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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre Dec. 2016

 

ARTIGOS

 

Mulheres e violência doméstica: relato de experiência num juizado especializado

 

Women and domestic violence: experience report from a specialized court

Mujeres y violencia: relatos de experiencia en un tribunal especializado

   

 

Olga Maria Alves da SilvaI, Mikaela Patrícia Pereira AlípioII e Lisandra Espíndula MoreiraIII

I Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.

II Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.

III Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.

 

 


RESUMO

Este trabalho relata as experiências de estágio em Psicologia na equipe multidisciplinar em um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher numa capital nordestina. Teve como objetivos analisar o perfil de usuários (as) atendidos (as) pela equipe multidisciplinar no ano de 2014 e problematizar a intervenção ocorrida no mesmo ano. Metodologicamente, utilizamos como materiais de produção e análise os dados do perfil de usuários (as) e demandas e os diários de campo do estágio. Como resultados, foi possível colocar em questão e compreender melhor alguns aspectos dessa experiência: característica dos sujeitos atendidos pela equipe multidisciplinar, o papel e prática profissional da Psicologia no âmbito jurídico da violência doméstica, além das articulações entre as Redes de atenção local.

Palavras-chave: Violência contra a Mulher; Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Psicologia; Redes de Atenção.


ABSTRACT

This paper gives an account of an internship experience in Psychology within a multidisciplinary team in a specialized domestic and family court for violence against women in a northeastern city of Brazil. Our objective is to analyze the user profiles of those attended by the multidisciplinary team in 2014 and to problematise the intervention. From a methodological standpoint, we use as primary material for analysis user profile data, their application requests and the internship's field diaries. This enables us to pose questions in order to gain insight into the experience: the character of the end-users attended by the multidisciplinary team; the role and professional practice of Psychology within the legal framework of domestic violence; as well as various articulations within the local care networks.

Keywords: Violence Against Women; Specialized Domestic and Family Court for Violence Against Women; Psychology; Care Network.


RESUMEN

Ese trabajo relata las experiencias de prácticas en Psicología en un equipo multidisciplinario en un Tribunal de Violencia Doméstica y Familiar en contra la Mujer en una capital de provincia del nordeste. Tuvo como objetivos analizar el perfil de usuarios (as) atendidos (as) por el equipo multidisciplinar en el año 2014 y problematizar la intervención ocurrida en el mismo año. Metodológicamente, utilizamos como materiales de producción y análisis los datos del perfil de usuarios (as) y demandas y los diarios de campo de las prácticas. Como resultados, fue posible poner en cuestión y mejor comprender aspectos de tal experiencia: característica de los sujetos atendidos por el equipo multidisciplinario, el papel y las prácticas profesionales de la Psicología en el ámbito jurídico de la violencia doméstica, además de las articulaciones entre las Redes de atención.

Palabras-clave: Violencia en Contra la Mujer; Tribunal de Violencia Doméstica y Familiar en Contra la Mujer; Psicología; Redes de Atención.


 

 



Este trabalho tem o objetivo de relatar e problematizar atividades realizadas num Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (JVDFM) numa capital nordestina. Nossa inserção na instituição foi possível através do estágio curricular do curso de Psicologia junto à equipe multidisciplinar deste juizado, ao longo de 20141. Apesar da multiplicidade de intervenções realizadas, optamos por apresentar dois aspectos dessa experiência: 1. Construção e análise do perfil de usuários (as) atendidos pela equipe multidisciplinar do referido juizado e 2. Compartilhamento de casos entre a Rede e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher: intervenção que buscou articular os serviços de saúde e assistência com a equipe.

Para pensar o papel do psicólogo no enfrentamento à violência contra a mulher é necessário compreender as relações de desigualdade baseadas no gênero e os contextos em que elas ocorrem. Inicialmente, situaremos os contextos de realização desta prática, atentando para aspectos teóricos, jurídicos e institucionais. Conforme propõe o Conselho Federal de Psicologia (2013), é necessário observar o compromisso ético da Psicologia e em especial promover o protagonismo e o fortalecimento da mulher. Do ponto de vista institucional, essa experiência aproxima Psicologia, Direito e Serviço Social, pautando-se no diálogo dos saberes e escuta na compreensão especificada do contexto da violência.

Após essa problematização, apresentaremos a análise dos dois aspectos da experiência elencados para este artigo: 1) Características dos sujeitos atendidos pela equipe multidisciplinar; e 2) Projeto de compartilhamento de casos com a Rede. Os materiais para análise de cada um desses pontos foram produzidos de maneira distinta. O perfil de usuários (as) atendidos pela equipe multidisciplinar foi construído a partir dos documentos de registro dos atendimentos ao longo de 2014 e será analisado com base em marcadores socioculturais. Já o compartilhamento de casos entre a Rede e o Juizado tomou em análise os diários de campo escritos ao longo da realização dessa intervenção.

Contextos da experiência: Referências Teóricas

A violência contra a mulher se apresenta de muitas formas, produto de construções históricas com aspectos sociais e culturais distintos conforme o contexto em que ocorre (Silveira e cols, 2011). A posição de submissão feminina pode variar em função do período da história e do lugar do mundo em questão, mas ela é pensada como universal, porque se encontra naturalizada (Piscitelli, 2004). Distinções entre homens e mulheres podem ser entendidas como históricas e sociais e, em seu limite, produtoras da violência contra a mulher.

Detalharemos algumas marcas desses processos sociais, históricos e culturais que foram as condições de possibilidade de construção do cenário atual brasileiro. No correspondente ao Brasil e sua historicidade, a organização familiar sofreu forte influência do Direito Romano, sendo denominada de pater famílias. A família organizava-se sob o princípio da autoridade marital, sendo a mulher casada inteiramente subordinada ao marido (Silveira e cols, 2011). Silveira, Nardi e Spindler (2014) assinalam que a “violência contra a mulher foi, por séculos, vivida de forma silenciosa e individualizada, garantida pelos princípios da inviolabilidade do mundo privado”.  Assim, as diversas formas de violência foram postas como algo da esfera particular, na qual a sociedade não tinha responsabilidades já que a mulher era "propriedade" do marido.

Na legislação brasileira, as mulheres começam a alcançar direitos com a constituição de 1934, pela conquista do direito ao voto. No entanto, juridicamente, a mulher ainda permanecia numa posição inferior ao homem, pois a autoridade do marido e do pai era uma realidade. Em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, marido e mulher passam a ter os mesmos direitos e em 1977 surge a possibilidade de divórcio (Silveira e cols, 2011). Em 1985, houve a implantação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), iniciativa pioneira do Brasil que foi seguida por outros países da América Latina (Pinafi, 2007, p. 03).

Além dos marcos legais nacionais, é importante pensar na influência dos movimentos de mulheres, movimentos feministas e dos acordos internacionais. Em 1984, o Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW e, com isso, se comprometeu diante da comunidade internacional a coibir toda e qualquer forma de violência contra a mulher, adotando políticas voltadas à prevenção, punição e erradicação. Depois disso, a violência contra a mulher voltou à pauta no cenário internacional em 1993 com a Declaração de Viena. Neste documento, o grande avanço foi a revogação da violência privada como de criminalidade comum. Isso significa colocar a violência contra a mulher como um crime que infringe os Direitos Humanos, sendo realizada principalmente na esfera privada (Pinafi, 2007).

Tratar a violência contra a mulher como uma violação aos Direitos Humanos parece algo redundante, tendo em vista que a mulher é um ser humano. Mas o que parece óbvio encontrava brechas nas legislações que tornavam as mulheres relativamente incapazes e subordinadas a figuras masculinas. Sobre a interseção dos Direitos Humanos e a Psicologia, Gesser (2013) salienta a importância de compreender as subjetividades e romper com os processos normativos e opressores da diversidade humana, no caso deste relato, as normatizações relacionadas com as mulheres e as relações familiares.

Entretanto, mesmo com uma mudança no âmbito normativo e social, a posição das mulheres ainda precisa ser colocada em questão. Dados do relatório final da CPMI apontam que o Brasil ocupa a 7ª posição num ranking de 84 países em relação aos homicídios femininos, e em pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo em 2010 revela que 34% das mulheres relatam que já sofreram algum tipo de agressão. No que se refere aos estados brasileiros e mais especificamente os estados da região nordeste 4 figuram entre os 10 piores Alagoas – 2º; Paraíba – 4º; Bahia – 8º e Pernambuco – 10º , apresentando elevados índices de homicídios de mulheres (Senado Federal, 2013).  A região nordeste é a terceira região brasileira com 5,6 mortes de mulheres por 100 mil habitantes. Analisando apenas as capitais, a região fica em primeiro lugar, sendo que 3 capitais possuem taxas de mais de 10 homicícios por 100 mil habitantes: Maceió, João Pessoa e Fortaleza (Waiselfisz, 2015).

Mesmo que em termos populacionais as mulheres sejam maioria (IBGE, 2010), há uma posição bastante desigual em relação aos homens. De que forma as mulheres são colocadas/estão nesse lugar? Como são construídos os discursos que produzem esses índices? Quais as estratégias de enfrentamento, prevenção e mudança?

Para construir conceitos que buscam dar conta desses questionamentos, produzindo reflexões e a promoção de um novo olhar sobre essa realidade, nos aproximamos dos estudos de gênero (Piscitelli, 2004). Scott (1989) ao falar de gênero e da criação dessa categoria de análise, afirma que a palavra gênero tem sido utilizada como forma de referir-se a relação e organização social entre os sexos, sendo assim, é algo que imprime proposição além da descrição dos sexos.

O gênero é uma “forma primeira de significar as relações de poder” (Scott, 1989, p. 21). De uma maneira geral, é difícil conceber um sujeito humano sem posicioná-lo no binarismo sexual - homem ou mulher. Assim, gênero também é colocado como oposto, no sentido em que ser mulher é oposto do que é ser homem. A oposição construída nessa relação não é neutra e confere posição privilegiada ao polo masculino, “concebida em termos de dominação e de controle das mulheres” (Scott, 1989, p. 26). O conceito de gênero tem sido alvo de tensões e disputas teóricas e de demandas do movimento feminista e o trabalho com a temática da violência contra a mulher precisa estar aberto a essas tensões para não correr o risco de cristalizar as categorias através das quais opera (mulheres, homens, vítimas, autorxs de denúncias, autorxs de violência, etc). Ou seja, o conceito de gênero deve nos instigar a questionar as práticas reguladoras das próprias estruturas que prometem a emancipação feminina (Butler, 2009).

Acerca da relação de violência, historicamente a mulher é colocada na posição de vítima, por conta de seu sexo. Pelo fato de ser mulher lhe é conferida essa inferioridade. Tal diferença é histórica e hierárquica, baseia-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino (Scott, 1989, p. 26). A violência contra a mulher traz consigo a demonstração, em ato, desse poder do homem sobre a mulher, colocando a mulher como sujeito passivo. A partir das legislações e políticas públicas, a violência contra a mulher deve ser problematizada, buscando a transformação social (Beiras e cols, 2012).

Em 1994, foi realizada a Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. Nela a violência contra a mulher foi definida em seu artigo primeiro como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Contudo, este documento só foi ratificado pelo Brasil em Novembro de 1995 (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1994).

Nesse documento há a ampliação da violência fora do seio familiar, ou seja, além do ambiente privado. Ressaltando pelo menos 3 ambientes e/ou agentes da violência: 1. família ou unidade doméstica ou qualquer outra relação interpessoal; 2. comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa; 3. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes (Comissão Interamericana De Direitos Humanos, 1994). Aqui, a violência é a reposta àqueles cenários descritos anteriormente, onde a mulher é vista como objeto, e como tal pode ser propriedade de um indivíduo (Okin, 2008).


Contextos da experiência: Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) estão previstos na Lei nº 11.340/2006 – conhecida como Lei Maria da Penha2 - LMP, para assegurar e acelerar o julgamento dos casos referentes à prática da violência doméstica e familiar contra a mulher. O Juizado, como um dos dispositivos no combate à violência contra a mulher, tem como objetivo coibir a violência, através da proteção às mulheres vítimas de violência e da punição dos agressores. A LMP preconiza ações integradas entre vários níveis do Estado em prol dessa luta, além de incentivar ações conjuntas na atenção integral à mulher e a todos aqueles envolvidos na violência.

Para compreender a transformação imposta pela criação dos JVDFM, é importante compreender o modelo jurídico que estava em vigor antes de 2006, no caso, a Lei 9.099/95. No modelo anterior, os casos eram julgados pelos Juizados Especiais que buscavam a democratização do acesso à justiça, com “um processo de despenalização, diminuição das transações penais, valorizando a solução dos conflitos via modelos conciliatórios” (Ferreira & Parada, 2011, p. 23). Entretanto, a violência contra a mulher era tratada como delito de menor potencial ofensivo, resultando em penas alternativas, como doação de cestas básicas. Essa lei “acabou contribuindo para a impunidade e banalização da violência contra a mulher, inclusive desestimulando a denúncia” (Araújo, 2008, p. 04).

Desta forma, o Brasil não cumpria os compromissos firmados em Convenções Internacionais acarretando, em 2001, denúncias junto ao Sistema Internacional pela Comissão Internacional de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Estava dado o cenário para a construção de uma nova legislação. De 2001 a 2004 aconteceram várias etapas para a elaboração da lei, de forma conjunta entre o poder legislativo e representantes da sociedade civil. Assim, a emenda foi aprovada nas duas casas legislativas, culminando na Lei 11.340, sancionada pela Presidência da República e publicada em 7 de agosto de 2006. No corpo da LMP são expressas as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo estas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral3.

A LMP responde e incorpora os acordos internacionais (CEDAW), transformando-se no principal instrumento legal de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher no Brasil , tornando efetivo o dispositivo constitucional (art. 226, § 8º, da Constituição Federal) que impõe ao Estado assegurar a "assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações” (Santos, 2014). Nesse sentido, a LMP visibiliza o tratamento dado pelo Estado brasileiro à violência contra a mulher, pois além de prever uma punição específica cria uma rede de articulação e combate a violência contra a mulher (Ferreira & Parada, 2011).

Em oposição ao que ocorria anteriormente, nos JVDFM há especificidade no julgamento dos processos de violência contra a mulher, além da proposta de tratamento especializado para os envolvidos no processo. Para tanto, a legislação prevê a criação das equipes multidisciplinares nestes Juizados. O objetivo é que, com o auxílio desses profissionais, haja a compreensão ampliada e aprofundada do contexto da violência. No artigo 30, fica estabelecida a criação da equipe multidisciplinar, formada por profissionais que devem auxiliar o Juiz nas decisões do processo, fornecendo “subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência”. Entretanto, o próprio artigo propõe uma atuação mais ampliada, com “trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial a atenção às crianças e aos adolescentes” (Brasil, 2006).

A Psicologia integra essas equipes, em conjunto com o Serviço Social (Brasil, 2006) e é nesse cenário que a intervenção foi realizada. A Psicologia nesse campo constrói possibilidades de escuta das relações de gênero, da subjetividade e do protagonismo dos sujeitos, além da compreensão da singularidade do contexto social e das vivências pessoais.

O JVDFM em que se deu a experiência de estágio foi inaugurado em maio de 2008, em atendimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e à LMP. Possui atualmente uma equipe multidisciplinar composta por duas psicólogas e três assistentes sociais, além de estagiárias de psicologia e serviço social. Além da equipe multidisciplinar a instituição conta com um juiz, uma promotora, duas defensoras públicas, quatro analistas de processos, três oficiais de justiça, uma escrivã, uma auxiliar do judiciário, uma assessora do juiz, uma assessora da promotoria. Também há uma psicóloga e assistente social que são ligadas a Defensoria Pública.

Dentre as inúmeras atividades desenvolvidas e materiais produzidos ao longo do período de um ano no campo de estágio serão enfocados aqui dois aspectos que serão apresentados separadamente, mas que se articulam nas intervenções: o perfil de usuários (as) e demandas e a proposta de intervenção realizada. A escolha desses dois aspectos se deve, no caso do primeiro, à importância de conhecer o sujeito atendido nesta instituição e poder problematizar algumas características sobre eles. No segundo aspecto, a escolha se relaciona com a busca pela construção de uma Rede efetiva que possa trabalhar de forma articulada.

O perfil de usuários (as) e demandas da instituição é formado a partir dos dados do cadastro psicossocial que é preenchido no momento do atendimento ao usuário, sendo as informações ali registradas o mais fiel possível àquilo que é falado durante o atendimento. Os atendimentos são realizados prioritariamente com a participação de um profissional de Psicologia e um de Serviço Social4. Esse perfil tem como objetivo fornecer de forma ampliada alguns dados gerais sobre os sujeitos atendidos pela equipe, seu contexto social e assim servir como ponto de partida para problematizações sobre algumas questões que permeiam a violência contra a mulher. Quanto à análise, faremos um recorte do perfil, privilegiando algumas categorias que se mostraram relevantes: demanda, motivação, tipo de violência, situação, frequência, parentesco com a outra parte, renda e escolaridade, analisando seu conteúdo.

Já a intervenção no campo – Articular redes – foi pensada a partir dos próprios atendimentos acompanhados, dos outros materiais produzidos pela equipe – relatórios, pareceres, encaminhamentos – e pela demanda da equipe em acompanhar esses/as usuários/as por um período maior. A proposta visava compartilhar casos para além do encaminhamento desses/as usuários/as, aproximando os profissionais da Rede de atenção local e fornecendo um atendimento integrado. Para análise, trabalharemos com os diários de campo do período da intervenção, possibilitando assim a problematização sobre a atuação no JVDFM e a rede.


Perfil de usuários (as) atendidos (as)

Tomamos como materiais de análise para o perfil, o registro dos atendimentos realizados pela equipe multidisciplinar no ano de 20145. Ao todo, foram realizados 227 cadastros psicossociais que compõem o perfil de usuários/as atendidos/as pela equipe multidisciplinar. Esse número não representa o total de atendimentos, visto que o mesmo usuário pode ter sido atendido mais de uma vez, constando apenas uma vez no perfil.

Para se compreender alguns dados, vale resaltar que nem todos os processos são alvo da intervenção da equipe multidisciplinar. No referido JVDFM, a intervenção da equipe multidisciplinar geralmente se dá pela solicitação do Magistrado no texto da medida protetiva. Nesses casos, o pedido solicita análise da necessidade de extensão ao/s filho/as do casal da medida protetiva de afastamento do suposto agressor6. Além dessa prática, recentemente foi adotada a escuta em casos de retratação, ou seja, quando a vítima manifesta seu desejo de desistir da representação legal no processo – nos casos onde esta é condicionada.

No que se refere à demanda inicial do atendimento pela equipe multidisciplinar, 32% são estudos solicitados pelo juiz, quando da aplicação da medida protetiva. As orientações são a segunda maior demanda com 31%. Houve também 70 atendimentos de retratação, que corresponde a 30%. Há ainda 3% de atualização do processo e também outras demandas específicas, como emissão de declaração de comparecimento, liberação de réu preso, encaminhado pela Defensoria Pública, solicitação de atendimento pelo Ministério Público.

Dessa forma, as demandas de assessoramento ao juiz – casos de medida protetiva ou  retratação – são as mais comuns e cabem algumas considerações sobre essas demandas. Nesses atendimentos, a equipe multidisciplinar é convocada a responder questões, algumas vezes implícitas. Como representante das ciências – Psicologia e Serviço Social – a equipe teria ferramentas para analisar os contextos e atravessamentos das relações: a vítima está sendo coagida a desistir da representação? As situações de violência permanecerão após a retratação? O suposto agressor deve ficar afastado do(s) filhos (as)? A medida protetiva é necessária e deve se estender a todos os membros da família? Respostas essas que podem representar uma mudança significativa na vida dos sujeitos envolvidos.

Outro ponto é que apenas uma pequena parcela dos processos em tramitação é atendida pela equipe multidisciplinar, produzindo outros questionamentos: o que faz com que os atendidos sejam mais merecedores de atenção do que aqueles não atendidos? Os critérios para o atendimento não produzem diferenças e reforçam algumas práticas que a legislação tenta romper? Não seria direito de todos os sujeitos envolvidos nos processos a possibilidade de contato com a equipe? Essas são algumas questões relevante e que precisam permanecer em aberto para a apresentação de outros pontos do perfil.

Como já mencionado anteriormente, há várias formas de violência contra mulher. Quanto à tipificação, a violência psicológica é a que mais aparece no perfil dos atendidos, em 31% dos cadastros, seguida da violência física com 28%, violência moral 21%, a patrimonial 9% e por fim a violência sexual presente em 2% dos atendimentos realizados. Ressalta-se que na maioria dos cadastros há a presença de mais de um tipo de violência. A violência psicológica, principalmente o crime de ameaça, segundo Mesquita (2010), é a primeira e mais frequente forma de violência vivida pelas mulheres. Além disso, essa violência costuma ser justificada com diferentes argumentos: amor, ciúmes, problemas na família, abuso do álcool. Sendo também a violência psicológica a entrada para os outros tipos de violência. Os dados publicados no Mapa da violência em 2015 (Waiselfisz, 2015) apontam a prevalência da violência física (48,7%), seguida da psicológica (23%) e sexual (11,9%), mas como esses dados são obtidos pelo Sistema Único de Saúde, a busca por atendimento médico influencia a ênfase nas agressões que produzem danos físicos.

Quanto à pessoa atendida pela equipe e a sua situação no processo, 72% foram atendimentos às mulheres vítimas no processo, o que corresponde a 162 dos atendimentos realizados pela equipe multidisciplinar. 24% são supostos agressores e 2% familiares de uma das partes envolvidas no processo judicial.

As mulheres, maioria dos atendimentos, são também quem procura o JVDFM com mais freqüência. Em algumas situações, quando solicitado atendimento pelo juizado, as mulheres são mais facilmente contatadas e atendidas pela equipe multidisciplinar, o que pode estar relacionado com o fato delas mesmas fornecerem essas informações. Muitas vezes são elas que buscam o JVDFM com demandas do suposto agressor como certidões, e. g.. Nesse sentido, nos questionamos porque as mulheres buscam mais a equipe, mesmo que as demandas não sejam delas. Será que não estamos reforçando que esse é um problema delas? Que práticas poderiam ampliar a participação masculina nos atendimentos? Entretanto, no período em que realizamos a intervenção no JVDFM, podemos perceber que quando chamados para falar e serem ouvidos, os homens participam. Numa intervenção proposta por uma estagiária de Serviço Social foram realizados encontros em grupo formado apenas por homens supostos agressores no processo e houve grande aderência e comparecimento deles.

Beiras e cols. (2012) alertam para os estereótipos do homem autor de violência como alguém perigoso, que sempre será violento. Assim, as medidas que o objetivam são sempre punitivas, de modo a coibir os atos de violência. Não se compreende que o autor da violência também é atingido pelas heranças sociais que dicotomizam a violência.

Ao analisarmos o parentesco com a outra parte do processo há a constatação da figura do companheiro (a) como principal agressor, com 29%, seguido do cônjuge 15%, ex – companheiro com 26%, em sequência aparece ex – cônjuge 6%, familiar 10% e com menor incidência namorado 1%, ex – namorado 2% e outros com 3%. De acordo com as diretrizes jurídicas, companheiro(a) refere-se a união estável e cônjuge ao casamento civil.

A figura do companheiro, conjugue e namorado (seja relacionamento atual ou anterior) como suposto agressor da violência é algo já constatado por Mesquita (2010), Moreira e cols. (2011) e Gomes e Diniz (2008), onde na maioria dos casos de violência o agressor é o sujeito com quem a vítima mantinha ou manteve um relacionamento íntimo. De uma forma geral, essa informação se confirma nesses dados, pois exceto os 13% que apontam como agressor outros (cunhado, sogra) ou algum familiar, sem especificar qual o parentesco, todas outras categorias indicam envolvimento afetivo-conjugal com o autor da violência.

No referente à motivação para a violência, os fatores relatados com maior relevância são: ciúmes 21%, conflitos conjugais 15%, seguido de separação com 14%, abuso de bebida alcoólica 12%, conflitos pós - separação 7%, conflitos familiares 4%, por último uso de substâncias ilícitas 3% e infidelidade também com 3%.

Sobre o ciúme como motivação para a violência Mesquita (2010) afirma que o ciúme é uma forma de dominação do homem sobre a mulher, exercida principalmente através da violência psicológica. Os conflitos conjugais e a separação também estão inclusos nas formas onde a violência demonstra modos de reforçar o poder do agressor na relação, Gomes e Diniz (2008) afirmam que esses atos violentos são muitas vezes legitimados pelos homens como forma de manter seu lugar de poder na relação. De forma implícita, o parentesco e a motivação colocam a questão do formato monogâmico e heterossexual das relações, pressupondo-se a monogamia como regra e qualquer indício de sua quebra como justificativa da violência. Além disso, coloca as relações que não obedecem a esse formato num limbo tanto do ponto de vista legal como dos dispositivos da rede.

Quanto à frequência em que se dá a violência, 55% relata que ela foi/é contínua, 20% situacional, 17% não responderam ou não foi questionado e 7% nega que a violência tenha ocorrido. O contexto da violência contínua aparece quando vítima e suposto agressor mantêm a relação mesmo após a violência, quando o processo judicial ocorre após vários episódios de violência não notificados ou ainda no contexto de separação. Vale ressaltar que dos 7% (16 usuários) que negam a violência, todos são supostos agressores.

Para pensar o contexto socioeconômico desses sujeitos observamos questões de escolaridade e renda. A respeito do nível de escolaridade, os dados do perfil apontam que 3% são analfabetos, 1% alfabetizado, 1% semianalfabeto, 27% possuem ensino fundamental incompleto, 3% fundamental completo, 6% médio incompleto, 28% médio completo, 1% ensino técnico, 7% ensino superior incompleto, 5% superior completo, 2% tem pós-graduação e 16% não foi questionado ou não respondeu. No referente à renda mensal 32% recebem menos de um salário mínimo, 26% de um a dois salários mínimos, 8% de três a cinco, 2% mais que cinco salários, algum auxílio do governo representa 3%, pensão alimentícia não chega a 1%, sem renda 4%, não questionado ou não respondeu 25%.

Essas informações nos colocam questões, tendo em vista que é sabido que a violência contra a mulher está presente em diferentes contextos socioeconômicos. Em relação à escolaridade, ao apresentar que homens e mulheres envolvidos na violência tem em sua maioria ensino médio completo ou fundamental incompleto, fica explícita a pluralidade da violência contra a mulher em diversos âmbitos de instrução.

Já em relação à renda, o perfil aponta para uma prevalência de pessoas com renda igual ou inferior a 2 salários mínimos. Cabe pensar também nas características da região em que o estudo se insere. Ou seja, os dados de rendimento dos trabalhadores e trabalhadoras da região nordeste ficam abaixo da média nacional. Dos cinco estados com mais pessoas residindo em lares onde o rendimento per capita é inferior a ¼ do salário mínimo, 4 estados são do nordeste: Maranhão, Alagoas, Ceará e Piauí (IBGE, 2015). Entretanto, entendendo que há violência em diferentes contextos socioeconômicos, as mulheres que denunciam são na maioria mais pobres. Podemos pensar que, quando a situação ocorre em famílias com mais renda e acesso a mais serviços, a via de resolução desses conflitos não passa diretamente pelas políticas analisadas aqui. Entretanto, é um dado importante e que não pode ser negligenciado. Em algumas situações de renda muito baixa, há também o fator de dependência econômica presente, onde mesmo trabalhando ou fazendo alguma atividade que lhe dê algum dinheiro, ao homem ainda é atribuído o papel de provedor da casa, sendo “fundamental para percebermos a necessidade de políticas públicas que possam garantir a essas mulheres as condições materiais e objetivas de romperem com a violência perpetrada no espaço doméstico e/ou familiar” (Mesquita, 2010).

Algumas categorias foram incluídas no cadastro após o termino do estágio e, por isso, não foram abordadas, por exemplo, raça e religião. A análise dos dados do perfil possibilita compreender as situações atendidas pela equipe e entender certos aspectos que envolvem a violência contra a mulher, mesmo que se refira a uma pequena parcela de todos os processos existente no JVDFM. Entendemos que, a partir disso poderão ser traçadas estratégias para melhor atender as demandas e até ampliar o número de sujeitos acolhidos pela equipe.

“Se não tem a quem recorrer, corra” Articulações com a rede

Com base nas observações e intervenções realizadas no primeiro semestre de estágio, foi elaborada e executada uma intervenção intitulada “Compartilhamento de casos Rede – Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher”. O compartilhamento de casos teve como objetivos mapear a rede7 local de atenção à mulher, criança, adolescente e idoso e promover atendimento integrado aos/as usuários/as do JVDFM, abrindo um canal de comunicação para a integração com os principais serviços.

O que se observava até então é que os encaminhamentos para serviços da rede de saúde e assistência já aconteciam, mas não eram efetivos. O método utilizado anteriormente, a partir dos serviços conhecidos na rede do município, era a orientação dada diretamente aos/as usuários/as, indicando endereços e telefones dos serviços que seriam mais próximos de sua casa. Entretanto, não havia retorno dos/as usuários/as nem mesmo dos profissionais. O que se descobriu ao longo da intervenção é que, inclusive os dados fornecidos (telefones e endereços) dos serviços, muitas vezes não estavam adequados e que a rede local não tinha conhecimento acerca do processo de encaminhamento.

Assim, foi pensado um método que pudesse proporcionar uma articulação entre um serviço especializado, no caso o JVDFM, e os dispositivos da Rede, de modo que proporcionasse uma atenção integral ao sujeito. Para alcançar os objetivos foi pensado como estratégia o contato direto com os serviços da Rede de saúde e assistência social, tanto para o primeiro encaminhamento quanto para o acompanhamento dos atendimentos. A proposta foi realizar os compartilhamentos pessoalmente, para que as ações fossem menos burocratizadas, agilizando a troca de experiências. Já que segundo Dias (2012) o sucesso dos encaminhamentos depende mais dos relacionamentos interpessoais entre os profissionais do que das “vias formais” do processo do encaminhamento.

As experiências mais significativas que foram encontradas nos três meses de execução da intervenção foram as reuniões para apresentação da proposta com os profissionais da Rede. Nessas reuniões, estavam presentes o profissional da Rede e as estagiárias. Era apresentada a proposta de intervenção e um pouco do contexto da violência do sujeito a ser encaminhado. A partir daí eram discutidas algumas possibilidades de ações, e também acordado como seriam os passos do acompanhamento. Nesse período, ocorreram tentativas de encaminhamentos tanto para vítimas quanto para supostos agressores.

Podemos analisar que há diferentes formas de compreender o encaminhamento. De maneira geral, os serviços compreendem como forma de repassar o caso, onde o Juizado, por ser uma instância do Judiciário, teria o poder de delegar funções para os profissionais da Rede. Ou seja, os encaminhamentos são tomados como mais trabalho e explicitam a relação temerosa com os órgãos judiciários. Essa questão nos põe a pensar sobre a judicialização das relações sociais e a articulação entre o judiciário, as políticas públicas e os sujeitos.

Em outro ponto da reunião foi sugerida, pelo serviço, a possibilidade da família fazer uma interdição do sujeito, onde através de uma ordem judicial – o que seria fácil, já que nos tratávamos da “Justiça” – requisitaria a avaliação por parte de um psiquiatra da Secretaria da Saúde. (Diário de Campo, 2014).

Interessante notar que, nos discursos de judicialização da vida, os meios jurídicos são compreendidos como infalíveis para a resolução dos problemas e que aqueles que trabalham no âmbito jurídico podem facilmente solucionar as questões. Atribuindo assim, ao judiciário um poder sobre a vida de todos, como uma força que age de modo imparcial, livre de todas as influências sociais e culturais.

Todos os encaminhamentos realizados durante o período da intervenção – três meses – foram para rede pública de saúde. A maioria dos encaminhamentos aconteceu a pedido do usuário (apenas um o usuário foi indicado pela vítima) seguindo-se a busca pelo dispositivo mais próximo de sua residência.

Observamos receio em receber a demanda da violência contra a mulher, independente de ser vítima ou suposto agressor. A realidade da violência, da dependência química e de outros atravessadores produz certo receio com esses sujeitos, que para alguns profissionais deveriam estar “aprisionados, amarrados e dopados – literalmente – até que fosse “curado” e “apto” a conviver socialmente”. A fala de uma profissional demonstrou algo peculiar sobre sua visão acerca do tratamento da dependência do álcool: “nesse caso era apenas sedar o paciente durante todo o tratamento para o álcool e depois tratar do seu transtorno com medicamentos, solucionando assim o problema” (Diário de Campo, 2014). Assim transmitindo uma visão puramente biológica da dependência, desconsiderando a subjetividade e o contexto social.

Outra dificuldade foi a alegação de que o usuário não se encaixava no perfil de determinado dispositivo. Dessa forma, exclui-se aquele que não se encaixa a norma ou à especificidade definida como prerrogativa para um tipo de serviço. Em muitos momentos, o sujeito encontra-se desatendido, rejeitado pela Rede. “Se não tem a quem recorrer, corra” (Diário de Campo, 2015), foi a fala de uma profissional da rede diante dos questionamentos em função das negativas de atendimento, “mesmo sendo esse um serviço para atendimento domiciliar e mesmo sendo essa a necessidade neste caso” (Diário de Campo, 2014).

Ao percorrer a rede, colocamo-nos no lugar do usuário, que tem que peregrinar de local em local, em busca de atendimento. Analisamos as razões do modelo anterior de encaminhamento não se efetivar. Esses percalços além de não atender a demanda do sujeito, produzem mais sofrimento. Assim como se rejeita a proposta de troca de experiências e compartilhamento de atenção, rejeita-se a escuta do sofrimento, da dor e da angústia de um sujeito que pede ajuda. Nesse sentido, a intervenção levou a equipe multidisciplinar a compreender melhor aquilo que é ouvido diariamente pelos sujeitos atendidos, repensando a prática da intervenção e seu papel como profissional.

Considerações Finais

As intervenções da Psicologia num juizado especializado, como o JVDFM, possibilitam a compreensão de algumas possibilidades e limites no enfrentamento à violência contra a mulher. O trabalho de subsidiar o Juiz em suas decisões, através de relatórios e pareceres, tem se mostrado a principal função da equipe multidisciplinar. Salientamos que a participação nos processos e a realização dessas atividades cumprem com a legislação, as políticas públicas e os documentos oficiais que norteiam a prática profissional. Além disso, abre caminhos para a articulação com diferentes lugares do saber acerca da violência contra a mulher e suas complexidades.

Entretanto, a Psicologia com seu olhar singular pode agir não apenas nos processo ou onde ela é “chamada” a participar como tecnologia auxiliar do judiciário. A Psicologia pode auxiliar na compreensão e reflexão acercar dos mais variados campos que atravessam a violência, indo além do previsto, alçando novos modos de fazer, se adaptando as realidades locais e as demandas dos (as) usuários (as). A LMP vai além do judiciário, colocando todas as instâncias e poderes para articular e construir ações em todos os níveis, compreendendo que a violência contra a mulher surge muito antes da agressão e denúncia, mas se forma nas relações mais elementares da sociedade.

As reflexões aqui propostas, tanto a análise do perfil quanto da intervenção, ajudam a problematizar a prática no JVDFM, avançando nas discussões de gênero, na compreensão de outros atravessadores dessa relação e do contexto onde os sujeitos envolvidos na violência estão inseridos. Para problematizar essas questões, é necessário tomar os dados encontrados no perfil dos atendimentos não apenas como representação de uma realidade, mas também como produto da forma como a política de enfrentamento à violência está organizada. Apesar dos dados se concentrarem na população com baixa renda e escolaridade, podemos pensar porque a violência que acontece em outros contextos não aparece. Será que encontra resoluções em outras instâncias ou a política ainda a deixa escapar? Da mesma forma, os dados que apontam para o vínculo existente os sujeitos envolvidos na violência nos indicam a prevalência das relações afetivo-sexuais como lugar de instauração da violência. Não significa que todas as relações afetivo-sexuais envolvem violência, nem que as outras relações familiares estariam isentas, mas nos aponta para a necessidade de desconstrução das relações afetivo-sexuais dentro do modelo romântico associado à posse e aos ciúmes.

Em relação à intervenção proposta, as problematização nos permite colocar em questão a operacionalização da política de enfrentamento à violência contra a mulher. De forma geral, a rede de enfrentamento conta com serviços especializados de atendimento à mulher em situação de violência – que atende às situações em que a violência já está instalada, mas também precisa contar com serviços de atendimento em saúde e assistência social que não são especializados nessa demanda. É no encontro desses pontos da rede que encontramos o maior desafio, mas também a potência de pensar ações articuladas entre proteção e prevenção, conforme o que está previsto na própria lei.

A problematização das atividades nos permite conhecer os dispositivos existentes, e pensar que vários processos sociais estudados e alguns tidos como superados na academia ocorrem no cotidiano da prática, onde a visão de que o sujeito não está inserido em um contexto sociocultural, a medicalização da vida, a culpabilização, vitimização, patologização, além da já citada judicialização da vida. Sendo esses processos comuns e sintomatizantes da qualidade do atendimento oferecido aos (as) usuários (as) dessas redes. Assim, a experiência de atuar nesse campo foi extremamente positiva, possibilitando repensar aspectos que envolvem a violência, seus aparatos jurídicos, além da atuação do profissional psicólogo nesta área.



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Data de submissão: 23/06/2016
Data de aceite: 30/09/2016

1 A inserção no campo se deu através do estágio curricular obrigatório da graduação em Psicologia, no eixo Processos Socioculturais. As duas primeiras autoras realizaram estágio e a terceira autora foi a professora supervisora. A equipe multidisciplinar era composta por duas psicólogas, três assistentes sociais, duas estagiárias de Serviço Social, além das estagiárias autoras deste artigo. Esse trabalho só foi possível pela parceria com essa equipe.

2 Maria da Penha é uma professora universitária que foi vítima de violência doméstica em 1983, quando seu marido tentou, por duas vezes, assassiná-la. Maria da Penha lutou na Justiça pela punição de seu agressor. A punição só veio 20 (vinte) anos depois, por interferência de organismos internacionais (Alves, 2006).

3 Violência física é a conduta que fere a integridade física ou corporal da vítima. Violência psicológica é a conduta que causa dano emocional, visando o controle das ações, comportamentos e crenças da vítima. Violência sexual é quando a vítima é forçada a participar, presenciar ou manter uma relação sexual sem seu consentimento, limitando ou anulando os direitos sexuais e reprodutivos. Violência patrimonial é a retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, bens, valores, direitos, documentos pessoais ou recursos econômicos. Violência moral é a ação que caracterize calúnia, injúria ou difamação (Brasil, 2006).

4 Nos casos onde é feita a escuta da vítima e do suposto agressor, as mesmas profissionais atendem ambos sujeitos.

5 Dados esses utilizados mediante autorização para o uso das informações produzidas pela equipe multidisciplinar.

6 Utilizamos “suposto agressor” porque os processos não foram ainda julgados, tendo em vista o entendimento legal de presunção de inocência.

7 Rede local envolve Unidades Básicas de Saúde, Serviço de Atenção ao Idoso, Serviço de Atendimento Domiciliar, Centro de Atenção Psicossocial, Centro de Referência de Assistência Social, Defensoria Pública, Ministério Publico, Hospitais, entre outros órgãos públicos e privados.

I Olga Maria Alves da Silva: Psicóloga/UFAL atuante na área Psicologia Clínica e saúde mental. E-mail: olgitxa@hotmail.com

II Mikaela Patrícia Pereira Alípio: Psicóloga/UFAL atuante na área de Segurança Pública. E-mail: mikaela_patricia_@hotmail.com

III Lisandra Espíndula Moreira: Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Doutora em Psicologia pela UFSC e professora de Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: lisandra.moreira@ip.ufal.br

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