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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

A cidade dos anjos do improrrogável

 

The city of the angels of unextendable

La ciudad de los ángeles del improrrogable

   

 

Luis Antonio BaptistaI, e Rodrigo Lages e SilvaII

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

A cidade tem sido objeto de inúmeras escritas. Escrevem maldizendo-a os desertores que rumam às suas casas no campo ou às suas comunidades autossustentáveis. Escrevem clamando por ela os ocupados nas escolas, nos prédios abandonados, nas praças, nas universidades. Escrevem preocupados os economistas com suas sacras probabilidades. O que torna improrrogável que escrevamos a cidade? Perseguindo esta interrogação, colocamos em cena um personagem interpelado por uma voz que o exorta a caminhar pelas ruas de um Rio de Janeiro que lhe desorienta os sentidos intoxicados de confortáveis certezas. Em seguida pensamos tal processo à luz do materialismo filosófico de Epicuro e Lucrécio, com vistas à proposição de uma escrita urbana que não apenas interpreta fenômenos urbanos, mas que, transgredindo o sensível, inventa cidades e subjetividades.

Palavras-chave: Cidade; Escrita; Materialismo Filosófico.


ABSTRACT

The city has been object of countless writings. Cursing it write the deserters while depart to its country houses or self-sustainable communities. Claiming for it write the occupiers at schools, abandoned buildings, parks, universities. Concerned write the economists with its sacred probabilities. What makes unextendable that we write the city? On this quest we screened a character haunted by a voice which urges him to walk on the Rio de Janeiro’s streets that disorientates his senses intoxicated by comfortable certainties. On the following we analyze this process by the light of the Epicurus and Lucretius’ philosophical materialism, aiming to propose an urban writing that doesn’t interpret urban phenomena but transgressing the senses creates cities and subjectivities.

Keywords: City; Writing; Philosophical Materialism.


RESUMEN

La ciudad está siendo objeto de innumerables escritas. La escriben los desertores mientras rumban hacia sus casas de campo o comunidades auto-sostenibles. La escriben los ocupas en las escuelas, los edificios abandonados, las universidades. Escriben pesarosos los economistas con sus sacras probabilidades. ¿Qué hace improrrogable que escribamos la ciudad? En esta búsqueda hemos puesto en cena un personaje azumbrado por una voz que le insta a caminar por las calles de un Rio de Janeiro que le desorienta los sentidos intoxicados de confortables certezas. A continuación hemos pensado este proceso bajo la luz del materialismo filosófico de Epicuro y Lucrecio, objetivando la proposición de una escrita urbana que no solamente interpreta los fenómenos urbanos, aunque transgrediendo el sensible inventa ciudades y subjetividades.

Palabras-clave: Ciudad; Escrita; Materialismo Filosófico.


 

 

O encontro

Entrei pela janela. Você não me conhece. Poderia ter entrado pela fresta da porta, mas a janela entreaberta me seduziu. A casa constantemente fechada me provoca. A ausência de luz solar, ruídos do bairro, sopros de ar nas cortinas me enfurece. A inexistência de cheiros de coisas vivas parece afirmar que a cidade é desprezada por tudo aqui. Desprezo insuportável. As paredes sem poros justificam também a minha ira. Não trema. A minha visita poderá ser um perigo para esta fortaleza mofada. Levante. A imobilidade acabou. Não pergunte quem eu sou. Não responderei de onde vim. Abra as outras janelas. Tristeza, dúvidas, a agonia infinita deste mausoléu serão destruídas. O conforto da sua arrogante solidão está encerrado. Anos e mais anos da sua vida foram gastos nesta poltrona grudada ao seu traseiro. Até mesmo na rua ela era levada mantendo o conforto das suas agonias. O mundo visto, interpretado e sentido na poltrona de veludo também me enfurece. Inquietações, angústias imóveis não me comovem. Você está perdido. O desconforto de um tempo alheio ao seu desespero nunca existiu, é indiferente para as suas crises existenciais. O passado esgotado, o futuro promissor, ou inútil, misturam-se ao presente da sua tristeza inerte. Nesta casa expurga-se qualquer coisa que possa perturbar o pessimismo cansado, ou as ideias revolucionárias conspiradas solitariamente. Você agora está em apuros. O tempo das paredes sem poros será aniquilado. O tempo dos relógios, dos calendários, das agendas será destruído implacavelmente. Pegue o livro no canto da última prateleira da biblioteca. O livro azul. Senta na poltrona deformada pelo seu traseiro. Leia sentado com este corpo trêmulo, mas não gagueje. Você não consegue me ver, porém tenho o poder de tocá-lo. Aqui sou apenas uma voz. Pegarei a sua mão e abrirei uma página. Minha voz tem corpo. É cedo para saber meu nome. Não tenha medo. Fale alto o que você está lendo. Leia sem murmurar. Não estou ouvindo, diga as palavras com força:

Sob um grande céu de cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem urtiga, encontrei vários homens que marchavam curvados. Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como o equipamento de um legionário romano. Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhes aonde iam assim. Respondeu-me que não sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que, evidentemente, iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencível de caminhar1.

Pare de ler, controle o tremor  das mãos, pule este pedaço, não é necessário, leia estas linhas:

Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o  mínimo desespero; sob a tediosa cúpula do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado como o  do céu, eles marchavam com a aparência resignada dos que são condenados a esperar eternamente2.

A sua fisionomia extenuada tem as horas contadas. O tédio da sua confortável depressão acabou.

Basta, agora levante desta poltrona e fique em pé. Erga esse ombro. Abra a porta da sala. Tire os sapatos e prepare-se para sair. Olhe para frente, preste atenção ao que está fora desta casa. O desprezo das suas quimeras ao mundo terá surpresas inimagináveis. É improrrogável o que deve ser feito, aguarde e lhe direi o que é. Vamos caminhar. Você está próximo do abismo. Guiarei seus passos por lugares nunca tocados pelos seus pés. O solo empoeirado, detritos, buracos, vermes, roçarão a pele imaculada do corpo que você pensa ser proprietário. É improrrogável a travessia por vir, algo deve ser feito. Tire os óculos, abra os olhos, respire profundamente. A caminhada precisará dos músculos tesos, do olfato apurado. No percurso a morte será encontrada em cada esquina. Sim, você terá várias mortes. Os órgãos do corpo terão as funções alteradas. Não trema. O chão, o céu por onde passam as quimeras nesta casa mofada desconhecem a desolação do lado de fora. Estou aqui para interromper o vagar sem rumo neste deserto doméstico. Vim como o profanador do templo onde utopias e fracassos ganham a aura do sagrado. Acabou a agonia protegida por este espaço sufocante; chega de brincar de Deus, de se desesperar por não conseguir esta meta. Existem desesperos mais intensos, afetos inomináveis, tristezas desconhecidas, alegrias perturbadoras, ignoradas pelo seu universo familiar. Você respirará com as pernas, devorará o que for visto com os músculos do corpo todo, falará, silenciará e vomitará pelos olhos, chorará lágrimas que atravessarão a pele, verá com os pés. O corpo que você pensa ser só seu perderá as funções dos órgãos. O peso das suas quimeras pouco a pouco diminuirá. Os olhos cansados de tanta leitura serão provocados. Retese este corpo curvado. Destrua o relógio. O tempo do lado de fora despreza as horas desta máquina grudada ao pulso. Os óculos também serão inúteis. Nada será nítido no trajeto. Abra a porta e olhe para a rua.

Você conhecerá a cidade embaçada, desfocada, desprotegida do zelo dos instrumentos que a fazem mais bela, ou mais terrível. Ela escapará do conforto dos adjetivos. Digo bem alto nos seus ouvidos, a cidade dará uma resposta às suas análises, responderá às verdades das quimeras presas ao seu corpo. Você está perdido. A paisagem será desenhada por meio do embrulho do seu estômago, da parada e das batidas do coração, dos poros da sua pele transformada em olho. O Rio de janeiro que vou lhe guiar será um inferno. Esqueça o da infância, o dos jornais, o das missas, o da consciência. O inferno a ser apresentado você desconhece. Colocarei no seu caminho anjos que você jamais pressentiu que existam. Não, são diferentes dos anjos gordos  das igrejas abominadas pelo seu ateísmo. São laicos, seres sem Deus. Não são metáforas, símbolos de nada. Cuidado com eles. Arruinarão as certezas e as incertezas desta casa fechada como um cárcere. Os seres sem Deus desconhecem a missão de cuidar almas desgovernadas, ou indicar o rumo para a salvação. Trema, mas me escute. Os anjos estranhos ao paraíso atormentarão as suas agonias, farão esquecê-lo das certezas e incertezas, arrancarão você de si mesmo. A cidade desfocada é enrugada, fede, possui perfumes que lhe será impossível nomear. Você está sem saída. Abra a porta, abandone a poltrona, os sapatos, a memória do seu corpo curvado, o medo. Anjos urbanos lhe incitarão à urgência do ato improrrogável.

Não, não saia agora, espere o nascer do sol. Fique parado com a porta aberta. Olhe pela última vez as estrelas. Quando você retornar elas não serão as mesmas, assim como o seu corpo flácido e as paredes mofadas.  A poltrona não conseguirá acomodar a imobilidade de tantos anos. Seu corpo mudará. Acabou o sossego. Quebre os óculos. Fique atento aos pés a olhar a  cidade embaçada. O invisível da cidade nascerá do seu corpo. Repita esta frase lida no livro azul, repita alto: “eles marchavam com a aparência resignada dos que são condenados a esperar eternamente”3. Saiba que lá fora ninguém é condenado a esperar eternamente. A cidade lateja como um tumor que poderá expurgar o que a infecta a qualquer momento. Olhe pela última vez as constelações das estrelas que lhe dão segurança, o horizonte, a saída principal da sua fortaleza. Atenção. A passagem pelo umbral da porta será a primeira morte4. O entrar e sair do dia a dia acompanhado das certezas cotidianas fenecerá. Interior e exterior apodrecerão como os alimentos que o mantém vivo. O umbral da porta não designará o limite de uma fronteira. Você passará sem nenhum horizonte para protegê-lo. Olhe pela última vez o que está lá fora desprezado por tantos anos. Meu nome será revelado quando o pássaro sobre o solo cruzar o seu caminho e uma pedra sangrar. Aguarde o momento certo. Após a revelação ordenarei o que deve ser feito. Na caminhada olhe com os pés. As passagens destruirão o conforto do que o asfixia.

Amanhece. Atravesse  a fronteira da sua casa. Esqueça a calça mijada, não tema. Você está perdido. A passagem será inesquecível. Antes a porta era o marco de separações amenas para a sua consciência. O lá e o aqui foram demolidos. O tremor do susto que faz tremer sua carne transforma-se agora na tremura do corpo sem suporte, sem chão, sem segurança. Atravessar a porta neste momento é perigoso. Veja, repare, após a passagem as quimeras perderam um pouco do peso. Você morreu. Os rastros de quem você é, suas esperanças e desesperos a desdenhar a cidade serão pouco a pouco aniquilados. Durante a caminhada o deserto da casa mofada será invadido. Esqueça o que ficou para trás. Olhe com atenção, o deserto na rua é povoado, sujo, fedido, áspero e cheio de surpresas. Observe com os pés e descobrirá que os usos e desusos da cidade impedem a  monotonia da paisagem através de cheiros, texturas e formas nunca concluídas. Do alto a Avenida Brasil, apesar da circulação acelerada dos carros, seria um deserto untado por asfalto onde nada acontece. Veja sem a arrogância dos óculos, e constatará que a perenidade das coisas é usurpada; um embate entre matérias é incessante; nele a esperança não é bem-vinda, seria inútil. O tempo é outro. Siga, mais adiante algo acontecerá. Ande sem curvar o corpo. Após a primeira morte o peso das quimeras tornou-se menor. Sinta a brisa, o orvalho, o frescor nos pés descalços. O desconforto o espera. Quem sou eu, não torne a perguntar, já lhe falei que você saberá quando avistar o pássaro no chão e a pedra que sangra. Siga em frente e não olhe para o que passou. Ande rápido até o início da Avenida Brasil. Pare ao lado do cemitério do Caju. Caminhe até este lugar em silêncio. Na primeira parada voltarei a lhe guiar. Não direi meu nome. Serei apenas uma voz. Ande um pouco mais. Não tente lembrar o que ficou atrás da sua porta. Esqueça a poltrona deformada, a origem das quimeras, a esperança, as desesperanças testemunhadas pelo quarto sem poros. Você está conseguindo, ótimo, a tremura não o impede de caminhar. O medo está passando, ande. A cidade desfocada, embaçada, lhe espera. O Cristo Redentor está de costas para o Rio de Janeiro da sua viagem. A paisagem embaçada roga outra memória. O seu passado e o seu futuro correm o risco de perderem o rumo. Os anjos estão próximos. Observe, fique atento, as quimeras estão se dissolvendo. Você está perdido.

Pare. É este o lugar. Ignore o cemitério ao seu lado direito, olhe para frente em direção à zona oeste. Certa vida, desconhecida por você, estará ao seu lado na caminhada. Os mortos que o acompanharão não habitam esta velha morada da eternidade. São mortos de tempos diversos, ainda não devorados pela avidez dos vermes; a avidez indutora de silenciamento. Os que o acompanharão fazem parte de um passado não concluído, e têm muito a dizer sobre esta cidade. Nada  será eterno no seu percurso. Uma vida incômoda o espera. Sinta os pés no asfalto, o cheiro desta  avenida enrugada, veja com a sola dos pés o que os seus olhos nunca viram. O horizonte, o nascer e o por do sol fracassarão caso deseje a proteção do tempo contínuo da velha poltrona. A memória da caminhada o surpreenderá. A partir do momento que você atravessou a fronteira da sua casa o passado, o porvir, ficaram pouco a pouco irreconhecíveis. Não tente recuperá-los. A vida que estará a seu lado será um tormento. Os mortos não lhe darão sossego. O cemitério ficou para trás com seus vermes, esqueça-o. Ande. Não tema. A cidade enrugada o espera com epifanias desconhecidas para o seu universo enclausurado. Este passeio é inadiável. Abra os olhos, as narinas, retese o corpo. Não olhe para a estátua do Cristo Redentor. Ela não lhe protegerá. Não seja tolo, a estátua do Cristo olha para o mar. Ela está de costas para a zona norte. Os anjos que virão não olharão fixamente para lugar algum. O inadiável insuflará a direção das visadas destes entes alheios ao céu. Eles não possuem nome, pátria ou uma mensagem a ofertar. Desconhecem a salvação para o paraíso. Os anjos não escutarão o seu pedido de socorro. São perigosos. Você agora está abandonado. Não pergunte de onde venho e qual o meu nome. Sinta a leveza do seu corpo trêmulo sem o peso das quimeras. Esqueça a casa mofada, o relógio, os óculos a impedir o invisível da cidade. Você conhecerá a memória do inferno.

Na Avenida Brasil embaçada fracassa o seu desejo de encontrar sinais da infância, reconhecer lugares, reencontrar imagens comoventes da sua história. Paredes, telhados, escombros, esquinas com outras cores e texturas fazem-no estranhar a cidade que você pensava ser só sua. A memória agora pertence ao inferno quando fratura implacavelmente a continuidade do tempo. Paredes cinzentas das construções, os vazios da Avenida, a paisagem desfocada e irreconhecível indagarão o que você quer, deseja, propõe, sente no intestino, em todas as vísceras e você responderá,  e novamente outras perguntas serão feitas jogando o seu corpo trêmulo no abismo. A memória, quando fratura a sequencia dos anos, interrompe a continuidade do tempo, exige tônus ao corpo porque  algo deve ser feito. Você está perdido. Não olhe com os olhos. Esteja atento aos apelos das paredes descascadas, às frestas, à corrosão da paisagem. As quimeras estão se dissipando como as nuvens sobre a cidade. O Rio de Janeiro invisível a atravessar o seu corpo recusa ser a cópia do seu mundo inerte. Veja sem os olhos. O pássaro morto indicará quem sou. A pedra que sangra também. Ande.

Siga a caminhada pelo acostamento. Não preste a atenção ao trânsito. Ainda é cedo, o asfalto ainda está frio. Não olhe para o chão com os olhos, esqueça-os, a paisagem atravessará o seu corpo implacavelmente desenhando-o em outras formas. Sinta o lixo nas unhas  do pé. O vento desta manhã derrama sobre o solo os detritos das fábricas abandonadas do outro lado da Avenida Brasil. Pare e olhe para a calçada. São prédios abandonados, quase escombros. O lixo destas ruínas cobre os seus dedos grudados ao asfalto. Terra, teias de aranha, lascas de madeira, baratas, papéis, saem das antigas fábricas. Esfregue os pés no asfalto, veja através deles as camadas de tempo desta Avenida. Aproveite, continue a esfregar a sola dos pés, o sol ainda não despontou com violência. Debaixo da camada negra da superfície vários tempos ainda respiram. Olhe para as fábricas fechadas, tente ouvir as vozes que ainda habitam o vazio destes lugares. Na casa mofada as quimeras eram repletas de nostalgia, de esperança e desesperança. O seu corpo era uma ideia. A carne flácida sentia saudades  de um Rio de Janeiro rumo ao desenvolvimento, da bonança, do futuro. Entristecia quando constatava o fracasso das utopias da urbe moderna. Apesar da tristeza você esperava resignadamente pela cidade dos seus sonhos. Olhe para a antiga fábrica de sabão. Agora veja esta construção abandonada, ela abriga mortos que desejam falar, você os escutará. Saudade, tristeza, esperança são tão inúteis quanto as suas quimeras para estes habitantes que desejam a palavra. Escute com os olhos, esqueça as orelhas. Continue a olhar a cidade com a sola dos pés. A urina na calça está secando. O medo agora dá lugar ao incômodo no corpo. Não se preocupe com o inchaço. Ele será deformado pouco a pouco. A segunda morte está próxima. Não tente entender o porquê da minha repentina visita. Outras fábricas abandonadas o espreitarão. O anjo sem Deus aproxima-se. Nada será como antes. Quem sou eu lhe direi quando encontrar o pássaro morto e a pedra que sangra. Ande.

Algo novo sucede nesta caminhada. Veja como sou generoso, além de aliviar o peso que ainda resta das quimeras lhe ensino a caminhar e a morrer. Esfregue com força estes pés pálidos no chão. Mais força, grude a pele dos seus dedos ao chão imundo desta cidade. Misture o sangue aos dejetos. Você está perdido. Aprenda a explorar os lugares como os ratos. Andorinhas e ratos exploram cidades de modos diversos. Ratos são atentos aos restos, às migalhas, aos dejetos esquecidos da cidade. Esticam, encolhem, mudam o corpo para explorar as superfícies. Hesitam quando avistam o caminho mais fácil, sentem as rugosidades do chão como indícios de outro percurso. São seres atentos às matérias, ao frescor e ao apodrecimento dos resíduos que os alimentam. Continue a andar. O improrrogável desta caminhada exige o caminhar à semelhança dos bichos do esgoto. Do alto o Rio de Janeiro não lateja, o tempo iguala-se a um cadáver que permanece imóvel na sua identidade. Você está entendendo o que estou lhe dizendo? Repito no seu ouvido divagações ouvidas de homens do exílio, de  errantes que se perderam nas estradas e ganharam vigor nesta errância. Ouvi muitas histórias destes andarilhos habitantes das estradas. Ouvi também dos animais. Explorar as cidades como as andorinhas seria inútil para os errantes que aprendem com a superfície. Do alto desconheceriam os fiapos, os restos, os pedaços de histórias que os alimentam e os ensinam a conhecer lugares pelos desvios, buracos, declives, pelo errar. Do alto a cidade não fede. Do alto a paisagem não interpela a superfície de um corpo, ou o olhar de quem a observa. Aprenda também com os urubus; deles a rota do vôo é interrompida pelos cheiros. São devoradores de carniças que abrem caminhos, facilitam passagens produzidas por acontecimentos. Ave exímia operadora da atenção ao que sucede no solo. Na superfície a cidade apresenta vida e morte no constante transtorno da paisagem. Ratos e urubus são criadores de mapas urbanos ideais para os errantes das cidades atentos ao improrrogável. Mapa instável, feito, refeito, desfeito por tempestades, epifanias de felicidades, genocídios, revoltas, ações do sol, dos vermes, dos afetos dos homens e do inumano. Após a caminhada o improrrogável será desvelado e você saberá o que deve fazer. O seu corpo ainda não está totalmente cansado. Atravesse a Avenida Brasil. Entre na primeira construção vazia, ouça as vozes lá dentro. Caminhe, os mortos do passado inacabado tem algo a lhe dizer. Caso seja impossível ouvi-las alguém lhe ajudará. Será um auxílio inesquecível. Não esqueça o que lhe disse, os urubus e os ratos são atentos aos acontecimentos da superfície. Abra as narinas, escute com os olhos. A fábrica de sabão o espera.

Abra a porta da velha fábrica. Algo toca a sua pele, não se assuste, é a ponta da asa de um anjo. Ele não aparecerá aos seus olhos. O rumor das asas é ouvido, mas o rosto lhe é vetado conhecer. Ele não possui nome; será efêmera a sua presença, mas o arrancará de si, o desvencilhará das certezas que ainda lhe restam. O anjo está ao seu lado, mas por pouco tempo. Não tema este lugar abandonado, pare e escute. O ente sem Deus dirá nos seus olhos o que os mortos desejam lhe dizer. Para a cidade vista do alto teríamos aqui o fracasso do outrora, a decadência, escombros onde o vazio sentenciaria o abandono. Pise com força, olhe com os pés, escute com os olhos o que o anjo lhe faz escutar. São vozes diversas; umas murmuram queixas no corpo na confecção do sabão; várias desejam dizer algo sobre os projetos deixados no meio do caminho; outras contam o dia a dia tedioso da fábrica, o prazer das alegrias, das amizades, das descobertas inusitadas naquele lugar; quase todas dizem que lutaram muito para continuar vivendo; algumas falam do fracasso da promessa do Rio de Janeiro rumo ao progresso; muitas sentem saudades da cidade de onde vieram; poucas ficam em silêncio. No vazio da velha fábrica escutam-se também gritos insurgentes, conversas sobre conspirações, exclamações de desejos, gemidos de dores do trabalho. Uma diferencia-se de todas, é vigorosa e afirma que o mercado não pode perder tempo, a cidade se moderniza, a produção de riqueza não possui um solo fixo, o sonho globalizado precisa desbravar outros espaços. Esta voz vigorosa enaltece o futuro tentando afirmar a inutilidade daquele lugar povoado por fragmentos de vozes a cintilar como fogo. Sinto que o anjo não lhe diz mais nada. As vozes o deixaram atônito. Veja com atenção; no espaço vazio o passado da cidade recusa ser interrompido.

Olhe para a chaminé da velha fábrica de sabão, olhe com os pés e constate como se parece a uma catedral. Em tempos distantes, fábricas eram sagradas. Os homens que cultuavam o mercado da época legavam às chaminés o sentido dos campanários das igrejas. Lá dentro as vozes que você ouviu profanavam o templo fabril com suas histórias contrastantes. Das chaminés saiam a fumaça da produção, assim como sonhos, fracassos, tristezas, alegrias das tramas das histórias. No percurso do seu carro, antes das suas mortes, ali residiriam exclusivamente vidas operárias, um coletivo homogêneo subjugado, ou combativo, às leis do capital. Dos seus óculos era impossível perceber a passagem e a saída ininterrupta do Rio de Janeiro composto por lutas minúsculas incansáveis, por mortes invisíveis, por apelos improrrogáveis saindo e entrando pelas chaminés. O corpo curvado por suas quimeras ignorava a catedral da cidade moderna ladeando os sonhos  da Avenida Brasil. Não imaginava o modo de produzir sabão como uma religião. O anjo sem rosto ao fazer você ouvir as vozes profanou o lugar sagrado das ovelhas operárias, assim como a aura da urbe rumo ao futuro. A sua lente desprezava apelos da cidade viva composta por forças díspares; ignorava dores e alegrias estranhas às suas quimeras. A nitidez da vida operária  das suas análises foi maculada pelo anjo sem rosto. As vozes desdobraram a imagem sem corpo das suas verdades. O alarido dos mortos com sonhos e projetos ainda vivos desdobrou ao infinito os seus decretos elaborados na casa sem poros. Você está perdido. É improrrogável o que deve ser feito. O anjo sumiu e não retornará jamais. Os templos do mercado agora são outros. A revelação da tarefa improrrogável está próxima. Após alguns minutos de caminhada a fuligem invisível da chaminé o levará ao encontro de um objeto. Fique atento. Siga até o bairro  de Bonsucesso. O sol queima o asfalto. Ande.

Pare quando encontrar a caçamba de lixo. Agora pegue um livro sem capa misturado aos detritos. Meta a mão no lixo, procure o livro. Pegue- o, entre à direita na primeira rua que faz esquina com a Avenida Brasil. Pare na primeira encruzilhada. Mais tarde você saberá o porquê deste lugar. Pegarei mais vez a sua mão. Leia esta página alto. Leia alto no centro da encruzilhada:

Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar- se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade5.

Repita este pedaço do que você leu no centro da encruzilhada, diga com força, repita como um grito, e faça tremer a Avenida Brasil: “Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las”6. Você conheceu mais um anjo. Agora retorne para a Avenida Brasil, outros destroços o esperam. A tempestade estará no seu caminho, porém darei ao seu corpo o poder dos ratos e  dos urubus com as asas fechadas. A voz vigorosa da fábrica de sabão tentará lhe desviar como uma  devastadora ventania, o fará esquecer as suas mortes, os seus órgãos e vísceras deformados, mas estarei ao seu lado atento à leveza do seu corpo sem as sufocantes quimeras. Você está perdido.

Ande um pouco mais por Bonsucesso. Ainda é cedo, o asfalto está frio. Pare em frente ao complexo da Maré. Olhe agora com a boca as pessoas no ponto de ônibus da Avenida Brasil7. Esqueça os seus olhos. São homens e mulheres que saíram das ruas estreitas da favela. Esperam o ônibus para o trabalho. Aproxime-se deles. Olhe para a mulher negra de amarelo. Chegue perto. Eles não o perceberão porque você agora é uma nuvem. As mortes ocorridas o mantém vivo, mas sem forma definitiva, vulnerável ao que passa e o atravessa. Tenha confiança em mim. Olhe para a mulher de amarelo. Veja as rugas na parte esquerda do rosto. Chegue mais perto e repare a marca da pele a revelar os anos de trabalho da mãe, da avó, do padrasto na fábrica de sabão. Sim, os sinais na pele mostram passagens de diversos personagens, de cenas não exclusivas ao corpo da moradora do Complexo da Maré. A ruga maior indica as noites de insônia quando tiros invadem a favela do Timbau. Olhe na altura dos lábios, esta outra ruga afirma a alegria dela de estar junto às amigas no domingo rindo e bebendo cervejas. A do lado direito revela a tristeza da mãe, da avó, dos vizinhos, quando a fábrica de sabão fechou. Chegue mais perto, veja com a boca. Repare na enorme ruga perto do queixo expondo a saudade dos homens e mulheres mortos pela polícia e pelo tráfico. A do canto dos olhos sinaliza os dias que os arregalou quando o espanto do dia a dia a aturdia com afetos de várias intensidades. Observe com atenção a da testa, nela é exibido o esforço para a emissão de palavras carregadas de desespero, de revolta, quando a impedem de usar a cidade. Pare de olhar. Agora cheire. Fique próximo do mulato de bermuda estampada. Cheire com os olhos este homem. Repare o odor de sabão da fábrica abandonada. Sinta o odor deste velho homem; esteja atento ao cheiro de saliva, sim, presta atenção às salivas das palavras emitidas, dos gritos do pai dele quando a fábrica ainda funcionava. Salivas dos gritos de fúria contra a  culpa que o impingiam quando a produção desejada não era alcançada8. A fábrica não é, e não era, uma catedral, dizem as palavras molhadas. Cheire o pescoço, constate o perfume de  refogado do feijão, o aroma do mingau que ele faz para os netos após perder a filha e o genro no tiroteio. Inspire o perfume da colônia nos punhos; é o perfume usado na partida do sertão nordestino para a capital quando a fábrica foi inaugurada. Cheire com os olhos as mãos deste homem, sinta o aroma do suor quando o medo ocorre. Abra os olhos e respire o cheiro desconhecido no corpo dele que você não consegue nomear; aromas do passado do Rio de Janeiro, dos becos, das valas, das flores, dos cadáveres, das praças e de lugares que ainda não existem nesta cidade. Você está  perdido. Antes das suas mortes todos eles eram percebidos como excluídos. Do seu carro, quando atravessava a Avenida Brasil, seu coração batia forte desejando incluir, empoderar, integrar os personagens da, segundo você, triste paisagem. Agora a nitidez do que era visto através dos óculos se esvai. Rugas e cheiros do complexo da Maré afirmam um emaranhado de palavras, de sons e silêncios nos corpos desconhecido por suas pesadas quimeras. Na pele dos habitantes dos bairros a beira da Avenida Brasil o Rio de Janeiro lateja. Neste latejar tudo poderá acontecer. A tristeza vista através das lentes é violenta, porque finaliza, encerra histórias destes homens e mulheres tornando-os sem poros como o quarto habitado por você. Não se esqueça do mapa dos errantes inspirado nos ratos e urubus para prosseguir a caminhada. Mapas feitos, refeitos, desfeitos quando a cidade não é a cópia de uma ideia. Nos corpos do ponto de ônibus o tempo é descontínuo, não segue em frente; é pleno de atenção aos perigos do agora, às urgências, apelos para que o passado possa ser outro. Do seu carro eram vistos réplicas do modelo da cidade feliz, ou infeliz. Dos óculos avistava-se a arrogância da sua solidão. Em breve o meu nome, onde habito, a tarefa improrrogável serão ditos. Saia deste lugar. O pássaro morto, a pedra que sangra estão próximos.

A escrita

Uma das armadilhas do contemporâneo é conjugar o movimento com a espera. Diferentemente da peça de Beckett (1952/2005), na qual se espera Godot à sombra de uma árvore, à beira de uma estrada deserta, nossas esperas cotidianas são realizadas em meio ao movimento, deambulatoriamente, no frenesi das cidades que trafegam vidas desencantadas. No movimento não nos desorientamos (Roncayolo, 1981), no repouso não devaneamos (Bloch, 1959/2005). Temos uma circulação que não faz o corpo despertar e um repouso que não conforta suficientemente para que o espírito vague em busca do extraordinário. Em estado de alerta, nunca estamos verdadeiramente despertos. Em estado narcótico, nossos sonhos não nos fascinam. As tecnologias de produção da vida média, “ponto mais alto de uma vida baixa”9 (Defoe, 1719/1994, p.9) aparam os epígonos da experiência subjetiva.

O que caracteriza, portanto, o modo de vida contemporâneo que exaure corpo e alma numa eterna espera resignada? De que são feitas as quimeras que nos entorpecem?

A alegoria de Baudelaire (1869/1937) lança mão dessa figura dúbia que designa ao mesmo tempo  uma imaterialidade inalcançável (as utopias, os sonhos, as ilusões), e uma materialidade impossível (quimera como bestas híbridas; mesclas de peixe com ave, ou ave com mamíferos, etc.). O poeta nos recorda que somos capturados por um horizonte - “local onde a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano” (p.11) – que nos circunscreve numa armadilha na qual os sonhos se confundem com as distâncias impossíveis, e os corpos com as formas disfuncionais; esvaziando, portanto, a potência inspiradora dos sonhos e experimental dos corpos.

No domínio da quimera como objeto, nossas ideias, nossas aspirações, nossos encantamentos, não nos inspiram a perscrutar além do horizonte; são abstrações desencantadas, estáticas, que nos informam sempre daquilo que jamais seremos. E nossos corpos, nossa vitalidade, - tal como as galinhas que não voam apesar das asas – servem apenas para sustentar o próprio peso. Para o poeta, os corpos curvados e os olhos foscos de homens que experimentam a eternidade sem desesperar são fruto dos objetos- quimera que eles carregam nos ombros e no olhar.

Mas há outra forma de pensarmos a quimera. Não como objeto. Não como objetividade material (seres híbridos), nem como objetividade imaterial (ideais ou utopias). Existe a quimera como processo que é justamente o ponto de encontro entre essa dimensão material e imaterial. Trata-se do corpo das nuvens. Observar as formas mutantes das nuvens, ou melhor, observar as nuvens não como formas, mas como formações, como matéria em movimento que performa animais, artefatos, continentes, presságios, etc., é ir ao encontro da quimera como um processo e não como uma objetividade impossível e distante que nos desvitaliza.

No corpo das nuvens não encontramos linha reta. Toda a silhueta é bailada. Toda carne é uma festa. Toda imagem é cinema. O corpo das nuvens, processo-quimera, desorienta os sentidos. Confunde leitura com adivinhação, visto com vivido, imaginado com observado, lembrado com inventado. Nada é eterno nas nuvens a não ser a sua efemeridade. Pode o corpo de concreto da cidade ser tão movediço como o corpo das  nuvens?

Encontrar na urbe a alegria mestiça das nuvens é improrrogável.

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Tempo da decisão, da irreversibilidade, das mudanças sem retorno – a água que se deságua em cachoeira, a flecha que se desprende do arco, o leite que se derrama - kairós (Negri, 2000/2003) é também o tempo da ética. Na qualidade do tempo kairós não há espaço para a neutralidade, para esperar pelo destino. Em kairós nada fazer é também agir, pois a transformação que ele põe em marcha não pode ser desfeita. O tempo de kairós é o de um materialismo radical, posto que ele afirma que a ideia está subsumida pela experiência e não organizando-a desde fora. Nenhuma imagem, nenhum ideal, nenhum Deus está acima, aquém ou além daquilo que é vivido. Em kairós os deuses não estão no Olimpo ou no céu, mas frequentam a criação. Mesmo os deuses (ou ídolos ou ideias) do cientificismo, em sua liturgia de fórmulas e leis naturais, não são exteriores à experiência,  mas implicados nela, sofrendo seus efeitos, sendo por ela produzidos. A gravidade, a gravitação, a termodinâmica ou a encenação dos quantas, tudo está em produção, em processo, tal como as nuvens. No materialismo mais radical a matéria não representa os papéis inventados pelas leis da  natureza, mas as leis da natureza são consequência dos papéis que a matéria inventa para si, tal como as nuvens inventam-se quimericamente: “... o campo do materialismo, onde predicar o ser é inová-lo” (Negri, 2000/2003, p.75).

O cientificismo que começou a ser gestado na modernidade e que passa a ser o principal critério de verdade da contemporaneidade não faz jus ao materialismo enquanto tal, posto que aparta da seta devastadora do tempo as ditas “leis naturais”, alçando-as a transcendentais eternos e estáticos, indevassáveis pelos acontecimentos do mundo. Esse materialismo canônico é apenas a versão domesticada da consequência radical do materialismo filosófico que encontramos em Epicuro e Lucrécio: o inexorável fato de que o mundo constrói a si próprio a partir de uma qualidade clinâmica que faz surgir o movimento desviante “em altura incerta e em incerto lugar” (Lucrécio, 1988, p.60). A percepção das potências selvagens de um mundo que cria incessantemente, em uma lúdica eternidade que não começa e não termina num ponto único e que não cessa de inventar e de destruir, traz consequências radicalmente libertárias para as subjetividades. O materialismo cientificista que sobeja nas nossas práticas, mesmo em ciência humanas, não deixa de ser uma resposta conservadora em relação a esse radicalidade do primeiro materialismo que surgiu com Demócrito e seu conceito de átomo, mas que foi aperfeiçoado em Epicuro com a noção de desvio, batizada por Lucrécio de “clinâmen”.

Recuperar a contundência do materialismo no campo das práticas científicas passa, portanto, pela  busca de uma prática que afirma o caráter incerto do mundo. Do ponto de vista da ética, isso significa afastar-se da premissa a partir da qual a ação correta é aquela que interpreta adequadamente as circunstâncias, que é capaz de nomeá-las, de sabê-las inequivocamente para bem conduzir-se ao largo do erro e da maldade. O materialismo tal qual o filosófico, só poderá pensar uma ética que seja também performativa, inventora de mundos, num certo  sentido, mais gestual do que intelectual. Essa ética não espera o deslindar dos acontecimentos para conhecê-los, mas, ao sabê-los irreversíveis ao modo de kairós, toma parte na sua produção. É uma ética-feiticeira porque conjura, faz transe, bota o corpo na roda, chama pela natureza ao invés de descrevê-la. Num certo sentido, o materialismo radical é também uma arte dos encantos, dos quebrantos, uma certeza de que o mundo desconhece nossa justiça e que a ela não se submeterá. É uma forma de  se relacionar com o misterioso sem comprá-lo ao modo da idolatria (outra forma de vitória da transcendência), mas que com o extraordinário, com o misterioso, com o virtual, estabelece um flerte, um jogo, uma sedução.

Agambem (2005/2007), retomando Benjamin, diz que o que difere os adultos das crianças não é a força, mas que os primeiros são “incapazes de magia” (p.23). E a razão dessa incapacidade seria a sua crença na função representativa da língua. Não se trata de uma crença nos nomes em si, mas da aposta que os adultos fazem numa eventual ordem dos sentidos que estaria encoberta pela confusão babélica. Ser adulto é achar-se capaz de interpretar corretamente o mundo, ou, ao menos, considerar que a felicidade é fruto da correta nomeação das coisas que existem no mundo. A sagacidade materialista das crianças, para Agambem (2007/2005), é que a felicidade não é fruto da interpretação, mas da invenção de uma língua secreta, a qual “só fala por gestos” (p.25); felicidade não conquistada, mas conclamada, espreitada, conjurada, por aqueles que se entregam inteiramente à materialidade do mundo, sem ancorar ponto de retorno nas certezas transcendentes. Viver no mundo como quem enfrenta o mar aberto a nado. Passar do ponto em que não se é capaz de retornar à terra firme, criar corpo para sustentar a travessia. Um materialismo feiticeiro, portanto, que inventa o mundo e não apenas o descreve, cria corpo e não apenas o desenvolve, é o que nos solicita o tempo kairós. É com essa arte de escrita que podemos escrever as cidades, ou seja, escrever a cidade com a sagacidade de poupá-la da nossa hermenêutica.

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Por que escrevemos sobre a cidade? Escrevem maldizendo-a os desertores que rumam às suas casas no campo ou às suas comunidades autossustentáveis. Escrevem clamando por ela os ocupados nas escolas, nos prédios abandonados, nas praças, nas universidades. Escrevem preocupados os economistas com suas sacras probabilidades. E escrevem amiúde os acadêmicos, os mestrandos, os doutorandos, os pesquisadores. Estes escrevem(emos) muito. Talvez até escrevamos mais do que andamos sobre a cidade.

A cidade é um enigma a ser decifrado? Uma musa inspiradora? Um problema a ser gerenciado? Uma forma a ser contemplada? Uma surpresa a ser desvelada? O que seria uma escrita materialista da cidade?

A escrita no materialismo segue o mesmo princípio da matéria, ou seja, é uma ação poética de afinidades e de desvios, em que os afins se aproximam, mas que ao se aproximarem se entrechocam e se desviam, se repelem e se compõem ao modo dos turbilhões. O clinâmen é o movimento imprevisível e indeterminado que rompe a chuva canônica dos átomos em linha reta na direção do infinito universo. Na chuva de retidão canônica não há forma, não há matéria, apenas repetição e homogeneidade. Mas o átomo clinâmico, que se desvia, interrompe a placidez do movimento paralelo instaurando uma nuvem de átomos em que os choques e entrechoques produzem matéria a partir das afinidades, das conveniências, dos entrelaçamentos elípticos, dos encontros sensíveis entre átomos e entre o produto das suas conjugações.

Qualquer finalidade, qualquer sentido, qualquer função é apenas posterior ao acontecimento contingente, arbitrário e autoengendrado do clinâmen. “Não há nada no nosso corpo que tenha aparecido para que possamos usá-lo, mas é o ter nascido que traz consigo a utilização” (Lucrécio, 1988,

p. 89). Assim é também a natureza da escrita no materialismo. Os sentidos construídos pela língua são, via de regra, canônicos e previsíveis. É pela ação poética do escritor que engendra novas dizibilidades, novo sentidos, novos agregados semânticos, que a língua se torna viva.

... é importante nestes meus versos a ligação de cada parte e a ordem por que vem colocada. Efetivamente, caracteres idênticos designam o mar, as terras, o céu, os rios e o sol e ainda as searas, as plantas, e os animais; se nem todos são iguais, a grande maioria é muito semelhante; mas o significado difere devido à posição. De igual modo, se se trocam nos corpos as combinações, os movimentos, a ordem, as posições, as formas, também se muda o próprio corpo. (Lucrécio, 1988, p.59).

A escrita não é, pois, interpretação de um mundo já dado,  mas construção de mundos e das cidades que habitamos através da produção de sentido. O escrever do poeta atua no campo do sensível que não é outro senão o da própria criação da matéria. No materialismo epicurista a matéria só existe porque os átomos em suas diferentes formas são sensíveis aos encontros que realizam entre si. É, pois, de encontros e de diferenças que o materialismo nos fala.

Ao manejar signos linguísticos, o poeta constrói novos possíveis para o mundo, inventando corpos semânticos a novas sensibilidades. Por isso, poderíamos dizer que Baudelaire não interpretou a “atitude de modernidade” (Foucault, 1984/2000) da Paris do final do século XIX, mas inventou uma cidade que estava por emergir ao produzir um novo sentido para a experiência urbana. É dessa  imbricação

- exemplificada pelas análises benjaminianas e foucaultianas do poeta parisense - entre experiência, biografia, poesia e ontologia, que o materialismo filosófico nos fala. Viver, subjetivar, escrever e inventar constituem um processo único e que só pode ser dissociado arbitrariamente, tal como destacamos as formas performatizadas pelas nuvens em carneiros, camelos, mapas ou mandalas.

Escrevemos a cidade no materialismo porque nos constituímos mutuamente neste processo: nós e o mundo.

Tal como a matéria, as cidades se repetem e se desviam em altura e hora incerta. Nenhuma cidade é planejada, estrito senso, posto que planejados são apenas os planos aéreos da urbe. No nível do chão viceja ao extraordinário e o imprevisível, cuja existência clinâmica pode associar-se ou repelir-se com a nossa experimentação urbana e com as nossas produções de  sentidos sobre a cidade.

Uma prática materialista  de viver na cidade, para fazer jus ao primeiro materialismo, precisa conservar esse caráter profano dos anjos urbanos, os quais não se recolhem às distâncias olímpicas, mas subvertem a liturgia tanto das práticas religiosas que buscam religar a cidade a sua forma divinamente utópica (a Cidade do Sol de Campanella), como da racionalidade laica que busca redimir a mestiçagem daninha da cidade numa funcionalidade moderna (a Cidade Jardim de Le Corbusier). Nem a placidez orbital dos astros nem as delícias do éden pequeno- burguês, o materialismo conjura por uma cidade em que a construção e a ruína, o novo e o velho, o cânone e o clinâmen, sejam coetâneos. Não é porque os deuses não são responsáveis pelo mundo que o materialismo é uma filosofia iconoclasta, mas porque ele afirma o caráter aberto e em construção dos valores, não sendo possível estabelecer linguagem comum com os deuses para comprá-los ao modo da idolatria e nem linguagem comum com a ciência para convertê-los a uma razão universal tal como na utopia cientificista. O que é radicalmente profano no materialismo não é que não existam deuses, mas que, se existirem, eles também não têm respostas; não é que não existam leis naturais, mas que as leis naturais desconhecem as hierarquias e se reinventam durante a performance.

As práticas idólatras foram originalmente o modo de comunicação agrário do homem com a natureza. Idólatras foram Caim e Abel que compravam a bonança divina com o fruto do seu esforço. O idólatra paga tributos, efetivamente, porque toda a criação agrícola ou pecuária é fruto do excedente de energia divino que faz o trabalho do homem prosperar. O  homem semeia ou alimenta o rebanho, mas na lógica idólatra é Deus quem multiplica, sendo ele o artesão da vantagem energética que recompensa o trabalho com excedentes.  A rigor toda a oferenda idólatra é um pagamento de tributos, o qual apenas devolve uma parte do que já era do Criador. A idolatria agrária é indexável, isto é, cabe numa calculatória de vantagens e desvantagens, daí a fonte da discórdia dos filhos de Adão: que o cordeiro de Abel superava em valor os cereais de Caim.

Sem constituir-se necessariamente como uma filosofia ateia, posto que os deuses, para Epicuro, existiam, porém numa região incomunicável com o universo dos homens, o materialismo filosófico, de inspiração libertária para os parâmetros da época, é fruto de um distanciamento crítico em relação ao mundo natural que é um gesto tipicamente urbano. O poema de Lucrécio foi forjado no calor da indignação com os hábitos etruscos e agrários de sacrifícios virginais em contraposição aos valores urbanos e republicanos que vinham sendo perdidos na Roma do último século antes de Cristo com a ascensão do Triunvirato. Para Lucrécio era improrrogável interpelar a lógica indexável de relação com os deuses que imperava na Roma de I a.C . Era impensável continuar supondo que a vontade divina poderia ser comprada com oferendas.

Na maior parte das vezes foi a religião que produziu feitos criminosos e ímpios. Foi assim que em Áulida os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam vergonhosamente com o sangue de Ifianassa o altar da virginal Trívia (...). Foi levantada pelas mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse, cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para, criminosamente virgem, no tempo em que deverias casar-se, sucumbir, triste vítima imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. (...) E é por tudo isto que devemos não só tratar dos fenômenos celestes, saber por que motivo se dão os movimentos do Sol e da Lua, e que força produz os fenômenos da Terra... (Lucrécio, 1988. p.32-33).

O que se nega no materialismo filosófico não é, pois, que haja a dimensão do desconhecido ou do misterioso. Ao contrário, estando o universo em uma deriva infinita, a partir dos desvios clinâmicos e dos entrelaçamentos sensíveis, o misterioso e o que escapa à razão está em toda a parte, posto que não há forma ou função que preceda o acontecimento. A natureza é sempre improvisadora.  O que se nega é que exista uma relação indexada, ou seja, decomponível em um código comum, entre os acontecimentos do mundo e um plano metafísico ou sobrenatural. O que Lucrécio luta para desacreditar é que se possa equivaler a morte de uma virgem à segurança climática de uma viagem naval. No materialismo filosófico epicurista, os deuses não precisam dos homens e na vida dos homens não interferem. Os deuses no materialismo são os nomes das coisas: “se alguém resolve chamar de Netuno ao mar, e às searas, Ceres, e preferir abusar do nome de Baco a empregar o vocábulo vinho, condedamos-lhe (...) contanto que, na realidade, não manche o próprio espírito com torpes superstições” (p. 55).

No materialismo epicurista o conhecimento das orbes celestes precisa ser conhecido não para fundar a hegemonia de uma racionalidade explicativa a qual ocuparia o lugar dos deuses, mas para esconjurar o sequestro da verdade pela razão universal. Do pouco que nos chegou diretamente de Epicuro (1988) consta:

Adquire-se tranquilidade sobre todos os problemas resolvidos com o método da multiplicidade de acordo com os fenômenos quando se cumpre com a exigência de deixar subsistir as explicações igualmente convincentes. Pelo contrário, quando se admite uma e se exclui a outra, que se harmoniza igualmente com o fenômeno, é evidente que se abandona a investigação naturalista para se cair no mito. (p. 15)

Diferentemente da razão cientificista inspirada em Ockham e sua navalha econômica - que propõe que explicação mais simples deve prosperar sobre as demais igualmente coerentes -, se duas explicações se harmonizam com o fenômeno, não se há de descartar nenhuma. Na natureza clinâmica de Epicuro a razão econômica não é universal. A natureza não conhece apenas a entropia da conservação do movimento, mas, energeticamente perdulária, está sempre inventando, ensaiando, tateando mundos.

Uma escrita materialista da cidade, a rigor, é um jogo, uma dança, um repente, um ponto que incita, provoca, seduz, invoca um porvir para a urbe. E para inventar essa linguagem secreta de criança precisamos de uma laicidade que seja capaz de profanar ao mesmo tempo a razão cientificista e o fervor religioso; e de um materialismo que ao invés de marcial e econômico seja venéreo e feiticeiro.

Os anjos frequentam a cidade ao modo das nuvens.


Redemoinho

O sol queima o asfalto da Avenida Brasil. Volte para a casa. Não se esqueça das lutas entranhadas nos cheiros e nas rugas da cidade. Os anjos conhecidos na caminhada não  retornarão jamais. Sem as quimeras você ganha a leveza perturbadora das nuvens. Pare, olhe para o chão escaldante do Rio de Janeiro. Olhe com os olhos, agora outros. Eu matei este pássaro ontem com uma pedra jogada hoje. Meu nome é Exu10. Sou o deus mensageiro que habita ruas e encruzilhadas. Na minha fúria esta pedra sobre o asfalto atirada no pássaro hoje sangrou ontem. A cidade é matéria à semelhança de uma nuvem. Outros anjos sem Deus poderão voltar. Não espere por eles. Você conheceu o meu tempo, então professor, escreva. Abra a janela. A escrita sobre a cidade é improrrogável.


Referências

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Data de submissão: 07/10/2016
Data de aceite: 30/11/2016



1 Texto retirado do prosa poética de Baudelaire (1995, p. 283) chamado Cada um com sua quimera.

2 Texto  retirado  do  prosa  poética  de Baudelaire  (1995,  p.  283)  chamado Cada um com sua quimera.

3 Texto retirado do prosa poética de Baudelaire (1995, p. 283) chamado Cada um com sua quimera.

4 A  imagem  do  atravessar  a  porta fundamenta-se na diferenciação realizada por Walter Benjamin entre a categoria de fronteira e limiar. Segundo Jeanne  Marie  Gagnebin  (2010,  p.  13-14),

A fronteira contém e mantém algo, evitando seu transbordar, isto é, define seus limites não só como os contornos de um território, mas também como as limitações do seu domínio. [...] o limiar não faz só separar dois territórios (como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável, entre esses dois territórios. [...] o limiar é uma zona (com ou sem as conotações da palavra em português do Brasil), às vezes não estritamente definida – como deve ser definida a fronteira –; ele lembra fluxos e contrafluxos, viagens e desejos.

5  Texto  retirado  da  tese  IX  sobre  o Conceito de História de Walter Benjamin (2005, p. 87). No ensaio O Hino,  a  Brisa  e  a  Tempestade:  dos Anjos em Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin (1997, p.123-130) afirma que,

[...] se os anjos povoam, portanto, o pensamento de Benjamin, esse povoamento subverte, como tantas vezes em Benjamin, a ideia mesma de uma posição estável, de uma pátria definitivamente conquistada, de um enraizamento substancial, seja ele de ordem teórica ou existencial. [...] a intervenção do anjo não se manifesta mais na sua eficácia soberana, mas, sim, neste apelo, ao mesmo tempo imperceptível e lancinante, a interromper o escoamento moroso da infelicidade cotidiana e a instaurar o perigoso transtorno da felicidade.

6 Idem

7 Sobre a história da Avenida Brasil e as relações com a industrialização no Rio de Janeiro sugerimos as análises de Mauricio de Abreu (2006, p.93-114).

8 Segundo Walter Benjamin (2013, p. 21-23),

[...] o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extremada que já existiu. [...] esse culto é culpabilizador. O capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador. Nesse aspecto, tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso [...] O capitalismo é uma religião puramente de culto, desprovida de dogma.

9 Tradução dos autores.

10 Pierre Verger (1987, p. 11) no estudo das lendas da mitologia Ioruba afirma que “Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje. [...] Se zanga-se, ele sapatea uma pedra, na floresta, e esta pedra põe- se a sangrar”. Reginaldo Prandi (2001, p. 63) na análise do sincretismo afro- brasileiro que associa Exu ao diabo da religiosidade cristã alerta para o processo de dessincretização da atualidade:

Nesse processo de dessincretização, que é um dos aspectos do processo de africanização por que passa certo segmento do candomblé , Exu tem alguma chance de voltar a ser simplesmente o orixá mensageiro que detém o poder da transformação e do movimento, que vive na estrada, freqüenta as encruzilhadas e guarda a porta das casas, orixá controvertido e não domesticável, porém nem santo nem demônio.

I Luis Antonio Baptista: Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Sociologia Urbana na Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma La Sapienza, Itália. É professor Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPQ. E-mail: baptista509@gmail.com

II Rodrigo Lages e Silva: Doutor em Psicologia: estudos da subjetividade, pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atualmente é professor adjunto no Departamento de Estudos Básicos (DEBAS) da Faculdade de Educação - UFRGS.E-mail: lagesesilva@gmail.com

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