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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2017

 

ARTIGOS

 

... Cartografia... uma política de escrita

 

... Cartography... a write policy

... Cartografìa... una política de la escritura

   

 

Maria dos Remédios de BritoISilvia Nogueira ChavesII

I Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil.

II Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente ensaio promove algumas reflexões sobre a ideia de cartografia a partir da Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze. Seu objetivo principal é movimentar um plano de composição entre as linhas da escrita acadêmica, entendendo que a cartografia não seria um método, mas um modo de experimentação, de avaliação da vida, que põe a escrita como uma política da existência.

Palavras-chave: Cartografia; Deleuze; Política de Escrita.


ABSTRACT

This test promotes some reflections about cartography idea from philosofy of difference Gilles Deleuze. Its main purpose is moving a compound plan between the lines of academic writing, understanding that the cartography would not be a method, but an experimental manner, evaluation of life, that puts writing like a politics of existence.

Keywords: Cartography, Deleuze, Writing Policy.


RESUMEN

Este documento oferece algunas reflexiones sobre la idea de la cartografía de la filosofía de ladiferencia de Gilles Deleuze. Su principal objetivo es mover un avión compuesto entre las líneas de la escritura académica, entendiendo que la cartografía no sería un método, sino un modo de prueba, la evaluación de la vida que pone la escritura como una existencia política.

Palabras-clave: Cartografia; Deleuze; Política de la Escritura.


 

 

O que conta numa multiplicidade não são os termos ou os elementos, mas o que há “entre”, o between, um conjunto de relações não separáveis umas das outras. Toda multiplicidade cresce pelo meio [milieu], como um raminho de grama ou rizoma (...) Uma linha não vai de um ponto a outro, mas passa entre os pontos, sem parar de bifurcar e de divergir, como uma linha de Pollock (Deleuze, 1969, p. 9).

 

 

Pintura: Maria dos Remédios de Brito.

Linha I

O ensaio pondera algumas reflexões sobre uma ideia de cartografia, tomando as seguintes questões como mobilizadoras da escrita: Seria a cartografia um método? Como funciona a cartografia? Como pensar uma ideia de cartografia com pesquisas acadêmicas? As inspirações sobre essas questões estão lançadas pelas leituras do filósofo francês Gilles Deleuze, o intercessor dessa viagem do pensamento que não tem pretensão de completude. Além disso, será experimentado um breve exercício de escrita acadêmica não objetiva como ensaio final para pensar outras formas de grafias.

Linha II

A cartografia não é um método; quem sabe, poderia ser posta, mas não definida, como um procedimento ou mesmo como um plano de composição. Sendo assim, há um trabalho pelas aberturas, pelos meios, pelas zonas, pelos movimentos, pelas linhas de desejos e de conexões. Sua dificuldade por essas zonas é que não há um dado a ser decifrado ou definido em sua forma mobilizada como um estado de coisas. Também não há roteiro a priori que ofereça um percurso para a investigação; não há um como fazer antes de entrar em zonas de singularizações e heterogeneidades.

A cartografia entra em um campo de virtualidades que está sempre aberto, pois os modos de existir confirmam intensidades e movimentos que se compõem por variedades de agenciamentos. Seus modos estão nos encontros e em suas forças. Estes impõem a qualidade da potência nos seus movimentos, que são de latitudes (afetos/encontros) e de longitudes (movimentos de velocidades, lentidões e repouso).

A cartografia desenha um mapa que não tem ligação com o decalque e nem com a colagem, pois é composta por linhas que são suscetíveis a variações permanentes. Essas linhas são diversas, tais como: linha segmentária dura ou molar, que compõe uma variedade, como a família, a profissão, a religião, a escola, a fábrica, a empresa etc. Há diversos tipos de segmentos nesses setores, alguns bem separados e formalizados uns dos outros. Porém, essa linha pode variar em flexibilidade molecular. Tais linhas atravessam pessoas, indivíduos, estado, sociedade, grupos, podendo traçar pequenas modificações, fazer fluxos moleculares, esboçar quedas ou outros movimentos.

Há ainda uma terceira linha, aquela que pode ser dita como impossível, pois passa como se algo estivesse sendo levado para uma espécie de destino desconhecido, não pré- calculado. Ela parece ser a mais complexa e complicada de todas, sendo chamada de linha de fuga, em que qualquer declive é possível uma queda irremediável. Ela arranja alguma coisa forte da ordem do mistério, como se fosse apenas um trajeto de uma alma, uma passagem, um salto de um bailarino, um sorriso de uma criança, o grito de um desesperado, o traço da pintura triunfante dos girassóis de Van Gogh, um choro de uma mãe de alegria ou de tristeza, uma morte... Essa linha parece sugerir a separação das outras, porque talvez existam indivíduos que nunca a sintam ou vivam ou que só sintam as outras em seus corpos, algumas mais duras, ou mais flexíveis; para Deleuze (2004), essa linha existe e não é separada das outras ou quem sabe são as duas primeiras que até possam ser derivadas dela.

As três linhas são imbricadas e imanentes... Essas linhas são como as linhas das mãos, intercruzadas. A cartografia seria, então, o movimento dessas linhas. Como traçar o mapa dessas linhas em uma pesquisa acadêmica? A tarefa parece não ser tão fácil, principalmente quando se está ainda impregnado por processos representativos... Quando a cartografia exige uma variação diferencial no modo de pensar e criar o que passa pelo campo de imanência, solicita toda uma variação no como lidar ou criar um problema. Tal problema emerge quando o pensamento é violentado, forçado pelo signo, pelos encontros, padecendo de um efeito exterior. O critério não tem nenhuma ligação com adequação ao dado, pois é a efetividade do pensar que impõe sentido ao dado. O signo é uma força que avalia, escolhe e demarca a preferência. O signo é aquilo em que se atribui sentido quando se é violentado.

Linha III

O suposto “cartógrafo”, não sendo um etnógrafo, não se coloca como um observador, mas está no meio do processo mobilizado por entre forças e afetos que o atravessam no emaranhado das linhas vitais, retirando de si a ideia de um sujeito conhecedor e detentor do conhecimento; não há um “eu” como um centro, uma subjetividade fixa, unificada, monolítica, capaz de dizer ou interpretar um suposto objeto fora de si, posto que não há o objeto e nem mesmo o sujeito do conhecimento. O que está em questão é como se entra em relação com o desconhecido, o que se faz com aquilo que nos atravessa como signo.

O que leva um “sujeito” pensamente a interagir com mundo e como ele promove tal relação? Para Deleuze, pensar desloca qualquer ideia de sujeito consciente, pois tudo que há são processos de individuações. Além do mais, não há realidade em si para ser representada pelos seus dados oficiais ou verídicos que possa gerar uma verdade idêntica.

O mundo exterior devém interessante quando ele faz signo e perde, assim, sua unidade tranquilizadora, sua homogeneidade, sua aparência verídica. E, de certa maneira, com a condição de ser sensível a isso, o mundo não para de fazer signo e se compõe só de signos... (Zourabichvili, 1994, p. 65).

Aquele que se diz cartógrafo está emaranhado na sua cartografia, sem saber efetivamente a priori quais são os efeitos. Seu itinerário é gerado pelas forças do fora, em que aquilo que se pode chamar de “pesquisa cartográfica” é dobrada e habitada entre as zonas vitais, os territórios são móveis, pois não objetiva representar, visto que não há verificação, resolução, fidelidade, levantamento e interpretação de dados, nem mesmo há uma verdade para ser representada no ou pelo dado, tudo sendo maquinações. Não há um liame que separa pensamento, realidade e verdade...

Linha IV

Com isso, que perguntas podem ser mobilizadas por esse procedimento ou campo de composição? Deleuze oferece uma dica importante no seu texto de 1967, O método de Dramatização, quando remete para a questão do conceito de Ideia, que leva para uma inseparável composição de questões; ele afirma que tal conceito expede uma objetividade (objectié), que remete para uma maneira de levantar certas questões. Segundo ele, “é no platonismo que a questão da Ideia é determinada sob a forma: Que é...? Essa questão nobre é tida como concernente à essência e opõe-se a questões vulgares que remetem apenas ao exemplo ou ao acidente. Assim, não se perguntará pelo que é belo, mas o que é o Belo...” (Deleuze, 1967, p.130). Esse exemplo levaria para perguntas que concerne o que “é”. Aquele que se diz cartógrafo não perguntaria pelo que é, não desejaria a essência de alguma coisa, mas sentiria o seu encontro, ou seja, como estou compondo ou decompondo com isso que afetou o meu corpo? Que forças o atravessou. A vida e suas relações não é uma Ideia ou Teoria, mas um modo de ser e existir que arrebata valores, avaliações e sentidos. Campo heterogêneo...

Linha V

O “procedimento ou plano de composição cartográfico” se torna um modo de invenção em que a vida, com suas potências de afetar e ser afetada, seria um inspirar, despertar, sentir, avaliar. Seria isso? ... suspeitas, espreitas, dúvidas. Nesse processo de habitar a diferença não há completude e nem verdades absolutas. Por isso, não existe surpresa com a consciência, pois ela não pode dizer ou revelar grandes coisas, como já pontuara Nietzsche claramente em vários de seus escritos. O que surpreende é o corpo... Há toda uma questão de desconstrução que põe o corpo não como superior, mas como um questionador da consciência. Como um corpo pode compor ou decompor com os seus encontros? O que acontece nessa relação de potência e o que isso pode proporcionar e afetar?

Nada sabemos quando colocamos o conhecimento e a consciência em ordem de prioridade. É por isso que a consciência é um sentimento contínuo de uma passagem que entra em variações a partir de uma espécie de totalidade que não se torna poderosa em grandeza ou em dados, mas em potência. A consciência, assim, como diz Deleuze (1967), é transitiva, não sendo, portanto, “uma prioridade do todo, nem mesmo de um todo particular” (Deleuze, 1967, p. 27). Qual seria sua validade? Pobremente informativa, mesmo que tal informação seja confusa, tosca e incompleta. Nietzsche é o mestre desse ensinamento.

Linha VI

São os pontos singulares que podem ser sentidos ou visualizados, não a coleta de dados, pois essa se produz com efetiva objetividade/neutralidade, ocorrendo todo um impedimento do corpo e suas potências... Então, parece que cartografar tem como campo efetivo aquilo que é implicado. Para a academia, isso tudo poderia ser sem sentido, nada a dizer ou comunicar, pois não há quantidades, números, estatísticas... há sim, outros movimentos que dizem respeito aos acontecimentos singulares.

Deleuze, em sua entrevista Resposta a uma questão sobre sujeito, datada de 1988, afirma que “os acontecimentos colocam questões de composição e de decomposição, de rapidez e de lentidão, de longitude e de latitude, de potência e de afeto bastante complexos” (Deleuze, 1988, p. 372). Estes vão para além de qualquer personalismo, psicologia ou alguma coisa da ordem da linguística, pois não seria um eu ou um mim, mas a multiplicidade que violenta o corpo, que nos rouba a paz.

Os intercessores são fundamentais para aquele que se lança, como uma espécie de paciente, que é “arrombado por um signo que coloca em perigo a coerência ou o horizonte relativo de pensamento no qual até então ele se movia” (Zourabichvilli, 1994, p.51). Os intercessores não são um aí, mas encontros, exterioridades das relações. Assim, como “isso” se compõe ao compor ou decompor com o corpo afetado? A cartografia é um lançamento aos encontros, que são gerados pelas dobras produzidas mediante as passagens por territórios, em que o corpo é posto frente às forças que o atravessam e o desterritorializa e o territorializa... O acaso o ronda...

Sim! O corpo é efetivamente um fator muito importante, pois é ele que sente, que vive nos cruzamentos dos afetos e das forças. Como diz Deleuze, não sabemos de antemão o que pode um corpo, na esteira de Espinosa. Ora, caberia perguntar: O que seria efetivamente um encontro? É pertinente deixar de lado a noção dicionarizada ou mesmo a palavra comum, como achar alguma coisa, encontrar algo perdido... O encontro é aquilo que surpreende, que promove uma violência no e com o pensamento, faz alguma coisa sair do eixo, leva a ideia para a ordem da criação, nada a imitar, mas alguma coisa passa pelo meio, devém outra coisa.

Sendo assim, o encontro é povoado, pode ser também visto como uma solidão povoada, sempre alguma coisa que não deixa o corpo somente passivo. O corpo necessita dos intercessores, pois são eles que fazem com que se crie. Dessa maneira, o encontro é ziguezagueante, alguma coisa atravessa o corpo e coloca-o no meio das multiplicidades, que pode ser um diário, uma imagem, um livro, uma poesia, uma dança, uma música... signos povoam os encontros de todas as formas, por isso, o encontro é sempre das singularizações, nunca das generalidades.

Deleuze vai longe sobre a ideia de Encontros, no Abecedário de Gilles Deleuze (1988), quando fala da ideia de Cultura, ele diz não acreditar em cultura, mas em Encontros, e afirma algo que até pode assustar: não se tem encontro com pessoas, mesmo as pessoas podendo achar que os encontros são com elas. No seu livro Conversações, ele acha um horror a ideia de colóquios, escolas de pensamento, tudo isso é uma infâmia, pois não se tem encontros com pessoas, mas com obras, um quadro, um som, um escrito, um filme. Quando se pensa que se tem encontros com pessoas, isso é terrível e decepcionante ou mesmo catastrófico... Com isso, um encontro cartográfico é possível a partir da eminência de signos e suas forças... O que poderia ser posto como insignificante geraria grandes forças criativas e potentes para uma vida. Pois,

...quando o pensamento assume as condições de um encontro efetivo, de uma autêntica conexão com o fora, então ele afirma o imprevisível ou o inesperado, acampa sobre um chão movediço que ele não domina, e ganha aí sua necessidade (Zourabichvili, 1994, p. 52).

A cartografia é força do inexplicável, quando o cartógrafo encontra a força do signo, abandona a lógica, a confusão do ilogismo e do irracionalismo e afirma o acaso, o desconhecido, já que a razão conclui sua não fundamentação. O conhecimento pode ser entendido como possibilidade circunstancial e não como capacidade. Pode aqui existir o não sentido (non- sens), a besteira..., mas cuidado, pois a besteira não é um erro, um engano, uma falsidade, fazendo o pensamento ser visto como inimigo que deve ser perseguido pelas lógicas binárias. O que não se deve esquecer é que há pensamentos imbecis recheados de verdades. O elemento que o cartógrafo deve estar atento é colocar a diferença na própria ideia de verdade e de conhecimento, mas qual o sentido e o valor do verdadeiro ou do falso? Trata- se de avaliar o valor dos valores, colocando o sentido e o não sentido não em oposição, visto que não há apelo pela realidade e nem pela verdade postuladas.

O elemento do verdadeiro é submetido ao critério diferencial do sentido e do não sentido. A diferença se introduz também no falso: erro ou recognição malograda/falso problema. A verdade não é relegada ao segundo plano, o que seria contraditório, mas concebida como uma multiplicidade. Submeter o verdadeiro e o falso ao critério do sentido é introduzir no elemento da verdade ou da oposição verdadeiro falso uma diferença de nível, uma pluralidade de graus. De modo algum se trata de graus de probabilidade indo do verdadeiro ao falso, de 1 a 0, como nas lógicas polivalentes, ou de distâncias variáveis entre o verdadeiro e o falso; trata-se, isto sim, de diferentes planos, hierarquizáveis, de verdade-falso. Em outros termos, o modelo da recognição não pertence de direito ao conceito de verdade, sendo apenas uma determinação deste, de onde deriva a ideia de adequação, que supõe a preexistência de um objeto ao qual o pensamento vem igualar-se (Zourabichvili, 1994, p. 55-56).

A questão que se passa é a seguinte: Como elaborar um problema? Como introduzir um campo problemático sem cair na besteira, nas falsas colocações ou mesmo nas afirmações por negações? Não é só saber interrogar, alguns se organizam para escapar do devir e encontrar um resultado definido, alguns o adquirem a solução de antemão, pois um problema, como elemento criativo, inventivo, não tem ligação com a interrogação, que é somente uma proposição, do mesmo modo quando se faz uma pergunta já pressupondo uma resposta preexistente no dado; isso a leva para uma região ontológica.

Deleuze (1953) é claro; o dado não está aí. Uma questão é um problema a ser desenvolvido e não consiste em resolver problemas, mas ir a um extremo das implicações necessárias de uma questão que é formulada. Há aí um componente fundamental: a experimentação, levantar e criticar problemas, isso não remete à adequação, à verdade, à fidelidade a dados, à identificação, mas à criação, à produção de ideias, o que implica outros movimentos que não é encontrar um objeto exterior, preexistente.

O ato de criação dos seus próprios problemas não é a verdade que é desejada ou amada em oposição ao falso, mas qual sentido? Qual o valor? As questões não são dadas, mas criadas na conexão com os encontros e com os signos. O que seria problemático? Efetivamente, o ato de criar não está pronto para ser limpo e encontrado; para isso, não existe uma unidade tranquilizadora. Tudo isso é uma problemática da criação filosófica...

Como, então, entrar em uma zona de criação dos nossos próprios problemas, inspirados no pensamento Deleuziano? Não há, claro, uma resposta que pode ser dada e oferecida para aqueles que estão em companhia desse pensador, pois o próprio não oferece respostas; ele, ao contrário, golpeia, instiga, estilhaça, se põe ao leitor e nada mais... Cada um estaria em sua própria sorte?! A Violência do fora impõe a cada um que pense, que entre em uma agressividade crítica, que possa converter sua besteira em malevolência, pois seja a filosofia, a biologia, a psicologia, não há coisa em si, mas apenas forças que deles são apoderadas... São tão somente signos, não há natureza, coisa em si, essência, dado naturalizado (Zourabichvili, 1994).

Sendo assim, a criação se exerce não quando importa a verdade ao dado ou retira alguma coisa que está implícita em um objeto, mas quando tal “objeto” é tratado como signo, pois tal signo é elemento de uma escolha, de uma avaliação, de um sentido, de um critério. Aqui, Deleuze, nos oferece um cenário do que seria viver, pensar, sentir: modos de existência que perpassa efetivamente pelos processos de individuações... Por isso, que encontrar não remete a reconhecer, adequar, ao contrário, leva o pensamento não só à sua ignorância, mas o conduz por um estranho percurso, fugaz, movediço que vem sempre de sua relação com o fora...

O corpo do cartógrafo é afetado, jogado, abandonando os formatos prontos, retilíneos, fazendo de si um corpo intenso, desfigurado, pois o plano de imanência pelo qual ele é lançado, que promove seu campo de experimentação, não é mais regido pelo eu, não há uma forma consciente, há somente a subjetividade. O ato de criar – pensar não é inconsciente, mas ele se engendra inconscientemente, além da representação...

Linha VII

O procedimento cartográfico vem entrando nas pesquisas acadêmicas, porém, sofre adaptações perigosas quando se diz metodologia e impõe à pragmática uma imobilidade. Por outro lado, a sua entrada nos territórios acadêmicos pode ser interessante, na medida em que pode fissurar a rigidez da objetividade das pesquisas e seus modos representativos, fazendo pequenas rupturas nesse cenário que ainda preza pelo pensamento dogmático. Mas não se quer com isso demonizar o método, pois não há pior ou melhor, mas pensar que tipo de configurações produzem modos de existir, modos de sentir a vida. Ou seja, que forças estão sendo mobilizadas, que vidas estão sendo criadas, pois é sabido que se precisa um pouco do mesmo, do mesmo modo que se deseja o fora do mesmo.

A questão é: O que fazer com esse pensamento arbóreo nas pesquisas acadêmicas que nos atravessa e nos coloca em um campo perenizador? Ou como lidar com os fluxos, com as linhas flexíveis que nos jogam em mar aberto, que provoca o cartógrafo, alguma vezes, a arborizar rizoma, fazer sujeito e objeto e com isso empobrecer o procedimento cartográfico que se movimenta tão somente por transversalidades e não binaridades? Ou como lidar com a efetividade dos movimentos? Que o pensamento exercite os seus problemas para além da besteira...

A cartografia quando entra nas pesquisas acadêmicas solicita do leitor, escritor, pesquisador ser abordado pelas linhas variantes. Não há modelos, mas exercícios, disposições para inventar outras grafias ou criar gagueiras na língua.

Linha VIII

Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência, beatitudes completas. (Deleuze, 1995. p. 12).

 

 

Pintura: Maria dos Remédios de Brito.

A seguir será apresentado um tipo de escrita que insiste em não ser capturada pela objetividade acadêmica. Uma espécie de exercício que pode fissurar a neutralidade, os produtos e chama a imanência como um processo vital que percorre a diferenciação para além das relações sujeito e objeto. É um experimento leitura de um parecer de uma dissertação de mestrado... pesquisa acadêmica... Uma zona, uma política... Uma zona de experimentação da escrita... A professora Silvia Chaves ensaia sua política de escrita entre Dores e cores de se escrileggere uma Tese1

Escrever, experimentar, exercitar grafias abertas 

Barcos, rios, ilhas, coordenadas, paralelos, meridianos, latitudes, longitudes, pontos cardeis, rosa dos ventos sextantes, astrolábios, cartógrafos, bússolas, cartas náuticas, e toda sorte de equipamentos de navegação, ufa!

Embarco hoje nessa metafórica viagem, nessa egotrip de Jorge, o cartógrafo, sentindo-me mais ou menos como Caronte, o barqueiro das almas, de Dante, ou, quem sabe (?), como um dos barqueiros do teatro vicentino, a espera das almas em um braço de rio, para conduzí-las à barca da glória ou a do inferno. Qual das barcas conduzirei?

Estranha essa tarefa de analisar autobiografias. O que dizer de uma autobiografia? Como julgar, avaliar uma vida? O que dizer ao seu autor? Muito boa essa sua vida, parabéns, você fez as escolhas certas, a você todo o néctar e mel... ou, que pena, caminho errado, péssimas escolhas, já pra brasa, mora? Se for espírita pode-se dizer; volte e recomece. Se for materialista, coitado... melhor mesmo que nada exista depois, nessa horas o nada cai tão bem!

Mas se falamos de auto(bio)grafia porque me ocorre a morte, ou juiz final como metáfora? Ora, o que é o juízo final senão o encontro que faz o ser consigo mesmo? Uma espécie de confissão, de retorno, de revisão da vida, um repisá-la, revivê- la, recontá-la naquilo que nós a significamos enquanto ela nos significou? É desse encontro consigo dessa viagem para si que nos fala Jorge, é nessa história que nos convida a entrar, ou melhor, mergulhar.

Mergulhei nas águas desse cartografema orientada por duas coordenadas: ciência e arte, procurando lembrar o alerta que faz a Bússola – não esqueça que isso é uma dissertação de mestrado – sem deixar de ouvir os apelos do cartógrafo – não esqueça que isso é a dissertação de um artista!!!

Na coordenada científica senti- me aprisionada num labirinto de palavras e ideias, que se repetiam à moda do play it again, Jorge. Fiquei boiando numa espécie de “feitiço do tempo”, sem compreender muito bem a encantaria que faria as águas correrem novamente, deixando fluir o rio/mar do cartógrafo. Coisas de labirinto, papo de curupira que me fez andar em círculos. Alí, incorporando uma entidade da academia, tentando convencer pela argumentação racional, Jorge, o cartógrafo, recorre a todo tipo de xamanísmo. Evoca os orixás pós-modernos, pós-críticos, pós- estruturalista, pós-pops, pós-tudo pra convencer os, barqueiros, (ou seriam as barqueiras) de que seu trabalho é uma pesquisa; tem problema; objeto delimitado, objetivo; relevância pessoal, acadêmica e social. Lança mão até do velho e todo poderoso refrão - já comprovado pela ciência - na página 61, apelando agora para todos os mentores, magos e deuses da saudosa e segura modernidade. Francis Bacon, o filósofo, gostaria disso!

Viajei com Jorge nestes fluxos e refluxos até a redentora página 71, quando saídos dos labirínticos e estreitos furos avistamos o rio/mar. Pausa para respirar, era o interlúdio necessário para mergulhar numa outra rota-roteiro agora numa espécie de alucinação do passado. Gostei. Alucinei junto.

Flashes de um passado que também vivi, uma viagem aos anos 80, na movida mangueirosa. Nos mesmos bares, bailes, as mesmas trilhas literárias, sonoras, também embalaram a minha história. Talvez tenhamos nos esbarrado no Maracaibo, sentado lado a lado no hemorrágico universidade, que naquela época era pintado de um vermelho sangue, nas modorrentas e calorentas viagem das duas da tarde, cada um perdido em suas próprias alucinações de um futuro que nos espreitava.

Um lugar deve existir, uma espécie de bazar onde os sonhos extraviados vão parar. Acho que encontraste esse lugar, de que nos fala Chico Buarque. O bazar onde foram parar teus sonhos, mas também os da tua geração, que também é a minha.

Mas nos sonegaste, guardaste só pra ti o mapa que leva a ele, mas agora não escapas de contar. Conta-nos agora o caminho das pedras, que filtros usaste para coar as memórias? Certamente não terão sido só estes episódios de tua vida em que arte e docência se cruzaram, mas foram esses que elegeste ou eles se impuseram? Será alguma heresia pedir ao artista que conte o seu percurso criativo? Se for, pergunto ao pesquisador.

Em seus momentos finais, Jorge desperto, disperso em mil cacos de lembranças, memórias achadas, os tais fragmentos, biografemas de Barthes, cartografemas, como prefere nosso cartógrafo, faz promessas, para despistar? Promete virar roqueiro, zen- surfista, recorre à armas e as orações de São Jorge guerreiro, pede todas as licenças, poéticas, acadêmicas, literárias numa suspeita retirada, à francesa, de fininho... Calma Jorge, você já cruzou a fronteira, algo já morreu e algo já nasceu, só não sabemos, ainda, se para a glória ou para o inferno eternos... Parecem ser esses os finais das autobiografias, desse encontro consigo mesmo. Cruza-se sempre uma fronteira, há frequentemente um quê de morte que as atravessam. Morre o autor ou o personagem. Foi assim com Neruda em suas confissões, com o Palomar de Calvino, quando decidiu explorar sua própria geografia interior. Foi assim, em o estrangeiro de Albert Camus e com Jacob, no filme, em suas Alucinações do passado.

Espelho poderoso as autobiografias são implacavelmente letais. Ninguém parece escapar ao rito de passagem que encerram. Não sairás incólume da tua, Jorge. Eis que chegou a hora deste egocartógrado, nosso Mercator tupiniquim, tendo cruzado a fronteira, nos contar, já quase do além, o que morreu? O que nasceu nesse percurso do artista, do professor, ou melhor, no artista-professor?

Belém. 15 de maio de 2009.



Referências

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Deleuze, G & Parnet, C. (1988). O abecedário de Gilles Deleuze. Recuperado em 18 janeiro, 2017, de http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+D eleuze.pdf        [ Links ]

_____. (1977/2004) Diálogos. Trad. José Gabriel Cunha. Lisboa,Ed. Relígi d’água.

Zouravichvili, F. (2016). Deleuze: uma filosofia do acontecimento. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo, Ed. 34.         [ Links ]

Data de submissão: 23/09/2016
Data de aceite: 07/11/2016


1 Texto produzido para a análise/arguição da dissertação de mestrado “Cartografemas: Fragmentos autobiográficos de um artista- professor”, defendida por Jorge Eiró da Silva, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Pará, em 2009.

I Maria dos Remédios de Brito: Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Pará. Pós- Doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Faz estudos com a Filosofia da Diferença tomando como conexões Educação e Filosofia. É Professora da Universidade Federal do Pará/Instituto de Educação Matemática e Científica. E-mail: mrdbrito@hotmail.com

II Silvia Nogueira Chaves: Professora do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas do Instituto de Educação Matemática e Científica, da Universidade Federal do Pará. E-mail: schaves@ufpa.br

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