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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2017

 

EDITORIAL

 

O Improrrogável: exercícios de tateio

 

Em nossa santa intimidade, aquela em que nos vemos diante de um texto que deverá ser escrito, é possível que, como o demônio para Nietzsche, sejamos abruptamente acometidos por um pensamento premente e, como tal, improrrogável. O que estamos escrevendo com tudo isso que escrevemos? O que se espreita – ou engatinha ou rasteja ou agoniza – em mais um texto que hoje nos colocamos a escrever? Qual pacto ou contrato que este texto (e não outro) estabelece com o mundo de ontem e com o de hoje e com o de depois de amanhã?
A ideia para este Número Temático da Polis e Psique surgiu em 2016, ano que ficará marcado como um dos mais sombrios de nossa história recente. Amordaçados por violências assomadas de todos os lados e direções, e acuados pelo desmonte burocraticamente „legítimo‟ do que ainda chamávamos de Estado de Direito, parecemos chegar ao grau zero de nossas forças. Manifestações, greves, paralisações, ocupações das escolas e universidades. Saímos de nossas casas, deixamos nossos gabinetes, fizemos da rua nossa mais nobre sala de aula. Lançamos nossos corpos ao mundo, ao espaço aberto da cidade, gritamos para que nossa voz pudesse ser ouvida. Empunhamos cartazes, subscrevemos abaixo-assinados, queimamos pneus, misturamo-nos em meio à fumaça das bombas de efeito (i)moral. Juridicamente amarrados, presenciamos direitos fundamentais serem violados por aqueles que justamente estariam a nos representar.
O ano que insiste em não acabar avança um dígito e retrocede quarenta. Perdidos no espaço, chegamos a 2017 sob o hálito azedo de 1964. Golpeados também os nossos tímpanos diante do silêncio imposto por uma grande mídia que insiste em tornar natural o que não deveria ser nem mesmo aventado. Tudo em nome do mercado, eis o slogan que, proferido pela língua dos supostos especialistas, violentamente apazigua vozes que ainda possam se fazer discordantes. Que pesem nossos minguados joelhos sobre o inarredável genuflexório econômico. Tornamo-nos então os lunáticos. Os militantes alienados. Os moribundos dessa coisa-nenhuma chamada Direitos Humanos. Os cegos defensores das Políticas Públicas. As marionetes de uma esquerda sentenciada bandida e ontologicamente corrupta.
O Improrrogável, expressão que intitula este dossiê, faz-se então para nós urgente, ainda que desta pouco saibamos. O que com O Improrrogável intentamos é uma espécie de exercício de tateio, a tentativa de nos vermos diante do que não pode ser prorrogado – sem nos deixarmos  capturar pelos anseios  da urgência, desse nefasto significante que faz de nossas vidas um reativo gesto sensório-motor. Entretanto, o que não pode ser prorrogado é nossa capacidade de pensar essa suposta improrrogabilidade, de evocá-la através de nossas palavras e da relação que estas estabelecem com o outro. O que não pode ser prorrogado trabalha, por assim dizer, a contrapelo da própria urgência.
Na tentativa de entender o que só em tateio parecemos compreender, e crédulos na força de nossa camaradagem epistemológica, lançamos o convite a pesquisadores que nos parecem sensíveis aos signos de uma possível improrrogabilidade. Os textos que compõem este Número Especial direcionam nosso olhar para o que possa ser O improrrogável,  são dotados de uma atenção especial ao que, no tempo presente, parece querer evocá-lo. Sabedores de que dizer O improrrogável já é, por assim dizer, trai-lo, mas não nos isentando de dizê-lo, convidamos a leitor a tateá-lo através dos 13 textos que compõem este dossiê.
Iniciamos com “O destino não pode esperar: apontamentos sobre a inelutável improrrogabilidade”, de Tania Mara Galli Fonseca. Neste artigo encontramos pistas preciosas acerca do improrrogável e da improrrogabilidade, tendo como intercessores o pensamento de Didi-Huberman, Gilles Deleuze, David Lapoujade e Gilbert Simondon. Resultante do cansaço e esgotamento que se alojam no ventre do tempo presente, O improrrogável torna-se, pois, irmão do desastre, da catástrofe, da morte e do devir.
Em “A urgência das inquietações: uma improrrogável militância”, Danichi Hausen Mizoguchi e Alice De Marchi Pereira de Souza lançam uma contundente provocação para que possamos pensar os tentáculos de uma militância possível na atualidade e que não sucumba aos ditames do niilismo ou ressentimento.
Sob um envolvente sinete literário, e com a parceria do materialismo filosófico de Epicuro e Lucrécio, em “A cidade dos anjos do improrrogável” somos convidados a deambular por uma cidade intoxicada por signos arredios, e que se revela à superfície de paisagens aparentemente comuns.  De modo sagaz, Luis Antonio Baptista e Rodrigo Lages, os autores, nos fazem igualmente pensar na improrrogabilidade da própria escrita que, distante do ritualismo por vezes asséptico da academia, convida o leitor a “um jogo, uma dança, um repente, um ponto que incita, provoca, seduz, invoca um porvir para a urbe”.
Em “O signo da nossa paixão”, de Eduardo Pellejero, a literatura, juntamente com a arte e a filosofia, afirmam-se enquanto formas privilegiadas do improrrogável, dispositivos de aderência e resistência às múltiplas urgências do mundo. Com um texto que se faz leve, e com aporte de uma crítica lítero-biográfica, somos apresentados a fragmentos de vida de escritores, pensadores e artistas (alguns destes bastante desconhecidos do público em geral), talhando uma espécie de pequena história do improrrogável.
André Guerra e Pedrinho Guareschi assinam o artigo “Amor e revolta: contribuições de Hannah Arendt e Albert Camus para uma ética absurda”. Partindo da crua e cortante sentença de que “Fomos ultrapassados” (tese também pactuada neste Editorial), o texto opera engates filosóficos em prol de uma ética que, admitindo a saturação de seu próprio desencanto, vê-se impelida à revolta e ultrapassagem. Albert Camus e Hannah Arendt são os protagonistas de um texto rigoroso e com entusiasmo de pensamento.
 Os desdobramentos da revolta e do exercício de militância no espaço urbano e virtual são temas que alimentam a escrita de “Embates discursivos e significantes vazios nas manifestações de junho de 2013”, de autoria de Henrique de Oliveira Lee e Camila Rodrigues Francisco. Assumindo que o embate político entre os corpos se retroalimenta dos embates discursivos traçados entre os mesmos, os autores nos convocam a um olhar analítico para o ano de 2013 que, assim como o fatídico 2016, ainda se faz bastante presente. As lacunas constitutivas das identidades e o inevitável paradoxo da democracia parecem se abrir ao olhar quando o campo discursivo é colocado em questão.
Alberto Amaral e Debora Souza trazem a este Número Especial o pensamento de Maurice Blanchot colocando-o a serviço do que chamam de literatura improrrogável. Em “A escrita, o silêncio da literatura improrrogável no pensamento blanchotiano” o leitor encontrará um texto que apresenta importantes pressupostos blanchotianos acerca da literatura, tencionando o olhar a questões relacionadas ao panorama improrrogável de nosso tempo presente.
Em “Suplementos de escrituras. De errâncias e destinos”, Emília Carvalho Leitão Biato e Cláudio Correia Leitão colocam em funcionamento o conceito derridiano de destinerrance,  bastante precioso e ainda pouco explorado no campo da Psicologia Social e práticas peripatéticas de cuidado. Tendo como intercessores o filme Into the Wild (traduzido para o português como Na natureza selvagem) e algumas vinhetas biográficas de Friedrich Nietzsche (em sua derradeira fase de errância), o ensaio nos brinda com potentes considerações acerca da escritura e da improrrogabilidade do sentido operado quando os textos que escrevemos são lançados a ouvidos (pré) destinados.
A escrita é igualmente tema do artigo “...Cartografia... uma política de escrita...”, de Maria dos Remédios de Brito e Silvia Nogueira Chaves. Tramado em oito seções/linhas, o texto discorre acerca das possibilidades e variações do método cartográfico deleuziano, levando-nos a pensar que improrrogável se faz também a problematização da escrita em nossas pesquisas e o lugar destinado à invenção em nossas escolhas metodológicas.
Três autoras são responsáveis pelo artigo “A menina e a mulher: literatura e narrativas de vida”. Flavia Liberman, Virginia Junqueira e Glenda Milek nos apresentam uma oportuna cartografia acerca do feminino, tendo como pano de fundo as possibilidades de um trabalho clínico-político no campo da Terapia Ocupacional. A literatura e a fotografia se apresentam como movimentadores de uma narrativa que marca o encontro com uma mulher às margens de sua vida e de uma cidade.
Alexandre Sobral Loureiro Amorim e Ricardo Burg Ceccim assinam o artigo “Acoplamentos Louco-Formiga: qual o impostergável para um corpociborgue?”, propondo uma inusitada relação entre o conto de ficção-científica “A Formiga Elétrica”, de Philip K. Dick, e a noção de Corpo-sem-Orgãos, de Antonin Artaud. O tema da ciborguização é colocado em questão, fazendo-nos refletir acerca dos desdobramentos das biotecnologias e nos corpos tecnologicamente modificados que habitam nosso cotidiano.
A crise, esse perpétuo e estrutural sentimento gerado pelo capitalismo, é a preocução de onde parte o artigo “The non-deferrable mise-en-crise of the quotidian” (“O improrrogável colocar-em-crise do cotidiano”), de Felix Rebolledo-Palazuelos. Através do que chama de anarquivo, o texto busca tensionar a relação estabelecida com alguns discursos e axiomas neoliberais, propondo outros caminhos à temível e recorrente pergunta: “O que será daqui para frente”?
Este dossiê encerra com o artigo “O que seria uma tese barthesiana?”, de Charles Coustille, tradução do francês realizada por Rafael Souza Barbosa. Este texto é fruto de um rigoroso estudo do autor acerca da obra/vida de Roland Barthes e sua relação com a escrita acadêmica, mais especialmente com a escrita de uma tese doutoral. Mesmo não a tendo concluído – e muitas foram as tentativas de conclusão de tese ao longo de sua vida –, em suas anotações Barthes nos oferece pistas acerca de sua realização, quatro em especial (e que orientam a escrita do artigo): 1) A tese não deve ter necessariamente um tema, seu objetivo é fabricar um objeto; 2) Deve saber abandonar seu método durante o percurso; 3) Mesmo sendo desgraciosa, procurará seduzir; 4) Uma tese é uma maneira específica de orientar o desejo.
Por fim, enquanto editores convidados, faremos uma confissão: este dossiê nasce também de um desejo por aproximação de extremos, por uma necessidade de distrair os 3000 quilômetros que separam o Rio Grande do Sul do Pará. Nasce, também, da improrrogabilidade de uma amizade, de um desejo de transpor, com um passo além, o percurso entre o Mercado Público de Porto Alegre e o Mercado Ver-o-Peso de Belém, de justapor palavras (a)riscadas de Max Martins às milongas melódicas de Vitor Ramil.
Boa leitura!

Porto Alegre – Belém
Verão de 2017
Luciano Bedin da Costa – Editor Convidado
Alberto Amaral – Editor Convidado

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