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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Psicologia e políticas públicas: desafios para superação de práticas normativas

 

Psychology and puclib policies: challenges to overcoming normative practices

Psicologia e políticas públicas: desafios para la superación de prácticas normativas

   

 

Daniele Andrade FerrazzaI

I Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de estudar a história da constituição de um saber psicológico normativo e da reflexão sobre a inserção da psicologia no âmbito da Saúde Coletiva, com destaque a alguns pontos norteadores para a profissão no sentido de garantir a formação de profissionais com um perfil condizente para atuação no âmbito das Políticas Públicas de Saúde. Será adotado o enfoque histórico social inspirado na perspectiva genealógica foucaultiana na tentativa de propor transformações atuais de discursos e práticas. Na atualidade, algumas práticas psi vinculadas às concepções individualistas e normativas, historicamente influenciadas pelo movimento higienista, poderiam constituir novos tipos de subjetividades despolitizadas. Assim, conclui-se que os indivíduos deixariam de implicar-se em suas próprias condições de sujeitos devido o reducionismo aos discursos psicopatologizantes, regrados por concepções que guardam pouca ou nenhuma relação com a promoção de saúde e as propostas dos projetos brasileiros de Reforma Sanitária e Psiquiátrica.

Palavras-chave: Psicologia normativa; Políticas Públicas de Saúde; Reforma Sanitária e Psiquiátrica.


ABSTRACT

This article studies the history of the constitution of normative psychological knowledge and offers reflection on the role of psychology within Social Health. We foreground various guidelines for the profession to ensure the training of professionals towards an apposite profile for practice in accordance with Public Health Policies. We adopt a social history approach informed by a Foucauldian genealogical perspective in our attempt to propose actual transformations to discourses and practices. Currently, some of the psy practices related to individualist and normative conceptions—historically influenced by the hygienist movement - could constitute new types of depoliticized subjectivities. Thus, we posit that individuals will no longer involve themselves in their own conditions as subjects due to reductionist psychopathologizing discourses which are regulated by concepts that bear little or no relation to the promotion of health and the Brazilian Health and Psychiatric Reform project.

KeywordsNormative Psychology; Public Health Policies; Health and Psychiatric Reform.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo estudiar la historia del saber psicológico normativo y de la reflexión sobre la inserción de la psicología en el ámbito de la Salud Colectiva, con énfasis en algunos puntos para la profesión con el fin de garantizar la formación de profesionales con un perfil coherente para actuar en las Políticas Públicas de Salud. Se adoptó el enfoque histórico social inspirado por la perspectiva genealógica foucaultiana en el intento de proponer transformaciones actuales de discursos y prácticas. Actualmente, algunas prácticas psi, vinculadas a concepciones individualistas y normativas, históricamente influenciados por el movimiento higienista, pueden establecer nuevos tipos de subjetividades despolitizadas. Como conclusión, los individuos dejarían de envolverse en sus propias condiciones de sujetos, debido el reduccionismo a los discursos psicopatologizantes, regidos por concepciones que tienen poca o ninguna relación con la promoción de la salud y las propuestas brasileña de la Reforma Sanitaria y Psiquiátrica.

Palabras-clave: Psicología normativa; Políticas Públicas de Salud; Reforma Sanitaria y Psiquiátrica.


 

 

Introdução

As denúncias e o enfrentamento das violações de Direitos Humanos no Brasil se fortaleceram efetivamente com os movimentos sociais que emergiram mobilizados contra o regime autoritário ditatorial no período da década de 70. A situação política e social traduzida pelos anos de repressão e negação de direitos, além das péssimas condições que viviam a população levaria a mobilização para a constituição de um projeto de reforma social com reivindicações por melhores condições de vida, habitação, trabalho, saúde, educação e pela redemocratização da sociedade brasileira (Coimbra, 2001).

Naquele contexto de lutas e enfrentamentos se constituiu o Movimento da Reforma Sanitária que teve no ano de 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde, o momento de estabelecimento das diretrizes de reorganização do sistema de saúde no Brasil. O movimento prevê a garantia constitucional do direito universal à saúde, o reconhecimento dos determinantes históricos e sociais no processo saúde-doença, a constituição de um campo de saber interdisciplinar que respeite a pluralidade da existência humana e a efetivação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) que implica na ampliação e acesso universal dos usuários à rede de saúde, além da criação de dispositivos para uma gestão democrática e de participação social (Dimenstein & Macedo, 2012; Boing & Crepaldi, 2010).

Pautado pelas mesmas diretrizes, o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira pode ser compreendido como um processo social complexo de desmonte da estrutura de aprisionamento manicomial que marcou durante mais de um século o atendimento aos problemas relacionados à Saúde Mental. Em meio às denúncias de violência e maus tratos cometidos aos asilados em manicômios, aquele movimento reformista de luta contra o paradigma psiquiátrico hospitalocêntrico medicalizador (Costa-Rosa, 2013) apresenta o modo de Atenção Psicossocial como perspectiva interdisciplinar de cuidado e atenção personalizada disponível em dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que se mostram como alternativos às determinações de internações psiquiátricas propugnadas pelos posicionamentos manicomialistas daquela psiquiatria biologista tradicional.

A trajetória daqueles movimentos reformistas que ora se aproximam e ora se distanciam culminou na consolidação de uma rede pública de saúde no país com intrínsecas preocupações relacionadas ao cumprimento dos princípios do SUS e das propostas da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Ferreira Neto, 2010). A consolidação daqueles projetos de reformas e a implantação de dispositivos de saúde centrados em propostas interdisciplinares e psicossociais têm contribuído para a inserção do profissional de psicologia no SUS.

Entretanto, a entrada da psicologia no âmbito das Políticas Públicas, especialmente nas unidades de atenção primária à saúde e nos serviços de saúde mental, tem aproximado o profissional psi a uma realidade ainda distante daquela que comumente conhecemos em nossa formação ainda pautada no modelo clínico clássico, privatista e de atendimento psicoterápico individualista (Dimenstein & Macedo, 2012). Além disso, a psicologia desde seu nascimento esteve marcada por práticas normativas de ajustamento de comportamentos, gestos e atitudes consideradas como inadequadas e inconvenientes para o convívio e adaptação de alguns indivíduos em uma sociedade pautada por normas e padrões (Foucault, 1982). Características de um processo de normalização e ajustamento que influenciaram pesquisas e estudos do campo psi e que podem se apresentar com novas roupagens em discursos e práticas de muitos profissionais ainda na atualidade (Huning et al., 2014). Nessa perspectiva, inúmeros desafios se mostram evidentes à formação e às práticas em psicologia, muitas vezes, ainda distante das reais necessidades da população e das propostas de consolidação do SUS e da RAPS. (Dimenstein & Macedo, 2012; Ferreira Neto, 2010).

Partilhando dessas preocupações, a presente pesquisa pretende estudar, por meio da perspectiva genealógica foucaultiana (Foucault, 1982), a história da constituição de um saber psicológico normativo e da reflexão sobre a inserção da psicologia no âmbito da Saúde Coletiva, com destaque a alguns pontos norteadores para a profissão no sentido de garantir a formação de profissionais com um perfil condizente aos projetos de Reforma Sanitária e Psiquiátrica em curso no país.  

Para compreendermos os impasses entre a formação e atuação do psicólogo no âmbito das Políticas Públicas de Saúde no Brasil, a reflexão que ora se apresenta se organiza em quatro partes. Em um primeiro momento, traçamos um histórico do nascimento dos saberes psicológicos, constituídos desde suas origens por práticas normativas e higienistas, no âmbito das instituições de encarceramento e disciplinamento de corpos; em um segundo momento, abordaremos a constituição da psicologia brasileira e suas relações com o movimento higienista até a descrição da regulamentação e do exercício da profissão no trágico período da ditadura militar no país; em um terceiro momento, percorreremos a trajetória da elaboração das políticas públicas de saúde com enfoque na consolidação do SUS e na implementação das propostas da Atenção Psicossocial no âmbito dos serviços de Saúde Mental, com especial atenção a inserção da psicologia nesses novos espaços que irão se constituir após a década de 80; e, finalmente, abordaremos os desafios para a superação de práticas psi normativas e disciplinadoras, com destaque para as discussões sobre as perspectivas para o fortalecimento da psicologia nas Políticas Públicas de Saúde.

Adotaremos aqui o enfoque histórico social inspirado na genealogia foucaultiana (Foucault, 2006; 1982) que consiste, em traços simples, em buscar elementos elucidadores das questões abordadas por meio do exame de suas histórias constitutivas. Nessa configuração, estudar a história constitutiva da Psicologia e sua interface com as Políticas Públicas de Saúde no Brasil tem como objetivo tentar compreender o presente pelas vias do passado, “problematizando as relações de saber-poder que produziram realidades, saberes e subjetividades” (Foucault, 1982, p.171) para detectar o estado de forças em que aparecem com o intuito de se utilizar deste conhecimento nas estratégias e táticas de luta e enfrentamento da atualidade.

Para Michel Foucault (1982) a história se faz pelas diferenças dadas a cada época e só é possível compreender o modo de funcionamento de uma época conhecendo suas várias tensões econômicas, sociais, políticas. Essas transformações devem ser entendidas frente às construções de significados e valores que, uma vez conhecidos, dão sentido ao presente. Dessa forma, estudar as práticas sociais significa questionar e problematizar postulados instituídos como verdade no âmbito social, com intuito de “desconstruir modos de vida e hábitos que foram cristalizados” (Lemos & Rebelo Jr., 2009, p.355).  

Na conferência Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault (1982) considera que a estratégia genealógica permite marcar a singularidade dos acontecimentos, no formato de espreitar também aquilo que é tido como não possuindo história. Sem pretensões de apreender o retorno histórico das coisas para traçar uma evolução, de reconstituir uma história tradicional e racionalista que buscaria a evolução e o progresso das ideias ou o restabelecimento de uma grande continuidade que demarcaria um processo linear de constituição e origem das coisas, a genealogia exige a minúcia do saber para desvelar “pequenas verdades inaparentes estabelecidas” (Foucault, 1982, p. 16). O projeto genealógico não se propõe destruir supostos erros e problemas para substituí-los por atuais concepções de verdades, nas palavras de François Ewald (2000, p. 15):

Foucault não pretende, pois, denunciar os erros, para em seu lugar colocar novas verdades, substituir os erros da psiquiatria pela verdade da loucura, as mentiras da justiça pela verdade do criminoso, as do humanismo, pela verdade do homem, mas estudar, numa dada sociedade, neste ou naquele período histórico, como é que algo como verdade aí foi produzido e extraído, como é que ela funciona, com que efeitos de exclusão, de invalidação e de desqualificação em face de outros discursos e de outros saberes.

Apontamentos genealógicos sobre as origens dos saberes disciplinares e o nascimento da psicologia

Michel Foucault considera que os domínios de saber que têm o ser humano como objeto, como a Psicologia, a Sociologia, a Psiquiatria, não teriam se originado da evolução, extensão ou aperfeiçoamento de modalidades científicas ou mesmo como um efeito do racionalismo científico da época, mas sim de práticas sociais que, ao forjarem domínios de saber, além de engendrar também novos objetos, novas práticas e novos conceitos, trariam à luz novos sujeitos, a par mesmo de novas modalidades de sujeitos de conhecimento (Foucault, 2000).

Na prospecção sobre quais seriam as exigências da época, os problemas a serem enfrentados ou as questões práticas e teóricas que levaram a criação desses novos domínios de saber, pode-se assinalar problemas de ordem técnica, institucional, moral, social ou político-econômica que promoveram o nascimento de saberes disciplinares.

O escopo do aporte foucaultiano está em destacar que o nascimento da psicologia e das ciências humanas está profundamente vinculado ao próprio exercício da tutela em encarceramento daquelas populações pobres caracterizadas pelos inconvenientes sociais, pelos comportamentos imorais, pelas condutas consideradas desviantes da norma. Aquelas práticas de vigilância e correção iriam gerar a possibilidade de se constituir um saber-poder de gestão do ser humano e de seu correlato, a construção de um conjunto de “ciências” com seus respectivos especialistas (Foucault, 1982).

Historiadores das ciências humanas apresentam a origem da psicologia científica localizada nos laboratórios do pesquisador alemão Wilhelm Wundt na passagem do século XIX para o século XX (Schultz & Schultz, 1992). Naqueles clássicos manuais de psicologia (Marx & Hillix, 1973) frequentemente se apresenta uma continuidade e linearidade histórica do desenvolvimento acumulativo do pensamento psicológico, que remontaria desde os pensadores clássicos que vão de Sócrates, Platão e Aristóteles até os modernos Descartes, Locke, Rosseau e Kant. Constrói-se um processo de passagem de uma psicologia considerada como pré-científica para uma psicologia considerada científica (Prado Filho, 2005).  Partindo de um ponto de vista crítico e já consagrado na literatura, Michel Foucault (1986) em sua obra Vigiar e Punir, desloca o ponto de surgimento da Psicologia dos laboratórios de Wundt para os espaços de exclusão e encarceramento disciplinar que surgiram na Europa do final do século XVIII e se proliferaram nas sociedades ocidentais durante todo o século XIX. Foucault mostra que o nascimento das práticas psicológicas não está relacionado “aos assépticos laboratórios de Wundt e James”, mas surgiria nas “concretas relações de poder que têm lugar nos manicômios e prisões, organizações totais, de visibilidade e vigilância totais sobre as condutas dos sujeitos ali confinados, excluídos da sociabilidade normal” (Prado Filho & Trissoto, 2007, p.7).

A constituição daqueles dispositivos disciplinares, forjados a partir do século XVIII e que teriam como formato original os estabelecimentos de detenção de pobres, apresentavam duas características relacionadas ao “disciplinar”. A primeira refere-se ao movimento de submeter os indivíduos aos regulamentos sociais e institucionais, à imposição de uma ordem e de uma norma, à sujeição a disciplina e a uma série de regras com objetivos de controlar e distribuir o tempo e os corpos. A segunda característica do disciplinar estaria relacionada à constituição de um saber extraído da observação, da classificação, do registro, das práticas de correção de indivíduos submetidos ao internamento nas variadas instituições de sequestro. Um poder epistemológico que engendraria saberes difundidos como verdadeiros pelas ciências humanas do tipo da psicologia, da criminologia, da pedagogia, da psicossociologia (Foucault, 1999). Nessa perspectiva, destaca-se a outra face das disciplinas que, em absoluto, não deixariam de “disciplinar”, mas acabariam por erigir aparelhos de saber e domínios de conhecimento fundamentais para disciplinar não só os corpos, mas as próprias populações anteriormente afeitas apenas aos controles jurídicos:

As disciplinas têm o seu discurso. Elas são criadoras de aparelhos de saber e de múltiplos domínios de conhecimento. São extraordinariamente inventivas ao nível de aparelhos que produzem saber e conhecimento. As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra “natural”, o quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei mas o da normalização; referei-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico. (Foucault, 1982, p.189).

Em seus estudos sobre o poder disciplinar, Foucault (1986) explica que a disciplina seria uma tática que teria como finalidade observar e analisar para então distribuir os corpos de acordo com as singularidades de cada indivíduo. Uma vigilância constante de alguém que, ao mesmo tempo em que exerce um poder, tem a possibilidade de constituir um saber psicológico, criminológico, psiquiátrico. Prado Filho (2005, p. 77-78) considera que no caso da psicologia, essa disciplina seria o “resultado do cruzamento entre práticas de observação e registro dos aspectos significativos das condutas dos sujeitos expostos a essa visibilidade, o que torna possível um saber sobre o homem”. Dessa forma, Coimbra e Nascimento (2001, p. 247) consideram que:

A psicologia emerge, no século XIX, dentre outras ciências humanas e sociais, principalmente em cima de dois saberes: o da observação e o clínico, estando presente no cotidiano dessas instituições de sequestro. Não por acaso nossa formação psi tem sido atravessada pelas crenças em uma verdade imutável, universal e, portanto, ahistórica e neutra; numa apreensão objetiva do mundo e do ser humano; em uma natureza específica para cada objeto; em uma identidade própria de cada coisa e nas dicotomias que, por acreditarem nas essências, produzem exclusões sistemáticas.

A construção de um conhecimento psicológico sempre esteve relacionada à problemática do “ajustamento” do homem, de forma a determinar se um indivíduo se conduz conforme a regra e se progride de acordo com a norma. É a construção de um saber de caráter normativo sobre o homem que ordena em torno da norma, em termos do que é considerado normal ou não, o que se deve ou não fazer (Foucault, 1999).

As exigências de adaptação do homem e a pouca aceitação quanto à ilimitada diversidade humana podem ser consideradas como um fenômeno social normativo presente desde a constituição das tecnologias psicológicas disciplinares de fins do século XIX. Essa tendência determinou, em torno da norma, os indivíduos considerados “normais” e aqueles considerados “anormais”, desajustados e incapazes de se adequarem à norma (Foucault, 2006). Em torno da norma foram criadas estratégias disciplinares que submetem os corpos dos indivíduos, assim como, também foram constituídas estratégias biopolíticas que regulamentam e gerenciam os processos relacionados à vida no âmbito populacional e da própria espécie humana (Foucault, 1982). A vida dos homens será, então, objetivada por discursos normativos, classificada, medida e avaliada pelos saberes médico-psiquiátricos e psicológicos conforme normas pré-estabelecidas (Caponi, 2012).

Quanto a esse processo de normalização dos corpos e das populações, a obra clássica de Georges Canguilhem (2002), O Normal e o Patológico, de 1966, pode ser considerada como referência crítica para a compreensão de como saberes disciplinares estabeleceram parâmetros de comparação do indivíduo em relação à sua espécie que permitirá determinar sua “normalidade” e “anormalidade” a partir do estabelecimento de uma média, de uma norma. Para definir saúde e doença, normalidade e patologia, foram estabelecidos, então, valores padrões de funções consideradas normais. Dessa forma, qualquer desvio dos valores padrões eliciaria a necessidade de investigar a situação considerada de risco e poderia representar a definição de um estado patológico, processo considerado como fundamental para o exercício e intervenção da psicologia.

A constituição dos saberes psicológicos no Brasil e suas relações com as concepções higienistas e normativas

Da mesma forma como ocorrera na Europa, em que a constituição de discursos e práticas psicológicas estava vinculada ao processo de disciplinarização e controle social da população, a história da psicologia no Brasil, apesar das particularidades conjunturais, também está entrelaçada às concepções higienistas de controle biopolítico populacional. O Brasil era pensado pelas suas ausências e o homem brasileiro como atrasado, indolente, doente e resistente aos projetos de mudança em fins do sec. XIX. Para o pensamento social hegemônico na época, fortemente influenciado pelo movimento higienista europeu e preocupado com a solução de problemas relacionados, também, aos fenômenos psicológicos, não tínhamos conhecido o desenvolvimento econômico e social de outras nações porque fatores como o clima e a “mistura” com raças inferiores haviam gerado uma população preguiçosa, indisciplinada e pouco inteligente. Esta inferioridade seria a causa da inadaptabilidade do brasileiro à sociedade moderna e industrial (Boarini, 2003).

Enquanto nos países da Europa o gerenciamento populacional tinha como principal objetivo ajustar a força de trabalho à produção industrial (utilizar ao máximo a força de trabalho dos homens e neutralizar qualquer tipo de inconveniente) (Foucault, 1986; 1982), no Brasil as campanhas higienistas foram, em grande medida, parte de um projeto político de “salvação da nacionalidade” e de “regeneração da raça” (Patto, 2008; Boarini, 2003). Ideais que tomaram conta de intelectuais e especialistas que influenciados pelas concepções europeias relacionadas às teorias raciais, principalmente aquelas advindas da teoria da degenerescência moreliana (Caponi, 2012), consideravam que os negros e índios eram raças inferiores e os mestiços, consequentemente, seriam produtos degenerados que herdavam o que havia de pior das raças matrizes.

A principal população alvo dos intelectuais da época preocupados com o progresso do país seriam os pobres e todos aqueles tipos considerados inconvenientes à sociedade. Conforme Patto (2008, p. 188), “criou-se uma representação de que os pobres eram inferiores do ponto de vista físico, psíquico e moral”. E a qualificação que ganhavam em trabalhos científicos, na imprensa, nos registros policiais e na linguagem cotidiana era extremamente pejorativa, desde “vadios”, “incapazes” até “simiescos” e “criminosos” (Patto, 2008).

Conforme Antunes (2012, p. 51), o fenômeno psicológico já era pauta de discussões acadêmicas nas cadeiras de medicina e pedagogia das universidades brasileiras em fins do sec. XIX, aonde intelectuais apresentavam e defendiam suas teses “com vistas à normalização e à higienização da sociedade”. É nessa perspectiva que os saberes psicológicos, ainda que não se tratasse propriamente da denominada Psicologia, surgem no Brasil, pautados pelos ideais do movimento higienista e predominantemente, conforme expõe Gonçalves (2010), caracterizados como um instrumento a serviço do controle social e da adaptação da população aos preceitos da sociedade normativa. Em seu desenvolvimento a Psicologia se introduzira nos ambientes educacionais e escolares e propagaria preceitos higiênicos, preventivistas de defesa social contra as patologias, a pobreza e o vício.

Diante disso, influenciada pelas concepções higienistas que estabelecia padrões de normalidade, a psicologia era instada a avaliar condições mentais por meio de testes psicológicos e observações clínicas, com objetivos de se desenvolver técnicas de mensuração e verificação da capacidade mental para criar tecnologias de regulação e normalização de comportamentos.

O processo de industrialização também trouxe a abertura de novos campos de trabalho para a psicologia no Brasil, novas demandas surgiram para o profissional da década de 40 que, incumbido da realização de processos de seleção, avaliação de desempenho de trabalhadores e orientação profissional nas indústrias, tentava corrigir os considerados como desviantes por meio de estratégias e intervenções “curativas” com o intuito de recuperação de uma suposta normalidade. Além disso, aquele seria um período de ampliação da atuação profissional na área clínica, tanto no sentido de profissionais atenderem a demanda das classes médias e altas que se fortaleciam com o processo de industrialização quanto para darem conta das supostas preocupações com o tratamento do fracasso escolar por meio da aplicação de testes psicológicos e psicométricos (Antunes, 2012).

A criação dos primeiros cursos de graduação em psicologia e a atuação de profissionais em novos campos de trabalho foram elementos para a consolidação da psicologia e regulamentação da profissão no país.  O projeto aprovado no dia 27 de agosto de 1962 (Lei n° 4.119) previa a instituição da profissão e estabelecia um currículo mínimo para sua formação. Entretanto, a profissão se estabelecia centrada na prática clínica marcada por psicoterapias individuais e no modelo do profissional liberal que teria como principal espaço para o desenvolvimento de seus atendimentos o consultório particular destinado, principalmente, aqueles que poderiam pagar (Huning et al., 2014). Conforme Gonçalves (2010, p. 91), o profissional psi atuava em espaços destinados a “elite”, dessa forma, a Psicologia se estabelecia muito distante das “necessidades mais amplas, mais relevantes da sociedade brasileira”.

Dois anos após a regulamentação da profissão, em 1964, o Brasil sofre o golpe que deixou marcas difíceis de serem esquecidas para aqueles que viveram os tempos de violência e opressão do período da ditadura militar. O regime autoritário dominou a cena brasileira por 25 anos (1964-1989) e configurou uma forma de Estado centralizado e opressor. Anos de chumbo, marcados pelas atrocidades e violações de direitos humanos, nos quais a tortura seria prática comum e disseminaria o terror pela sociedade (Coimbra, 2001).

Com o início da abertura política em 1974 e principalmente com a revogação do Ato Institucional-5, em 1978, movimentos sociais “entram em cena” (Sader, 1988) e começam a se fortalecer na luta contra a ditadura militar e com reivindicações por melhores condições de vida. Em uma análise geral, podemos considerar que os movimentos sociais da década de 70 e 80, inegavelmente, contribuíram para conquistas via demandas sociais e pressões organizadas de diversos direitos sociais, posteriormente inscritos na Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã. Conforme comentam Coimbra e Nascimento (2009, p. 46):

A emergência desses “novos sujeitos políticos”, primeiramente entre as camadas mais pobres da população e, posteriormente, no início dos anos de 1980, entre algumas parcelas da classe média. Esses segmentos, despertos do sonho do “milagre econômico”, vão paulatinamente tronando-se aliados nas lutas por melhores condições de vida, trabalho, salário, moradia, alimentação, transporte, educação e saúde e pela democratização da sociedade em todos os seus níveis. Em suma, tem-se como meta alcançar as “liberdades democráticas” através da conquista de um Estado Democrático de Direito.

Movimentos sociais e a constituição da Reforma Sanitária e Psiquiátrica no Brasil: sobre as incursões da psicologia

Naquele período marcado pelo regime de exceção no país, surgem nas periferias das grandes cidades movimentos que reivindicavam por melhores condições de vida e lutavam pela melhoria das condições de sobrevivência cotidiana relacionada às demandas de transporte, moradia, saneamento básico, saúde, educação. A Reforma Sanitária surge como um movimento pela transformação das condições de saúde da população e se constitui junto a algumas importantes instituições na articulação para a construção de um Sistema Único de Saúde (SUS): a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), a militância de esquerda e os movimentos de saúde ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, e setores do movimento estudantil e dos médicos Residentes (Paiva & Teixeira, 2014).

Os anos de ditadura militar foram marcados pelo assolamento da saúde da população brasileira, período em que, de um lado, implementava-se uma política econômica geradora de doenças e riscos à saúde, de outro lado, diminuía-se a oferta e reduzia a qualidade dos serviços públicos, potencializando ou sendo o responsável efetivo pela morbidade e mortalidade prevalentes na população brasileira (Escorel, 1998). A assistência oferecida à população nos serviços de saúde caracterizava-se por um modelo marcado por concepções médicas, assistenciais, privatistas, centradas em práticas curativas e individuais que visavam essencialmente à lucratividade (Dimenstein, 1998).

Enquanto as classes populares eram derrotadas e silenciadas pelo regime militar, se inicia nas bases universitárias para se disseminar nas comunidades e periferias um processo de construção da “voz” dos derrotados que visava, principalmente, pensar na transformação na área da saúde (Escorel, 1998). Com a eclosão e o fortalecimento dos movimentos sociais, o movimento sanitário irá se constituir enquanto um saber contra hegemônico, de crítica aos processos de mercantilização da saúde e de luta contra o modelo dominante médico curativo, individualista e hospitalizante de atenção nos serviços de saúde.

A abertura do cenário político e o fortalecimento dos movimentos sociais na luta pela redemocratização, além da atuação de intelectuais influenciados pela ótica do materialismo histórico-dialético, irá promover a constituição de um novo modo de pensar o objeto da saúde e que envolve não apenas a ausência da doença, mas os mais diversos fenômenos relacionados à existência humana. A saúde deixa de ser compreendida como um estado biológico de ausência de patologias para ser concebida como efeito de um conjunto de condições coletivas, sociais, políticas e econômicas, concepção importante inclusive para superar as estratégias medicalizantes (Soalheiro & Mota, 2014) que marcaram durante décadas a forma de atender e pensar problemas relacionados à saúde da população. Dessa forma, conforme Escorel (1998), pensar na luta pela transformação da situação da saúde da população significava também pensar nas reivindicações pela transformação social e político-econômica da sociedade brasileira.

Com o fim do autoritarismo, já na década de 80, o movimento sanitário se amplia, estabelece contatos e alianças com demais movimentos pela democratização do país e configura sua singularidade, procurando cada vez mais detalhar um novo projeto de saúde como direito de cidadania e um inovador sistema público, universal e descentralizado de saúde (Paiva & Teixeira, 2014). Nessa configuração, no ano de 1986, ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) que, efetivamente, contribuiu para a reformulação do Sistema Nacional de Saúde e proporcionou elementos para debate da futura Constituinte.

Nesse contexto seriam definidas as bases do projeto de reforma sanitária brasileira com os seguintes pontos fundamentais: primeiro a concepção ampliada de saúde, entendida numa perspectiva de articulação de políticas sociais e econômicas; segundo, a concepção de saúde como direito de cidadania e dever do Estado; terceiro, a instituição de um Sistema Único de Saúde que tem como princípios fundamentais a universalidade, a integralidade das ações, a descentralização e hierarquização dos serviços de saúde; e, quarto, a participação popular e controle social dos serviços públicos de saúde (Boing & Crepaldi, 2010). Conforme aponta Dimenstein (1998), a VIII CNS foi marcada pelo fato inédito na história da saúde de proporcionar a participação da sociedade civil organizada no debate das propostas e projetos da conferência. Pressupostos que culminaram em um projeto de Reforma Sanitária e, posteriormente com a promulgação da Constituição de 1988, na organização do SUS, com princípios e diretrizes fundamentais traçadas para a sua constituição e concretização.

No bojo das manifestações contra o autoritarismo ditatorial e pela redemocratização do país, o movimento da Reforma Sanitária, originado na década de 70, impulsiona também a constituição de outra mobilização crítica às péssimas condições a que eram submetidos os asilados nas instituições manicomiais e que seria denominado de Movimento da Reforma Psiquiátrica. A trágica e desumana situação dos enclausurados nos manicômios brasileiros que, desde fins do século XIX experienciavam maus tratos, violência, abandono, segregação, cronificação, iatrogenias e mortes (Goulart, 2006), começam a ser denunciada por trabalhadores da saúde indignados com o formato e as características daquelas instituições totais (Goffman, 2001). As instituições psiquiátricas sobrelotadas, que também eram utilizadas como instrumentos do aparelho repressivo do governo militar (Daúd Jr., 2011), se caracterizaram pelo sequestramento e encarceramento, muitas vezes perpétuos, principalmente da população pobre brasileira (Costa, 2007).

Não é difícil entender porque se dava o fenômeno de superlotação dos estabelecimentos psiquiátricos hospitalares. A indefinição na qualificação do que seja um comportamento doentio que justifique um sequestro, o ato de privar alguém de liberdade retendo-o em cativeiro sem o crivo de um processo legal, e a possibilidade de qualquer pessoa poder efetivá-lo não merece maiores comentários. A suspeita de doença mental significou, nos padrões tradicionais de assistência, precisamente um contraponto à cidadania. Os doentes mentais, sob o crivo de um registro médico, que nem sempre se fazia acompanhar de um esforço diagnóstico consistente, perdiam seus direitos civis e eram convertidos ao status de problema de segurança pública, amparados na fantasiosa periculosidade que lhes era atribuída a priori. (Goulart, 2006, p. 5).

Os movimentos que surgem de denúncias e críticas às práticas e discursos psiquiátricos, inspirados pelas experiências reformistas que já ocorria nos países da Europa desde a década de 40 com a Psicoterapia Institucional francesa, sofreram principalmente influências das propostas da Psiquiatria Democrática Italiana protagonizada por Franco Basaglia, nos anos 60, e que culminara em propostas de extinção dos manicômios e reorganização da assistência à loucura naquele país. O projeto de desinstitucionalização da psiquiatria, tão relevante para a reforma basagliana (Amarante, 2007), propôs a crítica não apenas ao aparato manicomial e suas práticas cronificantes, mas principalmente à psiquiatria enquanto ideologia (Basaglia, 1980).

No Brasil, a mobilização de trabalhadores da saúde mental e a organização de encontros e congressos que tiveram a participação de Michel Foucault, Robert Castel, Erwing Goffman, Félix Guattari na denúncia das práticas opressoras e normativas, também pode promover um acalento esperançoso para o emponderamento de profissionais submetidos às vivências manicomiais (Amarante, 2009). Aquelas discussões da década de 80 iriam possibilitar a constituição de propostas de reorganização da assistência em saúde mental, com prioridade para o investimento no sistema extra-hospitalar e que promoveram a construção de um novo modelo de atenção e cuidado com objetivos de romper com saberes e práticas disciplinares que transformaram a loucura em objeto da medicina psiquiátrica e da psicologia clínica tradicional.

Compromissados com os diversos desafios de superação do paradigma hospitalocêntrico, o movimento experimentou a organização de novos dispositivos de atenção à saúde mental com objetivos de construírem novos espaços distantes daqueles marcados pela exclusão, repressão, disciplinamento, medicalização e biologização da vida para se constituírem como lugares de acolhimento e cuidado da condição singular dos sujeitos em intenso sofrimento psíquico, em uma perspectiva da Atenção Psicossocial (Costa-Rosa, 2013; Amarante, 2007).

A psicologia, que desde a regulamentação da profissão, se inseria nas instituições manicomiais com atuações coorporativas de propagação de discursos assistencialistas e moralistas (Antunes, 2012) também precisava se reconfigurar e se distanciar daquele modelo hospitalocêntrico e privatista, cujo grande financiador era o próprio Estado em um processo de “mercantilização da loucura”. (Amarante, 2009).

Inegável, conforme Coimbra (2009), que a década de 70 para a psicologia começa a ser um marco para a reconfiguração da profissão, pois enquanto parcela de psicólogos se acomodavam naqueles espaços de conforto de atendimento às elites em seus consultórios particulares e na reprodução do disciplinamento de corpos nas instituições manicomiais, outra parcela de profissionais psi, juntamente com outros intelectuais e a sociedade organizada, começava a se incomodar e discutir sobre a situação de opressão e violência que vivia o país naquele período ditatorial. O crescimento de posicionamentos críticos em relação a situação vivida na época levaria ao desenvolvimento da psicologia social e comunitária, em que profissionais vinculados aos movimentos contrários ao regime ditatorial,  empenhados nas reformas sanitárias/psiquiátricas e preocupados com a construção de novas práticas que negavam o paradigma hegemônico e as instituições sociais conservadoras,  iniciariam uma nova relação com as populações que demandavam algum tipo de auxílio e de emancipação (Gonçalves, 2010; Dimenstein, 2000; 1998).

Com os movimentos de Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, um novo espaço se abre para a atuação da psicologia nas políticas públicas. No final da década de 80, a psicologia começa a participar dos espaços de discussão e dos movimentos que iriam interferir na elaboração da Constituição de 88, que apesar de todas as contradições, significava naquele momento um marco do reconhecimento dos direitos sociais e da necessidade de políticas públicas para serem atendidas e garantidas com o intuito de se assegurar a condição de cidadania da população brasileira.


Os desafios e as perspectivas para o fortalecimento da psicologia no âmbito das Políticas Públicas de Saúde

Ainda no primeiro artigo dos “Princípios Fundamentais” do Código de Ética Profissional do Psicólogo encontramos a definição de que “o psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.” (CFP, 2005, p. 7). Na atualidade, a psicologia tem ocupado diversos espaços de discussões relacionadas à violação de Direitos Humanos, em torno dos direitos de crianças e adolescentes, de idosos, na luta pela igualdade de gêneros, contra a homofobia, na defesa pela ampliação da Reforma Psiquiátrica, na implementação e defesa do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), no debate sobre o sistema prisional e as medidas socioeducativas. 

No âmbito da saúde, o atendimento marcado, muitas vezes, por concepções psicopatologizantes, individualistas, curativas e centradas no modelo hospitalocêntrico, vem trazendo a psicologia para o centro das discussões na tentativa de construir estratégias de enfrentamento e novas propostas comunitárias de promoção da saúde marcadas pela superação de práticas cristalizadas e na iminência da invenção de processos instituintes (Baremblitt, 1994) no âmbito da RAPS.

Entretanto, ao mesmo tempo em que se abrem espaços de enfrentamento, denúncias e novas atuações, ainda permanecem presentes os espaços de uma clínica tradicional acrítica para o exercício de uma psicologia normativa e individualista, “embebida da ideologia dominante e conservadora das relações sociais” (Dimenstein, 2000, p. 104). Conforme apontado por diversos autores (Huning et. al., 2014; Costa-Rosa, 2013; Dimenstein & Macedo 2012), apesar da constituição de outros cenários na formação de psicólogos a partir das Diretrizes Curriculares do ano de 2004, ainda se enfrenta muita resistência para a efetivação de reformulações nos cursos de graduação tanto no âmbito das universidades públicas quanto das faculdades particulares no interior do Brasil e que ainda reproduzem o modelo hegemônico de atuação profissional: “o modelo clínico liberal privatista, o modelo da psicoterapia individual de inspiração psicanalítica.” (Dimenstein, 2000, p. 104). A transposição aos dispositivos da RAPS do modelo de atuação psi marcado por psicoterapias individuais aos moldes da clínica privada tem culminado na psicopatologização de problemas sociais, políticos, econômicos e culturais (Huning et. al., 2014; Costa-Rosa, 2013), na baixa eficácia de terapêuticas e no alto abandono de tratamentos (Dimenstein & Macedo, 2014), o que incorre em ações totalmente distantes da realidade da população inserida em um determinado território contemplado pelos serviços de saúde da rede pública.

Além disso, percebe-se nos diversos âmbitos da saúde profissionais psi descontentes e frustrados, com práticas totalmente descomprometidas das concepções do SUS e da luta antimanicomial (Costa-Rosa, 2013), com um posicionamento distante das perspectivas críticas éticas-políticas e com os ideários de responsabilidade social na luta em prol da cidadania (Dimenstein & Macedo, 2012). Nessa perspectiva, ainda que existam possibilidades de participação da psicologia nos movimentos de enfrentamento, denúncia e de debates para elaboração e implementação de políticas públicas em saúde com vistas à garantia de direitos e promoção de autonomia, também existe a dificuldade de apropriação desses espaços por muitos profissionais que, “marcados pela tendência corporativa, estariam acomodados em seu próprio status profissional apenas exercendo enfrentamentos para zelar pela estabilidade e consolidação da imagem social da profissão” (Costa, Oliveira & Ferrazza, 2014, p. 70).

Um dos grandes problemas está relacionado a atuação do profissional em psicologia  no campo das Políticas Públicas de Saúde e que continua a exercer e reproduzir, ainda que com outras roupagens científicas e tecnológicas vinculadas aos processos de medicalização da vida (Soalheiro & Mota, 2014; Caponi, 2012), as estratégias de avaliação, testagem e diagnósticos psicopatológicos que historicamente sempre estiveram atrelados ao movimento higienista de disciplinamento, controle e regulação de comportamentos considerados como inadequados e desajustados à sociedade normativa (Coimbra & Nascimento, 2009).

Outro problema a ser enfrentado pelo profissional psicólogo no âmbito da Saúde Pública está relacionado a inserção em equipes de saúde, principalmente nos serviços substitutivos à internação manicomial, e o rompimento com as concepções restritivas de experts e as relações de submissão em relação aos discursos e práticas médicas.  Os serviços de saúde, antes constituídos por uma equipe multiprofissional na qual cada profissional atuava no âmbito restrito de sua especialidade formal, deveriam ceder espaço para a organização de uma equipe de saúde interdisciplinar com atuação transdisciplinar (Costa-Rosa, 2013) com objetivos de romper com a lógica hierárquica e vertical do paradigma da multidisciplinaridade. Dessa forma, as ações da equipe de saúde poderiam deixar de ser centradas na consulta médica, psiquiátrica ou na aplicação de procedimentos psicoterápicos individuais para se focarem nas necessidades e especificidades do sujeito usuário da RAPS.

Dessa forma, por meio da construção de uma política permeada pelos pressupostos da transversalidade (Baremblitt, 1994) é que as intervenções de uma equipe inter/transdisciplinar conseguirão ultrapassar as fronteiras das disciplinas, muitas vezes extremamente rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam dos discursos e práticas da saúde. E o profissional em psicologia deve também estar preparado para atuações nessa perspectiva transdisciplinar. Conforme Eduardo Passos e Regina Barros (2000), a transdisciplinaridade “subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos”.

Nessa perspectiva, a possibilidade de construção de estratégias de cuidado criativas que produzam ações de promoção da saúde, de construção de novos modos de gestão e de soluções inventivas para os problemas que permeiam o cotidiano dos usuários da RAPS poderá constituir outros horizontes para o campo das Políticas Públicas de Saúde (Ayres, 2001). Para o rompimento com práticas curativas, individualistas, normativas, tão presentes no paradigma manicomial, o psicólogo deve estar atento ao exercício de um compromisso ético-político em relação a produção de um sistema universal e resolutivo, associado à ideia de cidadania, que exige responsabilidade social, sensibilidade e capacidade de negociar, bem como de lidar com os problemas complexos e com a alta vulnerabilidade social que marca a realidade de grande parcela dos usuários desses serviços. Na perspectiva de uma clínica crítica/ética/política, por alguns denominada de clínica ampliada (Campos, 2001), e que implica uma compreensão ampla do processo saúde e doença, é imprescindível a corresponsabilidade e autonomia de sujeitos e coletivos e a inseparabilidade entre gestão, clínica, política para a produção de ações em saúde e produção de subjetividades.

Considerações Finais

O surgimento da psicologia dentro das instituições de sequestro do século XIX, caracterizadas pelo controle, vigilância, correção, marcaria a formação psi por crenças em uma verdade imutável, universal e na apreensão objetiva do ser humano e do mundo o que, consequentemente, marcaria nas práticas profissionais a ideia da necessidade de um processo de normatização daqueles considerados fora da norma. Antes que isso pareça algo antigo e fora da moda, atualmente presenciamos cotidianamente nos discursos e práticas de muitos profissionais no âmbito dos equipamentos públicos de saúde as novas roupagens daquele velho discurso higienista, no qual a psicologia, como vimos, estaria a serviço do controle e da adaptação da população aos preceitos da sociedade normativa.

A análise sobre o nascimento, as continuidades e descontinuidades da psicologia tanto nos permite refletir sobre a elaboração de práticas higienistas e normativas e suas relações com os mecanismos de gerenciamento e regulamentação de comportamentos considerados desajustados quanto nos possibilita pensar nas formas de superação das tecnologias de uma psicologia normativa e disciplinadora, centrada em processos psicopatologizantes e em psicoterapias individualistas distantes dos projetos de Reforma Sanitária e Psiquiátrica e da elaboração e implementação de Políticas Públicas de Saúde.

Nessa perspectiva, no âmbito dos serviços de Saúde Coletiva e Saúde Mental, diagnósticos psicopatológicos e terapias individuais acompanhadas de discursos e práticas higienistas, moralistas e normativas poderiam constituir novos tipos de subjetividades despolitizadas, onde os indivíduos deixariam de implicar-se em suas próprias condições de sujeitos, delegadas que estariam ao reducionismo dos discursos psicopatologizantes, regradas por representações de interesses que guardam pouca ou nenhuma relação com o bem-estar e a promoção de saúde das pessoas e das populações. Interesses totalmente isentos das possibilidades de se pensar na saúde como uma arte de despertar potencialidades e criar novas formas de agir na vida e no mundo.


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Data de submissão: 07/01/2016
Data de aceite: 30/09/2016



I Daniele Andrade Ferrazza: Doutora e mestre pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp/Campus de Assis-SP. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: danieleferrazza@yahoo.com.br

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