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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dez. 2016

 

ENTREVISTA

 

Crises da democracia e insurreição

 

 

 

 

Entrevista com Peter Pál PelbartI concedida a Mário Francis Petry LonderoII, Luis Felipe PariseIII, Camila Braz da SilvaIV e Simone Mainieri PaulonV

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, Brasil.

IV Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, Brasil.

V Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, Brasil.


 


 


Apresentação

O Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representado pelo Grupo de Pesquisa-Intervenção “Intervires” sob coordenação da professora Simone Mainieri Paulon, realizou no dia 15 de novembro de 2016, uma entrevista com Peter Pál Pelbart. Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o filósofo se notabiliza por seus estudos no campo da filosofia da diferença, no pensar esquizoanalítico, com ampla atividade na defesa da vida em seus movimentos micropolíticos e moleculares. Além disso, na atualidade o professor é editor da n-1, fundada em 2011, cujas produções chegam ao cenário editorial através da produção de livros-objeto numa perspectiva transdisciplinar entre a filosofia, o teatro, a estética, a literatura, a antropologia e a política. São livros-petardos / livros-intervenção que abordam os problemas contemporâneos de maneira plural e aguda, relançando-os em novas direções. A entrevista que segue foi realizada no calor dos movimentos de ocupação estudantil, mais especificamente no saguão ocupado da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, durante visita feita pelo grupo com o filósofo que lá encontrou alguns de seus leitores, seguindo para o Instituto de Artes e mais tarde para um evento autogestionário, informal, artístico, coletivo e itinerante que tem sido realizado pelo país afora animado pelas ideias libertárias reunidas, sobretudo, em um dos livros recém lançados pela editora - “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição”. Perturbador desde sua autoria, já que assinado por certo “Comitê Invisível”, a obra é uma espécie de manifesto lançado simultaneamente em diversas línguas e países e permite, com curiosa precisão, uma análise problematizadora do atual cenário brasileiro, com suas ocupações e movimentos de resistência contra a PEC 55 - chamada “PEC da maldade” – contra a Medida Provisória de reforma do ensino médio e contra o Projeto de Lei da Escola sem Partido.  A “produção da crise” e decorrente subjetivação do medo que vivemos contemporaneamente é um dos principais aspectos que nos ajuda a pensar as insurreições que o século XXI têm nos apresentado e que o professor Peter traz à reflexão na conversa que segue. Afinal, como ele diz, a questão central, mesmo e sobretudo em tempos de crise, continua sendo: que formas de vida nós desejamos hoje?

Entrevista

Londero: Boa tarde a todos. Agradeço a disponibilidade do Professor Peter de nos proporcionar este espaço para pensarmos o cenário brasileiro e por que não mundial entre capitalismo, crise e insurreição. Representando o PPG de Psicologia Social e Institucional e o Grupo de Pesquisa-Intervenção Intervires da UFRGS, gostaríamos lhe propor algumas questões sobre os movimentos de ocupação que estão ocorrendo no Brasil e todo este cenário político brasileiro. O que isso representa enquanto movimento político e o que podemos agenciar junto ao livro “Crise e Insurreição” que o senhor veio lançar aqui em Porto Alegre? Sobretudo na ideia de que as insurreições não são algo à parte de um lugar do mundo, mas do quanto elas têm um fator globalizado e de potência que diz respeito a uma certa negação dessa afirmação de que a vida só pode se formar dentro de uma dada democracia capitalista, imprimindo questão a isso.

Pelbart: Esse livro que é inicialmente chamado “Aos nossos Amigos, ao qual a gente agregou esse subtítulo “Crise e Insurreição”, foi um choque quando eu tive acesso à primeira leitura, porque uma primeira metade desse livro dizia de uma nova técnica de governo através da produção ativa de uma crise política e econômica. Eu acho que isso se encaixa tão perfeitamente ao que nos aconteceu nesse ano. Produziu-se artificialmente uma crise política e econômica para provocar a maior regressão dos últimos cinquenta anos em uma velocidade inusitada. Então, parece que é uma fórmula já conhecida e que talvez esteja sendo experimentada pela primeira vez numa escala continental. Esta fórmula, que foi sendo experimentada no Paraguai e que foi inventada e burilada nas potências do norte, agora a gente se depara com esse resultado em que estamos perplexos e desentendidos, em um certo sentido paralisados a nível nacional, eu diria. Isso é um choque que ainda vai levar um tempo para poder minimante ser elaborado. Por outro lado, o que eu percebo, que essa é a outra metade do livro “Crise e Insurreição”,  é uma espécie de manual de insurreição contemporânea, um frescor, uma conexão direta com a cotidianidade, com a afetividade das pessoas, com a sensibilidade sem grandes fórmulas abstratas ou planetárias e que, no entanto, a experiência que eu tenho desde que se lançou o livro, é que cada leitor tem uma espécie de revelação. Uma revelação que fala de insurreição de um jeito tão direto, tão encarnado, tão experimental, sem nenhuma fórmula universal, mas que diz respeito ao que hoje em dia importa, ou seja, uma situação de absoluto desconforto político em todos os sentidos. Será que a questão é a tomada de poder ou, antes disso, um exercitar da potência das pessoas que estão resistindo? Quem é que está nessa? Por isso que estou muito feliz de estar aqui em uma ocupação e tenho visto várias pelo Brasil e tenho sentido que é uma invenção da coreografia política, uma reinvenção da coreografia política. Porque as pessoas estão ocupando os lugares em que elas estudam, trabalham ou vivem. E elas estão dizendo: isso aqui é nosso e isso não pode ser, não pode uma canetada decidir o que vai acontecer com esses espaços, esses lugares e essas vidas, sem que isso passe por uma conversa conosco. Eu vejo isso, que aqui é uma universidade ocupada, mas também temos os secundaristas que já estão há anos nessa disseminação de um procedimento, um método, um modo de se fazer cargo coletivamente, de um espaço e se responsabilizar por ele, administrar a vida ali dentro, e a partir dali ter todo tipo de iniciativa laterais. Que vão não só fazendo conexão entre uma escola, entre uma escola e o movimento, entre as famílias, as vizinhanças, mas de algum modo vai produzindo uma espécie de rede de solidariedade que é absolutamente essencial num momento desses. Quando isto ganha uma espécie de densidade, uma quantidade micropolítica, isso vira um movimento que transversaliza a sociedade que é muito interessante. Não pode ser um setorzinho só fechado em si mesmo.

Londero: É uma ideia que corrobora a proposta do livro de problematizar a não-presença, tal como é tratada em um dos seus capítulos1. Justamente a ideia da nossa não-presença no urbano, na cidade, na vida, já que assim fica muito mais fácil governar, exercer estratégias de poder sobre nós, nos administrar, sem que a gente possa fazer o mínimo movimento, sem que se questione os andamentos da gestão pública e do próprio capitalismo.

Pelbart: Essa é uma reinvindicação muito forte, de uma presença física, uma presença em termos também de afetos, de sociabilidades, de signos, tudo isso configura uma ocupação. Ocupação não é simplesmente ocupar um prédio e não é simplesmente uma reinvindicação abstrata. Eu acho que neste entremeio dá para reinventar uma escala que é das modalidades de convivência, de coexistência, de afetação recíproca, de expansividade, que ganha força de enunciação. Isso tudo vai junto. Essa é uma sacada do livro, não acho que eles inventaram tudo, porque muitas coisas tomaram de teóricos outros que eles nem citam e não tem nenhum problema. Porque eles são mesmo vampiros, roubam e espalham. Agora, acho que o livro tem um ponto interessante, essa acuidade para pensar como sair do jogo da representação, como desertar de um certo jogo político que está caduco e que todos, bem ou mal, não aguentam mais. Quer dizer, a constatação de que tem um esgotamento de um certo modo de pensar a política, de fazer política no deixar-se representar e apenas permitir palavras de ordem abstratas. Mas como chegar na veia do presente e da maneira mais encarnada, para poder retomar o jogo num outro tabuleiro? Partir de um outro tabuleiro que é da existência das pessoas. E isso aí para mim é muito forte, é a questão principal. É ali onde o sangue corre e pode propulsar iniciativas das mais esquisitas. E são muito esquisitas as iniciativas, mesmo, tipo: que podemos nos reinventar enquanto movimentos políticos. Elas não obedecem a um inventário do que deve ser hoje em dia. Neste sentido, temos muitas surpresas no campo de vista das articulações, das presenças poiéticas. Penso em situações diferentes também que não só as escolas, o Parque Augusta em São Paulo, por exemplo. Foi uma experimentação que pôde se fazer com a natureza, com a história de dormir ao relento, como se pode abraçar uma árvore, como se pode cuidar das árvores, como se pode fazer... inventar um tipo de tempo outro. Eu imagino que vocês acordam e já estão ali produzindo. Mas como existem espaços que podem inventar uma ondulação temporal outra, o tempo trabalhante, o fazer assembleia. Inclusive o assembleísmo excessivo, que é uma espécie de freio à energia de iniciativa. Então, você se esgota depois de quinze horas de assembleia e você não tem mais força para nada. Quer dizer, é uma espécie de amortecedor das iniciativas, às vezes, e eu acho isso uma ideia cooperatista: de que tudo tem que ser conversado o tempo todo! Isto representa uma depauperação vital num certo sentido, é o que a democracia faz. Vamos discutir sobre tudo e, portanto, sobre nada.

Londero: Sim, o livro diz o quanto a insurreição não diz respeito propriamente à democracia, tal como a concebemos e naturalizamos, inclusive a problematiza.

Pelbart: Eu veria aí uma espécie de contrataste quando a gente pensa na ideia de insurreição que é mais, digamos, provocativa, mais aguda, mais dissidente e menos consensual, e que de fato às vezes exige iniciativas rompantes, quase isoladas para estabelecer um fato consumado, que a partir dele poder fincar signos, mas também modalidades de existência. Eu acho que isso que está em jogo um pouco. Não é só palavra, é que modos de existência as pessoas que estão aqui ou ali ou acolá desejam hoje? Isso extrapola as pautas políticas, as mais tradicionais e toda tecnologia que é um broxante federal. Quer dizer, o regime democrático é uma broxação. Será que isso não pode ser repensado, revirado? Não dá para pensar em sair um pouco do parâmetro consensual democrático - que a gente sabe o que é essa democracia, é absolutamente uma falsa democracia –, este que a gente assiste pela televisão como um tsunami de medidas das mais draconianas, hora após hora, e que de braços cruzados assistimos em nossa pequena ilusão de que estamos num espaço democrático? Eu sou a favor de uma certa radicalização na encarnação dos gestos. Mas enfim, isso está no livro. Eu não estou contando nenhuma novidade. E acho que tem a ver com o que está acontecendo no Brasil, por isso que é um livro surpreendentemente sintônico, a crise, a produção artificial da crise, e essa espécie de contágio de ocupações com formas diversas, mas que crescem numa velocidade inusitada. Vejam o Paraná, quase mil ocupações de escolas e não me consta que seja um estado especialmente consciente. Enfim, acho que não tem a ver com o grau de consciência e sim com o grau do intolerável que se chega em um certo momento, numa sensação de que ficou intolerável e que, por isso, faz as vezes da consciência. Antigamente era a consciência, hoje talvez seja outra coisa. Agora é mais epidérmico, sensorial, sensível, visceral, vital. A consciência é outra coisa.

Parise: E essa potência que se partilha, essa sensibilidade que se partilha, que agrega corpos e sujeitos justamente por essa partilha, é um primeiro movimento de contaminação. Mas tem um segundo movimento que me chamou muito atenção nesses últimos tempos que foi protagonizado pelo movimento feminista, aí falando mais das questões identitárias, dos devires minoritários, que foi feito na Polônia em relação a uma tecnologia de governo específica, que era a lei anti-aborto, pelo qual fizeram uma greve geral e se utilizaram desse tipo de estratégia. O mesmo aconteceu na Argentina naquele caso brutal da menina que foi assassinada e estuprada. Tais movimentos me chamam a atenção, esses sinais que vêm da rua e que se organizam rizomaticamente. Poderias comentar um pouco a respeito, já que temos trechos do livro que falam dessas insurreições que a gente não sabe de onde ou quando vêm, que vêm à tona e, que as vezes é um caso anônimo que contamina com sua força uma partilha dessa sensibilidade, que reverbera.

Pelbart: É porque os disparadores podem ser os mais insignificantes, a primavera árabe nasceu no caso do ambulante que ateou fogo no próprio corpo. Por conta de um indivíduo na Tunísia, um continente inteiro entrou em chamas. Não é partir de um princípio, mas sim de uma constatação de que por mais que a gente esteja presenciando uma espécie de letargia nacional diante do que aconteceu desde o golpe, ao mesmo tempo, temos as ocupações que nos fazem perceber a existência de algo à flor da pele. Então, como conciliar por um lado as espécies de mercadorias e, por outro lado, algo à flor da pele? Isto talvez prolifere mais entre os jovens, que têm algo mais à flor da pele. Estão menos amaciados ou menos blindados ou menos domesticados. Temos aí algo que parece mais vulnerável, no bom sentido. Pensem na Ana Júlia que fala na assembleia, que coisa! E ao mesmo tempo a secundarista dá a ver a fragilidade com que ela vem: começa chorando, com a voz embargada, diz da dificuldade de estar lá, a dificuldade de enfrentar aquela situação, de conseguir ler no meio das notícias aquilo que sim ou que não... Ela dá um depoimento da dificuldade que é ao mesmo tempo inevitável. Percebam a emoção com que ela pode falar com tudo aquilo que tem acontecido em relação à educação no Brasil, toca no coração, ataca. Isso é um grau de sensibilidade, de antenagem que eu não sei descrever, e ao mesmo tempo não é um fato isolado, é uma sensibilidade coletiva, isso tem que ficar muito claro. É uma geração, pode ser que seja uma geração que está conseguindo enunciar de outra maneira o que a toca e como que ela mesma pensa poder revidar e enunciar de outro jeito. Não quero pintar, idealizar nada, mas é uma coisa que, se você olha para o Brasil nesse último ano e meio, você fica surpreso com a ocupação, não é? Acontecem coisas a cada dia assim que seria bom que não desaparecem com a mesma rapidez com que vieram. Que dispositivos a gente tem para dar uma sustentação para estes movimentos e que não só se conectem entre si e já fazem rede, mas que se aprofundem e se prolonguem e se transversalizem? Um livro pode ser uma peça pequena, é um pequeno a mais no meio. Mas outras coisas que desafiam a gente talvez possam ser inventadas, inventar outros dispositivos de sustentação dessas rupturas que as aprofundam e as prolongam, que produzem uma espécie de contágio que façam uma quantidade de micropolíticas. Eu insisto, parece uma coisa meio esquisita, mas é: em que medida isso não fica isolado num setor e que acaba se esgotando em si mesmo? Vocês também devem sentir isso. Para manter essa ocupação vocês precisam de outras, não é?

Referências

Comitê Invisível. Aos nossos amigos: crise e insurreição. Coordenação Editorial: Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes. N-1 edições, São Paulo, 2016.         [ Links ]

Data de recebimento: 05/12/2016
Data de aceite: 06/01/2017


1 Capítulo intitulado “Merry crisis and happy new fear”.

I Peter Pál Pelbart: Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

II Mário Francis Petry Londero: Doutorando e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: francislonder@hotmail.com

III Luis Felipe Parise: Doutorando e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: luisfelipeparise@gmail.com

IV Camila Braz da Silva: Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, bolsista PIBIC Cnpq. E-mail: camilabraz@hotmail.com

V Simone Mainieri Paulon: Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa-Intervencão Intervires. E-mail: simonepaulon@gmail.com

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