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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.2 Porto Alegre July 2016

 

RESENHAS

 

O não-sentido na Cognição Enativa

 

The non-sense in Enactive Cognition

El non-sense en la Cognición Enactiva

 

Cappuccio, M., & Froese, T. (Eds.). (2014). Enactive cognition at the edge of sense-making: making sense of non-sense. Palgrave Macmillan UK.

 

Renata Fischer da Silveira KroeffI, Póti Quartiero GavilonII e Cleci MaraschinIII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 

A teoria da autopoiese, proposta pelos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela na década de 70 e, posteriormente desdobrada como teoria enativa pelo último autor, recoloca a cognição como um processo vital, incorporado, criador e coletivo. Tal posição se diferencia de uma tradição hegemônica nas ciências cognitivas que tomam a cognição como processamento de informações que advém pela representação de um mundo independente e pré-dado. Representação essa que apresentaria uma teleonomia: se distanciando de um saber prático para atingir sua formalização.

As diferenças entre as posições enativas e cognitivistas abrem um amplo leque de controvérsias que levam os pesquisadores da abordagem enativa a buscarem tanto conceitualmente como experimentalmente, fortalecer suas proposições. É esse o principal objetivo dos autores dos capítulos que compõem a coletânea do livro “Enactive Cognition at the edge of sense-making: making sense of non-sense” organizado por Massimiliano Cappucino e Tom Froese.

Visando contribuir com o campo de estudos enativos da cognição, os autores se propõem o desafio de abordar a questão do não-sentido (non-sense) na dinâmica dos processos cognitivos. Se para a teoria cognitivista a produção de sentido é assentada em um paradigma representacional, uma vez que o sentido pressupõe a adequação da representação com o mundo, para a abordagem enativa a questão se formula de outro modo. Para a enação (Varela, Thompson e Rosch, 2003), a relação sensório-motora com o mundo é central e, assim, a produção de sentido é sempre baseada na experiência incorporada do sujeito com o mundo e não na representação do mesmo.

Introduzindo o tema, os organizadores do livro se questionam sobre o lugar do não-sentido em uma abordagem que toma a cognição como criação que acontece a partir das congruências operacionais que vão se instituindo na experiência com o mundo e configurando produções de sentidos. O acoplamento ativo com o mundo coloca em primeiro plano um domínio de significância e não o do não-sentido (Di Paolo, Rohde e De Jaegher, 2007).

Partindo da proposição que afirma que viver é conhecer - um dos aforismos mais importantes da obra de Maturana e Varela (Maturana e Varela, 1997; Maturana e Varela, 2002) - concluem que o viver opera a transformação do inusitado em conhecível. Assim, a produção de sentido ocorre, primordialmente, a partir da ação em um mundo, do acoplamento com o mesmo é não da utilização de uma codificação sobre o mundo. Para a abordagem enatista, mesmo o pensar sobre o mundo é uma forma de atuar nele, pois consiste na realização de coordenações de ações no campo das explicações. Estas explicações, entretanto, não têm valor ontológico privilegiado em relação a qualquer outro tipo de experiência no mundo, sejam elas declarativas ou não. Ou seja, os sistemas formais explicativos são efeitos da enação e não um sistema prévio que utilizamos para nos orientar em um mundo independente de nossos fazeres.

Nessa perspectiva, a teoria enatista apresenta uma proposta clara para a cognição como ação incorporada abordando, em especial, processos de produção de sentido na constituição da relação entre um sujeito e um  mundo a partir do sistema sensório-motor. É a partir desta constatação que Froese e Cappuccio (2014) formulam o principal problema abordado na maioria dos capítulos do livro, ou seja, questionam se a cognição enativa seria totalmente saturada com sentido. Se a resposta fosse positiva, teríamos dificuldade em explicar a falta de sentido, o contrassenso, o não-sentido. A dificuldade seria incrementada pois, ao não basearem-se em uma explicação representacionista, os estudos enativos da cognição não podem explicar o não-sentido através de representações erradas, inexistentes ou "em branco".

A partir dessas questões, o não-sentido coloca-se como objeto de estudos importante para a enação, tanto para explicar sua existência a partir desta abordagem como para possibilitar uma produção teórica que inclua esse tipo de experiência na explicação da cognição.  A disposição dos capítulos do livro se dá a partir de três eixos principais: Teoria e método, Experiência e Psicopatologia e Linguagem e Cultura. Os autores propõem diversos objetos e métodos para desenvolver seus trabalhos sobre o não-sentido. Como exemplo, podemos citar Natalie Depraz (2014) que utiliza uma pesquisa com entrevistas de explicitação em primeira pessoa como forma de investigar as emoções e a percepção do não-sentido ao observar determinadas pinturas. John Stewart (2014) apresenta simulações computacionais como forma de testar hipóteses e desenvolver a perspectiva autopoiética do sistema imune. Dobromir Dotov e Anthony Chemero (2014) criam uma atividade (um jogo de computador) para utilizar como modelo da fenomenologia heideggeriana de uso de ferramentas, que foi utilizada para observar como este uso acontece em relação a diferentes situações (inclusão de ruído e de não-sentido no jogo). David Leavens (2014), a partir de uma revisão bibliográfica, propõe uma nova interpretação de pesquisas sobre a produção de sentidos gestuais em macacos, apontando que os macacos parecem ter capacidades próximas à de crianças humanas se incluirmos a inserção na cultura humana como variável importante na análise dos dados.

Os autores também buscam explorar temas tradicionais da enação, como o estudo da percepção e da linguagem, assim como, outros temas contemporâneos, como gênero e saúde mental. Michel Bitbol (2014) utiliza a física quântica para demonstrar limitações das explicações representacionistas do pensamento e apresenta uma alternativa que acredita ser mais alinhada com a enação, o zen budismo. Michael Beaton (2014) debate o já citado problema de descrever a aprendizagem a partir de uma definição conceitualista de cognição, na qual entendimento é condição para a percepção. Daria Dibitonto (2014) discute o papel da imaginação para o não-sentido e a produção de sentidos através da esquizofrenia e discute possíveis aplicações da teoria na produção de saúde mental. Elena Cuffari (2014) aborda o caráter coletivo da linguagem e o não-sentido como parte necessária do processo de produção de sentido na linguagem. William Short, Wilson Shearin e Alistair Welchman (2014) se propõem a aproximar a produção do filósofo Deleuze sobre sentido e não-sentido da abordagem enatista. Juan González (2014) versa sobre o não-sentido que surge em rituais tradicionais com substâncias psicoativas guiados por xamãs e propõe formas de pensar a saúde mental a partir de seus resultados. Michele Merrit (2014) busca experiências de gênero para pensar o breakdown como um processo que inclui o não sentido e que deveria ser entendido como mais dependente de contexto social.

A abordagem enativa da cognição é constituída a partir de uma proposta tradicionalmente transdisciplinar, que reúne um conjunto de ideias centrais referentes ao estudo da emergência de sistemas autônomos, à produção de sentidos compartilhados e ao caráter incorporado da experiência (Froese e Di Paolo, 2011). Sua relevância nos estudos dos processos cognitivos se deve, em parte, por abordar fenômenos complexos e de difícil teorização. Um dos temas mais recorrentes em trabalhos contemporâneos da área são os processos de produção de sentido participativos.

O livro “Enactive Cognition at the edge of sense-making: making sense of non-sense” configura-se em  uma iniciativa singular e inovadora no contexto de estudos da cognição contribuindo significativamente com a área de estudos da enação ao defender o não-sentido como aquilo que possibilita, ou a partir do qual emerge a produção de sentidos e, assim, se torna parte central e necessária dos processos cognitivos (Short, Shearin e Welchman, 2014; Depraz, 2014; Dibitonto, 2014). Pode ser entendido  também como parte definidora da emergência de breakdowns (interrupções no fluxo da experiência), em um ciclo de produção de conhecimento que passa por momentos de não entendimento que possibilitam produções de novos sentidos a partir da “falha” dos anteriores (Depraz, 2014; Merritt, 2014; González, 2014). Os estudos enativos do não-sentido também têm efeitos resultados à produção de saúde (González, 2014; Stewart, 2014; Dibitonto, 2014). Dessa forma, a produção de sentido, assim como o não-sentido, constituem ferramentas conceituais que podem ser utilizadas para explicar nossa relação com o mundo em diversos recortes domínios diferentes, como a saúde, a ciência, a tecnologia, a linguagem, a percepção e a cultura.     

Embora no livro, alguns autores privilegiam o entendimento da produção de sentido como relação corporal com o mundo, especificada nas possibilidades de ação do organismo em um meio; e outros privilegiam uma explicação da produção de sentidos ligada à linguagem, um domínio de coordenações consensuais de ações que possibilita ações reflexivas. Nós propomos que estes entendimentos podem ser aproximados através de uma concepção de saber-sobre como um modo específico de saber-fazer, que coloca os dois grupos explicativos em consonância, explicando a produção de sentido através de ações em domínios diferentes, mas relacionados (corporal e linguístico).

Abordar o não-sentido a partir de uma perspectiva enativa apresenta grande relevância, pois propicia uma visão não representacionista do conhecimento. Além disso, é importante apontar que embora a existência do não-sentido pudesse parecer comprovar a inadequação de uma abordagem centrada na produção de sentido, os estudos apresentados não apenas contradizem esta possível acusação, como produzem um campo de estudos totalmente novo para a teoria, incorporando o não-sentido na definição enativa do sentido.


Referências

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Bitbol, M. (2014). Making sense of non-sense in physics: The quantum koan. In Enactive Cognition at the Edge of Sense-Making (pp. 61-80). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

Cappuccio, M., & Froese, T. (Eds.). (2014). Enactive cognition at the edge of sense-making: making sense of non-sense. Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

Cuffari, E. C. (2014). On being mindful about misunderstandings in languaging: making sense of non-sense as the way to sharing linguistic meaning. In Enactive cognition at the edge of sense-making (pp. 207-237). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

Depraz, N. (2014). The surprise of non-sense. In Enactive Cognition at the Edge of Sense-Making (pp. 125-152). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

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Dotov, D., & Chemero, A. (2014). Breaking the Perception-Action Cycle: Experimental Phenomenology of Non-Sense and its Implications for Theories of Perception and Movement Science. In Enactive Cognition at the Edge of Sense-Making (pp. 37-60). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

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González, J. C. (2014). Traditional shamanism as embodied expertise on sense and non-sense. In Enactive Cognition at the Edge of Sense-Making (pp. 266-284). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

Leavens, D. A. (2014). The plight of the sense-making ape. In Enactive Cognition at the Edge of Sense-Making (pp. 81-104). Palgrave Macmillan UK.         [ Links ]

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1 Talvez o maior exemplo desta constatação entre a agônica relação do corpo compreendido como templo das impurezas e do pecado e da alma como domínio do sagrado fosse anto Agostinho, figura emblemática do cristianismo que em sua autobiografia intitulada Confissões aponta a proeminência da confissão dos pecados como estratégia de adoração a Deus.

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Membro do Núcleo de Ecologias e Políticas Cognitivas (NUCOGS/UFRGS). E-mail: kroeff.re@gmail.com

II Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Membro do Núcleo de Ecologias e Políticas Cognitivas (NUCOGS/UFRGS). E-mail: poti.gav@gmail.com

III Professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS. Docente e orientadora dos Programas de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional e de Informática na Educação. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Núcleo de Ecologias e Políticas Cognitivas (NUCOGS/UFRGS). E-mail: cleci.maraschin@gmail.com

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