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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Protestos de Junho 2013 no Brasil: novos repertórios de confronto

 

The June 2013 Protests in Brazil: new confrontation repertoire

Protestas del Junio 2013 en Brasil: nuevos repertorios de confrontación

   

 

Demetrius Lopes de AbreuI, e Jáder Ferreira LeiteII

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Caicó, RN, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Caicó, RN, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo visa delimitar os novos repertórios de confronto experimentados nos ciclos de protestos de Junho de 2013 no Brasil. Para isso, traçamos um resgate dos repertórios tradicionais utilizados nos três movimentos de massa ocorridos anteriormente: a Passeata dos Cem Mil, Diretas Já, e Fora Collor. A apropriação das novas tecnologias informacionais pelos mais diversos atores sociais tem produzido grande quantidade de material fotográfico e audiovisual, o que nos estimulou a utilizar da webnografia como aparato metodológico, e experimentar criticamente como instrumentos de pré-seleção de imagens e vídeos os mais básicos aplicativos encontrados na internet, sites de busca e as redes sociais. Para facilitar a compreensão e enriquecer nossas análises dividimos estes repertórios em três categorias: os repertórios de ruptura, violência e convenção. Delineamos as inovações e adaptações dos novos repertórios, para compreender dentro das abordagens da psicologia social, as formas que o ativismo político nacional está traçando atualmente.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Ativismo; Internet.


ABSTRACT

The present article aims to outline the new set of resistance strategies implemented in the protests of June, 2013, in Brazil. To this end, we trace the development of these strategies from the traditional repertoire used in three popular movements: The March of Thousands, Rights now!, and Oust Collor. Our methodological approach was inspired by the large quantity of photograpic and audiovisual material available on the internet, which was produced by the broadest range and most diverse variety of social actors using new information technologies. Thus, with this wealth of material, we chose webnography as a methodological support, and to utilize basic internet applications - search sites and social networks - as instruments for the pre-selection of images and videos. For the sake of clarity and to enrich our analysis, we divided the strategies into three categories: rupturing, violent and conventional. We outline the innovations and adaptations within the new set of strategies to better understand, from the perspective of social psychology, the ways in which national political activism is curently carried out.

Keywords: Social Movements; Activism; Internet.


RESUMEN

En este artículo se busca hacer una delimitación de los nuevos repertorios de confrontación experimentados en los ciclos de protestas del junio de 2013 en Brasil. Para ello, hicimos una recuperación de los repertorios tradicionales utilizados en los tres movimientos de masas anteriores: la Marcha de los Cien Miles, las Directas Ya, y el Fuera Collor. La apropiación de las nuevas tecnologías de la información por los más diversos actores sociales ha producido gran cantidad de material fotográfico y audiovisual, lo que nos motivó a usar la webnografia como recurso metodológico, y experimentar de forma crítica como instrumentos de pre-selección de imágenes y vídeos los más básicos aplicativos encontrados en la internet, los sitios de búsqueda y las redes sociales. Para facilitar la comprensión y enriquecer nuestro análisis dividimos estos repertorios en tres categorías: los repertorios de ruptura, la violencia y la convención. Esbozamos las innovaciones y adaptaciones de los nuevos repertorios, para comprender dentro de los enfoques de la psicología social, las formas que el activismo político nacional está elaborando actualmente.

Palabras-clave: Movimientos Sociales; Activismo; Internet.


 

 

Introdução

No Brasil, em 2013, pudemos perceber os ecos “virtuais” das grandes manifestações ocorridas pelo mundo. Compartilhamos do sentimento de injustiça global diante das consequências do modelo político neoliberal, repudiamos a repressão brutal da polícia e as associações espúrias entre Estados e elites empresariais e bancárias, enfim, unimo-nos ao coro dos insurgentes do século XXI.

As mobilizações sociais que culminaram nas ações coletivas de 2013, intituladas pelos manifestantes de “Jornadas de Junho”, iniciaram com as articulações do Movimento Passe livre e a luta pontual contra o aumento da passagem de ônibus. Porém, posteriormente, ramificaram-se em causas mais amplas e heterogêneas, aos moldes das manifestações ocorridas em outros países, mesclando interesses locais e globais.

Houve a sensibilização de outros coletivos sociais e culturais de formação recente e com pequeno número de participantes, formando uma rede heterogênea de atores sociais: mídias ativistas como o grupo Anonimus, Midia Ninja, anarquistas, associações de bairros da periferia, entre outros grupos e coletivos de menor expressão nacional. Curiosamente, as Jornadas de Junho não foram convocadas diretamente pelos movimentos tradicionalmente ativos, esses agregaram forças em um segundo momento.

Foram estas plêiades de atores sociais que mobilizaram a sociedade civil, com toda sua heterogeneidade e contradições ao participar desses grandes protestos. Mobilizações que também despertaram o reaparecimento de ideias e grupos conservadores como, por exemplo, a Marcha da família com Deus e pela Liberdade, a qual marcou presença no desdobrar dessas mobilizações de massa.

As Jornadas de Junho agitaram o debate no meio acadêmico, o qual ainda tenta circunscrever e compreender melhor esse fato histórico. Gohn (2013) coloca que as práticas políticas atuais trouxeram um conhecimento aprofundado sobre a política estatal e suas máquinas, ressaltando que o primeiro salto nessa aprendizagem reflete-se em uma nova concepção de esfera pública e demandas de ética na política. Bolaño e Filho (2013) pontuam que tanto os partidos políticos de esquerda, quanto os de direita foram criticados, e a proposta do apartidarismo atualizou a crise de representatividade, acossando a compreensão dos manifestantes sobre os processos de regulamentação das políticas governamentais, assim como de mecanismos de democracia direta. Antunes e Braga (2014), Cruz e Bonifácio (2014), buscam circunscrever as condições políticas e sociais que antecederam o clímax das ações coletivas de 2013.

Observamos também algumas interpretações de cunho marxista sobre Junho de 2013 (Singer, 2013; Braga, 2013; Peschanski, 2013) que salientam o contexto de luta de classes, a questão do novo precarizado, o ressurgimento de novos horizontes utópicos, contextos de crises econômicas capitalistas, desencanto com o sistema partidário, lembrando que essas revoltas populares não foram uma resposta direta das redes sociais virtuais, mas de uma militância política de grupos pequenos, que se dispuseram a fazer um trabalho de base política nas comunidades e nas escolas, e enfrentaram a repressão do Estado, ou das milícias, em um ativismo de risco e engajamento.   

No contexto da psicologia social e política, vemos o resgate das discussões sobre os ditos “movimentos” de massa. Richter, Ortolano e Giacomini (2014) entendem que as mobilizações de junho assumiram tanto o caráter de movimento de massa, quanto à ressignificação proposta por Hardt e Negri (2005), a multidão1. E ainda, fazem objeções quanto à dicotomia de enxergar o movimento de massa somente pelo viés de seu conservadorismo e o conceito de multidão como progressista e depositário de excessivas esperanças no campo da política, apontando a necessidade de um maior investimento em análises que valorizem as características psicossociais.

Tentando sistematizar a discussão, Scherer-Warren (2014) busca construir uma tipologia das ações coletivas e das formas de ativismo político atual, na qual distinguiu os movimentos sociais das manifestações de rua, entendendo que os movimentos podem promover e/ou participar das manifestações, porém não se reduzem a essas, que por sua vez têm um caráter fortemente contingencial e, atualmente, tal caráter é potencializado pelas tecnologias informacionais.

Segundo alguns autores (Scherer-Warren, 2013; Santos, 2013; Gohn, 2013) essa forma de manifestação política ocorreu de maneira semelhante poucas vezes em nosso país: com a passeata dos Cem Mil, Diretas Já e o Impeachment do presidente Fernando Collor. Utilizamos o conceito de ciclo de confronto de Tarrow (2009) para designar todas essas ações coletivas que marcaram nossa história. E delimitamos nossas análises aos repertórios de confronto (Tilly, 2005) que são, em suma, as estratégias e ações utilizadas nos protestos ao longo dos tempos. Os repertórios não são uma propriedade dos atores do movimento, são uma expressão da interação histórica e atual entre eles e seus opositores (Mcadan, Tarrow & Tilly, 2009).

Pesquisar os repertórios de Junho de 2013, pode ampliar o entendimento das novas estratégias de luta utilizadas pela sociedade civil, e contribuir, ainda que modestamente, com a compreensão das direções e nortes do ativismo político nacional contemporâneo. Podemos também refletir sobre a apropriação das tecnologias informacionais para fins políticos.    

Nossa baliza teórica transcorre dentro da abordagem referente aos movimentos sociais e o ativismo político contemporâneo (Scherer-Warren, 2013; Gohn, 2013; Prado, 2005), juntamente com as teorias dos confrontos políticos, mais especificamente, as dinâmicas de mobilização, confronto e negociação das ações coletivas (McAdam, Tarrow & Tilly, 2009).

Nosso objetivo principal foi circunscrever os novos repertórios de confronto produzidos em Junho de 2013. Procuramos também compreender o impacto das tecnologias informacionais, nos repertórios utilizados pelos atores políticos que se destacaram nas mobilizações de 2013.  Buscamos analisar qualitativamente e criticamente as inovações desses repertórios.

A Política de Assistência Social no Brasil

Pode-se considerar que o Brasil afirma os direitos sociais tardiamente, a partir das lutas de democratização que culminam na Constituição de 1988, inspirada no conceito de Estado de Bem-Estar Social, que consiste na expansão dos gastos nas áreas sociais e nas políticas universais (Couto, 2010). No país, as políticas sociais se caracterizaram ao longo do tempo por sua fragmentação e pouca efetividade, subordinadas aos interesses econômicos dominantes, incapazes de interferir na desigualdade e pobreza que marcam nossa sociedade. Tratando-se da assistência social, o quadro é ainda pior, marcado historicamente como uma “não política” (Couto, Yazbek e Raichelis, 2010).

Com a Constituição de 1988, a assistência social foi incluída no âmbito da Seguridade Social, destinada a quem dela necessitar, tirando essa responsabilidade da esfera individual e colocando-a na esfera social pública. Entretanto, apenas em 1993 é promulgada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), e só bem mais tarde, em 2004, é que aconteceu a consolidação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que permitiu o advento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005, inspirado na lógica de funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Com a criação do SUAS, propõe-se uma nova forma de gestão, com modelo descentralizado e participativo, regulando em todo país as ações socioassistenciais. O grande objetivo é que a assistência social deixe de ser caracterizada por ações imediatistas e focais, para ser uma política de cidadania, pactuada pelo Estado por meio das três esferas do governo e a sociedade civil, assegurando um padrão de vida mínimo à população (MDS, 2004). Suas principais finalidades são o enfrentamento à pobreza, a garantia dos mínimos sociais, o provimento de condições para atender contingências sociais e a universalização dos direitos sociais. Portanto, destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social, decorrente da desigualdade social e da pobreza, com restrito acesso aos serviços públicos.


Procedimentos Metodológicos

A apropriação das tecnologias informacionais pelos mais diversos atores sociais tem produzido muito material fotográfico e audiovisual, o que nos estimulou a utilizar da webnografia como aparato metodológico. Segundo algumas discussões sobre a terminologia, a qual ainda não é consensual (Fragoso, Recuero & Amaral, 2012), encontramos muitas designações como webnografia, netnografia ou etnografia digital, estas últimas seriam uma adaptação do método etnográfico ao ambiente virtual da internet. Outros defendem que a webnografia já teria se especificado o suficiente para constituir um campo metodológico diferenciado (Amaral, Natal &Viana, 2008).

De acordo com a definição da infopédia (2013) que descreve a terminologia webnografia como uma pesquisa realizada em lista de sítios (sites) e recursos disponíveis na internet, entendemos que nossa pesquisa se encaixaria melhor nessa designação, já que nos atemos simplesmente ao nível da observação e coleta de informações específicas, não realizamos, contudo, entrevistas também não participamos de dinâmicas no “ambiente” virtual, recursos que consideramos estarem mais próximos da etnografia digital.

Para a pré-seleção de imagens e vídeos buscamos experimentar os mais básicos aplicativos da internet, os chamados comumente de sites de busca e as redes sociais. Começamos pelo sítio de busca do Google, que nos oferecia boas ferramentas de seleção de vídeos ou imagens fotográficas sobre os ciclos de protestos brasileiros. Utilizamos como descritores, para os vídeos, as palavras-chaves: “documentários/ depoimentos”, somadas ao nome de cada um dos ciclos de protesto separadamente. Para a seleção de imagens, usamos apenas os nomes dos “ciclos de protestos”, o que possibilitou satisfatório material acerca dos repertórios antigos, porém, o Google não demonstrou ser um instrumento suficiente para selecionar material para o ciclo das Jornadas de Junho de 2013, visto que a quantidade e diversidade mostrou-se muito elevada, dificultando o ponto de saturação dos conteúdos disponíveis.

Diante dessas dificuldades, resolvemos criar uma conta exclusiva para o estudo no Facebook, e apenas “curtir” as páginas dos movimentos sociais e mídias alternativas que se destacaram nas manifestações de 2013: as mídias alternativas do Mídia NINJA (Narrativas Independentes e Jornalismo Ação) e MIC (Mídia Independente Coletiva), pois o conteúdo de suas publicações no Facebook possui muitos vídeos e imagens capturadas em plena manifestação. Entre os movimentos sociais, selecionamos a página do Movimento Passe Livre, por ser o precursor das mobilizações.

Essa estratégia nos propiciou observar exclusivamente as publicações desses atores sociais em nossa timeline, ou melhor, página inicial do Facebook da pesquisa. E, principalmente, resolveu nosso problema de delimitar a grande quantidade de informações produzidas sobre Junho de 2013. O Facebook funcionou como pré-selecionador de nossa amostra bruta. Em suma, utilizamos o Google para selecionar as imagens e vídeos dos repertórios tradicionais e o Facebook para delimitar os repertórios provenientes dos ciclos das Jornadas de Junho.

Como critério de inclusão amostral, selecionamos publicações em audiovisual e imagens fotográficas cujo conteúdo pudesse remeter às estratégias de resistência e luta utilizadas nos ciclos de confrontos estudados. No Google: focamos nas imagens fotográficas, excluindo charges, gráficos, pinturas, assim por diante. No caso dos vídeos, fomos contemplados com depoimentos e entrevistas de alguns militantes políticos daquela época, assim como alguns documentários na íntegra, e descartamos montagens de vídeos informativos, montagens musicais e similares. No Facebook: focamos nas fotografias que registravam as manifestações políticas em espaço públicos e nas ocupações realizadas pelos manifestantes. Quanto ao material audiovisual, atemo-nos aos minidocumentários e depoimentos de ativistas feitos no calor das manifestações. E delimitamos o período das publicações que foram de junho a novembro de 2013.

Uma das principais atitudes que adotamos ao ver as imagens e os vídeos pré-selecionados, foi a de nos distanciarmos da narrativa que geralmente é codificada em primeiro plano: as narrativas descritivas, explicativas e/ou muito ideológicas. Buscamos nos concentrar em identificar, para além dessas narrativas, os repertórios de confrontos utilizados em cada ciclo de protestos. Esses repertórios de confronto, extraídos das imagens e dos vídeos que foram selecionados com o auxílio do sítio de busca do Google e pelo sítio de relacionamentos do Facebook, que precisamente constituem os “dados” de nossa pesquisa.

Utilizamos, como estratégica analítica, a categorização dos dados e, posterior cruzamento de seu conteúdo, de maneira crítica e qualitativa (Bauer & Gaskell, 2003; Mendes, 2003). À medida que identificávamos os repertórios de confronto, os anotávamos em um quadro de referência, subdividido em duas grandes categorias: os repertórios tradicionais, que provinham das três mobilizações que assumiram caráter de massa antes de 2013, e o que designamos de novos repertórios de confrontos, provindos especificamente dos ciclos de protestos de junho.

Feito esse quadro, começamos a perceber que alguns repertórios que julgávamos novos, já haviam sido utilizados antes ou foram adaptados para as condições de confronto atuais, situação que por si só justificou a criação da ampla categoria repertórios tradicionais. Categoria essa que também serviu como uma base sólida para avançarmos em nossas análises, e enriquecer as interpretações acerca dos novos repertórios de confronto.

Com o intuito de refinar nossa análise, apoiados pelo nosso referencial teórico, adotamos mais três subcategorias: repertórios de violência, de ruptura e de convenção. Depois  disso, cruzamos os dados dos repertórios tradicionais com os que julgamos ser os novos repertórios, assim como em suas respectivas subcategorias. Por exemplo, quando íamos abordar algum dos novos repertórios de violência, procurávamos discuti-lo sobre à luz referencial dos repertórios tradicionais de violência que havíamos selecionado.

Vale ressaltar que nosso interesse não foi propriamente o de comparar as Jornadas de Junho de 2013 com as três ações coletivas anteriores, ou mesmo sugerir um improvável concatenamento histórico entre elas. Mas, antes, procuramos registrar os mais notórios repertórios de confronto utilizados nestas três ações coletivas, para, principalmente, evitar o  equívoco de considerar novo um repertório que já foi utilizado antes, e poder discutir com maior acurácia os novos repertórios que foram produzidos em junho de 2013.

Revolução Sociotecnológica

Atualmente, a maior parte das atividades econômicas, culturais e políticas, estão estruturando-se cada vez mais por meio de redes informáticas (Castells, 2003). Houve uma mudança radical com o advento da internet, no que diz respeito ao encurtamento e criação de novos “espaços” (virtuais), ultra-aceleramento da percepção de tempo, adequações nos campos da moral, ética (Lèvy, 1996).

A apropriação das tecnologias informacionais pelos movimentos sociais, a crescente popularização da internet e a dinamização proporcionada pelas redes sem fio (Wi-Fi) acopladas à telefonia móvel têm mudado o cenário dos protestos e manifestações. Nos ciclos de confronto de Junho, com apenas um celular conectado a um notebook, os ativistas do Mídia Ninja fizeram entrevistas, filmaram e transmitiram ao vivo as manifestações em detalhes pela internet.

Observamos que integrantes do MPL, associados a outras redes de apoio, conseguiam rapidamente aglomerar pequenas multidões em pontos específicos da cidade. Esse conjunto de práticas de aglomeração social está sendo denominadas de Smart mobs2. Castells (2013) aposta na autocomunicação de massas, que se baseia na horizontalidade da produção e recepção das informações, que são replicadas de maneira massiva nas redes digitais.

Até o momento, buscamos ressaltar o aspecto potencial e positivo das apropriações tecnológicas; entretanto, reconhecemos que a internet, apesar de sua expansão, não atinge a maior parcela da população dos países de terceiro mundo. E boa parte do uso das redes sociais virtuais propõe-se ao entretenimento e é campo profícuo de publicidade das grandes empresas.

Contudo, apostamos que, depois das Jornadas de 2013, os fluxos unidirecionais da informação e toda uma dinâmica comunicacional, que segundo Castells “são fontes decisivas de construção do poder” (2013, p. 12), começam a ser questionadas por uma maior parcela da população e aos poucos vão sendo subvertidos principalmente pelas redes de movimentos sociais, coletivos e sub-redes de apoiadores e simpatizantes que acabam por politizar redes difusas ampliadas, e também intimistas com os círculos familiares, profissionais e de amizades.  

As redes sociais informáticas ajudam a tornar mais visíveis as injustiças sociais, lutas e confrontos políticos, também facilitam a articulação entre os movimentos sociais cada vez mais cosmopolitas, assim como socializam trocas de experiências, seja de práticas militantes, táticas de enfrentamento, seja pelo sentimento de revolta contra um modelo político-econômico a nível mundial.


Ciclos e repertórios de confronto na contemporaneidade

Os ciclos de confrontos contemporâneos, apesar de serem diferentes e específicos para cada país e levarem em consideração as diferentes culturas, como também situações econômica e política, guardam algumas semelhanças nas formas gerais de luta política: geralmente assumem caráter de movimentos de massa, uso intenso das tecnologias informacionais e clamam por uma democracia mais ampla tecendo muitas críticas aos modelos econômicos e político-partidários tradicionais (Castells, 2013; Gonh, 2013; Scherer-warren, 2013).

Os fenômenos de massa atravessaram os séculos sempre marcados por um espectro de preconceito social, conforme indicam os estudos de Prado (2005), que localizam, em suma, duas lógicas. A primeira que relaciona os “movimentos” de massa ao irracional e pré-político, ligado a teorias psicologizantes que por vezes corroboram com uma patologização e individualização dessas ações coletivas, pois supostamente ameaçariam os valores universais das democracias ocidentais.  

Já a segunda lógica, estaria mais próxima de uma racionalidade que poderia garantir um espaço político ligado à ideia de emancipação, em um contexto de revolução democrática. Essa lógica geralmente é aproximada dos movimentos sociais e funciona também como uma tentativa de cooptação dos mesmos. Prado (2005) ressalta que essas lógicas costumam ocultar os antagonismos sociais e forçar quimeras em forma de um pretenso consenso político dificilmente atingido, pelo menos de maneira satisfatória para os anseios desses movimentos sociais.

Do ponto de vista do controle social exercido pelos Estados, torna-se mais simples negociar fazendo pequenas e pontuais concessões somente a alguns poucos movimentos sociais organizados, escolhidos conforme a conveniência e estratégia de menor risco aos jogos de poder já estabelecidos, favorecendo também a discordância e conflito entre as redes de movimentos sociais (Tarrow, 2009).

Tal estratégia de Estado busca evitar o fortalecimento e crescimento gradativo das redes de movimentos sociais e, consequentemente, do caráter de massa dessas ações coletivas que historicamente sempre ofereceram grande risco à manutenção dos jogos de poder vigentes, coordenados por Estados e elites econômicas.

Compreendemos a importância de superar essas lógicas dicotômicas que tendem a separar os ditos “movimentos de massa” dos movimentos sociais, pois nenhuma ação coletiva de grande porte ocorre de maneira espontânea, existe uma continuidade do trabalho realizado pelas redes de movimentos sociais. Entretanto, não podemos cair no reducionismo de achar que a soma das ações dos movimentos sociais envolvidos corresponde à totalidade do conflito social. As jornadas de junho de 2013, por exemplo, representam um todo maior que as ações dos atores sociais envolvidos.          

Nos vídeos que selecionamos, pudemos observar no depoimento de alguns ativistas envolvidos com o movimento Fora do Eixo, movimentos Anarquistas e do próprio Movimento Passe Livre, a importância da perda do controle do processo de luta pelos movimentos sociais, pontuando, principalmente, que desempenharam seu papel em aguçar e atualizar as “massas” de pessoas que começavam a atuar como cidadãos, promovendo redes de solidariedade e de luta política.

Aparentemente, esses atores sociais começaram a perceber tanto os limites das ações e funções dos movimentos sociais, quanto o poder das “massas informatizadas” em redes de resistências e solidariedades, que talvez possam representar um eficaz e legítimo controle social em nossa contemporaneidade.

Acreditamos que nesse sentido alguns autores (McAdam, Tarrow & Tilly, 2009) buscam integrar em seus estudos os aspectos das mobilizações de massa no âmbito da ação coletiva e do confronto político mais amplo. Consideram que as ações coletivas assumem muitas formas, sejam elas breves ou sustentadas, institucionalizadas ou disruptivas, monótonas ou dramáticas. Assinalam que uma ação coletiva se torna de confronto quando essa coloca boa parte das estruturas sociais em questão, desafiando autoridades ou grupos que consideram inimigos de maneira contundente. Quando uma ação coletiva de confronto  se expande por toda uma sociedade, temos um ciclo de confronto.

O conceito de ciclo de confronto segundo Tarrow (2009) concentra-se nos embates políticos que fazem parte de uma fase mais aguda do conflito social mais amplo, com uma rápida propagação das ações coletivas de setores mais organizados para os menos organizados, com possíveis inovações nas formas de confronto. Os ciclos são marcados por um início dos confrontos, clímax e a desmobilização que pode ser definitiva ou reiniciar em outros ciclos de confrontos que, se intensificados, podem transformar-se em uma revolução propriamente dita.

Saindo do olhar macro dos ciclos de confronto, voltamos para as formas dessas mobilizações sociais e seus repertórios de confronto, conceito esse que sofreu algumas depurações e atualizações ao longo dos tempos segundo Alonso (2012): inicialmente, tentou-se fugir das explicações economicistas e acabou se configurando em um exagero estrutural, que é reconhecido por seu próprio criador, Charles Tilly, que busca sutilmente uma vertente mais culturalista apoiada pela historiografia da escola dos Annales. Posteriormente, valoriza as interações dos grupos com o Estado e acopla a noção de performance e uma teoria da difusão da mensagem, buscando atualizar o conceito em vista dos confrontos iniciados no século XXI.

Os repertórios de confronto (Tarrow, 2009) podem assumir três formas ou tipos básicos: o de violência, de convenção ou de ruptura. A forma mais simples de ocorrer é o repertório de violência, que geralmente se circunscreve a pequenos grupos, que se dispõem ao confronto direto com as forças repressivas. Contrária a essa forma, temos a convenção, que busca criar certa rotina de fácil assimilação, geralmente não encontra muitas resistências entre as elites e o aparelho repressor, porém facilmente podem se institucionalizar. A forma da ruptura geralmente busca quebrar a rotina, sendo fonte de boa parte da inovação dos repertórios, porém esse caráter cria uma instabilidade que facilmente pode recair em violência ou em formas de repetição típicas da convenção. Vale frisar o dinamismo embutido nessas categorias, pois o que hoje é considerado de ruptura pode ser absorvido e incorporado a um repertório de convenção posteriormente.

Tilly e Lesley (2010), apesar de pontuarem as distinções e diferenças desses repertórios, reconhecem algo em comum nessas ações: todas são performances públicas. É interessante ressaltar que esses dois termos, repertórios e performances, fazem referência a jargões artísticos: repertórios musicais e performances cênicas. O que é bem colocado visto o humor de algumas palavras de ordem e o clima festivo mesclado às reivindicações que são lugar comum nos protestos brasileiros.


Ciclos de confrontos brasileiros

A passeata dos Cem mil, em junho de 1968, inicia simbolicamente um ciclo de protestos articulados, basicamente, por movimentos estudantis, sindicatos, apoiados por intelectuais e artistas. Ela teve como estopim o assassinato de um estudante pela polícia militar, o que causa uma comoção nacional, além da indignação contra a instauração de um governo militar.

O ciclo das Diretas Já começa em 1983 e culmina em abril de 1984 com diversas mobilizações nas principais capitais, articulado principalmente por partidos políticos e sindicatos que reivindicavam eleições presidenciais diretas. O Impeachment do então presidente Collor contou com a numerosa presença da juventude e influência da grande mídia, em meio a um cenário de corrupção e descontrole econômico, com inflação exorbitante e congelamentos de contas bancárias.

Não pretendemos nos aprofundar teoricamente nesses ciclos de protestos, apenas extrair deles um rol de repertórios de confronto que designaremos de repertórios tradicionais para fazer contraponto aos repertórios das Jornadas de Junho de 2013.       

Essas correlações entre ciclos de protestos brasileiros também foram desenvolvidas por Rodrigues (2001) que buscou relacionar esses ciclos de confronto tradicionais, suas mobilizações e desmobilizações com as subsequentes mudanças institucionais ocorridas no país, não no sentido causal propriamente dito, mas sim ressaltando a interação e retroalimentação de ambos.  

Rodrigues (2001) marca a interação do ciclo de entrada do regime militar com a Marcha dos Cem Mil, e o ciclo de saída dele, com as lutas pelas Diretas Já. Esse último ciclo marcaria uma demanda por um modelo de democracia mais participativo, proposta que continua em aberto, o que colocaria esse ciclo como ainda inconcluso.

Análise dos repertórios

Considerando esses três ciclos de confronto brasileiros que antecederam as Jornadas de Junho de 2013, podemos observar que alguns repertórios, pautas e reivindicações guardam algumas semelhanças, apesar do contexto histórico ser diferente entre eles. Tem em comum revoltas populares violentas, luta pela conquista e ampliação de um regime democrático institucional, por melhorias nos serviços públicos e indignação contra a corrupção política. Entretanto, estas duas últimas reivindicações, nas Jornadas de Junho de 2013 foram criticadas por muitos ativistas políticos que as consideraram gerais, pouco objetivas e dispersas, denunciando um grau de politização primário.

A reação do Estado foi intensa nos diferentes ciclos de protestos, felizmente não repetindo a intensidade e escala das atrocidades cometidas na ditadura militar. Contudo, em se tratando de um regime minimamente democrático houve uma forte e violenta repressão policial, com uso indiscriminado de armas, que apesar de não letais, possuíam um alto poder intimidador e lesivo aos manifestantes. Essas demonstrações de despreparo e violência gratuita propiciada pela Polícia Militar foram o principal alvo de vídeos que passaram a denunciar tais atos e circularam extensivamente pelas redes sociais virtuais.

Para auxiliar nossa exposição e análise, buscamos classificar esses repertórios de confronto como: violência, convenção, e ruptura (Tarrow, 2009), dividindo-os em duas s referenciais (Apêndices – Tabelas 1 e 2) contendo somente os repertórios que mais nos chamaram a atenção. Não temos a intenção de fazer um quadro taxonômico, mas sim qualitativamente analítico.                    

Pelos repertórios tradicionais de violência percebemos que os grupos de militantes mais radicais, que também eram minoria na época, optaram por estratégias mais audaciosas como assaltos a bancos, sequestros, assassinatos de torturadores (justiçamentos), confecção de folhetos e manuais explicativos de ações contraventoras do sistema, como o “Manual do guerrilheiro urbano” de autoria de Carlos Marighella. Esses grupos acreditavam na possibilidade de derrubada do regime militar pela luta armada, guerrilha rural e urbana.

Diferentemente, os grupos mais radicais das Jornadas de Junho efetuaram muito de seus repertórios violentos de maneira mais simbólica e performativa, o que aponta para uma zona limítrofe bem próxima dos novos repertórios de ruptura, em uma luta mais por reformulações e aperfeiçoamento do sistema democrático, o que não exclui as ações mais fortes e contraventoras como a tática Black Bloc, que consiste em depredar símbolos do capitalismo como bancos, prédios públicos, multinacionais. Houve também episódios de revolta popular que culminaram em ações mais impulsivas e hostis, como queimar carros de empresas de telecomunicação, empurrar ônibus contra a barreira policial, uso de fogos de artificio, bolas de sinuca, garrafão de água para neutralizar as capsulas de gás lacrimogênio, uso do skate para fugir e atacar, construções de barreiras, observamos até o linchamento de alguns policiais, assim como arrombamentos de lojas e furtos.

Cabe destacar a ação dos Hackers que, apesar de pontual, parece ser promissora em um futuro próximo, considerando a progressiva expansão do uso de instrumentos informacionais para protestar. A “guerrilha”, aqui, desloca-se em parte para o campo do virtual ou ciberespaço (Levy, 1996) e diferencia-se principalmente em intensidade das propostas de luta das guerrilhas rurais e urbanas dos repertórios tradicionais.   

Observamos, principalmente nos minidocumentários anarquistas que rastreamos, a menção ao hackeamento de dados e boicotes de sistemas operacionais de empresas e governos, juntamente com as acusações e difamações de personagens públicos pelas redes sociais da internet.         

Foi na esfera comunicacional que percebemos a maior diferença entre as Jornadas de Junho e os outros “movimentos de massa” ocorridos anteriormente no Brasil. Enquanto no período da Ditadura e também no Impeachment de Fernando Collor, a maior parte das notícias passava por uma mídia de massa, ou melhor, para massa, com predominância de informações homogêneas e unidirecionais dentro de um forte esquema de monopólio comunicacional, nos ciclos de junho de 2013 as informações eram produzidas e consumidas rapidamente dentro de uma rede de distribuição mais horizontal e heterogênea, que se contrapôs na medida do possível ao monopólio das grandes mídias.

Entre os novos repertórios de ruptura, boa parte da inovação e inventividade se deu pela apropriação das novas tecnologias informacionais. O espaço de ocorrência dos repertórios também foi inovador e multifacetado, pois se deram tanto em locais públicos quanto pelas redes sociais virtuais, constituindo um espaço híbrido e simbiótico, levando-nos ao pensamento de Levy (2011) que destaca a falsa dicotomia entre o real e o virtual.

Nos novos repertórios de ruptura permanecem as palavras de ordem e as tradicionais passeatas, porém, devido às novas tecnologias informacionais, elas podem ocorrer simultaneamente em vários estados brasileiros. Diminuem drasticamente a utilização de carro de som e palanques, pois as figuras de lideranças e seus discursos inflamados perdem destaque transformando-se em repertórios de convenção.

Utiliza-se recorrentemente a técnica do “microfone humano”, pelo qual uma pessoa fala e o maior número de pessoas repete para que as mensagens pontuais sejam disseminadas, assim como a prática de plenárias convocadas no calor do momento. Com essas medidas, acredita-se trazer um grau maior de práticas horizontais para as mobilizações em detrimento das formas hierarquizadas do fazer político.

Percebemos uma estética menos elitizada, com a presença de paródias de músicas populares e comerciais (Funk, Rap e Tecnobrega), o teatro é substituído em grande medida pelas performances públicas pontuais, algumas delas mais impactantes utilizando-se de autoflagelação, que evidenciam a violência e o corpo que resiste. Não se percebe a presença marcante de um teatro de Arena ou musicais como o Opinião.

Quanto às pichações, essas se mantêm na epiderme das cidades, porém ganham um acréscimo tecnológico com as “projetações”, que se resumem em projetar nos prédios e locais de destaque imagens e frases de efeito gigantescas, como por exemplo “Cadê o Amarildo?”, que se assemelha à proposta do artista plástico Cildo Meireles no período da ditadura, que carimba nas cédulas de dinheiro: “ Quem matou Herzog?”.

Entre outras sutilezas tecnológicas, como a transmissão ao vivo dos protestos por ativistas do mídia NINJA, ou quando várias pessoas acessam o mesmo site para que ele fique no topo das procuras nos programas de busca como o Google, que é semelhante a estratégia do Tuitaço pelas redes de telefonia móvel, observamos também a produção de documentários curtos, nos quais os próprios manifestantes narram os protestos de junho.

Ainda no rol dos novos repertórios de ruptura, temos os churrascos e passeio de bicicleta em forma de protesto; o roletaço que consiste em girar a catraca do ônibus várias vezes ou pulá-la sem pagar a passagem, prática muito usada pelos integrantes do Movimento Passe Livre; a participação de professores em aulas no espaço urbano; confecções de folhetos “virtuais” com informações sobre condutas seguras e de proteção que circulam na internet juntamente com as convocatórias para os protestos; e impressão de tabelas com gestos de mão que podem significar, aprovação, tempo de fala excessivo, dissenso, entre outros, que auxiliam na organização e votação nas assembleias gerais.  

Interessante notar que alguns termos pronunciados no ciclo das Jornadas de Junho são lugares comuns no linguajar e práticas anarquistas, como os termos ‘ocupação’ e ‘ação direta’, que foram resinificados e popularizados durante esses protestos. A estratégia da ocupação consiste basicamente em ocupar e autogerir casas e construções abandonadas públicas ou privadas, buscando questionar a propriedade privada (Campos, 2012). Nas Jornadas, essa prática predominantemente consistiu na permanência em espaços estratégicos como forma de protestos: as praças, espaço abaixo de viadutos, assembleias legislativas de vários Estados, o ápice foi a ocupação temporária da parte externa do Congresso Nacional.

As ações diretas, termo que ganhou certa notoriedade pelas táticas Black Blocs, foram muito associadas a práticas coletivas geralmente de grupos pequenos, ou mesmo guiadas por indivíduos, agregados no calor do momento e conduzido por variadas problemáticas de curto prazo, com um forte caráter contingente e espontâneo.

Percebemos também que os atos patrióticos, que hoje são considerados repertórios de convenção, antes representavam uma estratégia de ruptura, pois cantar o Hino Nacional ou usar a bandeira do Brasil na ditadura causava certa confusão nas forças repressivas que, dado seu adestramento patriótico, por vezes deixavam de agredir algum manifestante, pois hesitavam em espancar os símbolos nacionais. Ou ainda, ao ouvir o Hino cantado por grandes grupos, acabavam por retardar os ataques decisivos, o que dava tempo para a fuga de alguns militantes perseguidos pelo sistema.

Classificamos as intervenções de cunho sindical, como paralisações e greves, discursos inflamados de lideranças populares, distribuição de panfletos, como repertórios tradicionais de ruptura e as intervenções de cunho partidário como o comício, uso de carro de som, distribuição de botons e modos organizacionais muito hierarquizados, entendemos como repertórios tradicionais de convenção. Repertórios que dependendo do contexto, podem ser classificados em categorias diferentes, como as intervenções partidárias que no contexto das Diretas Já configuravam como rupturas, entretanto, no Impeachment de Collor funcionaram mais na lógica dos repertórios de convenção.

No período da redemocratização brasileira, muitos movimentos estudantis usaram a estratégia de alinhar-se politicamente aos partidos políticos. Algumas lideranças estudantis começaram a disputar cargos dentro da política institucional. Acreditamos que a partir desse período, a institucionalização e cooptação dos movimentos estudantis cresceram e sua autonomia enquanto movimento social diminuiu.

Esse processo de institucionalização e aliança partidária é questionado severamente nas revoltas contra o aumento da passagem de ônibus em Salvador e Florianópolis a partir de 2003, mobilizações que são precursoras do Movimento Passe Livre e que, segundo Cava (2013), fazem parte de um processo de reestruturação do movimento estudantil. Portanto, não é à toa que o Passe Livre adota como estratégia política o apartidarismo, recusa a formação de lideranças e horizontalidade organizativa, buscando justamente escapar dessas cooptações que atravessam a história dos movimentos estudantis.         

Entre os novos repertórios de convenção destaca-se o que chamamos de 'efeito coxinha', maneira jocosa de classificar os manifestantes com pouca experiência em atos políticos que se caracterizaram pela pulverização de “pautas” gerais expressadas em cartazes e palavras de ordem que pediam melhorias na saúde, educação e outros serviços públicos, cartazes contra a corrupção, somados à despolitização exercida pelo suposto nacionalismo expresso nas camisas da seleção brasileira.

Efeito semelhante também ocorreu dentre os repertórios tradicionais no contexto do Impeachment de Collor. Pois no início dessas manifestações, houve uma disputa discursiva intensa e confusa diante dos escândalos de corrupção, em que o então presidente, em rede nacional, pediu que os cidadãos que o apoiavam, fossem para as ruas com as cores da bandeira nacional, assim como também ocorreram carreatas a seu favor. Entretanto, entre os manifestantes a proposta inicial foi que saíssem todos de negro em sinal de luto, e o que se deu nos subsequentes protestos foi o episódio conhecido como os Caras Pintadas, em meio a um bombardeio midiático proporcionado pelas redes de televisão.

O uso de bandeiras de partidos políticos e carros de som foram vistos nos ciclos de junho como possíveis atitudes de cooptação das mobilizações, assim como discursos extensos que poderiam conotar alguma forma de liderança que manchasse o espírito de organização mais horizontal das manifestações. Em relação aos novos repertórios de convenção, apontamos os apelos às petições pela internet, com suas milhões de assinaturas e o envolvimento mínimo do cidadão comum com as questões políticas de seu tempo.

Considerações Finais

Dentre os repertórios de confronto observados, detectamos uma mescla entre os tradicionais reatualizados e os novos repertórios que em sua maioria estão estreitamente 'conectados' às novas tecnologias informacionais. Para nossa surpresa, alguns repertórios que julgávamos novos já haviam sido praticados em pelo menos um dos três ciclos de confrontos anteriores.

 Classificamos entre os novos repertórios uma maior diversidade e quantidade de repertórios de ruptura. Apesar de termos observado muitas cenas de violência que não chegavam a constituir um repertório de violência propriamente dito. A título de esclarecimento, muitas dessas cenas foram aglutinadas na subcategoria enfrentamento direto, conforme a tabela dois.

Muitos dos repertórios utilizados pelos ativistas causavam alterações consideráveis nos fluxos de veículos, pessoas e principalmente na produção e disseminação capilarizada de informação. Esses atores tiveram um papel fundamental de incentivar a construção de uma inovadora rede de comunicação que interferiu de maneira eficiente na formação da opinião pública, antes bombardeada pelo discurso hegemônico e unidirecional das mídias tradicionais.   

Apostamos no desenvolvimento de uma cultura política de resistência, que busca desenvolver um tipo de ativismo político singular com o auxílio das tecnologias informacionais, que por sua vez, ampliam exponencialmente suas redes de solidariedade e de luta. Aumentando assim as possibilidades de mobilizações contemporâneas assumirem caráter de massa. Os ciclos de protestos de 2013 partilharam não apenas repertórios de confronto, mas também renovadas utopias de futuros mundos possíveis, motivando novamente uma recente geração de ativistas que ousam cogitar outros modelos de sociedade, valores e éticas.      

A censura do período militar, ao mesmo tempo em que restringiu os meios de comunicação e expressão cultural, também estimulou toda uma geração a criar maneiras de burlar tais proibições. Da mesma maneira, a tentativa de furar o monopólio comunicacional e evidenciar a manipulação da opinião pública pelas grandes empresas comunicacionais, também foi forte estímulo para a criatividade dos ativistas contemporâneos.

Autoavaliando nossas escolhas e estratégias metodológicas, percebemos dificuldades em delimitar o que eram estratégias de ruptura e convenção na categoria de repertórios tradicionais, dado que nesse momento pesou a nossa opção em condensar os três ciclos de protestos nessa ampla categoria. Compreendemos que uma investigação em documentos históricos e arquivos da época poderia revelar com mais clareza um número maior de repertórios tradicionais, o que abre a possibilidade para realização de estudos mais robustos sobre a questão do desenvolvimento dos repertórios de confronto nacionais e cultura de lutas.

Quanto aos instrumentos de pré-seleção de imagem e vídeo, consideramos que o Google em relação às imagens, contribuiu moderadamente para com a pesquisa, dado que por vezes misturava os ciclos tradicionais, o que não ocorria com os vídeos. No Facebook, tivemos dificuldade quanto à constância das postagens em nossa página inicial, pois alteravam-se depois de um longo período, o que julgamos ser a própria programação do software que excluía alguma postagem, ou a retirada de informações pelo próprio “informante”.

Fazendo um balanço crítico, entendemos que existe uma grande influência das tecnologias informacionais nos repertórios de confronto atuais. Essas tecnologias podem funcionar como “aceleradores de partículas” nas propostas de mudanças sociais, além de aproximar os atores sociais em torno de lutas comuns. O uso desses instrumentos informacionais facilita, porém não necessariamente determina, o processo de lutas como um todo, pois esse depende muito mais de uma negociação entre a sociedade civil organizada e o Estado, que é acossado pelos interesses econômicos de elites empresariais, dentro de jogos de poderes que começam a ser desvelados e publicizados em nossa contemporaneidade digital.

Apêndices

Tabela 1: Repertórios Tradicionais

Violência Ruptura Convenção
Enfrentamento direto: uso de pau, pedra, molotov, bola de gude, bandeira porrete.

Luta de guerrilha rural e urbana: assaltos a bancos, assassinatos de torturadores, sequestros, atentados, depredações órgão públicos, distribuição do manual do guerrilheiro urbano (Marighella).

Intervenções artísticas em garrafas de coca-cola ensinando a fabricar molotovs.
Intervenção sindical e movimentos estudantis:passeatas, palavras de ordem, greve,panfletagem, discursos de lideranças, ocupações de prédios públicos.

Intervenções culturais: no teatro, músicas, cinema, artes plásticas, alegorias irreverentes de rua, pichações.

Patriótica: cantar o Hino Nacional, usar bandeira, pintar o rosto
Intervenção partidária: comício, carro de som, carreata, transmissões televisivas.

Alinhamento dos movimentos estudantis à política partidária, e efeito caras pintadas.

Tabela 2: Novos Repertórios

Violência Ruptura Convenção
Enfrentamento direto; queima de carros de emissoras de TV, depredações e roubos, uso de bolas de sinuca, fogos de artifício.

Tática black-bloc.

Guerrilha digital e hackterrorismo

Performances de autoflagelação
Articular protestos e denunciar violência policial via redes sociais, transmissão ao vivo dos protestos, bombardeamento de acessos nos sites de busca, e Tuitaço via telefonia móvel.

Churrascos e bicicletadas de protestos, roletaços, aulas públicas, ocupações e ações diretas, acampar na frete da casa de políticos.

Estética menos elitizada, performances artísticas, vídeos denuncias, Projetação, microfone humano, folhetos virtuais.

Propostas de horizontalização na organização e luta, apartidarismo, busca da perda de controle pelos mobilizadores sociais.
Efeito coxinha: protestos contra a corrupção, despolitização pelo nacionalismo, uso de bandeiras partidárias.

Petições pela internet com milhões de assinaturas.   

Presença de líderes e hierarquias.

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Data de submissão: 15/07/2016
Data de aceite: 06/01/2017

 

1 Hardt & Negri (2005) criam a “dicotomia” entre o Império e o que denominam de multidão, que surgiria dentro das redes de poder do próprio Império, e seria uma alternativa diferenciada ao mesmo. O Império não se resume a um Estado-nação detentor do poder, mas a uma rede de Estados e elites empresariais e bancárias, que ancoram seu funcionamento tradicionalmente em crises e guerras. A multidão por sua vez representa uma multiplicidade de culturas e etnias, que começam cada vez mais a se articular conjuntamente em torno de um projeto coletivo de sociedade e de uma democracia global. Multidão se diferencia do conceito de povo, que esta alicerçada em uma noção de uniformidade.

2 Smart mobs é o termo criado por H. Rheingold (2002) para descrever as novas formas tecnológicas de aglomeração nas cidades.



I Demetrius Lopes de Abreu: Psicólogo pela UFJF e Mestre em Psicologia pela UFRN. E-mail: demetriuslapsi@gmail.com

II Jáder Ferreira Leite: Professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFRN. Doutor em Psicologia social pela UFRN e presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (2017-2018). Email: jaderfleite@gmail.com

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