão da ética na pesquisa ao indagar sobre a atitude do pesquisador em relação à sua tarefa. Quais são os efeitos do seu pensamento nas práticas sociais? Suas pesquisas estariam enclausurando as diferenças e fortalecendo as técnicas de controle, ou incentivando a produção de um conhecimento que faça justiça à liberdade de expressão e criação?  Estas perguntas são essenciais quando se pretende superar as metodologias que prestam contas apenas às reproduções da eficácia dos métodos, impedindo, deste modo, o surgimento de alternativas mais criativas de invenção do cotidiano.      

Ao problematizar o modelo hegemônico de razão absoluta e atemporal, estes autores colocam em cheque os discursos teóricos que desconsideram a densidade das experiências singulares para a produção do conhecimento no campo da psicologia. Neste debate se explicita o compromisso ético do pesquisador com a sua tarefa, na qual pensar se transforma numa extraordinária atenção para si mesmo, para o outro e para o mundo. Também requer despojamento, disponibilidade, além da recusa a esquemas interpretativos preparados a priori. Em síntese, o compromisso do pesquisador é com a densidade e a profundidade do que é possível ser revelado com o ato de pesquisar.

Ao escrever seu texto, o pesquisador concretiza a passagem do mundo da vida para o mundo da cultura. No diálogo com outros textos ele penetra o fluxo infinito dos discursos e torna-se responsável por aquilo que o seu texto acaba por fazer existir no mundo da vida. As performances textuais, sejam na vida ou na teoria, alimentam a cadeia dos discursos na grande temporalidade, ora se omitindo através do silêncio, ora permitindo que determinadas questões ganhem expressividade no texto. O texto é o lugar onde se materializam as vozes e o silêncio, revelando os modos como os homens participam da criação de si mesmo e dos rumos da história. Não existe a primeira nem a última palavra e não há limites para a criação discursiva no grande tempo. O texto é o ponto de partida. Onde não há texto, não há objeto de pesquisa.

Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 

1 A pesquisa com pessoas que possuem limitações para ler e interagir com textos (que não sabem ler ou que possuem alguma necessidade especial) requer inventar outros modos de incluir os interlocutores na feitura do texto, como por exemplo, pela via da oralidade. 

I Doutora em Educação. Professora Associada do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Coordenadora do Grupo de Pesquisa da Subjetividade (GIPS) e do Núcleo Interdisciplinar de Memória, Subjetividade e Cultura. Pesquisadora do CNPq. E-mail: soljobim@puc-rio.br

II Psicóloga. Doutora em Psicologia pela PUC-Rio. Professora do Centro Universitário de Barra Mansa. E-mail: cintiapsicologia_51@hotmail.com

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